4631 A ARTE TEATRAL COMO INSTÂNCIA EDUCATIVA DOS NATALENSES (1914) Sônia Maria de Oliveira Othon* Universidade Federal do Rio Grande do Norte RESUMO O Desembargador Joaquim Ferreira Chaves Filho, que governou o Rio Grande do Norte por dois mandatos (1894-1899 e 1914-1920), atribuía ao teatro quase o mesmo status assumido pela instituição escolar diante da sociedade. Para esse governante, o teatro correspondia a uma escola de fecundos ensinamentos educativos e a um instrutivo entretenimento cultural adequado para moldar inclusive valores e princípios republicanos nas crianças, nos jovens e nos adultos norte-riograndenses, pensamento partilhado por todos os demais dirigentes brasileiros dessa época quanto aos seus governados. No Brasil, a irradiação da arte teatral, desde fins do século XIX, torná-la-ia uma diversão pública de primeira ordem voltada para educar os concidadãos à luz da cultura letrada, uma vez que o entretenimento permeado pela idéia de aprimoramento intelectual e moral da população, concernente à nova ordem social e republicana, era uma das tarefas da cidade letrada na virada do século XIX para o XX. Tendo em vista a vigência desse alto conceito ainda gozado pelo teatro de então, o presente trabalho tem como objeto de estudo três espetáculos teatrais apresentados em Natal, capital do Rio Grande do Norte, durante o ano de 1914. O primeiro deles, “Esses Primos...”, de autoria do norteriograndense Ivo Filho, encenado pelo grupo amador local Ginásio Dramático; o segundo, o musical infantil (sem referência de título nem autor) encenado pela ‘troupe’ Galhardo, de renome nacional; e o terceiro, “A Dama das Camélias”, do dramaturgo francês Alexandre Dumas Filho, a cargo da internacional Companhia Dramática Portuguesa. Objetiva-se refletir sobre os ensinamentos educativos e modelos culturais veiculados por cada um desses espetáculos perante o público natalense daquele ano. A análise metodológica adotada ampara-se na noção de pedagogia cultural, segundo o entendimento de Steinberg (1992), para quem o ato de educar ocorre em variadas instâncias sociais, incluindo a escola, e, para além dela, se efetiva no cinema, na empresa, no esporte, bem como no teatro, tidas como instâncias dotadas de uma pedagogia cultural implícita. Em sentido amplo, a arte teatral gera ensinamentos culturais, valorativos, lúdicos e morais e se constitui excelente lugar de sociabilidade e de trocas culturais e simbólicas. Em termos de conclusões, a análise das encenações, segundo seus títulos, temas e críticas jornalísticas natalenses da época, evidencia uma ênfase nas relações familiares mais próximas, um estímulo aos pendores artísticos e estéticos infantis, o combate aos vícios e comportamentos socialmente reprováveis, a exemplo da prostituição, bem como o alerta às autoridades políticas quanto à necessidade da abertura de escolas de música e teatro para desenvolver os talentos artísticos de crianças e jovens estudantes. Desse modo, pelas três encenações referidas e apresentadas em Natal no ano de 1914, percebe-se que a pedagogia cultural do teatro nelas contida agia no sentido de exercer um papel instrutivo e formativo em prol da vida em sociedade, de veicular modelos de comportamento que primassem pelas relações familiares estáveis e de orientar moral e socialmente os cidadãos natalenses acerca de temas como a educação artística e estética, no tocante às quais a escola regular de então ordinariamente negava incentivo e desenvolvimento. Desde a instalação da República no Brasil, o teatro, paralelamente à educação escolar formal, busca exercer um papel pedagógico relevante na formação cultural do povo brasileiro, em geral, e dos natalenses, em particular. * Graduada em História, Mestra em Educação pela UFRN. E-mail: [email protected]. UFRN. 4632 TRABALHO COMPLETO Em sentido amplo, a arte teatral, detentora de uma identidade multifacetada, agregando a si a literatura, a religião, a história, a pedagogia, a música, a língua vernácula e as artes visuais – estas, por sua vez, condensando o cenário, o figurino e a própria atuação dos intérpretes em cena – gera ensinamentos culturais, valorativos, lúdicos e morais. Instância educativa ao lado da escola, como o cinema e a festa, entre outros, o teatro constitui excelente lugar de sociabilidade e de trocas culturais e simbólicas. No Brasil, durante o período colonial, o teatro assumiu um caráter religioso por meio das pecas catequéticas jesuíticas, porém, paulatinamente introduziu espetáculos seculares destinados a celebrar os acontecimentos político-sociais de iniciativa da autoridade civil. Sob o regime imperial, o teatro cumpriu um papel um papel bem mais amplo e ao mesmo tempo inovador. Amplo em relação à diversidade de casas teatrais e, com elas, autores, elencos e grupos teatrais; inovador, quando adota em definitivo a comédia e a revista como os gêneros mais populares e identificados com o caráter nacional. Com a instalação do regime republicano em 1889, a arte teatral torna-se mais consciente de sua pedagogia formativa e instrutiva do povo. A irradiação da arte teatral, desde fins do século XIX, tornála-ia uma diversão pública de primeira ordem voltada para educar os concidadãos à luz da cultura letrada. O entretenimento permeado pela idéia de aprimoramento intelectual e moral da população, concernente à nova ordem social e republicana, era uma das tarefas da cidade letrada na virada do século XIX para o XX, aficionada pela “[...] ampliação educativa que em todos os lados se realizava [...]”, conforme as formulações de Rama (1985, p. 125). Na Capital do Rio Grande do Norte, o Governador Joaquim Ferreira Chaves expressara-se, em seu primeiro mandato, a respeito da necessidade de construir um edifício teatral público para Natal, afirmando que [...] em todos os tempos e por toda a parte as diversões públicas se têm imposto como necessidade de alto valor para o espírito e coração do povo que, fatigado das constantes labutações da vida positiva, aspira alguma coisa que lhe venha amenizar as asperezas da luta todos os dias travada contra a contingência do próprio ser. E o teatro, escola e recreio, escola de fecundos ensinamentos, recreio de agradáveis expansões, satisfaz plenamente essa necessidade (MENSAGEM DIRIGIDA PELO GOVERNADOR..., 1899, p. 16). O teatro como ‘escola de fecundos ensinamentos e entretenimento’ para moldar no povo os valores republicanos, eis, então, o seu papel pedagógico primordial. Tendo em vista esse alto conceito gozado pelo teatro de então na capital norte rio-grandense, o presente trabalho – apoiado em fontes documentais oficiais, jornalísticas e bibliográficas –, tem como objeto de estudo três espetáculos teatrais apresentados em Natal, capital do Rio Grande do Norte, durante o ano de 1914, objetivando interpretar sua pedagogia cultural: “A Dama das Camélias”, encenado pela Companhia Dramática Portuguesa, de fama internacional, “Esses Primos...”, encenado pelo grupo amador local Ginásio Dramático -, e, por fim, o musical infantil (sem referência de título) da ‘troupe’ Galhardo, de renome nacional. Utilizou-se o entendimento de pedagogia cultural do teatro de conformidade com Othon (2003), para quem existe uma intenção pedagógica subjacente a toda criação teatral, perceptível tanto na leitura do texto dramático quanto na do espetáculo cênico. Para essa historiadora, o teatro encerra um papel pedagógico, educativo e formativo, pois, de muitas maneiras e nuanças, veicula e socializa por meio do texto dramático e de sua encenação, ensinamentos de ideais, idéias e valores sociais e morais. Tal entendimento foi pensado a partir da elaboração de Steinberg (1992), para quem o ato de educar ocorre em variadas instâncias sociais, incluindo a escola, e, para além dela, ocorre no cinema, na empresa, no esporte, entre os quais se pode incluir o teatro, apesar dessa instância ter sido negligenciada em seu texto. No tocante às encenações apresentadas no ano de 1914, em Natal, dispõe-se apenas de noticias do jornal A Republica. Para fazer frente às lacunas documentais, Patriota (2004, p. 241) recomenda: 4633 “se o objeto de investigação não tiver sido registrado com [...] detalhamento, caberá ao pesquisador, por meio dos fragmentos disponíveis, construir suas possibilidades interpretativas”. Em matéria de teatro, mais difícil do que contar com a dramaturgia é recuperar a cena em que esse texto assumiu a materialidade no palco. A esse respeito, o pesquisador da história das artes do espetáculo, Alberto Tibaji, afirma que a cena dispersa-se no tempo e no espaço. Essa dispersão acarreta um árduo trabalho para o historiador, na medida em que ele deve recorrer a uma variada gama de documentos que impõem dificuldades diferenciadas para serem lidos. [...] Diante da dispersão, a tarefa do historiador é, através dos documentos existentes, recompor a cena, colocando-a diante dos olhos dos leitores (TIBAJI apud PATRIOTA, 2004, p. 240). No início de 1914, assumia pela segunda vez o governo do Rio Grande do Norte Joaquim Ferreira Chaves, empossado no Palácio do Governo, na tarde do dia 1o. de janeiro, e legitimado no cargo em sessão cívica realizada pelo Partido Republicano, à noite, no Teatro Carlos Gomes, de Natal. Ele sucedia o mecenas das artes potiguares, Alberto Frederico de Albuquerque Maranhão, que terminara em dezembro último seu segundo mandato como governante do Estado. Se em seu primeiro mandato (1896-1900) o Governador Ferreira Chaves enxergara o teatro com uma fecunda escola de ensinamentos e de entretenimento (MENSAGEM DIRIGIDA PELO GOVERNADOR..., 1897), acreditava-se que no segundo ele manteria o mesmo posicionamento em relação a essa arte, uma vez que entendia esse governante que “[...] um povo sem instrução é um povo morto” (RIO GRANDE DO NORTE..., 1914, p. 27), ou seja, sem cultura educacional, teatral e artística em geral. A expectativa da classe artística, especialmente dos atores de teatro em relação ao novo governante, era que ele continuasse a dar à música e ao teatro a mesma atenção dispensada por seu antecessor, mantendo ali a cultura artística em vigor, no que se incluía a Escola de Música e a orquestra desse teatro, bem como o grupo amador natalense Gymnasio Dramático, que adotou o Carlos Gomes como seu local de ensaios. A despeito desse vigor artístico, na primeira mensagem apresentada ao Congresso Legislativo, em 1o de novembro de 1914, o governador Ferreira Chaves anunciava o fechamento da Escola de Música e a rescisão dos contratos de regência das cadeiras de música, justificando-se em seu pronunciamento: Não desconheço que alguns dos serviços, com esse intuito suprimidos, assinalavam nosso amor ao progresso e revelavam certo grau de apreciável cultura. Enquadra-se na série a Escola de Música, que funciona no Teatro Carlos Gomes. Não há quem possa, já não digo negar, mas, simplesmente, discutir a utilidade de um curso regular de música, quando sob a direção de bons professores; mas ninguém há também que, a serviços dessa espécie, dignos de aplausos nas sociedades amparadas por fáceis meios de vida, não anteponha outros de imediata utilidade prática. Ao prazer da música é necessário preferir as vantagens resultantes do combate, vigoroso e perseverante, contra o mais pernicioso dos males que afetam e corroem o organismo das democracias – o analfabetismo. Suprimindo essa escola, rescindi, pelas mesmas razões, os contratos das regências das cadeiras de música, com aplicação de piano e canto, e violino e viola, juntas àquele teatro, contratos atrás firmados em julho e agosto do ano passado, quando já se acentuavam, assustadoras, as dificuldades que assoberbam o Erário Público (MENSAGEM APRESENTADA AO LEGISTATIVO..., 1914, p. 89). O governador Ferreira Chaves culpava as dificuldades que assoberbavam o Erário Público e a necessidade de combater o analfabetismo como as causas responsáveis pelo fechamento da Escola de Música sediada no Teatro Carlos Gomes e pela demissão dos seus professores. No entanto, se por um 4634 lado foi este um dos primeiros atos desse governador, por outro, ele aperfeiçoou alguns serviços relativos à educação escolar, a exemplo da inspeção do ensino e da estatística escolar. Apesar daquela drástica medida direcionada à arte musical, a arte do teatro foi deveras propugnada em 1914 na Capital, havendo no decorrer desse ano a encenação de, pelo menos, quinze peças somente no teatro Carlos Gomes. Com base nos exíguos comentários da crítica a respeito da cena local, pode-se conhecer os nomes de quase todas as peças apresentadas, bem como listar as companhias que excursionaram por Natal, atestadas pela História do Teatro Alberto Maranhão, escrita por Meira Pires (1980), e pelas informações jornalísticas d’A República. Por esses fragmentos se depreende sua pedagogia e se sabe que, além dos artistas natalenses, quase todas as companhias teatrais e circenses e até eqüestres que visitavam a cidade, apresentavam-se no maior teatro da Capital – o Carlos Gomes, posteriormente renomeado Teatro Alberto Maranhão. Em junho de 1914, um mês antes de eclodir a I Guerra Mundial, estréia nesse teatro a Companhia Dramática Portuguesa, dirigida pelo renomado empresário e ator luso Christiano de Souza. Integravam seu elenco os atores Alves da Silva, Antonio Souza, Adelina Nobre, Sarah Nobre, Carlota de Souza e a grande Pepa Ruiz. A Companhia abriu a temporada com o conhecidíssimo drama de Alexandre Dumas Filho - A Dama das Camélias, cujas entradas estavam sendo vendidas simultaneamente na bilheteria do Teatro Carlos Gomes e no Café Águia Negra, ambos localizados no bairro da Ribeira. O jornalista sob o pseudônimo Língua de Prata, ao divulgar a peça de estréia da Companhia Dramática Portuguesa pela imprensa, não escondeu o seu enfastiamento com aquela peça, declarando: “Vou assistir a Dama das Camélias pela centésima vez [...]” (EM TRÊS..., 1914, p. 1), o que dá uma idéia do quanto o drama da mulher decaída e socialmente discriminada já teria sido visto pelo público natalense, familiarizado com aquele autor francês desde julho de 1900, ocasião em que a Companhia Ferreira da Silva encenara em Natal o seu drama Lúcia Didier, “[...] no improvisado teatro em frente à alfândega”, no bairro Cidade Alta (COMENTA..., 1900, p. 1). O português Christiano de Souza, ator e empresário de muito prestígio na Capital da República, costumava viajar como tantos outros de seu tempo pelas Capitais da costa brasileira com os elencos que dirigia. Assim é que chegou pela primeira vez ao Rio Grande do Norte em abril de 1908, voltando uma segunda vez em setembro de 1913, ainda no segundo mandato de Alberto Maranhão, à frente da então Companhia de Revistas e Comédias, oportunidade em que apresentou aos natalenses um variado repertório cômico e de operetas, burletas e revistas. Pela terceira vez no Estado, Christiano de Souza fez uma temporada de 03 a 14 de junho de 1914, na qual encenou várias peças, em sua maioria francesas. Constavam do repertório a comédia francesa de costumes em três atos O Senhor Diretor, de Alex Bisson e F. Carré; o drama policial 20,000 Dollars, de Paulo Armstrong, possivelmente autor norte-americano; As Surpresas do Divórcio, comédia em 3 atos de Alex Bisson e Antonio Mars, em tradução de Eduardo Garrido, focalizando um assunto bastante atual na época; A Dama das Camélias, drama de Alexandre Dumas Filho, já citado; a comédia em quatro atos de Paul Gavault, A Menina do Chocolate; o drama em cinco atos A Morgadinha de Val Flor, do português Manuel Pinheiro Chagas; O Filho de Corália, drama em quatro atos; A Lagartixa, comédia em três atos; o drama em cinco atos, Doida de Montmayor, de Bourgeois e Masson; Noite de Calvário, drama em 3 atos de Marcelino Mesquita; a comédia Os Trinta Botões, de Eduardo Garrido; o drama em quatro atos de Jean Aicard, Papá Lebonnard, e o drama Amor Selvagem. Do total de treze peças apresentadas por Christiano de Souza e seu elenco, pelo menos sete eram de autoria de dramaturgos franceses, fato bastante comum em todo o Brasil. De uma maneira geral, com esses enredos os natalenses testemunharam, por exemplo, o respeito às autoridades; as circunstâncias que envolvem o dinheiro e os efeitos de uma investigação policial; a diversificação das relações conjugais e os conflitos familiares; o amor como causa de confronto de classes e discriminações sociais. E ainda, o conhecimento de situações relacionadas à infância, ao adultério, aos desvarios femininos e à condenação aos vícios, entre outros enredos prováveis. Além do acesso a uma variada gama de temas apresentados aos natalenses pelas encenações teatrais, as temporadas dos atores visitantes suscitavam uma atitude de empatia com o trabalho e a pessoa do ator. Isso facilitava a vida do artista, sobretudo quando lhe era necessário oferecer um espetáculo em seu benefício, instituição do teatro brasileiro que se fazia presente em todas as temporadas teatrais pelo país. Como a remuneração dos atores era quase sempre irregular e eles não 4635 dispunham de nenhum tipo de proteção ou seguro social, tornava-se imperioso freqüentemente fazer uso do recurso do benefício, o que também atendia pela expressão ‘festa artística’: toda a renda da bilheteria era destinada ao ator mais necessitado em dado momento. Artistas renomados do elenco de Christiano de Souza não dispensavam essas ‘festas’, caso das atrizes Adelina e Sarah Nobre, as quais, conforme a coluna Palcos e Salões, do jornal A República de 11 de junho, fizeram no Teatro Carlos Gomes sua festa artística dedicada ao desembargador Ferreira Chaves, encenando o antigo drama A Doida de Montmayour, dos franceses Bourgeios e Masson. Nos dias subseqüentes da temporada, realizaram suas ‘festas’ “o simpático ator” Alves da Silva, que encenou o drama intitulado O Filho de Corália; a “conhecida atriz Pepa Ruiz”, que dedicou sua festa “[...] ao ilustre dr. Fabio Rino, chefe de polícia do Estado”. Até o diretor da Companhia, Christiano de Souza, encenou “[...] o importante drama em quatro atos Papá Lebonnard, de Jean Aicard, no qual tem papel saliente” (VIDA SOCIAL, 1914, p. 1), dedicando-o ao Dr. Alberto Maranhão, numa demonstração de deferência para com esse ex-governador do Estado, a quem conhecia e respeitava pelo menos desde 1908. A exemplo dos artistas visitantes, os da terra também promoviam benefícios em favor de si próprios. Em 3 de outubro de 1914 foi a vez da atriz Margarida Pimentel apresentar um espetáculo nesse talhe, dedicando-o ao então Secretário-Geral do Governo, Dr. José Augusto Bezerra de Medeiros, alvo de uma apoteose ao final da ‘festa’. Esse eminente Secretário, conforme Araújo (1998), estava envolvido nesse ano com a fundação da Escola Doméstica de Natal, entidade educacional criada nos moldes suíços que atrairia para Natal não apenas moças do Estado, mas de toda a região Norte do país. O público de Natal estava habituado a assistir peças de autores franceses inclusive por intermédio dessa Companhia, que os socializava tanto em Natal quanto no Rio de Janeiro, equiparando a provinciana Capital àquela metrópole brasileira. Tanto é que Nunes (1956, p. 63), ao arrolar as peças da Companhia Christiano de Souza-Alves da Silva, registra quase os mesmos títulos aqui apresentados e reporta que aquela Companhia, em setembro de 1914, “[...] regressando do Norte, ocupou o São Pedro e ali passou o seu repertório com regular afluência de público”. Sabe-se que, nessas primeiras décadas do século XX, dada a importância do idioma francês como língua estrangeira mais conhecida e divulgada no Brasil, eram comuns os espetáculos de companhias francesas no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. Após 1909, quando foi inaugurado o Teatro Municipal naquela metrópole, também passou a haver ali uma temporada oficial de comédia francesa. Nunes afirma que, nessa época, “não saber francês era um desprimor, quanto mais não fosse lê-lo correntemente” e justifica a divulgação do repertório de Felix Huguenet e sua troupe, chegados em 1915, alegando que o faz [...] porque o teatro francês de comédia influiu poderosamente na formação, nos últimos cem anos, da nossa mentalidade dramática, concorreu para a formação de um público, embora de elite, e exerceu influência considerável sobre a nossa literatura e nosso amor às belas letras e aprimoramento intelectual (NUNES, 1956, p. 68). A despeito da ampla divulgação dos autores estrangeiros, proporcionada principalmente pelas companhias que excursionam pelas capitais brasileiras como Natal, porém, certamente, graças ao contato com elas, os autores locais estavam se tornando cada vez mais traquejados nesse métier, encorajando-se a se expor e a ganhar seu público. Os autores norte-riograndenses que as fontes apontam nesse ano como geradores de uma dramaturgia local são os intelectuais Francisco Ivo Cavalcanti – conhecido como Ivo Filho – Joaquim Scipião de Albuquerque Maranhão e Jorge Fernandes, que assinaram dramas, comédias e revistas em meio a uma produção literária mais consistente, concretizada em poesias e contos. Neste trabalho, porém, focalizaremos apenas Ivo Filho. Todas as suas peças foram, uma a uma, encenadas pelo Gymnasio Dramático. Esse autor, conforme Cascudo (1998), havia-se diplomado na Escola Normal em 1910, assumindo interinamente, dois anos depois, o lugar de lente catedrático de Geografia e História dessa escola normal natalense, efetivando-se nessa cadeira, por concurso, em 1915. 4636 Foi nesse ínterim que escreveu a comédia em um ato Esses Primos..., encenada pelo Gymnasio em 24 de novembro de 1914, no Teatro Carlos Gomes, como parte integrante da ‘festa’ artística dos “[...] apreciados atores” portugueses Augusto Soldá e Augusto Peres, os quais foram auxiliados por integrantes daquela agremiação (VIDA SOCIAL, 1914, p. 1). O espetáculo, dedicado à família natalense, talvez focalizasse intrigas domésticas recheadas de peripécias que, afinal, chegam a bom termo, caracterizando-se como um enredo que trazia em seu bojo elementos de uma pedagogia enfatizadora das relações de ordem familiar. Finalizando o ano de 1914, Natal recebeu, em 19 de dezembro, o último grupo de artistas visitantes – a troupe Galhardo, “[...] da qual fazem parte as graciosas americanitas, minúsculas artistasinhas”, exibindo um “[...] variado repertório de operetas, revistas, cançonetas e tranformações num gênero deveras atraente”(VIDA SOCIAL, 1914, p. 1), com cantores-atores infantis, interpretando canções de um repertório de música para teatro, espetáculo inédito na cidade. O encantamento com esses pequenos artistas ficou registrado pelo jornalista d’A República com o seguinte teor: Annita, Antonieta e Ângela são três crianças com uma verdadeira vocação para o palco, sabendo apresentar-se com graça esplêndida, sem afetações nem excessos, com uma naturalidade encantadora, em toda a ingenuidade de seus poucos anos (VIDA SOCIAL, 1914, p. 1). Esse jornalista, ao mesmo tempo em que manifesta o seu entusiasmo e, indiretamente, o do público de Natal, não perde ocasião de reprovar os maus artistas: “[...] As Americanitas merecem ser apreciadas em seu trabalho por vezes irrepreensível, despertando verdadeiro entusiasmo. É preferível vê-las, a muito marmanjo que por aqui nos visita, intitulando-se de artista, às cegas com a arte aos trambolhões (VIDA SOCIAL, 1914, p. 1). Para fins de uma pedagogia cultural do teatro, pode-se afirmar que o espetáculo, composto por crianças entre nove e onze anos de idade, permitiu aos natalenses apreciarem entonações de voz e performances variadas e atraentes representadas por esses artistas mirins. Essa atração exemplar deve ter marcado o imaginário daqueles concidadãos, desejosos de transmitir aos contemporâneos e pósteros a sua admiração com esse espetáculo, além de oferecer incentivo para as crianças natalenses daquela época, estimulando seus pendores artísticos e estéticos. Ademais, deixava a mensagem para as autoridades políticas desse tempo quanto à necessidade da abertura de escolas de música e teatro para crianças, jovens e adultos. Mas para ensinar, educar, conscientizar e servir como veículo da razão, o teatro comporta uma pedagogia cultural. Desse modo, pelas encenações e espetáculos apresentados no ano de 1914, em Natal, percebe-se que a pedagogia cultural do teatro cumpriu o seu papel instrutivo, formativo e recreativo. Os natalenses aprenderam por meio da força pedagógica do teatro, expressa na dramaturgia e nos espetáculos, a compreender e viver o cotidiano pela primazia da razão sobre as emoções. Em termos de conclusões, a análise das encenações, segundo seus títulos, temas e críticas jornalísticas natalenses da época, evidencia uma ênfase nas relações familiares mais próximas, um estímulo aos pendores artísticos e estéticos infantis, o combate aos vícios e comportamentos socialmente reprováveis, a exemplo da prostituição, bem como o alerta às autoridades políticas quanto à necessidade da abertura de escolas de música e teatro para desenvolver os talentos artísticos de crianças e jovens estudantes. Dessa forma, pelas três encenações referidas e apresentadas em Natal no ano de 1914, percebe-se que a pedagogia cultural do teatro nelas contida agia no sentido de exercer um papel instrutivo e formativo em prol da vida em sociedade, de veicular modelos de comportamento que primassem pelas relações familiares estáveis e de orientar moral e socialmente os cidadãos natalenses acerca de temas como a educação artística e estética, no tocante às quais a escola regular de então ordinariamente negava incentivo e desenvolvimento. Desde a instalação da República no Brasil, o teatro, paralelamente à educação escolar formal, busca exercer um papel pedagógico relevante na formação cultural do povo brasileiro, em geral, e dos natalenses, em particular. REFERÊNCIAS 4637 1. LIVROS, ARTIGOS EM LIVROS E MONOGRAFIAS. ARAÚJO, Marta Maria de. José Augusto Bezerra de Medeiros: político e educador militante. Natal: Editora Universitária da UFRN / Assembléia Legislativa do Rio Grande do Norte / Fundação José Augusto, 1998. CASCUDO, Luís da Câmara. Alma patrícia. 2. ed. Natal: Fundação José Augusto, 1998. MEIRA PIRES, Inácio. História do Teatro Alberto Maranhão. Natal: Fundação José Augusto, 1980. NUNES, Mario. 40 anos de teatro. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1956. OTHON, Sônia Maria de Oliveira. Vida teatral e educativa da cidade dos Reis Magos: Natal, 1727 a 1913. 2003. 160 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Departamento de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2003. PATRIOTA, Rosangela. O historiador e o teatro: texto dramático, espetáculo, recepção. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy: Escrita, linguagem, objetos: leituras de história cultural. Bauru, SP: EDUSC, 2004. RAMA, Angel. A cidade das letras. Tradução de Emir Sader. São Paulo: Brasiliense,1985. STEINBERG, Shirley R. Kindercultura: a construção da infância pelas grandes corporações. In: SILVA, Luiz H.; AZEVEDO, J. C.; SANTOS, Edmilson (Orgs.). Identidade social e a construção do conhecimento.Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Porto Alegre: Secretaria Municipal da Educação de Porto Alegre, 1997. p. 98-145. 2. MENSAGENS GOVERNAMENTAIS MENSAGEM dirigida pelo governador Joaquim Ferreira Chaves Filho ao Congresso Legislativo do Rio Grande do Norte em 14 de julho de 1897. Natal: Typografia d’A República,1897. MENSAGEM dirigida pelo governador Joaquim Ferreira Chaves Filho ao Congresso Legislativo do Rio Grande do Norte em 14 de julho de 1898 e 14 de julho de 1899. Natal: Typografia d’A República,1898 e 1899. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da segunda sessão da oitava legislatura, em 1o de novembro de 1914 pelo Governador Desembargador Joaquim Ferreira Chaves. Natal: Typ. d’A República, 1914. 3. ARTIGOS DE JORNAL COMENTA a apresentação de O Colar de Ouro, de Zapata. A República, Natal, p. 1, 5 jul. 1900. 4638 EM TRÊS TEMPOS. A República, Natal, p. 1, 3 jun. 1914. VIDA SOCIAL. Palcos e Salões. A Republica, Natal, p. 1, 13 jun 1914. VIDA SOCIAL. Palcos e Salões. A Republica, Natal, p. 1, 24 nov. 1914. VIDA SOCIAL. Palcos e Salões. A Republica, Natal, p. 1, 21 dez. 1914.