CICLO DE CINEMA 17h30, 9 MAIO, 2012 Laranja Mecânica [A Clockwork Orange] de Stanley Kubrick (1971) Entre o realizador (Stanley Kubrick) e o autor (Anthony Burgess) “I have always enjoyed with a slightly surrealistic situation and presenting it in a realistic manner. I‟ve always liked fairy tales and myths, magical stories, supernatural stories, ghost stories, surrealist and allegorical stories. I think they are somehow closer to the sense of reality one feels today than the equally stylized “‟realistic‟” story in which a great deal of selectivity and omission has to occur in order to preserve its “„realistic‟” style.” “Alex‟s adventures are a kind of psychological myth. Our subconscious finds release in Alex, just as it finds release in dreams. It resents Alex being stifled and repressed by authority, however much our conscious mind recognizes the necessity of doing this. (…) Of course, the story functions on another level, as a social satire dealing with the question of whether behavioral psychology and psychological conditioning are dangerous new weapons for a totalitarian government to use to impose vast controls on its citizens and turn them into little more than robots.” 1 Entre a sátira e o mito: o filme como reflexão filosófica Anthony Burgess (1917-1993), o autor de Laranja mecânica (uma novela distópica que data de 1962), introduz no nosso léxico contemporâneo uma dualidade aparentemente irredutível. Qual será o significado desta “laranja mecânica”. Na verdade, se interpretarmos esta dualidade privilegiando um dos elementos em detrimento do outro, não estaremos a reduzir precisamente o que a realidade humana encerra, i.e., uma complexidade que o realizador atribui ao seu filme em termos, ora de sátira social, ora de encenação mítica? Se por um lado a sátira social defende essa complexidade, presente no título, ao satirizar as forças redutoras do mundo de “Alex”, forças que ameaçam limitar e coarctar o indivíduo, por outro, o elemento mítico serve para situar as peripécias da personagem numa realidade maior, a da natureza do ser humano em si, na sua circunstancialidade essencial. A sátira defende a complexidade; o mito salvaguarda-a. E o filme envolve o espectador num mundo de excessos, i.e., do excesso de todas as dualidades e de todas as contradições. O filme, nas suas dimensões – cénica, mítica, sonora e narrativa – traduz em imagem uma realidade de forças opostas de que a dualidade entre o orgânico e o mecânico é paradigmática. Como interpretarmos a combinação incongruente de uma “laranja”, criação da natureza, e o adjectivo “mecânica”, criação do artífice humano? (O título em inglês, recorde-se, conjuga dois substantivos: “clockwork” e “orange”, criando uma ainda maior tensão semântica.) Como interpretarmos a personagem “Alex” à luz desta incongruência, i.e., havemos de entender o ser humano, mesmo um ser hiperbolicamente maléfico como é o caso de “Alex”, como o resultado, ou joguete, de forças sobretudo externas (no filme, estas forças são marcadas pela violência, repressão e instrumentalização do indivíduo pela política, pela ciência, pela escola e pela família), ou, antes, como um processo de crescimento interior onde um elemento de imprevisibilidade e de livre arbítrio se conjugam de modo refractário à lógica social imposta? Seremos, afinal de contas, laranja ou máquina? Ou, alternativamente, quem quererá fazer de nós uma laranja que funciona ao modo de um relógio? Seguimos a partitura da “laranja” musical de Ludwig (van Beethoven, 1770-1827) ou, antes, a tirania da máquina do método “Ludovico” (variante do nome “Ludwig”?), instrumento de condicionamento pavloviano? Entre o sublime e o obsceno: o filme como aversão e des-condicionamento A banda sonora é criteriosamente escolhida por Kubrick. Eis a Nona Sinfonia de Beethoven, sinfonia que desempenha um papel preponderante no filme, sem descurar a presença doutros compositores, tais como Rossini e Elgar. A Nona Sinfonia de Beethoven incorpora, no coro do andamento final, o poema “An die Freude” (“Ode, ou Hino, à Alegria”, que data de 1785) do dramaturgo Friedrich Schiller alemão (1759 – 1805), poema que exalta o amor fraternal, o universalismo ético e a elevação do espírito humano para lá da opressão e do sofrimento. Qual será o propósito de incluir esta sinfonia, imbuída de tão nobre ideal, num filme de quase ininterrupta violência, destruição e onde é notória a ausência de consciência moral, em particular em “Alex”, que é, contudo, a personagem mais amante desta composição? Constituirá esta escolha estética do realizador (e do autor Anthony Burgess), uma escolha determinante para a nossa compreensão do significado do filme? No contexto do filme, a “Ode à Alegria” de Schiller/Beethoven não será antes uma ode à violência mais degradante e depravada, pois 2 acompanha as cenas mais violentas do filme? Portanto, ao escutarmos esta Ode, no contexto do filme, pergunta-se: a violência desempenhará um papel “laranja” ou, antes, “mecânica” no filme? Eis a seguir um excerto das palavras da Ode em questão: O Freunde, nicht diese Töne! Sondern laßt uns angenehmere an stimmen, und freudenvollere. Freude! (men's chorus: Freude! ) Freude! (chorus again: Freude! ) (///) Seid umschlungen, Millionen! Diesen Kuß der ganzen Welt! Brüder, über'm Sternenzelt Muss ein lieber Vater wohnen. Seid umschlungen, Diesen Kuß der ganzen Welt! Freude, schöner Götterfunken Tochter aus Elysium, Freude, schöner Götterfunken Götterfunken! Oh amigos, mudemos de tom! Entoemos algo mais agradável E cheio de alegria! Alegria, mais belo fulgor divino, (///) Abracem-se milhões de seres! Enviem este beijo para todo o mundo! Irmãos! Sobre a abóboda estrelada Deve morar o Pai Amado. Vos prosternais, Multidões? Mundo, pressentes ao Criador? Buscais além da abóboda estrelada! Sobre as estrelas Ele deve morar. Oh friends, not these tones! Rather, let us raise our voices in more pleasing And more joyful sounds! Joy! (Joy!) Joy! (Joy!) (///) Be embraced, you millions! This kiss for the whole world! Brothers, beyond the starcanopy Must a loving Father dwell. Be embraced, This kiss for the whole world! Joy, beautiful spark of the gods, Daughter of Elysium, Joy, beautiful spark of the gods Spark of the gods! Ao modo do método de condicionamento “Ludovico”, baseado em técnicas de terapia de aversão, o filme de Kubrick reinventa também o nosso olhar (de espectador). A catarse final do filme, após a longa encenação por Kubrick desta realidade excessiva a todos os níveis, acaba por aprofundar a nossa compreensão do ser humano, ora actor instrumentalizado pelo mundo, ora criador de si mesmo, mesmo quando se trata de um criador que deseja destruir o mundo. 3 Entre a glorificação e a normalidade: outra dualidade chamada “laranja mecânica” Kubrick submete o conteúdo violento da sua narrativa distópica a um processo de glorificação (vejam-se os cenários estranhamente operáticos onde decorrem algumas das cenas mais violentas do filme bem como os recorrentes temas musicais provenientes da obra de Beethoven e de Rossini, entre outros) e, simultaneamente, a um processo de normalização, pois esta violência acaba por ser a língua comum que todos falam. A violência permeia o mundo de “Alex”. Assim, o filme leva-nos a reflectir sobre a natureza desta violência endémica numa sociedade caracterizada por gangs de adolescentes, uma classe política predatória, equipas de cientistas desumanos, representantes da Escola e da Igreja igualmente pouco recomendáveis ou de consciência moral ambígua, até, a própria família de “Alex” que o rejeita e substitui por outro “filho”. Todas as personagens do filme – pais, representantes da escola, governo, políticos, médicos, cientistas, os próprios adolescentes – têm a sua teoria acerca da violência; vemos que a violência é instrumentalizada por todos de uma forma ou doutra. Glorificá-la e normalizá-la simultaneamente? Serão afinal conciliáveis estes dois processos? Será que a violência retratada no filme tem alguma utilidade? Em que sentido? A quem beneficiaria? Quais são os valores e/ou as instituições sociais que esta violência normalizada serve? Já viram? O filme conseguiu levar-nos a um novo exemplo do mundo a operar ao modo de uma “laranja mecânica”. Christopher Damien Auretta 4