RELATO DE EXPERIÊNCIA Essa seção destina-se aos relatos de experiência extraídos das intervenções feitas pelo projeto de pesquisa “Avaliação dos efeitos discursivos da capscização no Estado de Minas Gerais, à partir de sessões clínicas realizadas em vários CAPS (Centro de Atenção Psicosocial ) , tanto da capital quanto do interior do Estado. Cada caso, é considerado em sua singularidade, interessando-nos o ponto de vista diagnóstico, as dificuldades de manejo, os impasses político-institucionais, passando pela circulação e articulação na rede de cuidados necessários a cada sujeito. De cada relato, foram extraídos os aspectos mais significativos, e as questões emergentes seguidas de suas elaborações. Algumas modificações foram feitas para preservar oculta a identidade do paciente. Equipe Clinicaps www.clinicaps.com.br CONVERSAÇÃO CLÍNICA CASO ADEMAR1 O caso Ademar foi trazido pela equipe de saúde mental de um CAPS aos pesquisadores em visita ao serviço, realizada em maio de 2008. Tratava-se de um paciente com histórico de longa internação psiquiátrica. Ele não falava, tinha sido abandonado pela família, sem lugar certo onde morar, pouquíssimos relatos sobre história de vida e mantido sob forte medicação. No momento desse encontro o paciente interagia e se relacionava bem com a equipe e com outros pacientes. Comunicava-se apenas através de gestos, não verbalizava nada. Muitas vezes permanecia o dia todo sentado em um banquinho sem qualquer reação. Na 1 Relatório elaborado por Maria Inês Meireles Junca permanência-dia apresentava-se tranqüilo e respondia bem quando convocado participava das oficinas terapêuticas. No entanto havia certo incômodo com relação a ele. Estaria estabilizado? Deveria permanecer no CAPS ou ser encaminhado a outro serviço da rede? Esse nos pareceu ser o principal motivo da indicação desse caso: a proposta da psicóloga referência do caso, em dar alta ao paciente do tratamento no CAPS e encaminhá-lo a outro serviço da rede. Apresentação do caso Em 07/1993 Ademar foi encontrado perambulando sem destino pelas ruas de Buenos Aires, com sinais de enfermidade mental. Levado a um hospital psiquiátrico pela polícia, após exames, observada deterioração de suas funções psíquicas, conduta com fortes sinais de retraimento, introversão, isolamento alternadas com crises de agitação psicomotora, chegou-se a conclusão que se tratava de psicose esquizofrênica. Ademar permaneceu internado nesse hospital por 13 anos até que o cônsul brasileiro na Argentina, tomando conhecimento da situação, e com destaque de que se tratava de um cidadão brasileiro, entrou em contato com Brasília tentando sua transferência para continuidade do tratamento no Brasil. A família viu o caso na TV e se manifestou. Houve um acordo nessa ocasião para que Ademar fosse tutelado pela família que se compunha de um irmão casado, pai de sete filhos. Fazia parte do acordo que a Secretaria de Obras do município construiria uma casa para a família, seria fornecida uma cesta básica mensalmente e que Ademar receberia o benefício do Programa de Volta para Casa. Assim, em 2006, com cobertura da imprensa, Ademar foi trazido pelo próprio cônsul e recebido pela família, dando início ao seu tratamento no CAPS da cidade. A família vivia em extrema pobreza e acolheu Ademar sob condição de receber os benefícios, o que não ocorreu. O irmão e a cunhada eram analfabetos e estavam desempregados. A casa foi iniciada, mas não terminada e ficava em uma região muito pobre e violenta da cidade, dominada pelo narcotráfico. A cesta básica e o benéfico do Programa de Volta para Casa também não foram recebidos. Dessa forma a família começou a negligenciar os cuidados de Ademar. Segundo a cunhada ele era agressivo e às vezes violento, chegando a tentar matar uma de suas filhas em uma bacia de água. Por causa disso ele era mantido preso em um cômodo fora da casa. Nessa ocasião Ademar era atendido no CAPS, sendo transportado por um carro do serviço. Quando iniciou seu tratamento no CAPS em março de 2006, Ademar tinha aproximadamente 40 anos e não falava. No início Ademar não interagia com os outros pacientes nem com os funcionários. Permanecia calado e isolado. Quando a psicóloga, referência do caso, se apresentou e perguntou se poderiam conversar prontificou-se, mas só respondia com monossílabos incompreensíveis. Aceitando lápis e papel, escreveu algumas sílabas e uma palavra repetidas vezes – “Hoda”. Consta que, posteriormente, em visita domiciliar, escreveu o próprio nome e o nome de seus irmãos e de uma namorada. Aos poucos Ademar começou a participar das oficinas e atividades. Um dia fez um desenho de grades e uma pessoa entre elas. Noutro momento ouvindo música, dançou com uma paciente. Respondia aos questionamentos com gestos, mas ainda tendia ao isolamento. Numa tentativa de traçar um projeto terapêutico, já que estava interagindo melhor e mais apto para as atividades, Ademar foi encaminhado ao Centro de Convivência. Porém, nesta ocasião o transporte, até então feito pelo carro do serviço, não foi mais possível e a família se recusou a trazê-lo alegando que morava muito longe. Ademar ficou sem atendimento e sem medicação por alguns meses. Os familiares não se implicavam no tratamento e só vinham ao CAPS para reclamar seus direitos aos benefícios que nunca saiam. Nessas visitas reclamavam que Ademar estava muito agressivo, insone e recusava alimento. Em visitas domiciliares eram realizadas orientações e feita medicação. Neste período Ademar se mostrava prostrado, com comportamento bizarro, risos imotivados, maneirismos. Depois de algum tempo a família se mudou deixando Ademar sozinho em seu barraco. Ele ficou desamparado e era alimentado por uma vizinha. Começou então a perambular pelas ruas e dormir numa praça da cidade. Sua casa foi invadida por traficantes. Um dia surpreendeu à equipe chegando sozinho no CERSAM. Avaliado pelo psiquiatra passou a usar a seguinte medicação: Haldol 5 ( ½ 0 1 ); Biperideno 2 (1 0 0 ); Prometazina 25 (0 0 1). Em outra avaliação foi acrescentado 1 cp. De Prometazina e Amitriptilina 25 (0 0 3). Articulações feitas pela assistência social do CAPS permitiram que Ademar fosse morar numa instituição religiosa atuante na cidade, a Toca de Assis. A partir daí observou-se uma evolução com maior interação e participação mais ativa nas oficinas. Em um sábado quando houve um mutirão para pintura do CAPS, Ademar conseguiu vir sozinho e ofereceu seu serviço voluntário. Intrigou às equipes, do CAPS local e de pesquisadores, a história de Ademar. O que teria ocorrido nos longos anos de internação psiquiátrica? O que querem dizer seus escritos? Houve algum tempo em que ele falava? Se sim, o que teria ocasionado a situação atual de não verbalização? Ademar tem um diagnóstico de esquizofrenia, tende ao isolamento e à errância. Está fortemente medicado. No momento se mostra gentil com os outros pacientes, participa de oficinas e chegou a dançar com uma paciente. Gosta de jogar e de ganhar, mas ao mesmo tempo tende ao isolamento e se ninguém o chamar passa o dia sentado no mesmo lugar na mesma posição. Comunica-se basicamente com gestos. Essas atitudes sugerem que ele não é um sujeito melancólico que fica quieto e se isola por sofrimento subjetivo, mas que talvez esteja impregnado pela medicação respondendo com embotamento e desvitalização. Ademar, nesse momento responde às intervenções com gentileza, interação expressas corporalmente, mas também com silêncio e mesmice. Circula bem entre o CAPS e a instituição religiosa que o acolhe, mas isso não parece ser um laço que sustente o sujeito no social. Estaria estabilizado podendo sair da permanência dia e circular por outros pontos da rede, ou estaria apenas apaziguado a partir do suporte recebido no serviço? A equipe do CAPS, com relação ao caso Ademar, se encontra dividida. Alguns parecem dispostos a um investimento e interesse em pensar na construção do caso clinico, enquanto outros querem apostam na alta e interesse em encaminhá-lo a outros serviços da rede. Porém outros ali pareciam interessados em descobrir um meio de tratar o paciente. Ademar nos parece precisar de uma equipe que queira buscar avanços, que suporte o novo que possa emergir e que consiga usar isso para traçar novas condutas de tratamento. Mas há na equipe os que apostam no que parece ser uma estabilização e que uma permanência dele no CAPS seria o caminho para uma cronificação. Assim foi possível perceber que, se para uns o caso era de um paciente estabilizado que foi trazido, outra parte dos profissionais do CAPS estavam, de certa forma, incomodados com o silêncio de Ademar. Seu silêncio interpelava e dividia a equipe. Um silêncio ativo que provocava o outro. Só havia duas posturas possíveis: ou tentar ouvir alguma coisa, ou não suportar sua permanência do serviço. A equipe foi estimulada com perguntas do tipo: o que é estabilização? Ademar estaria estabilizado ou apaziguado? A estabilização prevê algum nível de laço social, ele consegue isso? Ao olhar dos pesquisadores Ademar é um paciente que pode avançar. Isso não quer dizer que esteja estabilizado e possa prescindir do serviço. Quer dizer que, de alguma forma o sujeito sempre fala desde que haja alguém para ouvi-lo. Ademar pode ser um caso que precise permanentemente da instituição para ampará-lo. Isso não significa cronificação, desde que a equipe não desista dele. A construção do caso clínico é sempre uma possibilidade de avanço. Ademar é um paciente que desafia a equipe acerca da condução de seu tratamento e a elaboração de um projeto terapêutico em rede. O impasse que se apresenta é saber até que ponto esse paciente, utilizando-se do que o CAPS lhe oferece, consiga construir meios que o permitam avançar. Ao que nos parece ele precisa da regularidade do Outro para se sentir amparado e funcionar dentro de um sistema. Antes precisa criar uma rede simbólica que o faça caminhar sozinho e só então, talvez, ele possa prescindir do serviço. Na historia de Ademar, em um momento de abandono pela família, total precariedade de recursos e ausência de medicação, ele faz um movimento importante de vir sozinho ao CAPS como quem pede socorro. Nesse momento houve uma ação do sujeito. Um sujeito que agora pode estar paralisado pela impregnação medicamentosa. Uma sugestão à equipe seria diminuir gradativamente a medicação e ir observando o que ocorre. É preciso saber quem é ele, do que sofre, como se posiciona. Outra possibilidade de abordagem seria permitir que o sujeito surgisse a partir de provocar nele uma surpresa. Talvez isso pudesse ocorrer com a introdução de um elemento da cultura argentina onde ele permaneceu por tanto tempo. Ou ainda utilizando seus escritos e desenhos para descobrir um sentido. A equipe deve estar atenta a qualquer movimento para perceber o que move esse sujeito e quais intervenções tem quais efeitos para ele. No retorno ao CAPS encontramos uma nova equipe que havia sido quase que totalmente mudada por atravessamentos políticos comuns ao setor público. Soubemos que foi feita, junto à psiquiatra que acabara de chegar ao serviço, um relato do caso Ademar incluindo a conversação clinica com os pesquisadores. Foi apresentado à ela nossa sugestão de redução de medicamento. Porém, sobrecarregada por uma demanda muito grande de atendimentos e acompanhamentos de casos, a psiquiatra não achou interessante alterar a medicação. A profissional alega que pela sua experiência, um paciente crônico pode desestabilizar uma vez que se reduza a medicação. A psiquiatra não se encontrava na segunda conversação clínica, onde aconteceu o retorno do caso. O encaminhamento dado pelo profissional reflete o automatismo de alguns serviços que criam saídas adaptáveis a todos os casos, no momento em que estão pressionados pelo volume da demanda. Perdendo-se ai a singularidade do sujeito. Outras tentativas foram feitas. A Terapeuta Ocupacional diz que tentou introduzir o elemento surpresa a partir de apresentação de uma bandeira da Argentina e algumas músicas. “Mas o Ademar não fez nada, não se interessou, ficou me olhando...” A equipe também não conseguiu fazer um movimento no sentido de ouvir Ademar quando se mostrou capaz de vir sozinho ao CAPS. Nenhum Acompanhante Terapêutico pode ser contratado e nenhum funcionário do CAPS foi mobilizado no sentido de acompanhá-lo no caminho de ida e volta entre o CAPS e a Toca de Assis de forma que Ademar pudesse aprender a fazer isso sozinho. No primeiro encontro foram feitas intervenções no sentido de adiar o encaminhamento de Ademar para outro serviço e que talvez, ainda pudesse se produzir algum avanço clínico. Também foi levantada a possibilidade do sujeito estar apagado e, nesse caso literalmente, silenciado e contido por medicamentos. Além de contido por um automatismo do serviço que tendia a tratar todos os casos da mesma forma. A tentativa de intervenção se deu no sentido de mobilizar a equipe para produzir meios de conduzir e fazer avançar esse caso no CAPS e que não estava entendido que Ademar pudesse prescindir desse serviço no momento. Ademar precisava produzir estratégias para sair da posição de objeto e conseguir apaziguar seu sofrimento, mas a equipe teve dificuldades de várias instâncias neste encaminhamento. Por ocasião do retorno soubemos que o paciente tinha se ausentado do CAPS devido à falta de transporte e de autonomia dele em vir sozinho. Hoje ele é trazido apenas uma vez por mês por um religioso do abrigo para tomar a medicação. Nossa principal proposta, que é a construção do caso clinico como método de trabalho e como prática de participação de todos os atores para construir o caso Ademar, não foi mencionada pelos profissionais do CAPS por ocasião do retorno. Individualmente pudemos perceber que nossa intervenção fez produzir em alguns profissionais do CAPS, um efeito de se interrogar com relação à sua posição diante desse caso na condução do tratamento. Encontramos várias dificuldades que inviabilizaram a construção do caso clinico. Primeiro há ali, e em muitos serviços, em função de questões políticas e de gestão, uma rotatividade significativa de profissionais. Por outro lado relação aos ideais da Reforma Psiquiátrica que fez surgir o modelo CAPS, com a introdução do modelo psicossocial na rede do SUS estabelece o encaminhamento do paciente à equipe básica na estabilização, o que muitas vezes impossibilitou, no caso da pesquisa, o retorno da discussão e da construção. Segundo observações dos trabalhadores há grande dificuldade nas equipes de PSF em definir os encaminhamentos ao CAPS, acabando por gerar o atendimento de casos que poderiam ser tratados pela equipe da unidade de atenção primária. Soma-se a isso a dificuldade da própria equipe de saúde mental em definir o que seria ‘crise’. Outro problema que se apresenta é um certo recuo de profissionais psicólogos, no ato de prescindir, em casos possíveis, da avaliação do psiquiatra. Tudo isso gera uma demanda exagerada que sobrecarrega esse profissional a ponto de muitos deles não suportarem a rotina de um serviço aberto de saúde mental e se demitirem. Além disso, da parte dos psiquiatras há também um distanciamento com relação à equipe e a prática de uma clinica isolada que inviabiliza construir cada caso a partir de suas peculiaridades com a participação de todos os atores envolvidos. A equipe CliniCAPS, propõe a continuidade de construção deste caso, entendendo que o paciente está apaziguado e não estabilizado.