XV Congresso Brasileiro de Sociologia 26 a 29 de julho de 2011 – Curitiba (PR) Grupo de Trabalho 17: Pensamento Social no Brasil - O “autor maldito” o pensamento político de Nina Rodrigues nas ciências sociais Lívia Maria Terra Programa de Pós-Graduação em Sociologia – Faculdade de Ciências e Letras da Unesp – Campus de Araraquara 1. Introdução A sociedade moderna capitalista, bem se sabe, não trouxe apenas inovações nas relações sociais, em especial na natureza do trabalho e nas formas de exploração do homem pelo homem. Trouxe também saberes diversos que visavam, sobretudo, a explicação dessas mesmas relações sociais, seja do homem com o próprio homem, seja do homem com o Estado moderno. Saberes estes que procuravam o entendimento e a explicação das condições em que se organizava e estruturava a sociedade industrial, do mesmo modo, saberes estes que buscavam a regulação da produção e normatização do indivíduo para sua melhor inserção na produtividade desejada pelo sistema político-econômico em prática. Já sugeria Foucault (1978) em seus trabalhos sobre as transformações sociais ocorridas no decorrer do século XIX: as formas de saber oriundas dos processos de modernização da sociedade capitalista resultaram em disciplinas acadêmicas antes inexistentes, como o caso da biologia, da sociologia e da psicanálise. Assim, as discussões da medicina se inserem sobre a regulação da vida humana, originando um novo campo do conhecimento, a chamada medicina social. É no desenvolvimento deste setor que se manifestara as primeiras formas assumidas pelo pensamento social no Brasil, tendo não apenas nos bacharéis em direito e nos literários, como comumente se convencionou aludir, a fonte para as explicações dos fenômenos sociais. Em um momento de grandes transformações da sociedade brasileira – desde a abolição do sistema escravista à proclamação da república e a inserção de novos segmentos sociais à dinâmica da vida social e política do país – os médicos brasileiros realizaram o papel que cabia ao sociólogo, analisando, avaliando e diagnosticando os fatos sociais, principalmente os que consideravam como patologia social. Qualquer estudioso que busque a análise sobre a atuação do pensamento médico no período que enseja o Brasil nas últimas décadas do século XIX até meados do século XX, corriqueiramente, observará que os registros científicos engendrados pelos profissionais da saúde tendem, em geral, a uma reflexão sobre a organização da vida social, tendo como ponto comum o próprio desenrolar da conduta moral do indivíduo em sociedade. Neste sentido, é sobre o crime e o criminoso, sobre a família e a vida familiar, sobre a loucura e degeneração moral, sobre as estruturas de poder e seu próprio campo de atuação, que a medicina social1 irá concretizar suas pesquisas. Isto posto, [...] vamos encontrar os médicos analisando os fatos sociais e avaliando os aspectos relativos à conduta moral. Vamos encontra-los diagnosticando problemas que não caberia à anatomia patológica a comprovar. Veremos esses médicos reconhecendo, reproduzindo e reprogramando a realidade social que os cercava e que constituía a matéria de sua apreciação. Vamos flagrá-los em sua atividade conformadora da vida social, vamos caracterizá-los como um foco de emissão dos preceitos morais. Em outras palavras, vamos encontralos produzindo conhecimentos sobre a dimensão coletiva da vida humana, firmando sua especialidade como espaço de uma ciência propriamente social (ANTUNES, 1999, p. 12-13). De fato, o que legitimava e autorizava os médicos a agirem de tal maneira era o próprio caráter de cientificidade assumida pela biologia, enquanto fonte direta de intervenção e poder sobre a vida e a existência humana. A biologia e, portanto, a medicina, para além do poderio sobre a regulamentação da vida dos indivíduos, tinha sobremaneira o poder de decidir sobre a morte do indivíduo ou quem deveria viver em sociedade. Os médicos fizeram da medicina, uma verdadeira ciência do social, submetida às confrontações teóricas e às verificações empíricas (ANTUNES, 1999). Evidentemente, muitos autores do pensamento médico-social brasileiro foram legados ao ostracismo histórico, como o caso do doutor Souza Lima, expoente da medicina legal no país, ao passo que outros ganharam tamanha dimensão, que o estudo de suas personalidades e contribuições é grande nas ciências sociais, como o próprio Raymundo Nina Rodrigues, sujeito destas mesmas páginas que seguem. Não é acidental ou ao acaso a permanência do médico maranhense Raymundo Nina Rodrigues nas atuais discussões tanto antropológicas, quanto sociológicas e médicas. Para os que conhecem parte da produção científica de fins do século XIX não é difícil reconhecer a influência da figura contraditória e por vezes polêmica do médico. Precursor e um dos pioneiros nos estudos etnográficos sobre a religião, a genealogia, a língua e a mitologia dos negros brasileiros (RIBEIRO,1994), Nina Rodrigues foi também professor de medicina legal, perito médico legal da polícia civil, bem como higienista e epidemiologista. A fama nacional e internacional de seu nome chegou a batizar o Instituto Médico Legal da Bahia, o qual constituía um de seus projetos principais. A própria dimensão que ganhou a morte de Nina 1 Considerada neste momento, dado seu desenvolvimento histórico, sob o título de Medicina Legal. Rodrigues em 1906 é portadora de um simbolismo adequado para exemplificar a simpatia acadêmica resultante de sua atuação profissional2. As obras do autor não serão aqui elencadas, pois constituem uma produção de cerca de sessenta livros em apenas dezessete anos de carreira, dentre inúmeros artigos publicados na Gazeta Médica da Bahia e outros periódicos internacionais3, que abordam temas variados como a loucura, as epidemias em geral, principalmente as epidemias de febre amarela no Brasil, medicina e direito, higiene e saneamento, dentre ensaios de medicina pura. Cito aqui, contudo, as obras de maior expressividade e as mais estudadas nas ciências sociais brasileiras, sobretudo, porque visam à análise de questões sociais, que concernem à vida humana em coletividade: Os africanos no Brasil (2008); O animismo fetichista dos negros baianos (2006); Coletividades anormais (1939b), obra póstuma organizada por Arthur Ramos; As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1957) e O alienado no direito civil brasileiro (1939a). Sendo assim, este esboço teórico, que hora proponho no desenrolar destas páginas sob a forma de artigo, tem como objetivo compreender o alcance projetado pela obra de Nina Rodrigues sobre três áreas específicas do conhecimento, a saber, a Medicina Legal/Direito, a Sociologia da Violência e a Psicologia Social, bem como 2 Já bastante adoentado, supostamente por uma infecção adquirida na cidade litorânea de Conde (BA), aos quarenta e quatro anos de idade, Nina Rodrigues foi nomeado delegado e representante da Faculdade de Medicina da Bahia para o IV Congresso Internacional de Assistência Pública e Privada, que aconteceria em Milão nos dias 23 e 27 de maio de 1906. A longa viagem trouxe a benesses do arrefecimento da doença. Porém ao desembarcar em Lisboa no dia 17 de maio do mesmo ano, na companhia de sua esposa Maria Amélia de Couto Nina Rodrigues e da filha, na época com doze anos, Alice Nina Rodrigues, o médico tem uma forte crise de hemoptise. Em Paris, com a doença novamente abrandada, conseguiu ainda realizar algumas visitas aos fornecedores de materiais que deveriam compor os equipamentos do Instituto Médico Legal da Bahia, instituto o qual concebera e projetara, além de acompanhar autópsias e recolher dados de pesquisa. Em 10 de julho, em uma visita ao morgue de Paris, Nina Rodrigues desfalece subitamente e é reconduzido ao Hotel Nouvel, onde se hospedara com a família. Morre no dia 17 de julho do mesmo ano, acompanhado por alguns especialistas que não conseguiram diagnosticar com a precisão necessária a doença do autor. O laudo de sua autópsia, feita pelo médico francês Paul Brouadel, permanece ainda em Paris, o que impede uma posição definitiva sobre as causas de sua morte por nós pesquisadores. O autor permaneceu lúcido o tempo todo, chegando a proferir diante de sua situação as seguintes palavras: “Isso é o começo do fim”. Após sua morte, um ciclo grandioso de homenagens se principiou por todo o estado da Bahia. Votos de condolências à família, suspensão das aulas na Faculdade de Medicina da Bahia e na Escola Politécnica, hasteamento da bandeira nacional a meio mastro em inúmeros institutos, como a Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Jornal de Notícias, Faculdade de Direito da Bahia, etc. As homenagens duraram, tanto no Brasil quanto na França, onde seu corpo também fora velado, quase um mês, sendo encerradas em 13 de agosto de 1906, dois dias após o corpo chegar ao Brasil (RIBEIRO, 1994). 3 The Journal of American Folklore, Annales Medico-psycchologiques, The American Antiquarian. Também foi redator dos Archivos de Psiquiatria de Buenos Aires, e vice-presidente da Sociedade de Medicina Legal de Nova Iorque. Maiores detalhamentos sobre a extensão das publicações e da repercussão da vida acadêmica de Nina Rodrigues podem ser encontradas em RIBEIRO (1994). demonstrar como o pensamento médico de fins do século XIX e início do século XX, em especial o pensamento desenvolvido pelo autor citado, influenciou na consolidação de uma sociologia, em sua época incipiente, ainda chamada de pensamento social brasileiro. É importante ressaltar, que tal análise não pretende esgotar a possibilidade de reflexão sobres os temas apontados, sobretudo, ao considerar a extensão da proposta e o limite imposto pelo acesso aos dados de pesquisa. Para realizar o trabalho, recorrerei à história, demonstrando como as transformações políticas e sociais do momento pretendido interferem na produção do conhecimento, fazendo com que autores optem por referências teóricas específicas, como o darwinismo social, o evolucionismo e a criminologia. Do mesmo modo, parto da análise de duas obras de Nina Rodrigues – As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1957) e O alienado no direito civil brasileiro (1939a) – que em si, conseguem abranger as áreas do pensamento apontadas acima. 2. Medicina e Sociedade Seria impossível pensar na consolidação do pensamento social brasileiro sem atinar para as transformações formais que ocorriam no país em meados dos oitocentos. Historicamente, o Brasil passava por uma série de tentativas de modernização e inserção no mundo capitalista internacional. Para tanto, as pressões realizadas pela Inglaterra surtiram efeitos, mas não alteraram as estruturas e mentalidades sociais vigentes então. De fato, as ações que resultaram na proibição do tráfico de escravos em 1850, a lei Eusébio de Queiroz (1871) e a libertação dos escravos sexagenários não traziam em si os princípios filosóficos do liberalismo, representavam unicamente medidas paliativas que pudessem dirimir os ânimos dos membros da ala radical do partido liberal (NOGUEIRA, 2010), bem como apaziguar as coações por parte da Inglaterra. É somente com a abolição do sistema de trabalho escravo que a liberdade individual representará uma preocupação à intelectualidade. Deste fato, inúmeros outros se verão como consequência imediata. O próprio negro deixava de ser o mero instrumento e mercadoria de trabalho para compor uma nova classe social, que demandava moradia, assistência médica, assistência judicial, qualificação profissional e educação. Tais transformações, associadas a outras como a crescente massa humana pauperizada que se amontoava nos cortiços e nas favelas, principalmente após a Guerra do Paraguai, bem como o processo de industrialização com novos contingentes de trabalhadores, sobretudo, imigrantes e o aumento da criminalidade constituem parte significativa dos enfrentamentos da intelectualidade bacharelesca e médica do período. Objetivamente, a produção deste conhecimento se deu nos principais centros urbanos do país na época: Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Ao contrário do que muitos pensadores da sociologia tributaram como um conhecimento pré-científico, ditado apenas por importações de teorias, conceitos e metodologias (AZEVEDO, 1973; MICELI, 1989), a reflexão produzida em fins do século XIX empreendeu um esforço de criação das ciências sociais brasileiras, bem como um esforço de construção de parâmetros de compreensão da realidade nacional. Segundo Bariani e Segatto (2009 apud RIBEIRO, 2010, p. 12): [...] tais formas de explicação da criação e desenvolvimento, cientificidade e legitimação [das Ciências Sociais], tornaram-se também critérios de valoração, instrumento de marginalização e até de inviabilização da produção que não se norteia somente pelo apelo cientificista e institucional, mas ainda zelosa da amplitude de visão e da importância do artesanato intelectual na interpretação social. Assim, Se é possível pensar nas teorias desses cientistas enquanto resultado de um momento específico, é preciso, também, entendêlas em seu movimento singular e criador, enfatizando os usos que essas idéias tiveram em território nacional. Afinal, chamar tais modelos de ‘pré-científicos’ significa cair em certo reducionismo, deixando de lado a atuação de intelectuais reconhecidos na época, e mesmo desconhecer a importância de um momento em que a correlação entre produção científica e movimento social aparece de forma bastante evidenciada (SCHWARCZ, 1993, p. 17). Ainda que ausente de toda a cientificidade atribuída às Ciências Sociais e à Sociologia a partir da década de 1930, principalmente após a consolidação da Universidade de São Paulo, a produção da “tríade de intelectuais”, como apontou Antonio Candido (2006), composta por juristas, médicos e engenheiro de fins do século XIX, construindo em muitos aspectos um diálogo constante entre as disciplinas, representou um esforço teórico e prático de construção de uma ciência expressamente vinculada à sociedade e a moral. É inequívoco que esses intelectuais aqui considerados, tinham como pressupostos orientadores as teorias do evolucionismo, do positivismo e do darwinismo social. Teorias, aliás, disponíveis no momento para a interpretação da sociedade brasileira, “[...] à qual se somavam as ideologias e valores cultivados por uma consciência coletiva peculiar ao período e a sua elite intelectual” (RIBEIRO, 2010, p. 14). Com isto, o pensamento médico que se desenvolveu no Brasil tinha como objetivo a intervenção diagnóstica e terapêutica sobre os fenômenos sociais de ordem moral, principalmente ao refletirem sobre a liberdade individual, política e sexual da população, que se expandia nos centros urbanos do país. Os sucessos posteriores da “medicina política” ou da “medicina pública” - como se convencionou chamar - sobre a normatividade dos objetos da vida social, verificam-se sobremaneira nas campanhas de higienização das grandes cidades, nas campanhas de prevenção nupcial e na participação crescente da perícia médicolegal em casos que atestavam a criminalidade e a loucura, os testemunhos e a verdade em júri, os testamentos e a lucidez, o suicídio, as lesões de hímen e o casamento e a esterilização de mulheres. Dentre os inúmeros debates e práticas médicas que se estabeleceram neste momento de formação do pensamento social brasileiro, e que aludem às temáticas expostas acima, é comum observarmos a participação do médico maranhense Raymundo Nina Rodrigues. Apesar da morte precoce, o período de atuação profissional de Nina Rodrigues fez com que houvesse certa modernização nas perícias médico-legais, fato que contribuiu para o crescente prestígio da categoria de análise (médico-legal) nas ações jurídico-penais. O caso é que se produzia uma inflexão, em um movimento de convergência, entre dois saberes: o saber médico e o saber jurídico - apesar de mantidas as tensões aparentes entre ambos os ramos do conhecimento (FOUCAULT, 1978; ALVAREZ, 1996). Daí, desta mesma inflexão e convergência, resultou uma forma de pensamento social, uma espécie de saber sociológico ainda incipiente, do qual faço alusão aos preceitos e contribuições de Nina Rodrigues. 3. A responsabilidade penal em Nina Rodrigues: raça, loucura e crime Nina Rodrigues era um intelectual pragmático. Em seus estudos recorria não apenas as teorias criminológicas, mas a uma rigorosa investigação que associava pesquisas quantitativas a pesquisas minuciosas no campo de investigação. Financiado muitas vezes pela própria Faculdade de Medicina da Bahia e em outros casos pela própria curiosidade e amor que nutria pela ciência e por seus sujeitos de pesquisa – como confessou na introdução a obra Os africanos no Brasil (2008) – Nina Rodrigues uniu a “cientificidade” da época ao rigor e a disciplina que a pesquisa acadêmica sempre exigiu. Foi desta maneira que o autor realizou suas pesquisas etnográficas sobre os negros da Bahia e descreveu a situação dos loucos criminosos alojados nas casas penitenciárias da Bahia - sem o devido tratamento médico que sua condição requeria - bem como, foi de tal modo que desenvolveu as críticas ao Código Penal de 1890 - em uma disputa claramente político-ideológica com o jurista Clovis Bevilaquia. Então, o que teria levado a alcunha de “autor maldito” a Nina Rodrigues, se seu rigor metodológico permitiu inclusive a organização de obras após sua morte? Isso pode ser facilmente respondido. As ideias da criminologia não traziam apenas uma renovação nas técnicas de investigação criminal e simples identificação do criminoso. Supostamente, os pressupostos da criminologia associados a outras teorias de caráter racialista permitiam a identificação dos criminosos e a demarcação corporal daqueles portadores da potencialidade inata da degenerescência e do crime. Os criminosos eram então estereotipados e a “identidade bandida” (TERRA, 2010b) construída sobre a população negra e mestiça do país: As ditas classes de risco ou classes perigosas (ALVAREZ, 1996) no Brasil passaram por processos de demarcação física e social por quase toda a história do país, mas ganharam uma roupagem específica e politicamente defendida, sobretudo, a partir de meados do século XIX. Desse modo, é sob o conceito de “periculosidade” e os desdobramentos da criminologia e da racialização do ocidente que os sujeitos sociais do período serão classificados e determinados como potencialmente perigosos [...] Objetivamente, se organizava o suporte teórico embrionário para a concepção daquele que seria o portador físico e moral da suspeição, da periculosidade. Associado à questão da periculosidade inata aos sujeitos sociais se desenvolve o saber da criminologia responsável pela sedimentação das expectativas de ilegalidade a partir da definição biológica do tipo criminoso, principalmente através da designação de criminoso atávico ou tipo atávico4 (TERRA, 2010b. p. 03). 4 A denominação “tipo atávico” é elaborada por Lombroso (1887), na tentativa de classificar um tipo específico de criminoso passível de identificação física. Este, por sua vez, representava um ser supostamente estagnado no processo de evolução humana, e, portanto, bio-psicológico e socialmente distinto, incapaz e não desenvolvido. Além disso, a concepção de criminoso nato (LOMBROSO, 1887), como um sujeito inerentemente criminoso, contribuiu para a legitimação do discurso da perversão natural, da degeneração humana a partir de suas raízes genealógicas e da potencialidade criminosa em grupos sociais naturalizados. Nina Rodrigues, portanto, foi um dos precursores do racismo científico no Brasil, principalmente ao estabelecer uma profunda relação com o criminologista italiano Cesare Lombroso, fato que juntamente a exposição e constante retomada do seu pensamento, conferiu-lhe o título de “autor maldito”. Segundo Antunes (1999, p. 21), é possível, inclusive, [...] destacar o agudo sentimento antiliberal de Nina Rodrigues, para quem inexistia um substrato comum a toda a espécie, um ‘espírito humano’ que igualasse os indivíduos de diferentes raças. Desse modo, para o médico maranhense, o estudo da composição étnica das populações brasileiras impor-se-ia como pré-requisito essencial para a orientação médica às formulações jurídicas. A impossibilidade em se verificar um substrato racional comum a toda a humanidade, viés poligenista de Nina Rodrigues, desencadeava, por conseguinte, um problema de ordem prática para a sociedade brasileira. De outra maneira, ao avaliar a responsabilidade penal dos indivíduos, através dos princípios de igualdade jurídica e de livre-arbítrio em raças supostamente em estágios mentais desiguais – não considerando os fatores biológicos que influenciariam na criminalidade – a formulação do Código Penal de 1890 levava às prisões do país sujeitos que, certamente, eram inimputáveis para Nina Rodrigues (1957). Para solucionar o problema da inadequação do Código Penal e suas consequências, Rodrigues (1957, p.196 -197) afirmava: Eu não pretendo seguramente que cada estado brasileiro deva ter o seu código penal a parte. Nem há necessidade disso. Queria que, desde que se lhes concede que tenham organização judiciária própria, fossem igualmente habilitados a possuir a codificação criminal que mais de acordo estivessem com as suas condições étnicas e climatológicas. O médico não fazia somente uma clara referência à impropriedade do modelo penal italiano (romano) à realidade étnica que se desdobrava no país, senão uma óbvia menção a estrutura que hora consolidava a legislação penal norte-americana. Da mesma maneira, a avaliação dos loucos que cometiam crimes ou dos criminosos que enlouqueciam nas prisões - tema desenvolvido por Nina Rodrigues em O alienado no direito civil brasileiro (1939a) - deveria passar pelo crivo de análise psiquiátrica da medicina legal, capaz de uma identificação completa sobre os aspectos da loucura. Tais criminosos, carentes de um tratamento pormenorizado pela medicina, deveriam ser encaminhados a instituições adequadas sob uma tutela especializada, preferencialmente em manicômios judiciais, mas sob a proteção e controle efetivo do Estado. A punição a “alienados de qualquer espécie, inclusive os fracos de espírito”, como julgara adequado Clovis Bevilaquia em seu projeto de lei, trazia em si uma grave consternação ao meio médico e à própria sociedade brasileira, como apontava Nina Rodrigues (1939a, p. 146 – 147): [...] É na instituição da interdição que mais sensível se torna esta falha. O erro fundamental de doutrina reside aqui na equiparação absoluta, para os efeitos de interdição, de todos os estados mentais que podem modificar a capacidade civil. O projeto [de Clovis Bevilaquia] coloca assim no mesmo plano, ao lado do simples fraco de espírito, ou imbecil, o maníaco ou o demente paralítico terminal; a par da simples fraqueza mental senil, a confusão mental declarada: juntamente com as loucuras crônicas ou incuráveis, os episódios delirantes, mais ou menos efêmeros, dos degenerados [...] não sentiu que [...] a deficiência mental para o exercício dos direitos civis, se pode distribuir, em ordem gradativa, numa escala que vai da completa inconsciência das loucuras gerais às ligeiras falhas mentais dos senis, ao desiquilíbrio físico dos degenerados, nas suas incursões intermitentes nos domínios da loucura. A criminalidade na infância também foi amplamente discutida pelos médicos e por Nina Rodrigues. Desde os distúrbios psiquiátricos supostamente característicos da faixa etária, o alcoolismo em crianças, a vocação inata para a mentira até os cuidados que a sociedade e a imprensa deveriam manter para não corromper a juventude com “más influências”, foram tratadas pela medicina legal (ANTUNES, 1999). Assim, a partir da conjectura de que o jovem e a criança eram facilmente “contaminados” pelos vícios da sociedade, do mesmo modo que podiam herdar as “degenerações” dos pais, a investida sobre a inimputabilidade penal destes recai sobre o discurso de assistencialismo e tutelagem através de serviços sociais – em especial serviços médicos – que garantissem a seguridade moral dos mesmos. Não é estranho, portanto, que neste mesmo contexto e período surjam a “Sociedade Científica Protetora da Infância” e o “Instituto para Menores Delinquentes” (1902), ambos com o intuito de preservar a infância e a adolescência, vistas como classes sugestionáveis pela corrupção da raça e do gênero, pela pobreza e pelo convívio social com indivíduos considerados como degenerados. Para Nina Rodrigues (1957), os menores autores de atos infracionais, como hoje são comumente chamados os jovens e crianças que se inserem na criminalidade, deveriam ser adequadamente asilados em abrigos educacionais e não encarcerados com criminosos em idades variadas, como ocorria no país, por conta da ausência de uma legislação mais apurada à questão e institutos apropriados. Por mais degenerada que pudesse já ser a criança por conta de sua disposição bio-psicológica, o convívio com criminosos mais velhos poderia levar estas a uma aprendizagem direcionada para o crime, aperfeiçoando suas práticas criminosas e distorcendo sua moral fragilizada. Denuncia: [...] Eis, no entanto, que a penitenciária da Bahia, um dos mais importantes Estados da União, torna o código federal um luxo inútil, uma criação altamente teórica e sem utilidade prática, e mais do que tudo isto, uma escola perigosa de criminosos temíveis. O código do império estatuia que só menores, que houvessem cometido crimes, obrando com discernimento, seriam recolhidos à casa de correção. O novo código [1890], à semelhança do italiano, manda recolhe-los a estabelecimentos agrícolas especiais (art. 31). Tais estabelecimentos não existem, porém, e os menores continuam a ser recolhidos à penitenciária e à casa de correção (RODRIGUES, 1957, p. 188 – 189). Em verdade, o pano de fundo sobre o qual se desenvolviam as argumentações de Nina Rodrigues, consistia em uma tentativa de diferenciação dos graus de responsabilidade penal, que de acordo com suas interlocuções poderia ser atenuada se observados os fatores mesológicos da criminalidade. As raças consideradas como inferiores (negros e indígenas), bem como seus descendentes, mestiços ou não, os loucos, as mulheres e as crianças, ao demonstrarem, segundo os estudos lombrosianos e criminológicos, uma compreensão diversa daquilo que era “certo” em relação ao que moralmente se era condenado, não só poderiam como deveriam ser julgados pelos dispositivos legais de modo diferenciado e atenuado. Do mesmo modo, como classes potencialmente perigosas e predispostas à criminalidade, conforme as referências do período, os programas de prevenção e a tutela do Estado sobre estes, deveriam ser redobrados. Assim, [...] a consequência de fundo do argumento de Nina Rodrigues: para além dos ideários quiméricos de igualdade [...], a realidade da desigualdade biológica e social, impunha, segundo o autor, a necessidade de tutelarização de todos os grupos de indivíduos que ainda não tivessem atingido a maturidade necessária para serem tratados como plenamente responsáveis (ALVAREZ, 1996, p. 250 251). Além destes, inúmeros outros temas - que não serão tratados neste momento - foram abordados por Nina Rodrigues, influenciando intensamente o desenvolvimento das perícias médico-legais e do pensamento médico-social no país. De fato, dentre os intelectuais da época, Nina Rodrigues consistia uma autoridade que, como resultado de seu rigor científico, dificilmente era confrontado. Os confrontos existiam obviamente, sobretudo, em um contexto de afirmação e disputas por hegemonia no campo da ciência. Contudo, suas perícias e seus argumentos eram tão minuciosos nas respostas dadas aos seus adversários, que a tréplica sempre era mais difícil de ser realizada. Como lembra Schwarcz (2006), em termos da seriedade com que tratava suas referências teóricas, levando a cabo sua argumentação ao campo da prática, Nina Rodrigues foi o intelectual mais coerente de sua época. 4. Permanências e convergências: o pensamento político de Nina Rodrigues nas Ciências Sociais O ponto que desenvolverei agora, é preciso alertar o leitor, se trata ainda de uma reflexão inacabada diferentemente do que se viu até aqui. Nesse sentido, há aqui, muito mais especulações do que ciência de fato. Entretanto, como toda ciência se desenvolve, a priore, a partir de uma hipótese especulativa, segue então minha justificativa. A medicina legal5, segundo Hélio Gomes (1984, p. 07 - 08), pode ser definida como: [...] o conjunto de conhecimentos médicos e paramédicos destinados a servir o Direito, cooperando na elaboração, auxiliando a interpretação e colaborando na execução dos dispositivos legais atinentes a seu campo de ação de Medicina aplicada. Na definição estão compreendidos todos os elementos e objetivos da Medicina Legal: sua parte positiva e sua parte doutrinária, seu aspecto artístico e seu conteúdo científico. A definição põe em realce sua cooperação na elaboração de determinadas leis que tenham relação direta ou indireta com seus estudos especializados; evidencia seu auxílio na interpretação e execução dos dispositivos legais relacionados com seus conhecimentos. Tem ainda a Medicina Legal função cultural das mais elevadas: prepara o caminho para a adoção de leis melhores e mais progressistas, esclarecendo a inteligência das elites, orientando a opinião pública, divulgando as doutrinas científicas, sugerindo 5 Segundo Hélio Gomes (1984, p. 07-08), a Medicina legal tem vasta sinonímia: “[...] medicina judiciária ou dos tribunais (PRUNELLE), medicina da lei (TRÉBUCHET), medicina política (MARX), medicina criminal, biologia legal, biologia forense, medicina pericial, antropologia jurídica, medicina forenses jurídica (sábios de Roma). A denominação tradicional da cadeira é a de Medicina Legal. Todavia, não são poucos os autores que acham defeituosa a expressão, porque pertencem ao seu conteúdo assuntos que não são médicos, como os psicológicos e os toxicológicos [...]”. medidas, aconselhando práticas, tendentes a aperfeiçoar o que existe e a criar o que for útil e aconselhável no sentido do progresso social [...] A Medicina Legal é chamada a resolver questões que afetam o indivíduo, desde a sua existência no ventre materno, até determinado tempo depois da sua morte. Fala da sua capacidade, da sua responsabilidade, dos seus crimes, dos defeitos de seu depoimento, da sua identificação, do suicídio, do homicídio, da morte acidental. (grifos meus). Dividida da seguinte maneira (GOMES, 1984): Fatos referentes à Sexologia forense vida. subdividida. 2º - O indivíduo em relação com o meio. MEDICINA LEGAL propriamente dita MEDICINA LEGAL propriamente dita 1º - O indivíduo Identidade. Capacidade e responsabilidade. em si. Psicologia da prova. Antropologia forense. Psicologia forense. Psicologia judiciária. Casamento – Himeneologia forense. Procriação – Obstetrícia forense. Amor – Erotologia forense. Danos à Por trauma e Traumatologia saúde e à acidentes do forense e Infortunística. vida. trabalho. Fatos referentes à morte. Por asfixia. Morte. Asfixiologia forense. Por envenenamento. Toxicologia forense. Tanatologia forense. 3º - O indivíduo em relação com as decisões dos juízes e tribunais no tocante aos problemas médico-legais e em Jurisprudência médico-legal. Polícia Técnica – (Policiologia). relação com as investigações policiais. Em conformidade com a definição apresentada por Gomes, é impossível dizer que a medicina legal atue somente sobre o crime ou o ato criminoso, fato já observado. Aliás, diria mesmo que, de acordo com o que foi exposto, a medicina legal ou o pensamento médico que se desenvolveu no Brasil, sobretudo, em fins do século XIX, jamais pretendeu ter suas vistas presas ao crime. Seu objeto de investigação, suas perícias, suas análises em cenas de crime se atentam sempre para o criminoso, para o indivíduo. Dessa forma, as perguntas frequentes dos legistas são: em que condições o criminoso cometeu seu crime? Quais os motivos que levaram o criminoso ao ato em si? Qual seu perfil psicológico? Qual sua responsabilidade? Estava louco ou temporariamente insano? O que a cena do crime oferece para que o criminoso possa ser identificado? Etc.. As referências médicas aplicadas ao jurídico, portanto, retiram seu foco do ato criminoso, que fica em segundo plano, mesmo constituindo um atentado bárbaro à vida e ao direito humano, centrando-se nos motivos patológicos individuais ou sociais do criminoso. Assim, não se justificam os crimes, mas os motivos extremados, diria anormais, que levaram ao ato do criminoso, que construíram um criminoso ou um sujeito potencialmente perigoso para a sociedade. Nesse sentido, entra nas discussões atuais da medicina legal ou da psiquiatria atinada ao Direito alguns aspectos que ainda se referem aos argumentos do pensamento médico dos oitocentos: a formação familiar, a educação, as ações que sofrera na infância, as origens sociais, a loucura e, consequentemente a degeneração genética herdada dos pais. Em tal conjuntura, a responsabilidade penal do indivíduo poderia ser atenuada conforme os laudos oferecidos pelos médicos especialistas. Por conseguinte, medicina legal, direito e psicologia social convergem e atuam em consonância, buscando uma justificativa para a ação do sujeito criminoso. Como já consubstanciava Nina Rodrigues em suas reflexões, o crime não pode ser avaliado sem antes se atentar para o perfil bio-psicológico do criminoso, fato que designa, tanto a responsabilidade individual sobre a ação quanto a liberdade do querer ou livre-arbítrio do sujeito em sua ação. A sociologia da violência, ou o que muitos pretendem como uma sociologia da violência, também não está tão distante dos pressupostos do pensamento médico de fins do século XIX. Também para esta existe um setor da população que demanda atenção especial nos casos de criminalidade. Isto pode ser observado nos programas de assistência oferecidos por ONGs ou mesmo por organizações que têm o apoio estatal, que oferecem subsídio educacional, cultural e artística para jovens, com o objetivo de retirá-los do chamado “mundo do crime” ou afastá-los das influências criminais que seu meio social supostamente expõe. Exposição criminal ou mundo criminoso, diga-se de passagem, muito mais como responsabilidade de uma rede midiática não comprometida com a verdade e a realidade social, do que por constituir um ambiente onde vivem a maioria dos criminosos. Não é estranho, portanto, que tais programas de assistência social, diria mesmo de tutelarização social de classes perigosas, desenvolvidos muitas vezes por intelectuais próximos ou especializados na sociologia da violência, sejam realizados em periferias urbanas (que no senso comum corresponde ao meio natural da criminalidade), e oferecidos a jovens “carentes”. Igualmente aqui, os jovens da periferia são vistos como predispostos à criminalidade, não apenas pela pobreza, fator comumente associado à criminalidade, mas pelo meio social que habitam e, sobretudo, pela fragilidade de consciência entre o que é moralmente admitido e o que é condenado pela sociedade. Não obstante, a chave para a compreensão dos programas sociais que querem “combater” a criminalidade, reside em um dos mais caros objetivos da medicina social ou medicina pública: a prevenção. Não basta apenas prevenir doenças coronárias com uma alimentação balanceada - como nos indicam diariamente os meios de comunicação com seus programas médicos que crescem a cada dia - ou exercícios físicos indicados por profissionais especializados, é necessária a prevenção sobre a maior patologia que a sociedade moderna poderia ter criado, o criminoso. Em outros termos, aquele que de uma forma ou de outra, em termos capitalistas, corresponde a um indivíduo com liberdade em excesso e completamente improdutivo para os fins da sociedade industrial. Isto posto, o imaginário social produzido pelo alcance tomado não apenas pelas ideias de Nina Rodrigues, mas por toda uma geração de médicos obstinados na construção de uma ciência médico-social - sumariamente apresentada neste texto - e codificado nas gerações posteriores através da memória coletiva (HALBWACHS, 1990), revela que as expectativas de ilegalidade ou de propensão a criminalidade se por um lado, podem recair diretamente sobre a imagem do negro, por outro lado, podem bem se assentar na figura do pobre favelado (TERRA, 2010a; TERRA, 2010b). De certa forma, no imaginário social, a própria responsabilidade penal do indivíduo que atenta contra a sociedade sob a alegação de sua situação de pobreza é atenuada, ou melhor, justificada. Neste caso, não se trata da brandura do Direito ou das medidas legais, mas da imagem social produzida sobre o criminoso. A sociedade assume uma espécie de culpa sobre a condição econômica do sujeito social. Nesse sentido, supostamente, [...] a sociedade capitalista (civilização) corrompe os sujeitos empobrecidos, não apenas nos momentos em que incita um consumo sobre o que não se pode ter, mas também na medida em que não fornece as condições educacionais necessárias para o pleno desenvolvimento. Assim, o pobre é visto como uma criança que sem desenvolvimento cognitivo sobre as ações resultante do processo de aprendizagem escolar e familiar e fruto de um meio do qual não consegue se desvencilhar - necessita ser constantemente tutelado, vigiado e controlado. Na compreensão que estabelecem sobre a realidade criminal, o pobre não representa um monstro social, mas um sujeito infantilizado que mal consegue dissimular as intenções pretendidas (mentir) dada sua suposta limitação psicológica (TERRA, 2010b, p. 205). É certo que os projetos políticos de intervenção no Código Penal de Nina Rodrigues não produziram efeitos sobre a jurisprudência nacional, uma vez que suas alegações nunca foram realmente adotadas na legislação penal brasileira. Entrementes, é preciso reconhecer, que o alcance e a influência de suas obras chegaram aos primeiros anos do século XXI, seja através do reconhecimento e credibilidade da medicina legal ou da polícia médico-legal a serviço do nosso Direito, seja através de outros ramos da ciência social brasileira. É verdade também que boa parte da disseminação de sua obra é resultado da admiração dos seus discípulos e das lutas empreendidas por sua esposa D. Maria Amélia Couto Nina Rodrigues (ou como gostava de ser denominada, por conta da grande credibilidade do marido, Viúva Nina Rodrigues) na publicação das suas obras. Mesmo assim, muitos dados e objetos pessoais de Nina Rodrigues continuam perdidos e obscurecidos em coleções particulares erigidas por seus colegas de profissão e admiradores, após sua morte, em 1906. 5. A título de conclusão: a sutura Ciências Sociais/Medicina É fato inquestionável que existe um pensamento social no Brasil anterior a institucionalização das Ciências Sociais no país, seja com o nome de pensamento político, seja através da designação de pensamento médico brasileiro. Desenvolvido ora em instituições acadêmicas médicas ou nas Faculdades Direito, tal forma de interpretação da realidade nacional se fez em termos “científicos” a partir dos modelos de análise disponíveis no momento. Assim, as interpretações de Nina Rodrigues não fogem à regra do seu contexto intelectual e social. Lembremos, para fins de esclarecimentos, o fato de que tais pressupostos se faziam, enquanto verdades estabelecidas, por uma elite intelectual resultante de uma “revolução burguesa” enviesada pelos interesses da classe agrária nacional. Dito de outra forma, tais intelectuais refletiam sobre uma liberdade e uma igualdade político-jurídica alteradas somente em 1888. Concatenados a este movimento, pensadores do período preocuparam-se, sobretudo, com a integração social de classes antes “inexistentes”, com a moralidade pertinente as mesmas e com os impactos destas sobre a realidade e a construção da nação brasileira. Nesse sentido, é possível afirmar que o projeto do pensamento político de Nina Rodrigues tinha como propósito não unicamente à construção de uma ciência capaz de explicar a realidade brasileira, mas o intento de construir e afirmar as particularidades do Brasil frente às demais nações do mundo capitalista. Para além do nível imediatista que suas propostas apresentavam, Nina Rodrigues traçava um nítido plano para a construção do país no futuro. Dessa forma, ao indicar uma adequação do Código Penal de 1890 à suposta realidade geográfica, climática e, principalmente, étnica do Brasil, o autor intuía a afirmação da identidade nacional do povo brasileiro. Ter um código penal adaptado às condições mesológicas nacionais, possibilitaria à República brasileira demonstrar sua modernidade político-jurídica em relação a países da Europa, chamados então de civilizados, além de provar seus avanços científicos em face do restante da América do Sul. Para Nina Rodrigues, o simples fato de não atirar às pocilgas – que nossos governantes atestavam como institutos carcerários – sujeitos considerados inimputáveis por alguma característica identificada pelos especialistas, significava tratar com justeza a toda a população brasileira. O autor buscava assim criar os argumentos necessários que confirmassem a impropriedade com a qual a justiça tratava inúmeros brasileiros, presumidamente, pela ineficaz e indevida legislação penal a que nos submetíamos. Tratar, portanto, o sujeito humano como um sujeito de direito, mesmo que um direito incongruente com os princípios de igualdade, os quais, aliás, constituíam para ele uma falácia. De modo óbvio, a equidade social não estava presente na formulação e Nina Rodrigues acabou por estabelecer os contornos necessários às ideias para tratar com desigualdade aqueles que de fato a elite queria como desiguais. Bibliografia: ALVAREZ, Marcos Cesar. Bacharéis, criminologistas e juristas: a nova escola penal no Brasil 1889- 1930. 1996. 304 f. Tese (Doutorado)-Programa de Pós-graduação em Sociologia, Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. 1996. ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Medicina, leis e moral. Pensamento médico no Brasil (1870-1930). São Paulo: Editora Unesp, 1999. AZEVEDO, Fernando. Princípios de sociologia e pequena introdução ao estudo da sociologia geral. São Paulo: Duas Cidades, 1973. CANDIDO, Antonio. A Sociologia no Brasil. Tempo Social. São Paulo. Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, v. 18, nº 1, p. 271-301, jun. 2006. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Cadernos da Puc: Série Letras e Artes, Rio de Janeiro, n. 16, 102p, jan. 1978. GOMES, Hélio. A medicina legal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1984. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. MAIO, Marcos C. A medicina de Nina Rodrigues: análise de uma trajetória científica. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, abr./jun. 1995. MICELI, Sergio (org.). História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Vértice, 1989. NOGUEIRA, Marco Aurélio. O encontro de Joaquim Nabuco com a política: as desventuras do liberalismo. São Paulo: Paz e Terra, 2010. RIBEIRO, Marcos A. P. A morte de Nina Rodrigues e suas repercussões. 1994. S/P. Disponível em: http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n16_p54.pdf. Acessado em: 10 de fevereiro de 2010. RIBEIRO, Paulo Silvino. “Prescrições médicas” contra os males da nação: diálogos de Franco da Rocha na construção das Ciências Sociais no Brasil. 2010. 157f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara, 2010. RODRIGUES, Raimundo Nina. As raças humanas e responsabilidade penal no Brasil. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957. _______. O alienado no direito civil brasileiro. Companhia Editora Nacional. São Paulo, 1939a. _______. Os africanos no Brasil. São Paulo: Madras, 2008. ______. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/ Editora UFRJ, 2006. ______. Coletividades anormais. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1939b. SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. __________. Quando a desigualdade é diferença: reflexões sobre Antropologia Criminal e Mestiçagem na obra de Nina Rodrigues. Gazeta Médica da Bahia, Salvador, v. 76, p. 47-53, dez. 2006. TERRA, Lívia Maria. Negro Suspeito, Negro Bandido: um estudo sobre o discurso policial. 2010. 155f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Faculdade de Ciências e Letras - UNESP. 2010a. _______. Identidade bandida: a construção social do estereótipo marginal e criminoso. Revista Levs: Revista Virtual do Laboratório dos Estudos da Violência e Segurança, Marília, n. 5, nov. 2010b. p. 196-208. ISSN. 1983-2192. Disponível em: http://www.levs.marilia.unesp.br/revistalevs/edicao6/Autores/14_identidade_bandida _livia_terra.pdf.