- Sociedade Brasileira de Sociologia

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XV Congresso Brasileiro de Sociologia
26 a 29 de julho de 2011 – Curitiba (PR)
Grupo de Trabalho 17: Pensamento Social no Brasil
- O “autor maldito” o pensamento político de Nina Rodrigues nas ciências sociais
Lívia Maria Terra
Programa de Pós-Graduação em Sociologia – Faculdade de Ciências e
Letras da Unesp – Campus de Araraquara
1. Introdução
A sociedade moderna capitalista, bem se sabe, não trouxe apenas inovações
nas relações sociais, em especial na natureza do trabalho e nas formas de
exploração do homem pelo homem. Trouxe também saberes diversos que visavam,
sobretudo, a explicação dessas mesmas relações sociais, seja do homem com o
próprio homem, seja do homem com o Estado moderno. Saberes estes que
procuravam o entendimento e a explicação das condições em que se organizava e
estruturava a sociedade industrial, do mesmo modo, saberes estes que buscavam a
regulação da produção e normatização do indivíduo para sua melhor inserção na
produtividade desejada pelo sistema político-econômico em prática. Já sugeria
Foucault (1978) em seus trabalhos sobre as transformações sociais ocorridas no
decorrer do século XIX: as formas de saber oriundas dos processos de
modernização da sociedade capitalista resultaram em disciplinas acadêmicas antes
inexistentes, como o caso da biologia, da sociologia e da psicanálise.
Assim, as discussões da medicina se inserem sobre a regulação da vida
humana, originando um novo campo do conhecimento, a chamada medicina social.
É no desenvolvimento deste setor que se manifestara as primeiras formas
assumidas pelo pensamento social no Brasil, tendo não apenas nos bacharéis em
direito e nos literários, como comumente se convencionou aludir, a fonte para as
explicações dos fenômenos sociais. Em um momento de grandes transformações da
sociedade brasileira – desde a abolição do sistema escravista à proclamação da
república e a inserção de novos segmentos sociais à dinâmica da vida social e
política do país – os médicos brasileiros realizaram o papel que cabia ao sociólogo,
analisando, avaliando e diagnosticando os fatos sociais, principalmente os que
consideravam como patologia social.
Qualquer estudioso que busque a análise sobre a atuação do pensamento
médico no período que enseja o Brasil nas últimas décadas do século XIX até
meados do século XX, corriqueiramente, observará que os registros científicos
engendrados pelos profissionais da saúde tendem, em geral, a uma reflexão sobre a
organização da vida social, tendo como ponto comum o próprio desenrolar da
conduta moral do indivíduo em sociedade. Neste sentido, é sobre o crime e o
criminoso, sobre a família e a vida familiar, sobre a loucura e degeneração moral,
sobre as estruturas de poder e seu próprio campo de atuação, que a medicina
social1 irá concretizar suas pesquisas. Isto posto,
[...] vamos encontrar os médicos analisando os fatos sociais e
avaliando os aspectos relativos à conduta moral. Vamos encontra-los
diagnosticando problemas que não caberia à anatomia patológica a
comprovar. Veremos esses médicos reconhecendo, reproduzindo e
reprogramando a realidade social que os cercava e que constituía a
matéria de sua apreciação. Vamos flagrá-los em sua atividade
conformadora da vida social, vamos caracterizá-los como um foco de
emissão dos preceitos morais. Em outras palavras, vamos encontralos produzindo conhecimentos sobre a dimensão coletiva da vida
humana, firmando sua especialidade como espaço de uma ciência
propriamente social (ANTUNES, 1999, p. 12-13).
De fato, o que legitimava e autorizava os médicos a agirem de tal maneira era
o próprio caráter de cientificidade assumida pela biologia, enquanto fonte direta de
intervenção e poder sobre a vida e a existência humana. A biologia e, portanto, a
medicina, para além do poderio sobre a regulamentação da vida dos indivíduos,
tinha sobremaneira o poder de decidir sobre a morte do indivíduo ou quem deveria
viver em sociedade. Os médicos fizeram da medicina, uma verdadeira ciência do
social, submetida às confrontações teóricas e às verificações empíricas (ANTUNES,
1999).
Evidentemente, muitos autores do pensamento médico-social brasileiro foram
legados ao ostracismo histórico, como o caso do doutor Souza Lima, expoente da
medicina legal no país, ao passo que outros ganharam tamanha dimensão, que o
estudo de suas personalidades e contribuições é grande nas ciências sociais, como
o próprio Raymundo Nina Rodrigues, sujeito destas mesmas páginas que seguem.
Não é acidental ou ao acaso a permanência do médico maranhense
Raymundo Nina Rodrigues nas atuais discussões tanto antropológicas, quanto
sociológicas e médicas. Para os que conhecem parte da produção científica de fins
do século XIX não é difícil reconhecer a influência da figura contraditória e por vezes
polêmica do médico. Precursor e um dos pioneiros nos estudos etnográficos sobre a
religião, a genealogia, a língua e a mitologia dos negros brasileiros (RIBEIRO,1994),
Nina Rodrigues foi também professor de medicina legal, perito médico legal da
polícia civil, bem como higienista e epidemiologista. A fama nacional e internacional
de seu nome chegou a batizar o Instituto Médico Legal da Bahia, o qual constituía
um de seus projetos principais. A própria dimensão que ganhou a morte de Nina
1
Considerada neste momento, dado seu desenvolvimento histórico, sob o título de Medicina Legal.
Rodrigues em 1906 é portadora de um simbolismo adequado para exemplificar a
simpatia acadêmica resultante de sua atuação profissional2.
As obras do autor não serão aqui elencadas, pois constituem uma produção
de cerca de sessenta livros em apenas dezessete anos de carreira, dentre inúmeros
artigos publicados na Gazeta Médica da Bahia e outros periódicos internacionais3,
que abordam temas variados como a loucura, as epidemias em geral, principalmente
as epidemias de febre amarela no Brasil, medicina e direito, higiene e saneamento,
dentre ensaios de medicina pura. Cito aqui, contudo, as obras de maior
expressividade e as mais estudadas nas ciências sociais brasileiras, sobretudo,
porque visam à análise de questões sociais, que concernem à vida humana em
coletividade: Os africanos no Brasil (2008); O animismo fetichista dos negros
baianos (2006); Coletividades anormais (1939b), obra póstuma organizada por
Arthur Ramos; As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1957) e O
alienado no direito civil brasileiro (1939a).
Sendo assim, este esboço teórico, que hora proponho no desenrolar destas
páginas sob a forma de artigo, tem como objetivo compreender o alcance projetado
pela obra de Nina Rodrigues sobre três áreas específicas do conhecimento, a saber,
a Medicina Legal/Direito, a Sociologia da Violência e a Psicologia Social, bem como
2
Já bastante adoentado, supostamente por uma infecção adquirida na cidade litorânea de Conde
(BA), aos quarenta e quatro anos de idade, Nina Rodrigues foi nomeado delegado e representante da
Faculdade de Medicina da Bahia para o IV Congresso Internacional de Assistência Pública e Privada,
que aconteceria em Milão nos dias 23 e 27 de maio de 1906. A longa viagem trouxe a benesses do
arrefecimento da doença. Porém ao desembarcar em Lisboa no dia 17 de maio do mesmo ano, na
companhia de sua esposa Maria Amélia de Couto Nina Rodrigues e da filha, na época com doze
anos, Alice Nina Rodrigues, o médico tem uma forte crise de hemoptise. Em Paris, com a doença
novamente abrandada, conseguiu ainda realizar algumas visitas aos fornecedores de materiais que
deveriam compor os equipamentos do Instituto Médico Legal da Bahia, instituto o qual concebera e
projetara, além de acompanhar autópsias e recolher dados de pesquisa. Em 10 de julho, em uma
visita ao morgue de Paris, Nina Rodrigues desfalece subitamente e é reconduzido ao Hotel Nouvel,
onde se hospedara com a família. Morre no dia 17 de julho do mesmo ano, acompanhado por alguns
especialistas que não conseguiram diagnosticar com a precisão necessária a doença do autor. O
laudo de sua autópsia, feita pelo médico francês Paul Brouadel, permanece ainda em Paris, o que
impede uma posição definitiva sobre as causas de sua morte por nós pesquisadores. O autor
permaneceu lúcido o tempo todo, chegando a proferir diante de sua situação as seguintes palavras:
“Isso é o começo do fim”. Após sua morte, um ciclo grandioso de homenagens se principiou por todo
o estado da Bahia. Votos de condolências à família, suspensão das aulas na Faculdade de Medicina
da Bahia e na Escola Politécnica, hasteamento da bandeira nacional a meio mastro em inúmeros
institutos, como a Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Jornal de Notícias, Faculdade de Direito
da Bahia, etc. As homenagens duraram, tanto no Brasil quanto na França, onde seu corpo também
fora velado, quase um mês, sendo encerradas em 13 de agosto de 1906, dois dias após o corpo
chegar ao Brasil (RIBEIRO, 1994).
3
The Journal of American Folklore, Annales Medico-psycchologiques, The American Antiquarian.
Também foi redator dos Archivos de Psiquiatria de Buenos Aires, e vice-presidente da Sociedade de
Medicina Legal de Nova Iorque. Maiores detalhamentos sobre a extensão das publicações e da
repercussão da vida acadêmica de Nina Rodrigues podem ser encontradas em RIBEIRO (1994).
demonstrar como o pensamento médico de fins do século XIX e início do século XX,
em especial o pensamento desenvolvido pelo autor citado, influenciou na
consolidação de uma sociologia, em sua época incipiente, ainda chamada de
pensamento social brasileiro. É importante ressaltar, que tal análise não pretende
esgotar a possibilidade de reflexão sobres os temas apontados, sobretudo, ao
considerar a extensão da proposta e o limite imposto pelo acesso aos dados de
pesquisa.
Para realizar o trabalho, recorrerei à história, demonstrando como as
transformações políticas e sociais do momento pretendido interferem na produção
do conhecimento, fazendo com que autores optem por referências teóricas
específicas, como o darwinismo social, o evolucionismo e a criminologia. Do mesmo
modo, parto da análise de duas obras de Nina Rodrigues – As raças humanas e a
responsabilidade penal no Brasil (1957) e O alienado no direito civil brasileiro
(1939a) – que em si, conseguem abranger as áreas do pensamento apontadas
acima.
2. Medicina e Sociedade
Seria impossível pensar na consolidação do pensamento social brasileiro sem
atinar para as transformações formais que ocorriam no país em meados dos
oitocentos. Historicamente, o Brasil passava por uma série de tentativas de
modernização e inserção no mundo capitalista internacional. Para tanto, as pressões
realizadas pela Inglaterra surtiram efeitos, mas não alteraram as estruturas e
mentalidades sociais vigentes então. De fato, as ações que resultaram na proibição
do tráfico de escravos em 1850, a lei Eusébio de Queiroz (1871) e a libertação dos
escravos sexagenários não traziam em si os princípios filosóficos do liberalismo,
representavam unicamente medidas paliativas que pudessem dirimir os ânimos dos
membros da ala radical do partido liberal (NOGUEIRA, 2010), bem como apaziguar
as coações por parte da Inglaterra.
É somente com a abolição do sistema de trabalho escravo que a liberdade
individual representará uma preocupação à intelectualidade. Deste fato, inúmeros
outros se verão como consequência imediata. O próprio negro deixava de ser o
mero instrumento e mercadoria de trabalho para compor uma nova classe social,
que demandava moradia, assistência médica, assistência judicial, qualificação
profissional e educação. Tais transformações, associadas a outras como a crescente
massa humana pauperizada que se amontoava nos cortiços e nas favelas,
principalmente após a Guerra do Paraguai, bem
como o processo de
industrialização com novos contingentes de trabalhadores, sobretudo, imigrantes e o
aumento da criminalidade constituem parte significativa dos enfrentamentos da
intelectualidade bacharelesca e médica do período. Objetivamente, a produção
deste conhecimento se deu nos principais centros urbanos do país na época: Rio de
Janeiro, São Paulo e Salvador.
Ao contrário do que muitos pensadores da sociologia tributaram como um
conhecimento pré-científico, ditado apenas por importações de teorias, conceitos e
metodologias (AZEVEDO, 1973; MICELI, 1989), a reflexão produzida em fins do
século XIX empreendeu um esforço de criação das ciências sociais brasileiras, bem
como um esforço de construção de parâmetros de compreensão da realidade
nacional. Segundo Bariani e Segatto (2009 apud RIBEIRO, 2010, p. 12):
[...] tais formas de explicação da criação e desenvolvimento,
cientificidade e legitimação [das Ciências Sociais], tornaram-se
também critérios de valoração, instrumento de marginalização e até
de inviabilização da produção que não se norteia somente pelo apelo
cientificista e institucional, mas ainda zelosa da amplitude de visão e
da importância do artesanato intelectual na interpretação social.
Assim,
Se é possível pensar nas teorias desses cientistas enquanto
resultado de um momento específico, é preciso, também, entendêlas em seu movimento singular e criador, enfatizando os usos que
essas idéias tiveram em território nacional. Afinal, chamar tais
modelos de ‘pré-científicos’ significa cair em certo reducionismo,
deixando de lado a atuação de intelectuais reconhecidos na época, e
mesmo desconhecer a importância de um momento em que a
correlação entre produção científica e movimento social aparece de
forma bastante evidenciada (SCHWARCZ, 1993, p. 17).
Ainda que ausente de toda a cientificidade atribuída às Ciências Sociais e à
Sociologia a partir da década de 1930, principalmente após a consolidação da
Universidade de São Paulo, a produção da “tríade de intelectuais”, como apontou
Antonio Candido (2006), composta por juristas, médicos e engenheiro de fins do
século XIX, construindo em muitos aspectos um diálogo constante entre as
disciplinas, representou um esforço teórico e prático de construção de uma ciência
expressamente vinculada à sociedade e a moral.
É inequívoco que esses intelectuais aqui considerados, tinham como
pressupostos orientadores as teorias do evolucionismo, do positivismo e do
darwinismo social. Teorias, aliás, disponíveis no momento para a interpretação da
sociedade brasileira, “[...] à qual se somavam as ideologias e valores cultivados por
uma consciência coletiva peculiar ao período e a sua elite intelectual” (RIBEIRO,
2010, p. 14).
Com isto, o pensamento médico que se desenvolveu no Brasil tinha como
objetivo a intervenção diagnóstica e terapêutica sobre os fenômenos sociais de
ordem moral, principalmente ao refletirem sobre a liberdade individual, política e
sexual da população, que se expandia nos centros urbanos do país. Os sucessos
posteriores da “medicina política” ou da “medicina pública” - como se convencionou
chamar - sobre a normatividade dos objetos da vida social, verificam-se
sobremaneira nas campanhas de higienização das grandes cidades, nas
campanhas de prevenção nupcial e na participação crescente da perícia médicolegal em casos que atestavam a criminalidade e a loucura, os testemunhos e a
verdade em júri, os testamentos e a lucidez, o suicídio, as lesões de hímen e o
casamento e a esterilização de mulheres.
Dentre os inúmeros debates e práticas médicas que se estabeleceram neste
momento de formação do pensamento social brasileiro, e que aludem às temáticas
expostas acima, é comum observarmos a participação do médico maranhense
Raymundo Nina Rodrigues. Apesar da morte precoce, o período de atuação
profissional de Nina Rodrigues fez com que houvesse certa modernização nas
perícias médico-legais, fato que contribuiu para o crescente prestígio da categoria de
análise (médico-legal) nas ações jurídico-penais.
O caso é que se produzia uma inflexão, em um movimento de convergência,
entre dois saberes: o saber médico e o saber jurídico - apesar de mantidas as
tensões aparentes entre ambos os ramos do conhecimento (FOUCAULT, 1978;
ALVAREZ, 1996). Daí, desta mesma inflexão e convergência, resultou uma forma de
pensamento social, uma espécie de saber sociológico ainda incipiente, do qual faço
alusão aos preceitos e contribuições de Nina Rodrigues.
3. A responsabilidade penal em Nina Rodrigues: raça, loucura e crime
Nina Rodrigues era um intelectual pragmático. Em seus estudos recorria não
apenas as teorias criminológicas, mas a uma rigorosa investigação que associava
pesquisas quantitativas a pesquisas minuciosas no campo de investigação.
Financiado muitas vezes pela própria Faculdade de Medicina da Bahia e em outros
casos pela própria curiosidade e amor que nutria pela ciência e por seus sujeitos de
pesquisa – como confessou na introdução a obra Os africanos no Brasil (2008) –
Nina Rodrigues uniu a “cientificidade” da época ao rigor e a disciplina que a
pesquisa acadêmica sempre exigiu.
Foi desta maneira que o autor realizou suas pesquisas etnográficas sobre os
negros da Bahia e descreveu a situação dos loucos criminosos alojados nas casas
penitenciárias da Bahia - sem o devido tratamento médico que sua condição
requeria - bem como, foi de tal modo que desenvolveu as críticas ao Código Penal
de 1890 - em uma disputa claramente político-ideológica com o jurista Clovis
Bevilaquia. Então, o que teria levado a alcunha de “autor maldito” a Nina Rodrigues,
se seu rigor metodológico permitiu inclusive a organização de obras após sua
morte? Isso pode ser facilmente respondido. As ideias da criminologia não traziam
apenas uma renovação nas técnicas de investigação criminal e simples identificação
do criminoso. Supostamente, os pressupostos da criminologia associados a outras
teorias de caráter racialista permitiam a identificação dos criminosos e a demarcação
corporal daqueles portadores da potencialidade inata da degenerescência e do
crime. Os criminosos eram então estereotipados e a “identidade bandida” (TERRA,
2010b) construída sobre a população negra e mestiça do país:
As ditas classes de risco ou classes perigosas (ALVAREZ, 1996) no
Brasil passaram por processos de demarcação física e social por
quase toda a história do país, mas ganharam uma roupagem
específica e politicamente defendida, sobretudo, a partir de meados
do século XIX. Desse modo, é sob o conceito de “periculosidade” e
os desdobramentos da criminologia e da racialização do ocidente
que os sujeitos sociais do período serão classificados e
determinados como potencialmente perigosos [...] Objetivamente, se
organizava o suporte teórico embrionário para a concepção daquele
que seria o portador físico e moral da suspeição, da periculosidade.
Associado à questão da periculosidade inata aos sujeitos sociais se
desenvolve o saber da criminologia responsável pela sedimentação
das expectativas de ilegalidade a partir da definição biológica do tipo
criminoso, principalmente através da designação de criminoso
atávico ou tipo atávico4 (TERRA, 2010b. p. 03).
4
A denominação “tipo atávico” é elaborada por Lombroso (1887), na tentativa de classificar um tipo
específico de criminoso passível de identificação física. Este, por sua vez, representava um ser
supostamente estagnado no processo de evolução humana, e, portanto, bio-psicológico e
socialmente distinto, incapaz e não desenvolvido. Além disso, a concepção de criminoso nato
(LOMBROSO, 1887), como um sujeito inerentemente criminoso, contribuiu para a legitimação do
discurso da perversão natural, da degeneração humana a partir de suas raízes genealógicas e da
potencialidade criminosa em grupos sociais naturalizados.
Nina Rodrigues, portanto, foi um dos precursores do racismo científico no
Brasil, principalmente ao estabelecer uma profunda relação com o criminologista
italiano Cesare Lombroso, fato que juntamente a exposição e constante retomada do
seu pensamento, conferiu-lhe o título de “autor maldito”. Segundo Antunes (1999, p.
21), é possível, inclusive,
[...] destacar o agudo sentimento antiliberal de Nina Rodrigues, para
quem inexistia um substrato comum a toda a espécie, um ‘espírito
humano’ que igualasse os indivíduos de diferentes raças. Desse
modo, para o médico maranhense, o estudo da composição étnica
das populações brasileiras impor-se-ia como pré-requisito essencial
para a orientação médica às formulações jurídicas.
A impossibilidade em se verificar um substrato racional comum a toda a
humanidade, viés poligenista de Nina Rodrigues, desencadeava, por conseguinte,
um problema de ordem prática para a sociedade brasileira. De outra maneira, ao
avaliar a responsabilidade penal dos indivíduos, através dos princípios de igualdade
jurídica e de livre-arbítrio em raças supostamente em estágios mentais desiguais –
não considerando os fatores biológicos que influenciariam na criminalidade – a
formulação do Código Penal de 1890 levava às prisões do país sujeitos que,
certamente, eram inimputáveis para Nina Rodrigues (1957). Para solucionar o
problema da inadequação do Código Penal e suas consequências, Rodrigues (1957,
p.196 -197) afirmava:
Eu não pretendo seguramente que cada estado brasileiro deva ter o
seu código penal a parte. Nem há necessidade disso. Queria que,
desde que se lhes concede que tenham organização judiciária
própria, fossem igualmente habilitados a possuir a codificação
criminal que mais de acordo estivessem com as suas condições
étnicas e climatológicas.
O médico não fazia somente uma clara referência à impropriedade do modelo
penal italiano (romano) à realidade étnica que se desdobrava no país, senão uma
óbvia menção a estrutura que hora consolidava a legislação penal norte-americana.
Da mesma maneira, a avaliação dos loucos que cometiam crimes ou dos
criminosos que enlouqueciam nas prisões - tema desenvolvido por Nina Rodrigues
em O alienado no direito civil brasileiro (1939a) - deveria passar pelo crivo de análise
psiquiátrica da medicina legal, capaz de uma identificação completa sobre os
aspectos da loucura. Tais criminosos, carentes de um tratamento pormenorizado
pela medicina, deveriam ser encaminhados a instituições adequadas sob uma tutela
especializada, preferencialmente em manicômios judiciais, mas sob a proteção e
controle efetivo do Estado.
A punição a “alienados de qualquer espécie, inclusive os fracos de espírito”,
como julgara adequado Clovis Bevilaquia em seu projeto de lei, trazia em si uma
grave consternação ao meio médico e à própria sociedade brasileira, como apontava
Nina Rodrigues (1939a, p. 146 – 147):
[...] É na instituição da interdição que mais sensível se torna esta
falha. O erro fundamental de doutrina reside aqui na equiparação
absoluta, para os efeitos de interdição, de todos os estados mentais
que podem modificar a capacidade civil. O projeto [de Clovis
Bevilaquia] coloca assim no mesmo plano, ao lado do simples fraco
de espírito, ou imbecil, o maníaco ou o demente paralítico terminal; a
par da simples fraqueza mental senil, a confusão mental declarada:
juntamente com as loucuras crônicas ou incuráveis, os episódios
delirantes, mais ou menos efêmeros, dos degenerados [...] não
sentiu que [...] a deficiência mental para o exercício dos direitos civis,
se pode distribuir, em ordem gradativa, numa escala que vai da
completa inconsciência das loucuras gerais às ligeiras falhas mentais
dos senis, ao desiquilíbrio físico dos degenerados, nas suas
incursões intermitentes nos domínios da loucura.
A criminalidade na infância também foi amplamente discutida pelos médicos e
por Nina Rodrigues. Desde os distúrbios psiquiátricos supostamente característicos
da faixa etária, o alcoolismo em crianças, a vocação inata para a mentira até os
cuidados que a sociedade e a imprensa deveriam manter para não corromper a
juventude com “más influências”, foram tratadas pela medicina legal (ANTUNES,
1999). Assim, a partir da conjectura de que o jovem e a criança eram facilmente
“contaminados” pelos vícios da sociedade, do mesmo modo que podiam herdar as
“degenerações” dos pais, a investida sobre a inimputabilidade penal destes recai
sobre o discurso de assistencialismo e tutelagem através de serviços sociais – em
especial serviços médicos – que garantissem a seguridade moral dos mesmos.
Não é estranho, portanto, que neste mesmo contexto e período surjam a
“Sociedade Científica Protetora da Infância” e o “Instituto para Menores
Delinquentes” (1902), ambos com o intuito de preservar a infância e a adolescência,
vistas como classes sugestionáveis pela corrupção da raça e do gênero, pela
pobreza e pelo convívio social com indivíduos considerados como degenerados.
Para Nina Rodrigues (1957), os menores autores de atos infracionais, como
hoje são comumente chamados os jovens e crianças que se inserem na
criminalidade, deveriam ser adequadamente asilados em abrigos educacionais e
não encarcerados com criminosos em idades variadas, como ocorria no país, por
conta da ausência de uma legislação mais apurada à questão e institutos
apropriados. Por mais degenerada que pudesse já ser a criança por conta de sua
disposição bio-psicológica, o convívio com criminosos mais velhos poderia levar
estas a uma aprendizagem direcionada para o crime, aperfeiçoando suas práticas
criminosas e distorcendo sua moral fragilizada. Denuncia:
[...] Eis, no entanto, que a penitenciária da Bahia, um dos mais
importantes Estados da União, torna o código federal um luxo inútil,
uma criação altamente teórica e sem utilidade prática, e mais do que
tudo isto, uma escola perigosa de criminosos temíveis.
O código do império estatuia que só menores, que houvessem
cometido crimes, obrando com discernimento, seriam recolhidos à
casa de correção. O novo código [1890], à semelhança do italiano,
manda recolhe-los a estabelecimentos agrícolas especiais (art. 31).
Tais estabelecimentos não existem, porém, e os menores continuam
a ser recolhidos à penitenciária e à casa de correção (RODRIGUES,
1957, p. 188 – 189).
Em verdade, o pano de fundo sobre o qual se desenvolviam as
argumentações de Nina Rodrigues, consistia em uma tentativa de diferenciação dos
graus de responsabilidade penal, que de acordo com suas interlocuções poderia ser
atenuada se observados os fatores mesológicos da criminalidade. As raças
consideradas como inferiores (negros e indígenas), bem como seus descendentes,
mestiços ou não, os loucos, as mulheres e as crianças, ao demonstrarem, segundo
os estudos lombrosianos e criminológicos, uma compreensão diversa daquilo que
era “certo” em relação ao que moralmente se era condenado, não só poderiam como
deveriam ser julgados pelos dispositivos legais de modo diferenciado e atenuado.
Do mesmo modo, como classes potencialmente perigosas e predispostas à
criminalidade, conforme as referências do período, os programas de prevenção e a
tutela do Estado sobre estes, deveriam ser redobrados.
Assim,
[...] a consequência de fundo do argumento de Nina Rodrigues: para
além dos ideários quiméricos de igualdade [...], a realidade da
desigualdade biológica e social, impunha, segundo o autor, a
necessidade de tutelarização de todos os grupos de indivíduos que
ainda não tivessem atingido a maturidade necessária para serem
tratados como plenamente responsáveis (ALVAREZ, 1996, p. 250 251).
Além destes, inúmeros outros temas - que não serão tratados neste momento
-
foram
abordados
por
Nina
Rodrigues,
influenciando
intensamente
o
desenvolvimento das perícias médico-legais e do pensamento médico-social no
país. De fato, dentre os intelectuais da época, Nina Rodrigues consistia uma
autoridade que, como resultado de seu rigor científico, dificilmente era confrontado.
Os confrontos existiam obviamente, sobretudo, em um contexto de afirmação e
disputas por hegemonia no campo da ciência. Contudo, suas perícias e seus
argumentos eram tão minuciosos nas respostas dadas aos seus adversários, que a
tréplica sempre era mais difícil de ser realizada. Como lembra Schwarcz (2006), em
termos da seriedade com que tratava suas referências teóricas, levando a cabo sua
argumentação ao campo da prática, Nina Rodrigues foi o intelectual mais coerente
de sua época.
4. Permanências e convergências: o pensamento político de Nina
Rodrigues nas Ciências Sociais
O ponto que desenvolverei agora, é preciso alertar o leitor, se trata ainda de
uma reflexão inacabada diferentemente do que se viu até aqui. Nesse sentido, há
aqui, muito mais especulações do que ciência de fato. Entretanto, como toda ciência
se desenvolve, a priore, a partir de uma hipótese especulativa, segue então minha
justificativa.
A medicina legal5, segundo Hélio Gomes (1984, p. 07 - 08), pode ser definida
como:
[...] o conjunto de conhecimentos médicos e paramédicos destinados
a servir o Direito, cooperando na elaboração, auxiliando a
interpretação e colaborando na execução dos dispositivos legais
atinentes a seu campo de ação de Medicina aplicada.
Na definição estão compreendidos todos os elementos e objetivos da
Medicina Legal: sua parte positiva e sua parte doutrinária, seu
aspecto artístico e seu conteúdo científico. A definição põe em realce
sua cooperação na elaboração de determinadas leis que tenham
relação direta ou indireta com seus estudos especializados;
evidencia seu auxílio na interpretação e execução dos dispositivos
legais relacionados com seus conhecimentos.
Tem ainda a Medicina Legal função cultural das mais elevadas:
prepara o caminho para a adoção de leis melhores e mais
progressistas, esclarecendo a inteligência das elites, orientando a
opinião pública, divulgando as doutrinas científicas, sugerindo
5
Segundo Hélio Gomes (1984, p. 07-08), a Medicina legal tem vasta sinonímia: “[...] medicina
judiciária ou dos tribunais (PRUNELLE), medicina da lei (TRÉBUCHET), medicina política (MARX),
medicina criminal, biologia legal, biologia forense, medicina pericial, antropologia jurídica, medicina
forenses jurídica (sábios de Roma). A denominação tradicional da cadeira é a de Medicina Legal.
Todavia, não são poucos os autores que acham defeituosa a expressão, porque pertencem ao seu
conteúdo assuntos que não são médicos, como os psicológicos e os toxicológicos [...]”.
medidas, aconselhando práticas, tendentes a aperfeiçoar o que
existe e a criar o que for útil e aconselhável no sentido do progresso
social [...] A Medicina Legal é chamada a resolver questões que
afetam o indivíduo, desde a sua existência no ventre materno, até
determinado tempo depois da sua morte. Fala da sua capacidade, da
sua responsabilidade, dos seus crimes, dos defeitos de seu
depoimento, da sua identificação, do suicídio, do homicídio, da morte
acidental. (grifos meus).
Dividida da seguinte maneira (GOMES, 1984):
Fatos referentes à Sexologia
forense
vida.
subdividida.
2º - O indivíduo em
relação com o
meio.
MEDICINA LEGAL propriamente dita
MEDICINA LEGAL propriamente dita
1º - O indivíduo Identidade.
Capacidade e responsabilidade.
em si.
Psicologia da prova.
Antropologia forense.
Psicologia forense.
Psicologia judiciária.
Casamento – Himeneologia
forense.
Procriação – Obstetrícia forense.
Amor – Erotologia forense.
Danos
à Por trauma e Traumatologia
saúde e à acidentes
do forense
e Infortunística.
vida.
trabalho.
Fatos referentes à
morte.
Por asfixia.
Morte.
Asfixiologia forense.
Por
envenenamento.
Toxicologia forense.
Tanatologia
forense.
3º - O indivíduo em relação com as decisões dos juízes e
tribunais no tocante aos problemas médico-legais e em Jurisprudência médico-legal.
Polícia Técnica – (Policiologia).
relação com as investigações policiais.
Em conformidade com a definição apresentada por Gomes, é impossível dizer
que a medicina legal atue somente sobre o crime ou o ato criminoso, fato já
observado. Aliás, diria mesmo que, de acordo com o que foi exposto, a medicina
legal ou o pensamento médico que se desenvolveu no Brasil, sobretudo, em fins do
século XIX, jamais pretendeu ter suas vistas presas ao crime. Seu objeto de
investigação, suas perícias, suas análises em cenas de crime se atentam sempre
para o criminoso, para o indivíduo. Dessa forma, as perguntas frequentes dos
legistas são: em que condições o criminoso cometeu seu crime? Quais os motivos
que levaram o criminoso ao ato em si? Qual seu perfil psicológico? Qual sua
responsabilidade? Estava louco ou temporariamente insano? O que a cena do crime
oferece para que o criminoso possa ser identificado? Etc..
As referências médicas aplicadas ao jurídico, portanto, retiram seu foco do ato
criminoso, que fica em segundo plano, mesmo constituindo um atentado bárbaro à
vida e ao direito humano, centrando-se nos motivos patológicos individuais ou
sociais do criminoso. Assim, não se justificam os crimes, mas os motivos
extremados, diria anormais, que levaram ao ato do criminoso, que construíram um
criminoso ou um sujeito potencialmente perigoso para a sociedade. Nesse sentido,
entra nas discussões atuais da medicina legal ou da psiquiatria atinada ao Direito
alguns aspectos que ainda se referem aos argumentos do pensamento médico dos
oitocentos: a formação familiar, a educação, as ações que sofrera na infância, as
origens sociais, a loucura e, consequentemente a degeneração genética herdada
dos pais. Em tal conjuntura, a responsabilidade penal do indivíduo poderia ser
atenuada conforme os laudos oferecidos pelos médicos especialistas.
Por conseguinte, medicina legal, direito e psicologia social convergem e
atuam em consonância, buscando uma justificativa para a ação do sujeito criminoso.
Como já consubstanciava Nina Rodrigues em suas reflexões, o crime não pode ser
avaliado sem antes se atentar para o perfil bio-psicológico do criminoso, fato que
designa, tanto a responsabilidade individual sobre a ação quanto a liberdade do
querer ou livre-arbítrio do sujeito em sua ação.
A sociologia da violência, ou o que muitos pretendem como uma sociologia da
violência, também não está tão distante dos pressupostos do pensamento médico
de fins do século XIX. Também para esta existe um setor da população que
demanda atenção especial nos casos de criminalidade. Isto pode ser observado nos
programas de assistência oferecidos por ONGs ou mesmo por organizações que
têm o apoio estatal, que oferecem subsídio educacional, cultural e artística para
jovens, com o objetivo de retirá-los do chamado “mundo do crime” ou afastá-los das
influências criminais que seu meio social supostamente expõe. Exposição criminal
ou mundo criminoso, diga-se de passagem, muito mais como responsabilidade de
uma rede midiática não comprometida com a verdade e a realidade social, do que
por constituir um ambiente onde vivem a maioria dos criminosos.
Não é estranho, portanto, que tais programas de assistência social, diria
mesmo de tutelarização social de classes perigosas, desenvolvidos muitas vezes
por intelectuais próximos ou especializados na sociologia da violência, sejam
realizados em periferias urbanas (que no senso comum corresponde ao meio natural
da criminalidade), e oferecidos a jovens “carentes”.
Igualmente aqui, os jovens da periferia são vistos como predispostos à
criminalidade,
não
apenas
pela
pobreza,
fator
comumente
associado
à
criminalidade, mas pelo meio social que habitam e, sobretudo, pela fragilidade de
consciência entre o que é moralmente admitido e o que é condenado pela
sociedade. Não obstante, a chave para a compreensão dos programas sociais que
querem “combater” a criminalidade, reside em um dos mais caros objetivos da
medicina social ou medicina pública: a prevenção. Não basta apenas prevenir
doenças coronárias com uma alimentação balanceada - como nos indicam
diariamente os meios de comunicação com seus programas médicos que crescem a
cada dia - ou exercícios físicos indicados por profissionais especializados, é
necessária a prevenção sobre a maior patologia que a sociedade moderna poderia
ter criado, o criminoso. Em outros termos, aquele que de uma forma ou de outra, em
termos capitalistas, corresponde a um indivíduo com liberdade em excesso e
completamente improdutivo para os fins da sociedade industrial.
Isto posto, o imaginário social produzido pelo alcance tomado não apenas
pelas ideias de Nina Rodrigues, mas por toda uma geração de médicos obstinados
na construção de uma ciência médico-social - sumariamente apresentada neste
texto - e codificado nas gerações posteriores através da memória coletiva
(HALBWACHS, 1990), revela que as expectativas de ilegalidade ou de propensão a
criminalidade se por um lado, podem recair diretamente sobre a imagem do negro,
por outro lado, podem bem se assentar na figura do pobre favelado (TERRA, 2010a;
TERRA, 2010b). De certa forma, no imaginário social, a própria responsabilidade
penal do indivíduo que atenta contra a sociedade sob a alegação de sua situação de
pobreza é atenuada, ou melhor, justificada. Neste caso, não se trata da brandura do
Direito ou das medidas legais, mas da imagem social produzida sobre o criminoso. A
sociedade assume uma espécie de culpa sobre a condição econômica do sujeito
social.
Nesse sentido, supostamente,
[...] a sociedade capitalista (civilização) corrompe os sujeitos
empobrecidos, não apenas nos momentos em que incita um
consumo sobre o que não se pode ter, mas também na medida em
que não fornece as condições educacionais necessárias para o pleno
desenvolvimento. Assim, o pobre é visto como uma criança que sem desenvolvimento cognitivo sobre as ações resultante do
processo de aprendizagem escolar e familiar e fruto de um meio do
qual não consegue se desvencilhar - necessita ser constantemente
tutelado, vigiado e controlado.
Na compreensão que estabelecem sobre a realidade criminal, o
pobre não representa um monstro social, mas um sujeito infantilizado
que mal consegue dissimular as intenções pretendidas (mentir) dada
sua suposta limitação psicológica (TERRA, 2010b, p. 205).
É certo que os projetos políticos de intervenção no Código Penal de Nina
Rodrigues não produziram efeitos sobre a jurisprudência nacional, uma vez que
suas alegações nunca foram realmente adotadas na legislação penal brasileira.
Entrementes, é preciso reconhecer, que o alcance e a influência de suas obras
chegaram aos primeiros anos do século XXI, seja através do reconhecimento e
credibilidade da medicina legal ou da polícia médico-legal a serviço do nosso Direito,
seja através de outros ramos da ciência social brasileira. É verdade também que boa
parte da disseminação de sua obra é resultado da admiração dos seus discípulos e
das lutas empreendidas por sua esposa D. Maria Amélia Couto Nina Rodrigues (ou
como gostava de ser denominada, por conta da grande credibilidade do marido,
Viúva Nina Rodrigues) na publicação das suas obras. Mesmo assim, muitos dados e
objetos pessoais de Nina Rodrigues continuam perdidos e obscurecidos em
coleções particulares erigidas por seus colegas de profissão e admiradores, após
sua morte, em 1906.
5. A título de conclusão: a sutura Ciências Sociais/Medicina
É fato inquestionável que existe um pensamento social no Brasil anterior a
institucionalização das Ciências Sociais no país, seja com o nome de pensamento
político, seja através da designação de pensamento médico brasileiro. Desenvolvido
ora em instituições acadêmicas médicas ou nas Faculdades Direito, tal forma de
interpretação da realidade nacional se fez em termos “científicos” a partir dos
modelos de análise disponíveis no momento.
Assim, as interpretações de Nina Rodrigues não fogem à regra do seu
contexto intelectual e social. Lembremos, para fins de esclarecimentos, o fato de que
tais pressupostos se faziam, enquanto verdades estabelecidas, por uma elite
intelectual resultante de uma “revolução burguesa” enviesada pelos interesses da
classe agrária nacional. Dito de outra forma, tais intelectuais refletiam sobre uma
liberdade e uma igualdade político-jurídica alteradas somente em 1888.
Concatenados a este movimento, pensadores do período preocuparam-se,
sobretudo, com a integração social de classes antes “inexistentes”, com a
moralidade pertinente as mesmas e com os impactos destas sobre a realidade e a
construção da nação brasileira. Nesse sentido, é possível afirmar que o projeto do
pensamento político de Nina Rodrigues tinha como propósito não unicamente à
construção de uma ciência capaz de explicar a realidade brasileira, mas o intento de
construir e afirmar as particularidades do Brasil frente às demais nações do mundo
capitalista.
Para além do nível imediatista que suas propostas apresentavam, Nina
Rodrigues traçava um nítido plano para a construção do país no futuro. Dessa
forma, ao indicar uma adequação do Código Penal de 1890 à suposta realidade
geográfica, climática e, principalmente, étnica do Brasil, o autor intuía a afirmação da
identidade nacional do povo brasileiro. Ter um código penal adaptado às condições
mesológicas nacionais, possibilitaria à República brasileira demonstrar sua
modernidade político-jurídica em relação a países da Europa, chamados então de
civilizados, além de provar seus avanços científicos em face do restante da América
do Sul.
Para Nina Rodrigues, o simples fato de não atirar às pocilgas – que nossos
governantes atestavam como institutos carcerários – sujeitos considerados
inimputáveis por alguma característica identificada pelos especialistas, significava
tratar com justeza a toda a população brasileira. O autor buscava assim criar os
argumentos necessários que confirmassem a impropriedade com a qual a justiça
tratava inúmeros brasileiros, presumidamente, pela ineficaz e indevida legislação
penal a que nos submetíamos. Tratar, portanto, o sujeito humano como um sujeito
de direito, mesmo que um direito incongruente com os princípios de igualdade, os
quais, aliás, constituíam para ele uma falácia.
De modo óbvio, a equidade social não estava presente na formulação e Nina
Rodrigues acabou por estabelecer os contornos necessários às ideias para tratar
com desigualdade aqueles que de fato a elite queria como desiguais.
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