TESTEMUNHOS //NOVEMBRO IR PARA A GUERRA A capacidade de mudar o mundo começa dentro de cada um de nós. Foi esta a conclusão transversal às conversas que tivemos com cinco mulheres. Exemplos de vida com um denominador comum, a coragem. POR SÓNIA GOMES COSTA SUPER MULHERES Desde os 24 anos que trabalha em intervenções na crise, em catástrofes naturais e humanas, guerras, surtos e epidemias. Já esteve em missão no Irão, nas cheias do Brasil, no projeto HIV Sida no Zimbabué, foi psicóloga clínica em Moçambique e, este ano, esteve em duas guerras, na Líbia e mais recentemente na Síria. Diz que não pensou quando a chamaram dos Médicos Sem Fronteiras para implementar programas de saúde mental, simplesmente sentiu que tinha de ir e deixou-se levar porque o que a movia era poder chegar às pessoas. Na frente de combate de Maria Palha não há a guerra entre bons e maus. Esta psicóloga de 31 anos explica, sempre de forma calma, que em contexto de guerra o apoio é dado a todos sem julgamento nem preconceito porque a “intervenção é neutra e independente”. Maria reconhece que estar debaixo de fogo é tudo menos fácil e garante que o medo que já sentiu algumas vezes não a impediu de exercer a sua missão da melhor forma que podia e sabia. “Mais do que coragem foi o espírito de aventura, uma certa inconsciência até, que me moveu para a Síria.” Quando foi chamada para intervir no palco de guerra mais avassalador dos últimos tempos, confessa que pensou “tudo bem, até porque já tinha estado numa guerra antes, e achei que não haveria de encontrar um cenário muito diferente em termos de implementação do programa, das patologias que encontraria no terreno”. A verdade é que, reconhece agora, foi surpreendida porque “o tipo de guerra era muito diferente em termos de dinâmica”. Naquele cenário devastador, encontrou pessoas que não dormiam há um ano e casos extremos em que uma aspirina fazia a diferença no alívio da dor. Ali, também ensinou técnicas de relaxamento para reduzir as insónias, deu conselhos simples para aliviar estados de depressão e de choque profundos. Recorda o caso de um guerrilheiro que estava na linha da frente e lhe fez um pedido: “Eu não consigo dormir abraçado à minha mulher. Por favor, tira-me este sofrimento.” Maria confessa que viu muita destruição, mas também testemunhou muita solidariedade. Entre 2006 e 2012 a sua vida foi atuar em zonas de conflito: “Sou viciada nisto. É uma força motivadora sair da zona de conforto e estar no mundo”, confessa. Entretanto, decidiu começar a trabalhar em Portugal e fazer uma ou duas missões por ano, nas férias. Além das consultas de psicologia e consultoria de projetos com impacto social, Maria tem um site na Internet – maria.palha.com – onde vai partilhando as suas histórias. SALVAR VIDAS Imagem retirada do livro TM&DC Comics, da Taschen. forte e otimista. Que a sua experiência de vida possa influenciar as outras pessoas, ajudando-as a reagir positivamente, é o que ela pretende. Num tom hu- DAR A VOLTA POR CIMA É mesmo uma espécie de wake up call que se sente quando se ouve esta mulher. De voz viva, sempre com um tom firme e direto, conta a sua experiência e como mudou desde que anda sobre rodas, literalmente, numa cadeira. Marta Guimarães Canário é uma comunicadora. Sempre soube que o era, muito antes até de ter ficado paraplégica, aos 15 anos. Recusa-se, perentória, a assumir o papel da coitadinha. Garante, isso sim, que mudou muito com a sua própria experiência, que isso a ajudou a relativizar uma série de coisas e que a tornou mais 160 // NOVEMBRO 2013 milde, não se assume como uma inspiradora, mas antes como uma inspirada que partilha as suas histórias no Blog da Canária (http://oblogdacanaria.blogspot.pt). Hoje, com 38 anos, vale-se da sua vocação nata não só como forma de expressão mas sobretudo para “causar impacto” porque o seu objetivo é esse mesmo: “Pegar nas minhas experiências para alertar consciências, acrescentando algo de positivo às vidas de quem possa precisar de um incentivo.” Assim, utiliza o seu blogue, que diz ser “de uma miúda comum (…) feito com o coração”, também como uma forma de luta. É que esta mulher determinada, que se assume reivindicativa e “refilona”, quer ser tratada como alguém que deu a volta por cima, seja ao nível dos problemas de saúde que tem enfrentado, dos desafios laborais ou dos fait divers diários com que se depara – situações em que a falta de acessibilidades para pessoas de mobilidade reduzida se torna um problema. “Devia haver uma lei que nos protegesse”, alerta, chamando a atenção para a necessidade de o nosso país se preparar a este nível porque, “a dada altura, toda a gente passará pelo menos por uma situação na vida em que se deparará com mobilidade reduzida”. Diz que “quer paz e saúde” para viver o melhor que sabe e reconhece o apoio fundamental do seu clã – mãe, irmã e sobrinha – e dos amigos porque “quando cada um oferece o melhor de si mesmo, o mundo avança um bocadinho. Sempre”. Aos 10 anos entrou na fanfarra da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Carregal do Sal, já com a ideia de vir a ser bombeira desta corporação, no distrito de Viseu. O amor à missão dos que dão a vida para salvar vidas foi crescendo com ela ou não viesse a uma família de avô, mãe, irmão e prima bombeiros. Diana Rodrigues, hoje com 18 anos, afirma na sua voz doce que “não há maior coragem do que ser bombeira”, isto porque cada vez que toca a sirene, parte com a mesma determinação, mesmo sabendo que pode não voltar. No par de anos em que está ao serviço da corporação garante que já precisou de muita coragem para atuar – seja nos fogos que apagou ou nos acidentes em que prestou assistência – e, sobretudo, para lidar com a perda de dois dos seus jovens colegas, que também eram os seus melhores amigos, Cátia e Bernardo, durante um incêndio violento na Serra do Caramulo, no final deste verão. Admite que ainda lhe custa falar disso, mas ao mesmo tempo acha que eles merecem ser lembrados e honrados. “Para nós, os que partiram são um exemplo de força… e nós ficámos ainda mais unidos, somos uma autêntica família”, confessa, a denunciar a angústia da dor. Mas, apesar da tragédia, confessa orgulho no que faz: “E não desisto de prestar o meu serviço com o amor que tenho à farda.” É que, para Diana, ser bombeira significa entregar-se, independentemente da vida pessoal, das dores ou dos medos que possam surgir, “porque surgem sempre”, garante. “Às vezes deparamo-nos com situações difíceis que nos metem medo e nos fazem doer a alma, mas ainda assim sabemos que temos de fazer o nosso trabalho com a máxima dedicação.” Depois do serviço cumprido, Diana diz que tudo acaba por valer a pena, mas lamenta que não haja “um merecido reconhecimento por parte da comunidade” porque “afinal damos a vida para salvar vidas”. Defende que, muitas vezes, as pessoas só se lembram dos bombeiros “quando precisam ou quando há mortes”. Diana só é pequena na estatura. A sua coragem, que garante ser a essência de qualquer bombeiro, é reconhecida pelos camaradas. E essa não se mede aos palmos. WWW.MAXIMA.PT // 161 CONCRETIZAR UM SONHO Desde pequena que contava histórias à irmã, antes de dormir, e transferia o território da sua imaginação fértil para as linhas dos cadernos, azuis, de argolas. Nessa altura já sonhava ser escritora e agora assumiu-o de forma determinada, desdobrando-se, sem cansaço nem sono, para escrever no tempo que sobrava entre o casamento, o filho e o trabalho diário num supermercado. Esta mulher, hoje com 40 anos, diz que fez orelhas moucas a tudo o que lhe chegava sob forma de obstáculo e não se deixou desmotivar nem distrair da concretização do seu sonho. Em 2005, decidiu aprofundar uma das histórias que tinha escrito, deu à irmã para ler, e esta encorajou-a a editar em livro. O marido também ajudou quando, ao vê-la escrever nos tais cadernos, lhe ofereceu um portátil para facilitar o processo. Maria Linete Brito Landim Cardoso, conhecida pelos amigos por Neth, revela que foi “a vontade de andar para a frente” que a fez realizar o seu sonho de miúda: escrever livros. Com os olhos a brilhar, conta que nunca deixou de acreditar porque “era uma força que vinha de dentro”. E foi essa coragem que a fez persistir num longo e difícil percurso, cheio de nãos de mais de meia centena de editoras, até conseguir publicar a sua edição de autor Flores Silvestres, em maio deste ano, com a Vírgula (Sítio do Livro), a quem teve de pagar dois mil euros (que angariou também com ajuda da família e amigos). “Parecia impossível, mas eu vivo um dia de cada vez, na certeza de que vale a pena seguir em frente, e foi assim que consegui publicar”, justifica, assumindo que também precisou de coragem para montar a sua própria em- presa, a Orange Cat, que vai editar os seus próximos trabalhos. É que, até ao final deste ano, a agora autora lança Porto de Abrigo e, em 2014, Casamento Cortês. No final da nossa conversa, ofereceu-nos a sua prima-obra com uma dedicatória: “Leia com prazer o que foi escrito com amor.” A ESCOLHA DA ADOÇÃO Depois de ver uma reportagem que a impressionou, tinha então 15 anos, anunciou à mãe que um dia iria adotar uma criança. Hoje, com 37 anos, Carla Rodrigues é mãe do David, de 8 anos, e da Maria, de 7 anos. “Mais do que um ato de coragem, levar o processo de adoção até ao fim é um autêntico ato de fé.” Acredita que a coragem não está na decisão de adotar, mas sim em persistir no processo de adoção que, segundo conta, “exige passar a viver em burocracia e pressão durante muito tempo”. Carla conta que “a espera é dolorosa e por vezes desesperante”. As listas são imensas, as entrevistas e os testes psicotécnicos são intermináveis. “Ao fim e ao cabo entram-nos pela vida adentro e depois podemos ouvir um: não é apto.” Não foi o caso dela e do marido que, depois de terem posto em ação o processo, em 2007, e “já cansados de esperar”, acabaram por ir, “ainda que meio contrariados”, a um encontro de pais adotivos, onde conheceram um casal que tinha adotado na Guiné-Bissau. Em cerca de três meses, conseguiram que um menino de 4 anos os aceitasse como pais. Carla recorda com um largo sorriso a alegria com que recebeu a notícia de que o tribunal lhes entregava o menino para adoção. No final de agosto, estavam a embarcar para a Guiné-Bissau, “cheios de medo que ele não quisesse vir connosco”, confessa. Quando lá chegaram é que tiveram acesso à fotografia do menino que iam adotar: “A partir daí, ele já era o David, o nosso filho. Ele adaptou-se lindamente connosco, em casa, na escola, é amoroso e sempre muito grato por tudo. Para ele, a vida é uma alegria.” A boa experiência com David motivou-os a entrarem em novo processo de adoção, mesmo sabendo que “em Portugal é muito difícil, apesar de tantas crianças precisarem de família”. Foi através de uma associação onde fazia voluntariado que conheceu uma menina “com um processo complicado e que não está entregue para adoção”: a Inês, de 11 anos, que vive numa instituição e passa o fim de semana e as férias com eles, no regime “família amiga”. No meio das ações do voluntariado, Carla conheceu ainda uma outra menina, na altura com 5 anos, agora com 7, com a qual também começaram com o processo de “família amiga” e que, desde o ano passado, passou a ser a sua filha adotiva: “Depois de o juiz decidir entregá-la para adoção, perguntámos na instituição se podíamos adotar porque já tínhamos laços com ela, o que de acordo com a lei não é permitido.” A 31 de novembro do ano passado, a Segurança Social acabou por passar a declaração de adoção a Carla porque não havia mais ninguém na lista para adotar a Maria. “Depois de um período mais atribulado, ela agora está muito feliz e dáse muito bem com o David, são muito unidos”, conta com um orgulho próprio das mães.