Entrevista com o compositor Reginaldo Carvalho1

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Entrevista com o compositor
Reginaldo Carvalho
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A
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Vladimir A. P. Silva
Universidade Federal de Campina Grande
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Resumo: A vida e a obra do compositor Reginaldo Carvalho (Guarabira-PB,
1932 – João Pessoa-PB, 2013) são o foco dos nossos estudos, desde o ano
2000. Ao longo deste período, diversos documentos – incluindo partituras,
fotos, textos e livros – foram coletados com o intuito de analisar a sua
produção musical, definir seu estilo composicional em diferentes campos e sua
atuação como pesquisador e educador, em vários estados brasileiros e no
exterior. Para atingir esta finalidade, além da edição e análise do material,
foram realizadas entrevistas com o compositor, familiares, colegas e (ex)
alunos. A elaboração de um catálogo de obras está em andamento, bem como
estudos sobre obras específicas. Esta entrevista está inserida no conjunto de
documentos que estão sendo utilizados para fundamentar a biografia do
compositor, que já está em fase de elaboração e tem como objetivo contribuir
para a preservação da memória e da história da música no Brasil.
Palavras-Chave: Reginaldo Carvalho. Instituto Villa-Lobos. Música Eletrônica
Brasileira.
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Interview with composer Reginaldo Carvalho
Abstract: The life and work of the composer Reginaldo Carvalho (GuarabiraPB, 1932 – João Pessoa-PB, 2013) are the focus of our studies, since 2000.
Throughout this period, various documents – including music, photos, texts
and books – were collected in order to analyze his musical output, his
compositional style in different fields and also his work as a researcher and
educator in several Brazilian states and abroad. To achieve this purpose,
besides the edition and analysis of the material, interviews were conducted
with the composer, family, colleagues and (former) students. The
development of a catalog of works is in progress, as well as studies of specific
works. This interview is part of the set of documents that are being used to
support the biography of the composer, which is already in preparation and
aims to contribute to preserving the memory and history of music in Brazil.
Keywords: Reginaldo Carvalho. Instituto Villa-Lobos. Brazilian Electronic
Music.
Entrevista realizada em Teresina-PI, entre 2007 e 2008. Os documentos originais
encontram-se com o pesquisador.
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Entrevista com o compositor Reginaldo Carvalho
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Reginaldo Carvalho (Guarabira - PB,
1932 – João Pessoa - PB, 2013)
viveu em diferentes localidades do
Nordeste, onde sedimentou sua
memória auditiva com enorme
carinho e encantamento. Estudou
com diversos professores, no Brasil
e na França, dentre os quais Gazzi
de Sá, Heitor Villa-Lobos, Andrade
Muricy, Paul Le Flem e Olivier
Messiaen. É considerado o pioneiro
da música eletroacústica brasileira,
tendo composto a obra Sibemol, um
estudo para microfones com sons
captados de dois pianos, matéria
plástica esticada e tamborim, em
1956. Trabalhou em Minas Gerais,
no Distrito Federal, no Rio de
Janeiro e no Piauí. Na capital
fluminense, na década de sessenta,
assumiu a direção do Instituto VillaLobos, um importante centro de
difusão da música contemporânea.
Nos anos setenta, mudou-se para a
capital do Piauí, onde fundou a
Escola de Música de Teresina e
lecionou na Universidade Federal do
Piauí por mais de duas décadas. No
seu catálogo de obras, ainda em
fase
elaboração,
encontram-se
peças vocais e instrumentais, para
solistas e diferentes formações,
incluindo
grupos
de
câmara,
orquestra, banda e coral, algumas
das quais publicadas pelo projeto
SESC Partituras. Muitas das suas
obras para teatro foram premiadas,
destacando-se a trilha original para
a peça O cavalinho azul, de Maria
Clara
Machado.
Além
disso,
escreveu arranjos feitos sobre
melodias
populares
ou
não,
religiosas ou laicas, folclóricas ou
eruditas.
Em
2012,
foi
homenageado
pela
Associação
Nacional de Pesquisa e PósGraduação em Música (ANPPOM).
Recentemente,
no
VI
Festival
Internacional de Música de Campina
Grande,
recebeu
o
Prêmio
Radegundis
Feitosa
por
sua
contribuição à música brasileira.
Nesta entrevista, ele fala sobre sua
trajetória, o encontro com VillaLobos, os anos em Paris e a vasta
obra coral que produziu, bem como
sua atuação como compositor,
regente e educador.
Figura 1. Reginaldo Carvalho com 13
anos (1945).
Figura 2. Reginaldo Carvalho com 18
anos (1951)
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Vladimir Silva – Fale um pouco
da sua infância, quais foram os
primeiros professores, quem o
influenciou musicalmente?
no Rio de Janeiro, no início da
década
de
1950.
Em
1941,
estávamos de volta para Guarabira.
Mamãe comprou um piano e
presenteou
minha
irmã,
que
estudava no colégio das freiras.
Numa tarde, voltando de um dos
meus passeios com meu cachorro,
parei para escutar algo diferente,
que eu nunca escutara antes.
Apurei o ouvido o quanto possível.
Não podia acreditar no que eu
estava ouvindo. Foi o meu primeiro
grande deslumbramento musical,
parecia que eu ia levitar – o
segundo, onde eu pensei que ia
morrer, foi em Paris, em 1951, ao
ouvir, na Catedral de Notre Dame,
um órgão de verdade. Fui-me
aproximado devagarinho e percebi
que aquele som provinha lá de casa.
Minhas primas tinham chegado de
férias, elas eram exímias pianistas,
como eu nunca tinha ouvido antes.
Elas tocavam música erudita, se
revezando, pois eram apaixonadas
por música e por tocar piano. Não
se sabia quem era melhor. Naquele
momento de revelação para mim,
tocavam música de Bach.
Reginaldo Carvalho – Na primeira
fase da infância, ouvia os acalantos
de quem me fazia adormecer,
balançando na rede, e os cantores,
de quem cuidava de casa e da
gente. Nos dias de feira, quartas e
sábados, a cantoria e os pregões,
dos pedintes, dos cantadores de
emboladas, desafios e reportagem,
pois não havia jornal e as notícias
chegavam através dos violeiros.
Periodicamente, eu era acometido
de crises de asma, das quais ficava
bastante debilitado, sendo enviado
para fazendas e engenhos para
restabelecimento e onde o clima me
favorecia. Lá, ouvia as cantigas do
pessoal do roçado, das lavadeiras
nas beiras do rio, lavando roupa, os
aboios dos vaqueiros. Havia ainda
os cânticos de igreja, em que as
beatas se esgoelavam com vozes
tão horrendas, rouquenhas, fanhas,
esganiçadas, que chegavam a ser
interessantes, sobretudo quando
cantavam em latim. Era esse o meu
universo musical, na sua maioria
modal.
A
banda
de
música
municipal, uma charanga, tocava
marchas lentas e dobrados. Os
músicos
componentes
se
desmembravam
em
pequenos
conjuntos nos bailes sociais e
durante o carnaval. Mas a criançada
dormia cedo, não tinha acesso a
essa música. Em João Pessoa, eu
participei, com minha turma de
crianças, duma experiência de
canto coletivo organizada, e escutei,
pela
primeira
vez,
música
harmonizada.
Quem
organizava
tudo era o professor Gazzi de Sá,
que no futuro formaria os músicos
mais importantes da minha família
e que seria também meu professor,
Figura 3. Hermano de Sá e Reginaldo
Carvalho, Paris, 1955.
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Figura 4. Foto de Villa-Lobos dedicada ao compositor Reginaldo Carvalho: "Ao
Reginaldo Carvalho, meu amigo, uma esperança e um talento. Lembrança grata de
Villa-Lobos. Paris, 23 de março de 1954."
Figura 5. Reginaldo Carvalho (terceiro sentado da esquerda para a direita), ao lado de
Maria Clara Machado, com o elenco da peça “O embarque de Noé”, apresentada n'O
Tablado, em 1957, no Rio de Janeiro.
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VS – Como e quando teve início
a sua carreira profissional?
enormes, vindos da Alemanha.
Ouvia tudo sempre que possível.
Fixei-me
em
Bach,
Haydn,
Beethoven, Schubert e Schumann
principalmente. Até achar outra
coleção, também enorme, só de
Wagner, que se tornou meu
paradigma harmônico. Outro dia,
em plena aula de grego, peguei um
papel de música e coloquei debaixo
do livro. De repente, levantei o livro,
escondendo o papel, e comecei a
escrever Santo, Santo, Santo!. O
professor, sempre implicando, foi se
chegando para perto da minha
carteira. Todos os colegas olhavam
para mim sem entender nada. O
professor se pôs ao meu lado
espiando o que eu estava fazendo
sem prestar menor atenção à aula.
Quando eu acabei, olhei assustado
de lado, vi aquele homenzarrão que,
de repente, parou de falar e pediu
para ver o papel de música. Ele era
músico também e dono duma bela
voz de barítono. Olhou bem,
devolveu, e só falou isso: “Estamos
em aula de grego.” Foi daí em
diante que eu senti que era um
compositor de música. Entretanto,
anteriormente, eu já me aventurava
a escrevinhar
algumas
outras
pequenas peças.
RC – Com onze ou doze anos, não
me lembro, ingressei no mosteiro.
Queria
estudar
latim,
grego,
matemática, filosofia, astronomia,
aprender
cantochão,
física
e
química, que nem um dos meus
irmãos que estudava em João
Pessoa. No Mosteiro, tive contato
com o cantochão, a implicação do
conhecimento do latim e da
prosódia musical, uma vez que o
cantochão se fundamenta na fala
entoada. Fui cursar o ginásio, o
clássico e o científico em Ipuarana,
na cidade de Lagoa Seca, na época
um povoado perto de Campina
Grande, lá no alto da montanha,
um frio danado. Havia o grande
coro e três corais; dois de vozes
afins, sendo um infantil e outro
juvenil, e o coral de vozes mistas,
de
crianças
e
adolescentes,
meninas e rapazes de voz grossa. O
colégio-mosteiro
também
tinha
banda de música e orquestra de
câmara, órgão, harmônico e piano.
Tive então as noções básicas de
teoria musical e percepção musical,
dicção, técnica vocal, participava do
coral infantil, de vozes afins, do
coral de vozes mistas e infantojuvenil, aprendi a ler partitura,
violino e órgão, praticando, de
começo, no harmônico ou serafina.
Quando entrei na fase de mudança
de voz, tive que deixar de cantar e
passei a ouvir, de fora, o resultado
da
harmonia,
distinguindo
a
harmonia
frasear
e
a
contrapontística,
o
feitio
dos
autores e os etilos das composições,
conforme sua época de criação.
Enquanto
isso,
continuava
participante do coro (em uníssono)
de cantochão (coro em uníssono é
pleonasmo!). O repertório musical
era bastante variado. Um dia, achei
uma pilha de discos 78 rotações,
VS – Em 1950, o Sr. foi para o
Rio de Janeiro, onde passou a
estudar composição com Villa
Lobos. Como isso aconteceu?
RC – Em 1950, fui para o Rio de
Janeiro. Nessa época minha família
já morava, há dois anos, no Recife,
Pernambuco, onde meu pai, um
homem culto e elegante, grande
apreciador de música erudita, me
levou ao Teatro Santa Isabel para
assistir a um concerto de orquestra
sinfônica, sob a regência do
maestro gaúcho Vicente Fittipaldi,
executando
uma
sinfonia
de
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Beethoven. Fiquei deslumbrado com
o timbre da orquestra ao vivo,
completamente novo e diferente
para
mim,
aquele
ambiente
pomposo e toda aquela plateia
educada, bem vestida, fiquei tonto.
Depois do concerto, eu não sabia o
que falar. Papai percebeu que eu
estava comovido. Brindou-me ainda
com uma ida a uma daquelas
sorveterias do Recife, saborear
algumas delícias. Não vou esquecer
nunca aquela tarde de domingo.
Figura 5. Reginaldo Carvalho, como diretor do Instituto Villa-Lobos
(Rio de Janeiro, 1971)
Figura 6. Reginaldo Carvalho na inauguração do Laboratório de Som, no IVL
(Rio de Janeiro-RJ, 1967)
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Dois dos meus irmãos moravam no
Rio de Janeiro e me convidaram a ir
morar com eles, custeando minha
estadia e meus estudos superiores.
No Rio, encontrei com minhas
primas pianistas, cuja família toda
se mudara para lá. Contaram que o
professor Gazzi de Sá também
fizera o mesmo. Apresentaram-me
a Villa-Lobos. Matriculei-me no
Conservatório Nacional de Canto
Orfeônico onde ele era o diretor. Ele
viu minhas composições e, ele
mesmo, me fez seu aluno particular,
mandando uma recomendação ao
professor Paulo Silva, empenhandose para que me aceitasse como
discípulo também, em contraponto
e fuga, de que era reconhecido
como maior experto no país.
Dezessete anos mais tarde, eu fui
nomeado,
pelo
Presidente
da
República, Diretor do Conservatório
onde estudei, transformando-o no
Instituto Villa-Lobos, hoje anexado
à UNI-RIO.
Paris.
Ele
patrocinara
minha
passagem de navio, e fez uma carta
semelhante àquela ao professor
Paulo Silva, dirigida ao grande
mestre francês Paul Le Flem.
Tornamo-nos
respeitosamente
amigos e, através dele e de VillaLobos,
conheci,
pessoalmente,
todos os grandes músicos da época:
compositores
e
intérpretes,
regentes,
cantores
e
instrumentistas. Nenhum músico
me influenciou, como se diz, na
música que pratico. Os contatos
com Olivier Messiaen e Paul Le Flem
me orientavam para o ecletismo e
aquilo
que
Piaget
dizia:
“o
importante é a infância vivida.
Nascer na província, então, é a
glória, pois tem-se o que contar.
Perigoso
é
permanecer-se
provinciano de mentalidade.” Sei
que
o
Nordeste,
a
Paraíba,
perfumam todo o meu trabalho,
como dizem as pessoas. Eu faço a
música que faço, gosto e quero,
apesar do imenso cabedal de
informações que possuo. Do mesmo
jeito que em música, sou assim em
matéria
em
filosofia,
religião,
política e futebol: independente,
altivo, responsável. Sou também
leitor
assíduo
e
compulsivo.
Sobretudo gosto de música, gosto
de ouvir música. Posso dizer que eu
sei música e amo.
VS – E a convivência com VillaLobos, como foi? Quais os
resultados desta relação?
RC – Tomei contato com toda a
obra de Villa-Lobos, meu grande
mestre. Ele me disse: “O que eu fiz,
já fiz. Faça você a sua música.” Ele
viu todos os meus trabalhos. Em
fins de 52, eu estava morando em
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Figura 7. Reginaldo Carvalho regendo o Coral do Amparo no V Festival Maranhense de
Coros (São Luís, 1981).
VS – Observa-se, especialmente
no conjunto de suas obras
vocais, um diálogo entre a
temática
regionalista,
caracterizada pelo emprego de
melodias
modais
e
alguns
ritmos
típicos
das
danças
nordestinas, e os elementos da
música moderna. Como o Sr.
concilia
o
intrínseco
e
extrínseco em suas peças?
audições de Palestrina, Lassus,
Victoria, Vivaldi, Monteverdi (este,
para mim, o começo da grande
música), Bach, Haydn, Mozart,
Beethoven,
Bruckner,
Handel,
Schubert, Schumann, Mendelssohn.
Quase que enlouqueci com Wagner,
que deu trabalho para me libertar
dele posteriormente. Não quero
esquecer Chopin e Listz. Despertei
para um mundo sonoro novo
quando me deparei com as belas
obras de Debussy, Stravinsky, VillaLobos, Milhaud, Migot, este último
por
demais
desconhecido
injustamente, mas que aprecio
sobremaneira. Poulenc, outro que
chegaram a dizer que eu o imitava,
tamanho afeto sinto por suas
músicas; Messian, que considero o
gênio musical mais completo em
conhecimentos
gerais
e
que,
simplesmente,
me
encanta,
considero-o “um santo” (como se
dizia
antigamente);
Ravel,
Hindemith,
Prokofiev,
Shostakovich... e muitos outros
RC – O Nordestino musical tem a
ver com a música donde eu nasci e
sedimentei minha memória auditiva
com
enorme
carinho
e
encantamento. O cantochão do
mosteiro
reforçou
ainda
essa
tendência. Cheguei a ir a quase
todos os mosteiros onde se pratica
o cantochão autêntico quando
estive na Europa. Depois, fui-me
encantando com cada um dos
grandes
músicos
da
música
ocidental. Não saberia descrever
com que ardor “devorei” as
partituras e “me deliciei” com as
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ainda.
Estudei atentamente o
atonalismo, o dodecafonismo, mas
sem vocação. Fiz até alguns
trabalhos que acabei vendendo num
dos dois grandes lotes que fiz de
muitas das minhas obras para fazer
espaço em casa e... para “me ver
livre”
delas.
Não
gosto,
simplesmente, só acho curioso.
Toquei fogo num bocado e, certa
feita, entupi a lixeira do edifício
onde morava desde lá de cima. Não
aderi às complicadíssimas incursões
de
Boulez,
Stockhausen,
Dallapiccola, Nono, Xenákis. Tudo
uma fase de transição. Escuto
Penderecki, Ligeti, Britten, Richard
Strauss, de Falla, Albéniz. Aprecio a
incrível elegância de Jacques Ibert.
Eu levaria para uma ilha deserta: O
cravo bem temperado, A arte da
fuga, a Paixão Segundo São Mateus
e a Missa de Bach. De Debussy, La
mer e Pélleas et Melisande.
De
Messiaen, a sinfonia Turangalila e
peças para órgão. De Beethoven, a
Missa Solene e os quatro últimos
quartetos.
De
Villa-Lobos,
os
Chôros números 10, 11 e 12. O
Requiem de Mozart e Don Giovanni,
o Requiem de José Mauricio Garcia.
De Wagner, Tristão e Isolda. De
Stravinsky,
a
Sagração
da
Primavera.
Depois,
a
fase
eletroacústica,
que
diariamente
escuto, uma por uma com muito
cuidado e atenção.
VS – Como o
debate
em
dodecafonismo
brasileira?
infantilidade,
um
tremendo
equívoco. Ouvi tudo, fiquei na
minha. Conheci Koellreutter em
1950. Conversamos muito pouco,
soube mais dele através dos seus
ex-alunos e de sua ex-mulher,
Geny
Marcondes,
com
quem
cheguei a trabalhar, certa época, no
Rio. Não entrei nessa “corrente”
aqui no Brasil porque, naquela
época, eu estava ainda nos meus
primórdios
em
matéria
de
conhecimentos musicais, não havia
geração dessa música, não havia
concertos públicos e as pessoas
eram por demais fechadas. Só
depois, em Paris, é que me
empenhei, pra valer, no assunto.
Mas, acho que essa fase de
dodecafonismo e serialismo foi,
para a música, o que foi o Marxismo.
Uma experiência, uma fase de
evolução,
de
transição,
uma
preparação para uma dança futura
e libertação do passado. Guarnieri,
eu o conheci de concerto, ele
regendo obras dele, e através de
ex-alunos seus. Ouvi quase tudo o
que ele fez, é uma música
admirável.
Costumo
ouvir
atentamente os outros músicos
compositores brasileiros. Há gente
de grande valor no nosso país.
Podemos nos orgulhar de termos
uma música peculiar e supimpa.
Estive mais próximo de Guerra
Peixe, Esther Scliar, Marcos Nobre,
Jaceguay Lins, Jorge Antunes, Edino
Krieger, Aylton Escobar, Emílio
Terraza, José Maria Neves, meu exaluno e tenorino de coral, cantando
“dó” 5 com a maior facilidade...
Marlene Migliari Fernandes, Cecília
Conde – vou parar de citar pra não
esquecer ninguém, pois os admiro
todos. Mas tenho que lembrar de
Gilberto Mendes, Almeida Prado,
Bruno
Kiefer,
Ernst
Widmer,
Lindemberg
Cardoso,
Ricardo
Tacuchian...
Sr. analisa o
torno
do
na
música
RC – O fechamento do pessoal, de
um lado, no dodecafonismo, e do
outro, o nacionalismo, achei, desde
o começo, quando travei contato
com a história e suas implicações
políticas,
uma
tremenda
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mestre, porquanto era sabido ele só
regia as obras que ele compunha,
com exceção de Bach, Beethoven,
Ravel (há muito tempo) e Florent
Schmitt recentemente. Foi um
ponto marcante. Três audições me
marcaram
muito:
Fidelio,
de
Beethoven; as Paixões Segundo
São João e São Mateus, de Bach; as
citadas audições do Cravo BemTemperado, em Guarabira, pelas
minhas primas; e do grande órgão
de Notre Dame, em Paris. Foi um
ponto
marcante.
Não
posso
esquecer
também
o
trabalho,
cuidadoso
e
responsável,
que
desenvolvi em Brasília entre os
anos 1960 e 1964.
VS – Há algum ponto marcante
que queira destacar em sua
trajetória?
RC – Minha vida musical não teve
nenhum ponto marcante sequer.
Vivi sempre música, mas não de
música.
Nada
impresso, nada
tocado em concerto, nada gravado.
Para garantir o sustento familiar,
me
exerci
como
professor.
Escrupuloso.
Daqueles
que
preparam aula e seguem os alunos
evoluírem, cuidadosamente, sem
pisar-lhes “no pé”, como se diz.
Mantive-me,
assim
como
me
mantenho até hoje, por gosto,
atualizado,
reciclando-me,
em
função deles. Cheguei a lecionar em
grandes colégios no Rio de Janeiro,
Minas Gerais e Brasília, por fim, em
Teresina, no CEPI (Centro de
Estudos
e
de
Pesquisa
Interdisciplinar), Escola de Música
de Teresina, da qual fui um dos
criadores, e Universidade Federal
do Piauí, onde cheguei a adjunto e
fiz mestrado em Educação, tendo
lecionado nada mais nada menos
que 23 (vinte e três) disciplinas, ao
longo de pouco mais de 20 anos.
Para não dizer que não aconteceu
nada, um dia Villa-Lobos mandou
imprimir duas composições minhas,
e, num centro de coordenação
didático-pedagógico, que acontecia
às quintas feiras no Conservatório
Nacional de Canto Orfeônico onde
todos os professores do antigo
Distrito Federal, Rio de Janeiro, e
estados
próximos
deveriam
aparecer, distribuiu, me apresentou,
regendo ele mesmo. Eu estava com
19 anos. Fiquei muito assustado,
não realizei, de momento, a
importância do evento e sofri
consequências de inveja por parte
de professores e compositores
“maduros” e amigos do grande
VS – A criação do Instituto VillaLobos não seria também um
fato relevante?
RC – A tarefa de transformação do
Conservatório Nacional de Canto
Orfeônico, criado
pelo
grande
mestre Villa-Lobos, e no qual e do
qual fui aluno, em Instituto VillaLobos, foi uma grande conquista.
Infelizmente,
ela
não
foi
compreendida pelos superiores da
época, os milicos, e tentada
aniquilar, porém que sobrevive, em
ideal (as ideias básicas não foram
aceitas
porque
não
foram
compreendidas na época – em que
“poderia dar” certo! –), na UNI-RIO.
Depois, o meu encontro com o
então governador do estado do
Piauí, Alberto Tavares Silva, com a
presença do então Ministro da
Educação Jarbas Passarinho, e do
então Ministro do Planejamento Dr.
Reis Veloso, desviando minha rota
para o Piauí, em vez de fazer
escolha entre cinco convites para
países diferentes. Tudo isso foi
muito marcante na minha vida, por
conseguinte, na minha música.
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VS – Sobre a sua passagem pela
Europa, com quem estudou, o
que trouxe de mais significativo
na bagagem?
VS – E qual era o ambiente
artístico e cultural em Paris, nos
primeiros anos da década de
sessenta?
RC – Minha estada na Europa foi
basicamente
na
França,
principalmente em Paris. De lá eu ia
aos outros lugares, percorri a
França toda, é menor que Minas
Gerais, sem conseguir absorver
tudo, é inebriante. É história demais.
É beleza sem fim. Tem lá os seus
desagrados pra gente, porém cada
um vive do seu jeito, e o jeito deles
é aquele, assim como o da gente
aqui é o da gente, que, nem
sempre, agrada a gente mesmo.
Não vou falar de roteiro turístico e
artístico-cultural
que
tive
a
oportunidade de usufruir. Itália,
Suíça, Alemanha, Áustria, Grã
Bretanha, Escócia onde casei aos 22
anos...
Com
quem
estudei,
basicamente, já falei: Paul Le Flem,
Messiaen sempre sob supervisão e
os conselhos práticos, vividos, de
Villa-Lobos. Certa feita, Villa-Lobos
me chamou e me mandou ir a uma
apresentação pública de Pierre
Schaeffer e sua equipe de uma tal
de
música
experimental,
que
estavam chamando de “música
concreta”. Fui. Voltei fascinado.
Contei tudo pra ele e pra Mindinha,
mulher dele e minha ex-professora
ainda no Rio de Janeiro. Ele escutou
atentamente, fez piada, como sabia
e gostava de fazer, do jeito dele.
Depois, ficou sério e falou: “Fique
atento!” Aproximadamente uma
década depois, eu voltei a Paris
para me especializar num “estágio
de informação” em música concreta.
Villa-Lobos adoeceu e faleceu em
outubro de 59. Antes, ainda com
saúde, me chamou a atenção para
ser pioneiro, implantar a música e
aplicar meus modernos conceitos
em Brasília.
RC – Em 64, uma bolsa de estudo,
prêmio do governo francês, me fez
voltar a Paris. Havia um frenesi de
modernidade e experimentalismo
musical na Cidade Luz. Assisti a
tudo que me foi possível. Dessa vez
eu não morava em apartamento
alugado
e
sim
na
cidade
universitária. Pierre Boulez era o
mandachuva,
falando,
presunçosamente, além do que
devia. Ele é muito competente. E
complicado. Não vi mais Luigi Nono,
nem Stockhausen, nem Xenákis,
agora todos famosos. Gilbert Amy
estava em ascensão. Paul Le Flem
ficou cego. Olivier Messiaen ainda
em plena forma. Meu novo mundo
era a “música concreta”, que,
depois da briga com a “música
eletrônica” alemã, passou a se
chamar “música eletroacústica”.
Completei cursos começados uma
década
antes,
de
filosofia,
apreciação de pintura e arquitetura,
literatura francesa e russa. Traduzi
livros de Máximo Gorki, do francês
para o português para uma editora
franco-russa, e um livro de Darius
Milhaud. Desta feita, não tive quase
tempo disponível para acompanhar
as palestras e os contatos com
meus amigos de uma década atrás,
que tanto me encantaram. Alguns
faleceram. Eu estava com 30 anos e
o pessoal que eu conhecera antes
havia envelhecido incrivelmente.
Dediquei-me
com
afinco
aos
estudos. Utilizava mais os livros das
grandes
bibliotecas
disponíveis,
guardando o dinheiro para as
compras, quando tive que retornar.
Trouxe menos, porque voltei de
avião, mas o bastante que um
estudante pudesse trazer. Ficou
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Entrevista com o compositor Reginaldo Carvalho
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tudo na biblioteca de “Villa-Lobos”,
que, fiquei sabendo depois, como
não estava ainda carimbado, só
com meu nome, o pessoal “querido”,
professores
e
alunos,
furtou
discretamente, colocando-se um
“oferecimento” fajuto em cima da
minha assinatura. Livros técnicos,
partituras, fitas (2 trabalhos),
discos (uns 300), enciclopédias
musicais, tratados de tudo sobre
música, sei lá mais o quê! Sempre
que eu saio de algum lugar ou de
alguns trabalhos ou tarefa eu deixo
tudo. Era um acervo precioso, que
continha as mais representativas
obras contemporâneas de música.
O
Instituto
Villa-Lobos
se
enriqueceria muito com esse acervo.
Depois de Paris, fui morar seis
meses em Marselha, onde meu
sogro era diplomata. Lá nasceu
meu filho Sérgio (já falecido, aos 36
anos, assim como meu sogro).
VS – Apesar de ser considerado
o
pioneiro
da
Música
Eletroacústica no Brasil, grande
parte da sua obra é dedicada à
música coral. Como o Sr. define
o seu estilo composicional nesta
área?
RC – Já disse: faço música ao meu
jeito. Algumas vezes, atendo a
pedidos de corais, coralistas e
regentes, que me encomendam
definindo o índice de dificuldade,
nas possibilidades de desempenho
técnico e artístico, música tonal,
modal, homofônica, contrapontística
(poucas) e troncheza (dissonância).
Quando eu escrevo livremente, eu
nem chego a pensar em dificuldade
técnica,
rítmica,
melódica,
harmônica.
Quando
me
encomendam, sim, eu tomo cuidado,
conforme o que me pedem.
Também
há
uma
infinidade,
sobretudo na grande produção de
arranjos de música folclórica que
dediquei a corais escolares, para
que o pessoal aprenda a elaborar o
gosto artístico musical. Muitos
arranjos são quase que exercícios
de técnica coral, visando o trabalho
pedagógico. Como todo mundo
sabe que eu adoro escrever música,
e o faço o tempo todo que for
possível e, ainda trabalho de graça,
praticamente,
os
pedidos
são
muitos e sempre atendi. Às vezes
são coletâneas inteiras, mando
sempre os originais sem guardar
cópias. Poderia acrescentar, ainda,
que
meu
feitio
composicional
musical coralístico se particulariza
pela exatidão prosódico-musical,
por gostar imensamente da língua
portuguesa e ser vidrado no
assunto de prosódia musical desde
os primeiros contatos com a música,
quando ingressei, no caso de
cantochão, no mosteiro, ainda
menino. Sofro enormemente com
VS – E no seu retorno para o
Brasil, o que aconteceu?
RC – Voltei para o Rio de Janeiro.
Trabalhei no Colégio Pedro II, do
MEC, Colégio Notre Dame, Instituto
La Fayette, ASCB, SENAC, Colégio
Anglo Copacabana, como organista,
regente de coros infantis e infantojuvenis, dando aulas particulares,
compondo música para teatro,
cinema e televisão, convivendo n’O
Tablado, com Maria Clara Machado,
musicando peças dela. Fui para
Brasília com tudo o que tinha
trazido da Europa na viagem de
transatlântico. Livros, partituras,
discos, filmes etc. Grande parte
ficou por lá em várias bibliotecas.
Outra parte, deixei no Rio de
Janeiro. Antes de Brasília, eu viajei
por todo o estado do Rio de Janeiro,
São Paulo, Minas Gerais e Goiás
acompanhado corais e pesquisando
folclore musical.
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Entrevista com o compositor Reginaldo Carvalho
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as silabadas dos meus colegas
compositores e letristas, tanto
eruditos quanto populares, que
assim comprometem a qualidade
dos nossos cantores. Me dá uma
satisfação
enorme
ouvir
uma
cantoria com a prosódia musical
totalmente
bem
aplicada
e
compreendida. Dá pra notar que
prefiro coral a cappella, embora
também tenha conjunto a seco e
arioso.
VS – Diante de tão vasta
produção, como o Sr. organiza e
cataloga as suas composições?
RC – Há uma infinidade de obras
fora de catálogo por essa razão.
José Maria Neves andou fazendo
um catálogo. Disse ele que chegava
além
de
4.000
músicas,
de
cançonetas a sinfonias e poemas
sinfônicos,
música
de
câmara
vastíssima. Onde anda tudo isso?
Fora o que “joguei no mato” – podia
fazê-lo porque eu somente sabia
delas e nunca tinham sido tocadas
ou cantadas – e que escondi no teto
do convento dos Dominicanos no
Rio de Janeiro e na laje da Escola
dos “Pequenos Cantores” de São
Domingos, em Juiz de Fora, Minas
Gerais, que soube ser agora uma
clínica psiquiátrica, a escola fechou.
Vendi diversas, sem olhar quais,
quando
passava
por
aperto
financeiro. Posso acreditar que sou
ou tenho sido muito fecundo em
produção, mas sou o menos
executado compositor do Brasil.
Pedem música e engavetam, que
nem eu faço aqui em casa. Mas, eu
não estou nem aí com isso.
VS – E por que essa predileção
por coro a cappella?
RC – Tenho verdadeira fascinação
pela música coral a cappella. No
colégio,
eram
as
preferidas.
Cantavam missas de Palestrina, de
Vitória, a cappella, e, é claro, o
cantochão. Não aprecio, de jeito
nenhum,
coral
com
acompanhamento
instrumental,
principalmente como está em moda
agora, com violão, sanfona ou
batucada. Não é o que gosto de
ouvir. Também me retiro quando
vejo coral que se remexe. Hoje,
praticamente não compareço a
audições corais por causa dessa
tendência.
VS – Como era a sua relação
com o mercado? Dava para
sobreviver compondo?
RC – Durante muito tempo, mesmo
nas vezes em que morava no Rio,
eu fazia arranjos de música popular,
às vezes, músicas horríveis e banais
que
eu
“salvava”
como
harmonização
e
orquestração.
Guerra Peixe, Radamés Gnatalli,
Lyrio Panicali e outros ilustres e
grandes orquestradores eruditos
ganhavam a base do seu sustento
trabalhando música para as rádios,
antigamente, quando as rádios
tinham orquestra e não havia
sintetizadores. Eu vendia meus
Figura 8. Reginaldo Carvalho na sua
biblioteca (Teresina, anos 90).
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arranjos sem assinatura, recebia o
pagamento no guichê e ia embora.
Quem comprava, botava ou não
nome de autor. Até em discos, meu
nome nunca, jamais entrou. Mas as
minhas
“chaves”
me
fazem
reconhecer o que eu fiz, e isso me
agrada. Só é chato porque somente
eu é que sei. Também houve uma
fase em que fiz muito “jingle”. Eita!
E quantos! Uns bem divertidos.
Tive prêmios, sim, de música para
teatro, no Rio de Janeiro, para
peças de Maria Clara Machado (O
cavalinho azul). Mas nunca fui
buscar os troféus. Ah! Uma vez me
telefonaram do Rio para ir buscar
“direitos autorais” não sei de quê.
Eu nunca pude imaginar uma coisa
dessas. Peguei um avião, fiquei em
hotel, recebi dezoito cruzeiros, que
bebi
todinho
de
cerveja
no
“Amarelinho”, ali na Cinelândia.
Muitos colegas vivem de música,
alguns ganham dinheiro, alguns
bastante, só de música. Eu não sei
ganhar dinheiro com música. Um
dos meus colegas diz que a
“inspiração” só lhe chega quando se
lhe pagam a primeira parcela da
encomenda. Sob esse aspecto, eu
sou uma besta, porque tenho
vergonha de ganhar dinheiro, coisa
de “pobre” de “subdesenvolvido”.
VS – Quais obras o Sr. destaca
como
relevantes
na
sua
produção? Já foi premiado
alguma vez?
RC – Não sei como destacar o que é
relevante entre minhas músicas. O
pessoal está destacando Sibemol,
por ter sido a primeira composição
musical brasileira eletroacústica.
Com relação à premiação, nunca
entrei em concurso de composição.
Figura 9. Rodolfo Caesar, Valério Fiel e Vladimir Silva no encerramento do Congresso
Nacional da ANPPOM, entregando placa homenageando Reginaldo Carvalho
(João Pessoa, 2012)
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VS – Sobre a sua atuação como
educador, o que tem a dizer?
aula de música, inconformei-me
com a inexatidão terminológica dos
livros e professores. Cheguei a
juntar, por exemplo, mais de
quatrocentos
livros
de
teoria
musical, de autores diversos, daqui
e de estrangeiro, todo rabiscado.
Esgotei a paciência de muitos
professores. Poucos, infelizmente,
se resolveram a emprestar essa
abordagem, me deixando só, até
mesmo quando ficaram sem poder
mais se justificar ou argumentar.
RC – Comecei a lecionar em 1951,
quando
estudante
concludente
ainda no Conservatório Nacional de
Canto Orfeônico, sob a orientação e
treinamento de uma plêiade de
professores categorizados e de
competência
reconhecida,
com
resultados evidentes. Depois de
exercitado em classe, fiz diversos
estágios,
supervisionados
por
mestres, em escolas públicas e
particulares, ao mesmo tempo
lecionava em particular teoria,
solfejo, percepção musical e cultura
popular. Interrompi essa atividade
por motivo de ter-me mudado para
a Europa, onde morei diversos anos,
me aperfeiçoando nos estudos
culturais sob a experiente e
brasileiríssima
orientação
e
supervisão geral do meu grande
mestre Heitor Villa-Lobos, em
contato com grandes mestres em
Paris, sobretudo Paul Le Flem e
Olivier Messiaen, ao mesmo tempo
que frequentava, na Sorbonne, o
curso de psicopedagogia com Jean
Piaget. Posso dizer que uma das
minhas maiores preocupações foi
com o que eu chamo de musiquês,
ou seja, a maneira de se expressar
sobre o assunto musical com
absoluta exatidão e coerência
terminológica,
não
deixando
margem a equívocos quaisquer.
Durante todo o tempo em que fui
professor,
procurei
exaurir-me
nesse procedimento. Tudo o que
leio sobre música, corrijo se estiver
errado. Dicionários inteiros, livros
diversos, tratados teóricos, corrijo
tudo, com o maior cuidado. Não me
importo que ninguém nunca venha
a tomar conhecimento disso. Servese como exercício de raciocínio e
preparo para um futuro trabalho
sobre o assunto. Desde a primeira
VS – Como o Sr. analisa o atual
cenário
musical
brasileiro,
especialmente
o
universo
composicional?
RC – Só sei que sou um músico. E
quem chega perto de mim, faço
questão, muitas vezes, que fique
sabendo. Mas, há momentos em
que, por ser músico, eu odeio
música e ser músico. É quando
escuto certas “coisadas”. Não gosto
de ouvir música quando estou
comendo, ouvir música ao comer!
Não vou a restaurante onde há
“música ao vivo”, não vou a clube
ou reunião “animada” por “bandas”.
Há autores que eu não “simpatizo”
mesmo, para não usar expressões
mais contundentes. O cenário
musical brasileiro, tanto erudito
quanto popular (e faço questão de
frisar essa diferença, não vou nessa
de se “eruditizar” música popular
para aliciar músico erudito nem
“popularizar” música erudita para
aliciar músico popular. Essa mistura
vira “atochamento”. É perda de
tempo pros dois lados. Cada gênero
musical, o gênero erudito e o
gênero popular são válidos e devem
enriquecer a música com suas
peculiaridades e suas diferenças).
Sim, como ia dizendo (fora esse
aparte que é importante destacar),
o cenário musical brasileiro cresce
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bastante ultimamente devido ao
maior acesso que se tem à música
no momento. O gênero erudito
sempre foi mais restrito e não deve
renunciar à sua função. O músico
erudito atual vive amedrontado de
perder terreno. Tem mais é que se
concentrar no que ele é e seguir
sua rota se aperfeiçoando sempre.
Há lugares em que nem se sabe o
que é música erudita. Mas, sempre
foi
assim.
Existem
fases
de
transição que deixam tudo em
expectativa. O mesmo também
ocorre em certos ramos da música
popular urbana mais ilustrada. Fica
todo
mundo
na
expectativa.
Enquanto isso, há o lado que se
torna cada vez mais banal e vulgar.
Com a ausência de educadores
musicais que não se importam
apenas em levar “qualquer” música
aos educandos (grande parte dos
educadores musicais nem sabe
discernir “qualidade” em música),
que possa servir à educação
(mudança de comportamento) e
apuração de gosto artístico musical,
a
banalidade,
a
rasoura
da
mediocridade, infiltrou-se de tal
maneira que não se sabe mais
distinguir musicalmente se está
num ônibus ou rodoviária ou
universidade ou supermercado ou
igreja ou cabaré! O momento é
sério. Quando eu estudei música,
com opção pela música erudita, não
me faltava ensinamentos sobre
música popular e sobre o que é boa
música ou má. O que não ocorre
hoje em dia, sobretudo nas escolas
que enfocam apenas a música
popular. Fica-se desconhecendo a
música erudita (o pior é apresentála “popularizada”) e não se elabora
a estética do gosto. O que faz com
que a banalidade reine. Procura-se
saber, por exemplo, o que faz tocar
(porque, geralmente, não se põe
música para ouvir) um jovem
universitário
ou
professor
universitário, em matéria de som,
de música: veja-se a sua coleção de
CDs, o que “soa” incomodando a
redondeza,
de
dentro
dos
automóveis: banalidade, banalidade,
vulgaridade. Não que se deva sair
tocando Beethoven pelas quebradas
ou nos botecos e picanharias! Mas,
pelo que se ouve pela cidade afora,
em
todos
os
ambientes,
é,
simplesmente, preocupante.
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