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A ninfa, uma criatura da sobrevivência
Didi-Huberman, Georges. Ninfa moderna: essai sur le drape
tombe. Paris: Éditions Gallimard, 2002. 179p.
Daniela Queiroz Campos1
Em Ninfa moderna: essai sur le drape tombe, 2002, Georges Didi-Huberman
abordou o erótico, a sensualidade, o desejo dessas divindades menores sem poder institucional. Como ponto de partida, como imagem e como montagem2, tomou as figuras femininas da Antiguidade e do Renascimento. Para o historiador da arte e filósofo francês,
a ninfa, como a aura benjaminiana, declinou com os tempos modernos. Didi-Huberman
problematiza e observa duas sutis facetas dessa imagem, desse declínio: o drapeado e a
queda. O livro perpassou a encarnação renascentista da ninfa, numa sexualidade que não
se reflete, mas se transfigura num corpo inclinado, que para o teórico, significa sua queda.
Se na Antiguidade a ninfa fora majoritariamente apresentada em sua verticalidade, ela
triunfa horizontalmente no Renascimento, onde se deita. O movimento foi primordial na
análise de Didi-Huberman, sobre sua ninfa moderna.
A ninfa seria memória e desejo reunidos na mesma aparição. Bela, inquieta,
erótica. O poder do movimento, da dança, da fascinação, do desejo, da memória, do
tempo... O perigo inquietantemente erótico.
O perigo do belo e do traumático. O olhar didi-hubermaniano, por alguns instantes, por alguns parágrafos, paralisou-se sobre uma certa parte desta questão. Sobre as aparições desta ninfa em mulheres fortes, belas, perigosas. Arria Marcella, de
Théophile Gautier, Aurélia, de Nerval, Hérodiade, de Mallarmé... Memória e desejo
reunidos na mesma aparição.
1
2
Possui graduação em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2007), mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2010) e doutorado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Tem experiência na área de História, com ênfase em História da Arte,
atuando principalmente nos seguintes temas: imagem, arte gráfica, arte. Efetuou estágio doutoral na École
des Hautes Études en Sciences Sociales sob a orientação do Professor Doutor Georges Didi-Huberman,
como bolsista da CAPES. Email: [email protected]
O termo “montagem” é aqui utilizado segundo Aby Warburg e Didi-Huberman. Ver mais em: DIDI- HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. História da Arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto/Museu de Arte do Rio de Janeiro, 2013.
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.27, n.1, jan./jun. 2014
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A ninfa de Aby Warburg
tártara liberta (...), mas segundo sua
verdadeira essência é um espirito ele-
Para Georges Didi-Huberman, a
mental (Elementargeist), uma deusa
nossa “moderna ciência das imagens”,
pagã no exílio”.4 E fora essa deusa pagã
aquela história da arte remexida e re-
no exilioquese movimentou por entre
montada por Aby Warburg, nasce inter-
as pranchasnegras do Altas Mnemosy-
penetrada pela própria figura, pela pró-
ne5 até que na prancha número 77 Aby
pria potência da ninfa, a ninfa sob uma
Warburg coloca a imagem fotográfica
de suas mais belas aparições, a ninfa re-
de uma golfista como a sobrevivência
nascentista de Botticelli, diante de um
das antigas ninfas. Essa história da
enigmático movimento exterior à tela.
arte começava a ser ensaiada como um
Madeixas e tecidos têm o movimento
saber poético, a ninfa era uma dessas
fixado na imagem. As ondas no cabelo,
imagens que marcavam a necessidade
o drapeado nas vestimentas, um vento
cultural coletiva de uma sobrevivência
que jamais cessou de soprar diante das
moderna de deuses pagãos. Essa ninfa
estonteantes ninfas warburguinianas.
seria a heroína impessoal, reuniria em
Para além da ninfa desua tese de
si inúmeras encarnações, ela acomodou
doutorado , a de Botticelli – O Nasci-
incontáveis personagens. “A Ninfa se
mento de Vênus e a Primavera– Aby
encarna, ou seja, é tanto mulher quanto
Warburg ateve-se a várias outras encar-
deusa: Vênus terrestre e Vênus celeste,
nações possíveis dessa, como denomi-
dançarina e Diana, serva e Vitória, Ju-
nada por ele, deusa pagã noexilio, como
dite castradora e anjo feminino [...]”.6
3
é o caso da ninfa pintada por Domenico
Ghirlandaio em O Nascimento de São
A ninfa e o movimento de queda
João Batista. Em pinceladas de Botticelli e de Ghirlandaio, nos modelados-
Didi-Huberman se pergunta quan-
dos mármores da Antiguidade a ninfa
do e onde a ninfa cessará suas aparições,
atravessa a história da arte warburgui-
suas encarnações? Ela se remodela, se
niana como um verdadeiro organismo
redefine, se transforma, se esconde. Des-
enigmático. Quando questionado por
de a Antiguidade, vem ensaiando uma
um amigo sobre quem seriam as nin-
diversidade de posições, posturas, cenas.
fas e de ondeelas viriam, Aby Warburg
responde que “segundo sua realidade
4
corpórea, podem ter sido uma escrava
3
A tese de Aby Warburg encontra-se traduzida
em português e publicada em um compilado de
obras. WARBURG, Aby. A renovação da Antiguidade pagã. Contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu.
Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013.
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5
6
Tradução nossa. Frase-resposta de Warburg à
pergunta formulada por um amigo, Jolles, em
correspondência – fictícia- sobre as ninfas no
ano de 1900. In: AGAMBEN, Giorgio. Ninfa.
Valencia: Pre-textos, 2010, p. 39.
WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Madri:
Ediciones Akal, 2010.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. História da arte e tempo dos fantasmas
segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Editora
Contexto, 2013, p. 220.
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.27, n.1, jan./jun. 2014
Tal como Aby Warburg, Georges
Maderno, que tivera sua carreira inicia-
Didi-Huberman também abordou o
da como restaurador de esculturas da
movimento da ninfa, mas o movimento
Antiguidade. Naquela obra funeral de
abordado pelo último fora outro. Sua
1600, o drapeado da Antiga ninfa triun-
ninfa estava imersa no movimento da
fa em uma anti-ninfa, uma jovem san-
queda, uma espécie de filme imaginário
ta. A elegância suprema e magnífica do
numa queda progressiva da ninfa. Em
drapeado apresenta-se como referência
tal filme, a ninfa fora dissociada, lenta-
ao paganismo greco-romano, como um
mente, de sua nudez.
véu, um tecido que cobre um corpo pu-
O movimento de queda acompa-
dico8. Um corpo que agora agoniza.
nha a ninfa, seu corpo, sua nudez. O
O corpo pudico, a morte, o drape-
livro perpassa telas como Vênus e Mar-
ado. O movimento da imagem funeral
te (1483) de Botticelli, Vênus, Marte e
remete diretamente a uma antiga fór-
Cupido (1505) de Piero di Cosimo, além
mula, um Pathosformel9. A obra ateve-
de outras de Tiziano. Aborda, sobretu-
-se ao corpo da queda, à Santa Cecília
do, as texturas e as formas dadas aos
(1600)10, à Sainte Martine (1635)11, à
tecidos. Suas aparições, suas apresen-
LudovicaAlbertoni (1731)12. O mesmo
tações, até a forma, que alcança na tela
drapeado, em corpos ambivalentes,
Tarquinio e Lucrezia (1559) de Tinto-
ressalta características distintas e pró-
retto, na qual o corpo feminino apre-
prias, operando, do pudico ao eróti-
senta-se envolto, “literalmente” preso,
co, como um operador de conversões,
a um trapo. Ao observar inúmeras te-
como um espectador da queda. O dra-
las, o autor confirma uma cara questão
peado caído, a onipresença da forma,
warburguiniana: o papel do drapeado
acompanhou faces quase pudicas dian-
como ferramenta do patético7. O tecido
te da morte, das ligeiramente adorme-
de frequente aparição nas obras renas-
cidas e sensuais até aquelas marcadas
centistas, onde, sobretudo, a nudez e o
pela desordem do desejo.
tátil foram postos em cena como face
do sensível.
Didi-Huberman também encontra
8
9
o drapeado no mesmo mármore branco
que a revelara a ninfa na Antiguidade.
Numa capela cristã, na obscura igreja de Santa Cecília de Trastevere, em
Roma, há uma bela e intrigante escul-
10
tura, cuja forma fora dada por Stefano
11
7
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna: essai sur le drapé tombé. Paris: Gallimard,
2002, p. 21.
12
DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit., 2002, p.
26.
Sobre o conceito de Pathosformel ver mais em
DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit. 2013, p.
167-176. E em WARBURG, Aby. Dürer e a Antiguidade italiana. In:_______. A renovação da
Antiguidade pagã. Contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu.
Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013, p.
435-446.
Stefano Maderno. Escultura de Santa Cecilia,
1600, mármore. Roma, Santa Cecilia in Trastevere.
Niccolò Menghini. Sainte Martine, 1635, mármore. Roma, Santi Martina e Luca.
Gian Lorenzo Bernini. La Bienheureuse Ludovica Albertoni, 1671, mármore. Roma, San Francesco a Ripa, chapelle Altieri.
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.27, n.1, jan./jun. 2014
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A nudez da ninfa fora revestida
Benjamin. Como cenário, não mais o
pelo tecido que, no começo, timida-
mar simploriamente espumado de Bot-
mente a velava. O movimento de que-
ticelli, mas o cenário benjaminiano por
da agrega o drapeado, o tecido que
excelência. As ruas como um terreno
envolve a ninfa, como se, sutilmente,
do dialético15, como imagem e memó-
o tecido que envolvera e protegera o
ria de longa duração de uma cidade,
corpo da jovem, lentamente caísse ao
de uma cultura. O lugar da desordem,
solo. A queda do tecido desnuda a jo-
por assim dizer, capaz de nos oferecer
vem mulher e o tecido se transforma, se
um olhar do construído e do descons-
transfigura, em outra matéria, mas com
truído. Uma rua de Paris como a capital
o mesmo movimento, transforma-se
do século XIX16, ou de Marseille, ou de
em objeto autônomo, em uma espécie
Roma.
de trapo, de um incrível lençol drape-
A ninfa de Warburg e a rua de
ado... E é neste drapeado, tão poético
Benjamin. Foi desta maneira que o
e tão pouco evidente, que o filósofo e
texto crítico, doce e poético de Didi-
historiador da arte encontra sua ninfa
-Huberman narrou a cidade, a ninfa, o
moderna. No escorregar de um tecido,
drapeado e a queda. O filósofo e histo-
no transforma-se em trapo. Um pedaço
riador da arte encontrou a ninfa em um
de trapo caído ao chão... O tecido ganha
local pouco evidente. As ruas de Paris,
autonomia visual, vida própria.
as ruas ácidas, as ruas frias, o tecido
drapeado que envolve agora outros cor-
A ninfa na poética da rua
pos, mas ainda corpos caídos. Através
das fotografias e da inenarrável contri-
A ninfa moderna didi-huberma-
buição benjaminiana, Didi-Huberman,
niana13 simula o declínio, o movimento
buscou a rua com toda sua espessura
de queda na miséria contemporânea.
histórica, como um lugar dialético,
Aqui essa imagem de ninfa recorre a
com todas suas fachadas, seus edifícios,
outro autor da montagem : Walter
inundada por um movimento comple-
14
xo, capaz, não de nos orientar, mas de
13
14
Quando escrevo a Ninfa didi-hubermaniana
refiro-me às ninfas abordadas pelo autor em seu
livro A ninfa moderna.
Ver mais sobre o conceito de montagem em:
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos
o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens pense
a todo: memoria visual del Holocausto. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2004. DIDI-HUBERMAN, Georges. La condition des
images par Didi-Huberman. In: AUGÉ, Marc;
DIDI-HUBERMAN, Georges; ECO, Umberto.
L’experience des images. Paris: L’eu editions,
2011. DIDI-HUBERMAN. L’image survivante.
Histoire de l’art rt temps des fantômees selon
Aby Warburg. Paris: Minuit, 2002.
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nos desorientar, um terreno do anacrônico do tempo também dialético. A
rua aqui funciona como uma imagem
que nos dá acesso a esse presente das
sobrevivências.
15
16
DIDI-HUBERMAN, Georges. Op.cit., 2002, p.
47.
BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século
XIX. In: _______. Obras escolhidas vol. I.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.27, n.1, jan./jun. 2014
Benjamin17 e Baudelaire18 possi-
formando um verdadeiro drapeado. É
bilitaram ver uma cidade, Paris, como
a antropologia visual da sobrevivência.
um local de moda e “desmoda”. Uma
cidade moderna, sobretudo uma cidade
Um vento de tempo sobrevivente
da arqueologia da rua. Do reminiscente
feito de toda uma série de imagens foto-
A atividade de Georges Didi-Hu-
gráficas. As fotografias da série Barra-
berman consistiu em procurar a ninfa
ge do jovem fotógrafo Steve McQueen
em imagens que pudessem ser monta-
possibilitaram a Didi-Huberman olhar
das com as de Aby Warburg. A encon-
a cidade e a ninfa a partir de outra
trou em esculturas da Antiguidade, em
montagem, ou outra remontagem. Mas
obras do Renascimento, em pinturas de
esta série que abordara a cidade não
Poussin, em esculturas funerais do sé-
foi a única. Didi-Huberman também
culo XVII. Encontrou, então, sua pouco
ensaiou seu olhar pelas fotografias de
evidente ninfa moderna imersa ao mo-
Denise Colomb, Alain Fleischer, Eugè-
vimento de queda, na miséria contem-
ne Atgent. Viu o drapeado nos trapos,
porânea. Nas fotografias das mazelas
como forma de sobrevivência, como
das grandes e modernas cidades.
forma do dialético. O mesmo drapea-
O elo entre as Ninfas de Warburg
do das ninfas da Antiguidade e do Re-
e as de Didi-Huberman: o movimento.
nascimento estavam lá, a embrulhar
A divindade menor de ambos têm os
os corpos nas ruas daquelas grandes e
mesmo movimentar de tecido, os mes-
modernas cidades, dispostos naquela
mos plissados, os mesmos drapeados.
paisagem urbana. Um verdadeiro dra-
Didi-Huberman diz ter pensado em ou-
peado nas ruas, uma espécie de memó-
tra versão da ninfa moderna, em outra
ria dos trapos.
extensão possível. Estes dois homens
Os plissados foram montados e re-
pensaram a história da arte como um
montados de forma a organizar ideias,
saber poético, inverificável, repleto de
problematizações, questões. Drapea-
montagens. A heroína do Nachleben
do, tecido, véu, trapo, cobertor, esgo-
perambulou pelos trabalhos destes dois
to, a propagação de uma operação de
homens de forma a montar e a desmon-
plissados. A sarjeta é vista como uma
tar elos nunca fixos.
faceta da rua parisiense. O que se denota como não lugar, não pessoa, quase entre o limite de coisa e não coisa.
A fotografia da cidade, da sarjeta, dos
trapos, da água que corre e corta a rua,
17
18
BENJAMIN, Walter. Op. cit., 1998.
BAUDELAIRE, Charles. O pintor e a vida moderna. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010.
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.27, n.1, jan./jun. 2014
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Referências bibliográficas
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drapé tombé. Paris: Gallimard, 2002.
AGAMBEN, Giorgio. Ninfa. Valencia:
WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne.
Pre-textos, 2010.
Madri: Ediciones Akal, 2010.
BAUDELAIRE, Charles. O pintor e a
vida moderna. Belo Horizonte: Editora
______. Dürer e a Antiguidade ita-
Autêntica, 2010.
liana. In: ______. A renovação da
Antiguidade
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Contribuições
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científico-culturais para a história do
século XIX. In: ______. Obras Esco-
Renascimento europeu. Rio de Janeiro:
lhidas vol. I. Magia e técnica, arte e
Editora Contraponto, 2013.
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______. La condition des images par
Didi-Huberman. In: AUGÉ, Marc; DIDI-HUBERMAN, Georges; ECO, Umberto. L’experience des images. Paris:
L’eu editions, 2011.
______. L’image survivante. Histoire
de l’art rt temps des fantômees selon
Aby Warburg. Paris: Minuit, 2002.
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Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.27, n.1, jan./jun. 2014
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