Simpósio do CEHILA-Brasil (Goiânia, 31/08/05)

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(publicado na revista Fragmentos de Cultura v.16 nº. 3/4, mar./abr. 2006, UCG, Goiânia/GO, p.219-231).
ETNO-HISTÓRIAS DO CRISTIANISMO? NOTAS PARA UM DEBATE1
Edson Silva2
Resumo: em novas abordagens os índios são tratados como atores políticos. As visões
cristalizadas sobre o contato e as relações coloniais foram revistas e dentre essas as atuações das
missões religiosas. Estudos recentes têm demonstrado que os povos indígenas além de se
apropriarem, optaram e ressignificaram a pregação das missões religiosas a partir de seus
horizontes e interesses o que coloca em questão a eficácia da conversão ao cristianismo.
Palavras-chave: índios, história, relações de contato, missões religiosas.
UMA “NOVA HISTÓRIA” INDÍGENA: OS ÍNDIOS COMO ATORES SÓCIOHISTÓRICOS
As observações a seguir de Mauro Cherobim sobre os Guarani no litoral do
Estado de São Paulo, revelam certa perplexidade frente às dificuldades em
entender as expressões religiosas indígenas, quase quinhentos anos depois de
iniciado o contato, apesar da catequese religiosa que por muito tempo foi ministrada
junto aquele povo. Analisando a situação o estudioso afirmou,
Quanto às mudanças do sistema cultural. Encontramos toda a escala de variação. Alguns
grupos mantiveram no essencial do seu antigo modo de vida. Outros foram já levados á
beira da desintegração. Muitas mudanças que se observaram no sistema religioso datam do
tempo das reduções, outras se devem a influências de época mais ou menos recente. De
modo geral, a cultura guarani revela resistência aos efeitos das diferentes situações de
contato. Sobretudo o caráter fundamental da religião se mostra particularmente imune ao
contato com representantes do mundo cristão. Por muito tempo, ali, a adoção de elementos
do cristianismo não decorreu de um real confronto de dois sistemas religiosos, mas reflete
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Esse texto é uma versão da exposição na mesa-redonda “As etno-histórias do Cristianismo”, no Simpósio do
CEHILA-Brasil, intitulado As muitas faces do Cristianismo, realizado de 29 a 31/08/05, nas dependências da
Universidade Católica de Goiás/UCG, em Goiânia-GO. Acentue-se e advirta-se que foi conservado o caráter de
“notas para um debate” que permeia o texto aqui apresentado. Agradecemos o convite da atual Diretoria, bem
como a acolhida dos/as colegas do CEHILA-Brasil.
2
Doutorando em História Social da Cultura na UNICAMP. Mestre em História pela UFPE. Leciona História no
Centro de Educação/Col. de Aplicação-UFPE. E-mail: [email protected]. br
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uma estratégia para melhor conservar as crenças e os valores tradicionais. É uma forma de
conceder para não ceder. (apud, Brandão, 1994, p.300). (Grifamos).
As reflexões do pesquisador dos guaranis nos revelam também uma outra
face da questão, é facilmente constatável que existem poucos estudos sobre as
relações entre os povos indígenas e as diferentes formas do Cristianismo, seja o
católico romano ou o reformado em suas múltiplas variações. E ainda, as missões
religiosas em áreas indígenas é um tema pouco estudado.
Na História do Brasil com as abordagens tradicionais, os povos indígenas ora
são vistos como uma massa amorfa, vítimas de guerras coloniais genocidas, sendo
os poucos sobreviventes, espécies em extinção, ora são tidos como primitivos em
estado
de
barbárie,
pagãos
e
por
isso
passíveis
de
serem
catequizados/cristianizados, civilizados. Ou ainda, sobre aqueles povos habitantes
em regiões de maior tempo de colonização, aplicam-se os desatualizados conceitos
de aculturação e integração a sociedade nacional. Enfim, uma cegueira
eurocêntrica, etnocêntrica baseada no evolucionismo, impede de ver esses povos
como sujeitos da/na História.
Assim é que,
A recusa etnocêntrica da contemporaneidade de sociedades de orientação
cultural diversa tem sedimentado uma visão quase sempre negativa das
sociedades indígenas. Na postura ideológica predominante, os índios não
contam para o nosso futuro, já que são considerados uma excrescência
arcaica, ainda que teimosa, de uma “pré-brasilidade”. (Arruda, 2001, p.43).
As mudanças conceituais e de abordagens no campo da Antropologia, no
que diz respeito à cultura, as relações culturais, territorialização, etc. questionaram
uma história colonial triunfalista. Além disso, as permanências dos povos indígenas
colocaram em xeque os estudos tradicionais. Foi necessário desconstruir imagens
até então sedimentadas sobre a História e esses povos. Os novos estudos são
3
pautados por outras preocupações, “Importa recuperar o sujeito histórico que agia
(age) de acordo com a sua leitura do mundo ao seu redor, leitura esta informada
tanto pelos códigos
culturais
da
sua
sociedade como pela percepção e
interpretação dos eventos que se desenrolavam”. (Monteiro, 1999, p.248).
Para isso, os/as estudiosos/as tem pesquisado novas fontes como a memória
indígena, através de métodos e abordagens que rediscutem o contato
procura
recuperar o lugar e o protagonismo indígena nas relações coloniais.
Nessa perspectiva, é importante refletir sobre certas tendências de
reordenação sociocultural nas sociedades indígenas, focalizando-se o
papel nelas desempenhado por alguns mecanismos simbólico-ideológicos
e pela dinâmica das relações entre os componentes do campo de
intermediação entre as sociedades indígenas e a sociedade nacional.
(Idem, p. 44).
DISCUTINDO AS RELAÇÕES DO CONTATO: AS DIFERENTES ABORDAGENS
Como
explicar
os
“resultados”
dos
(des)encontros
entre
colonizadores?! Como explicar as (des)continuidades indígenas?
índios
e
Qual o futuro
dos povos indígenas? São questões sobre as quais vem se debruçando como
novos olhares antropólogos/as, historiadores/as, sociólogos/as, lingüísticas, etc.
No Brasil, atualmente, grosso modo, é possível reunindo em blocos,
identificar pelo menos duas teorias explicativas para essas questões. Uma primeira
corrente se baseia na idéia das resistências/mestiçagens, uma leitura do historiador
francês Serge Gruzinski (CNRS) que estudou o México colonial e em terras
brasileiras tem sido a referência, por exemplo, para os estudos de Ronaldo Vainfas
(UFF), como o seu conhecido livro A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no
Brasil colonial, onde esse autor utiliza ainda o conceito de hibridismo para explicar
as relações coloniais. Vainfas definiu as expressões religiosas indígenas como
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“idolatrias ajustadas”, aquelas realizadas no âmbito privado (a casa, o espaço
familiar, durante o trabalho na roça), e as “idolatrias insurgentes”, aqueles
movimentos muitas vezes de cunho messiânicos que reuniu contingentes indígenas
em guerras contra as forças coloniais.
Nessa visão, a colonização européia é vista como a ocidentalização do Novo
Mundo e as resistências resultam em culturas mestiças, ou seja, preconiza-se o fim
dos índios, enquanto povos com identidades étnicas próprias, com suas
incorporações ao sistema, a sociedade colonial. Uma defesa da aculturação, da
mestiçagem, da diluição cultural, da famosa tese da fusão das três raças para a
formação da sociedade brasileira como pensava Gilberto Freyre, em quem Vainfas
se apóia para escrever outros textos.
Em uma segunda corrente teórica, é possível reunir conceitos semelhantes
para
explicar
as
relações
adaptações/reelaborações/ressignificações,
de
contato,
que
pretendem
tais
como
explicar/responder:
como os índios interpretaram os códigos ocidentais a partir de seus universos
culturais e cosmologias? Essa corrente se fundamenta nos estudos antropológicos
mais recentes que discutem as relações culturais e as identidades em contextos
coloniais, vendo os indígenas como povos do presente, “às sociedades indígenas
como contemporâneas - as quais, em sua busca de identidade, apresentam-se
cada vez ativas e realizadoras num mundo em transformação”. (Wright, 2004, p.11).
Baseada nessa corrente existe uma produção bibliográfica considerável em
que os/as pesquisadores/as ainda que em suas diferentes perspectivas dialogam
com os recentes conceitos ora da História, ora da Antropologia nos estudos sobre
populações indígenas no Brasil. Na área da História, podemos citar os trabalhos de
John M. Monteiro (UNICAMP) que publicou Negros da terra, um novo estudo sobre
5
São Paulo colonial, evidenciando a importância da presença indígena e assim
questionando a visão laudatória da epopéia dos bandeirantes.
Por muito tempo, persistiu na historiografia a idéia que os aldeamentos
significaram o fim dos índios. Maria Regina Celestino de Almeida (UFF) com
Metamorfoses indígenas, a partir de uma nova abordagem das fontes, demonstrou
que os aldeamentos no Rio de Janeiro colonial foram espaços de negociações e
afirmação dos direitos indígenas.
Já na área da Antropologia, podemos destacar a coletânea História dos
índios no Brasil, organizada por Manuela Carneiro da Cunha (USP/Univ. Chicago)
como
também
outros
trabalhos
por
ela
publicados.
Os
estudos
de
Robin Wright (UNICAMP) sobre os povos na região do Alto Rio Negro (AM) são
também referências importantes, assim como as pesquisas que
João
Pacheco de Oliveira (MN/UFRJ) vem desenvolvendo nos últimos anos contribuindo
decisivamente para os debates sobre o “ressurgimento” dos povos indígenas no
Nordeste, onde as populações nativas foram consideradas por pesquisadores de
longas datas extintas, ou em fase de desaparecimento com a integração como
“caboclos” à população regional.
Uma discussão em torno das pesquisas sobre os povos indígenas, questiona
a idéia de uma história indígena com métodos de estudos próprios, uma história
específica desses povos isolada das relações coloniais (Oliveira, 1999, p.105-106).
É possível se fazer uma etno-história indígena? É possível se falar de etno-histórias
do Cristianismo? Acreditamos que não. E as situações que iremos tratar no item
seguinte comprovam isso.
CRISTIANISMOS E POVOS INDÍGENAS: PESQUISAS RECENTES
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Nesse item, baseamos nossas brevíssimas considerações em alguns dos
textos escolhidos nas duas coletâneas intituladas Transformando os deuses (1999;
2004), organizadas pelo Prof. Robin W. Wright (UNICAMP). Na primeira delas, com
o subtítulo “os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil”,
são discutidas as experiências de missões religiosas, em sua maioria católica
romana, entre os povos indígenas. Já na segunda, com o subtítulo “igrejas
evangélicas, pentecostais e neopentecostais entre os povos indígenas no Brasil”, os
artigos tratam das diversas missões de origens da Reforma Protestante e suas
atuações nas áreas indígenas.
Analisando as relações dos Baniwa com a ação religiosa fundamentalista da
Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) Wright afirmou que “coerentes com a sua
tradição profética, os Baniwa entenderam o processo inicial de conversão como um
rito de passagem, no modelo de iniciação, em que eles procuravam produzir uma
nova geração de crentes que, no entanto, enfrentou uma série de contradições na
medida em que a nova fé foi adaptada às preocupações religiosas preexistentes”.
(1999, p.12). (grifamos).
Na apresentação do Volume I da coletânea Transformando os deuses, Robin
Wright diante dos casos estudados afirma ser possível concluir que “as
preocupações indígenas têm moldado as maneiras com que os missionários
cristãos e seus ensinamentos foram compreendidos e interpretados”. E ainda, que
as mudanças provocadas pelos missionários nas culturas indígenas, sempre foram
“resultados de negociações” (1999, p.14).
A antropóloga Dominique Gallois e o antropólogo Luis Donizete (USP),
estudando as relações dos agentes do grupo religioso fundamentalista de origem
norte-americana MNTB, com os Zo’e (Pará) e os Waiãpi (Amapá), afirmaram,
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Concluímos que o resultado da atividade missionária depende mais da sua
eficácia nos programas de saúde, educação e/ou desenvolvimento
comunitário que o proselitismo religioso. É pela proteção e assistência que
elas conseguem inserir os grupos indígenas alcançados numa relação de
dependência ideológica, social e econômica, debilitando sua capacidade
de adaptação às relações com a sociedade envolvente. Concluímos
também pela distância radical entre as incorporações realizadas pelos
índios e os propósitos das missões. A revelação que elas propõe se quer
absoluta, ao passo que os índios escolhem adaptações, selecionando
fragmentos da mensagem. (Wright, 1999, p. 119) (Grifamos).
Os Wari (Pakaa Nova) em Rondônia foram “pacificados” em meados dos
anos 1950 pela agência governamental Serviço de Proteção ao Índio (SPI) com a
colaboração dos missionários da MNTB, como também a partir de meados dos
anos 1960 tiveram a atuação da Igreja Católica Romana em suas aldeias.
Aparecida Vilaça (MN/UFRJ) estudando a atuação dos missionários da MNTB junto
a esse povo observa as dificuldades da aceitação do Deus cristão, “os Wari não
aceitaram esse deus porque não existem deuses de qualquer espécie em sua
cosmologia” (Idem, p.138). E de forma semelhante aos pesquisadores da USP,
anteriormente citados, afirma,
Os Wari foram então apresentados, pela voz dos missionários, a esse Deus que
nunca experimentaram e sobre quem jamais haviam falado seus antepassados.
O que fizeram não foi estabelecer com ele uma relação de crença/dúvida, mas
digeri-lo, incorporá-lo ao seu universo, despindo-o de seus atributos divinos,
humanizando-o e afinizando-o. O Deus cristão tornou-se um personagem mítico
wari. Se os Wari o chamavam de pai em suas orações, o papel que lhe
reservaram em sua ‘cosmologia revistada’ foi de afim, e mau afim. (idem, p.139).
(Grifamos).
8
As conclusões desses estudos confirmam que os indígenas não são
passivos, mas atuam como sujeitos frente às diversas agências de contato, sejam
elas as missões religiosas em suas diferentes matizes, sejam as agências oficiais.
No segundo volume da coletânea Transformando os deuses, a preocupação
foi compreender “como os povos indígenas tem absorvido, rejeitado, transformado
ou ressignificado as doutrinas e práticas cristãs introduzidas entre eles por
missionários” (pentecostais e neopentecostais) (Wright, 2004, p. 7).
Segundo os estudos da Artionka Capiberibe, os Palikur moradores no Amapá
na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa, renegaram o catolicismo e em massa
aderiram ao cristianismo evangélico, por uma série de razões de desencontros
entre a teologia católica romana e a cosmologia Palikur.
Percebendo esses impasses as missões evangélicas de cunho proselitistas
se aproximaram dos Palikur usando como porta de entrada o tratamento de
doenças, “Ao interferirem nesse campo, com razoável sucesso devido aos efeitos
da alopatia, os missionários entraram diretamente no domínio dos xamãs e das
práticas xamânicas”. Mas os Palikur fizeram sua própria leitura dessa nova
situação, pois os missionários “passaram a ser vistos como uma espécie de xamãs
poderosos que possuíam um espírito auxiliar mais poderoso ainda, Deus”. (Id.,
p.59). Assim, uma missionária pentecostal americana “enfermeira” foi incorporada
no horizonte Palikur como uma xamã e suas ações como práticas xamânicas.
Os Palikur sempre acreditaram no sobrenatural e em algo semelhante a um
paraíso para além da vida terrena, e “No processo de evangelização, os Palikur
foram apresentados a algo que, de alguma forma, já lhes era familiar, o contato com
o sobrenatural”. (Id., p.96).
O paraíso cristão se assemelha
9
com um longínquo primordial palikur, cujas histórias de destruição e
recriação de mundos sucessivos (Palikur) se conectam diretamente à
cosmologia e mitologia bíblica. O modo pelo qual os Palikur concebem o
ser crente é amplo, contempla um universo de conhecimentos ancestrais
assentados em sua história. Foi nela que encontraram sentido para o novo
tipo de religião que lhes foi apresentado. (Id., p.96-97).
A pregação sobre o Espírito Santo como caminho para conversão, para uma
vida além da morte, um paraíso, foi entendida pelos indígenas como uma ligação
entre a cosmologia Palikur e a cristã.
A antropóloga Juracilda Veiga estudando os Kaingang (RS) que no passado
foram “católicos” e no presente se dizem “crentes” da Assembléia de Deus,
constatou que por serem organizados em metades fundadas em entidades míticas
que explicam seu mundo, entre eles as oposições de crenças “católica versus
crentes recoloca essa oposição própria da cosmovisão kaingang”. (Idem, p.19).
(Grifado no original).
Segundo a estudiosa “Do ponto de vista cosmológico de oposição
complementares, a dualidade Kamé e Kairu pode ser transportada para a oposição
católicos e evangélicos. Aos primeiros corresponderia o caráter conservador das
características antigas do povo Kaingang, e aos segundos, o caráter dinâmico,
moderno, empreendedor”. (Idem, p.196).
Assim um aspecto é expresso pela
manutenção dos rituais Kaingang antigos em contraste com a rigidez de conduta
para “crentes” índios convertidos. A afirmação dessas metades opositoras significa
na prática uma reconfiguração social indígena.
Uma situação até certo ponto com semelhanças é a dos Kaiowá em
Dourados (MS), povo de longo tempo de contato que vive profundas mudanças
culturais frente ao impacto das relações coloniais. Várias igrejas pentecostais
10
impedidas oficialmente de se instalaram na área indígena, investiram na formação
de jovens missionários índios que multiplicaram os pontos de pregação no interior
da Reserva de Dourados.
Para Levi Pereira “a conversão ao pentecostalismo é encarada pelos Kaiowá
como uma maneira de recompor formas de sociabilidade alteradas devidos às
transformações
históricas
recentes.
É
isso
que
permite
compreender
o
extraordinário crescimento dessas igrejas nos últimos anos” (Id., p.281) naquela
área indígena. Para o pesquisador ainda “A conversão ao pentecostalismo parece
ter, para muitos Kaiowá, o sentido de uma estratégia de reaproximação com a s
divindades para, a partir daí, recompor os espaços e formas de sociabilidade
através da vivência comunitária na igreja”. (Id., p.296).
Embora essa busca não ocorra sem conflitos, em uma polarização entre
tradicionais e crentes, onde os primeiros representados em grande parte pelos
xamãs acreditam encontrar na tradição soluções para os impasses em que vivem
em oposição à juventude e lideranças pentecostais se consideram “emissários de
uma novo tempo” e investem nas relações exógenas com saídas para situação em
que os Kaiowá se encontram. É nesse sentido que o pentecostalismo se apresenta
como possibilidade de uma reconstrução da sociabilidade indígena.
A apropriação pelos Terena (MS) do protestantismo americano foi estudada
por Noemia Moura e Osvaldo Zorzato: “lideranças indígenas crentes se apropriaram
do discurso e da prática dos protestantes norte-americanos e as estrutura da
Missão UNIEDAS”. (in, Wright, 2004, p. 303). As lideranças indígenas passaram a
utilizar a Missão como um instrumento político-religioso de ascensão e inclusão
social.
11
Em fins da década de 1990 após um conflito que se arrastava há algum
tempo, as lideranças “crentes” Terena, romperam com a União das Igrejas
Evangélicas da América do Sul (UNIEDAS) vinculada ao protestantismo dos
Estados Unidos e se apropriaram da estrutura da antiga missão, inclusive da rede
física, afirmando cada vez mais a autonomia, fundando novas comunidades
religiosas nas aldeias como a Igreja Independente Indígena Renovada. Essa
apropriação religiosa Terena permitiu “um movimento contínuo de inclusão e
ascensão das lideranças indígenas crentes”. (Id., 332).
A pesquisa constatou que os missionários indígenas passaram a ocupar
cargos de chefias de postos nas aldeias, além de em outros espaços públicos, a
exemplo do legislativo, bem como nos cursos universitários,
cuidaram da formação religiosa e produziram a formação escolar de seus
membros, o que lhes permitiu assumir vários cargos políticos e de
concurso: representam
o seu e os demais povos indígenas em
organismos municipais, estaduais e federais, governamentais e nãogovernamentais. Permitiu-lhes, numa palavra, ampliar os espaços
sociopolíticos, dentro e fora das áreas indígenas. (Id., 333).
A partir nas novas abordagens e novas concepções as fontes históricas
estão sendo revisitadas. Cristina Pompa em “Religião como tradução: missionários,
Tupi e Tapuia no Brasil colonial”, estudando as relações entre missionários e
indígenas no Sertão nordestino procurou fazer “uma
releitura da
história
da
evangelização... dos múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas...”,
onde a partir de sua análise constatou que “as
encontro
entre
fontes
revelam a dialética
do
índios e missionários... houve um constante trabalho de
transformação no plano das práticas e símbolos.” (Pompa, 2003, p.23). (Grifamos).
12
Segundo
essa
autora
ainda
“as fontes mostram, às vezes,
uma
surpreendente convergência de horizontes simbólicos”. Cabendo a o pesquisador
“recompor a dinâmica pela qual, absorvendo seletivamente a alteridade e seus
símbolos, os grupos indígenas do sertão do Nordeste tentaram reconstruir o
sentido do mundo”. (Id., p.31). (Grifamos). São estudos como esses que têm
contribuído de forma significativa para uma melhor compreensão das expressões
religiosas indígenas
no mundo das relações coloniais, acentuando os
protagonismos nativos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O CONCEBIDO, O VIVIDO, O EXPRESSADO.
Iniciamos nossas considerações finais retomando a discussão do começo
do texto, com uma citação de Egon Schaden que ao escrever “Religião guarani e
cristianismo”, afirmou,
Certo é que a religião de todos os grupos da tribo que hoje vivem no
Brasil, no Paraguai e na Argentina não é cristã, mas guarani. De tudo o
que de possível proveniência cristã se possa descobrir no conjunto de
suas crenças, ritos e cerimônias conservaram-se apenas aspectos
tangíveis e formais. O conteúdo é pagão. Entre índios cujos antepassados
estiveram direta ou indiretamente na órbita de
missionários,
ter-se-ía a
influência
dos
expectativa de encontrar pelo menos uma
mitologia sincrética em que todos os elementos bíblicos e outras
reminiscências cristãs estivessem amalgamados
com
os
relatos
autóctones. Mas o que na realidade se registrou foi um conjunto de
mitos que manteve o seu genuíno caráter aborígine. Nada do que se
depara na estrutura do pensamento mítico-religioso reflete a visão do
13
mundo que deve ter sido a dos jesuítas. (apud, Brandão, 1994, p.301302). (Grifamos).
Se por um lado a reflexão do renomado antropólogo reconhece e a
apropriação do cristianismo pelos indígenas, a partir de seus horizontes para
reafirmarem sua própria religião, por outro lado demonstra nossas dificuldades de
não-índios em entender a como ocorre esse processo.
Desde o início da colonização portuguesa no Brasil os missionários
mencionaram as constantes dificuldades para conversão total dos índios. A
exemplo do Ceará Colonial quando os Jesuítas lamentavam que mesmo após
longos anos de catequese os índios continuavam com suas prática pagãs. (Barros,
1997).
Em tempos recentes os missionários do Conselho Indigenista Missionário
que atuavam junto aos Fulni-ô em Águas Belas/PE, falavam da grande ênfase na
figura de Maria/Nossa Senhora em contraposição ao quase esquecimento de Jesus
nas rezas daquele povo. Os Fulni-ô que além da língua nativa tem como uma das
suas marcas identitárias, apesar de mais de quinhentos anos de catequese cristã, o
ritual do Ouricuri onde nenhum não-índio tem acesso, ao fazer essa ênfase não
está relacionando Maria com alguma importante divindade feminina Fulni-ô?
Os Xukuru do Ororubá (Pesqueira/PE), como demonstramos em outro texto
(Silva, 2002) participam anualmente da Festa de N. Sra. das Montanhas a quem
chamam “Nossa Mãe Tamain” no templo católico romano localizado na área
indígena onde outrora foi a implantada a missão dos Oratorianos. Com muita fé e
devoção, os Xukuru carregam o andor da procissão, participam ativamente da
missa, dançam o Toré dentro da igreja gritando “vivas a Mãe Tamain”. Eles afirmam
ser ela é uma cabocla, que lhes apóia na luta pelas suas terras, que a sua imagem
14
foi encontrada por um índio xukuru, em uma expressão clara da apropriação e
ressignificação de um símbolo cristão.
Os exemplos são vários, todavia “Não podemos ignorar os impactos
dramáticos, brutais e desmoralizantes do contato como um forte incentivo para
adotar estratégias de sobrevivência, apropriando-se de modelos externos, que
buscam reestruturar, ou ‘refundar’, o social” (Wright, 2004, p.26) (Grifamos). As
relações entre os povos indígenas e os cristianismos se tratam de situações
complexas. Até onde se pode falar de um cristianismo indígena? De índios cristãos?
Por essas razões se faz necessário estudar, aprofundar caso a caso.
No tocante as práticas missionárias, salvo os grupos fundamentalistas e
declaradamente proselitistas, as tradições cristãs históricas mudaram suas ações
em anos recentes. Para isso foi e são de fundamental importância os
questionamentos de antropólogos/as que põem em xeque as atuações das missões
religiosas nas áreas indígenas.
Em um balanço da ação missionária da Igreja Católica Romana nos últimos
60 anos (Prezia, 2003), foi constatado que a atuação catequética que durou até
1955 foi substituída pela “missão calada” e a denúncia dos missionários das
violências contra os indígenas. Essa fase perdurou até o início doa anos 1970. Em
seguida ocorreu até fins dos anos 1980 a fase da inculturação, onde
missionários/as tinham como objetivo conhecer profundamente e participar da vida
indígena reconhecendo e respeitando os valores e os modos de ser desses povos.
Nos anos 1990 iniciou uma outra fase que vigora até os dias atuais, onde o/a
missionário/a estabelece um diálogo inter-religioso com o povo indígena e tem o
papel de assessoria as demandas que surgirem.
15
Nas pesquisas sobre as relações entre os povos indígenas o os
cristianismos, os índios são vistos como sujeitos do processo em diferentes
contextos. A maioria deles se trata de situações de conflitos e tensões, por isso a
análise para um debate exige uma atenção apurada para o concebido, o vivido, o
expressado.
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