1 (publicado na revista Fragmentos de Cultura v.16 nº. 3/4, mar./abr. 2006, UCG, Goiânia/GO, p.219-231). ETNO-HISTÓRIAS DO CRISTIANISMO? NOTAS PARA UM DEBATE1 Edson Silva2 Resumo: em novas abordagens os índios são tratados como atores políticos. As visões cristalizadas sobre o contato e as relações coloniais foram revistas e dentre essas as atuações das missões religiosas. Estudos recentes têm demonstrado que os povos indígenas além de se apropriarem, optaram e ressignificaram a pregação das missões religiosas a partir de seus horizontes e interesses o que coloca em questão a eficácia da conversão ao cristianismo. Palavras-chave: índios, história, relações de contato, missões religiosas. UMA “NOVA HISTÓRIA” INDÍGENA: OS ÍNDIOS COMO ATORES SÓCIOHISTÓRICOS As observações a seguir de Mauro Cherobim sobre os Guarani no litoral do Estado de São Paulo, revelam certa perplexidade frente às dificuldades em entender as expressões religiosas indígenas, quase quinhentos anos depois de iniciado o contato, apesar da catequese religiosa que por muito tempo foi ministrada junto aquele povo. Analisando a situação o estudioso afirmou, Quanto às mudanças do sistema cultural. Encontramos toda a escala de variação. Alguns grupos mantiveram no essencial do seu antigo modo de vida. Outros foram já levados á beira da desintegração. Muitas mudanças que se observaram no sistema religioso datam do tempo das reduções, outras se devem a influências de época mais ou menos recente. De modo geral, a cultura guarani revela resistência aos efeitos das diferentes situações de contato. Sobretudo o caráter fundamental da religião se mostra particularmente imune ao contato com representantes do mundo cristão. Por muito tempo, ali, a adoção de elementos do cristianismo não decorreu de um real confronto de dois sistemas religiosos, mas reflete 1 Esse texto é uma versão da exposição na mesa-redonda “As etno-histórias do Cristianismo”, no Simpósio do CEHILA-Brasil, intitulado As muitas faces do Cristianismo, realizado de 29 a 31/08/05, nas dependências da Universidade Católica de Goiás/UCG, em Goiânia-GO. Acentue-se e advirta-se que foi conservado o caráter de “notas para um debate” que permeia o texto aqui apresentado. Agradecemos o convite da atual Diretoria, bem como a acolhida dos/as colegas do CEHILA-Brasil. 2 Doutorando em História Social da Cultura na UNICAMP. Mestre em História pela UFPE. Leciona História no Centro de Educação/Col. de Aplicação-UFPE. E-mail: [email protected]. br 2 uma estratégia para melhor conservar as crenças e os valores tradicionais. É uma forma de conceder para não ceder. (apud, Brandão, 1994, p.300). (Grifamos). As reflexões do pesquisador dos guaranis nos revelam também uma outra face da questão, é facilmente constatável que existem poucos estudos sobre as relações entre os povos indígenas e as diferentes formas do Cristianismo, seja o católico romano ou o reformado em suas múltiplas variações. E ainda, as missões religiosas em áreas indígenas é um tema pouco estudado. Na História do Brasil com as abordagens tradicionais, os povos indígenas ora são vistos como uma massa amorfa, vítimas de guerras coloniais genocidas, sendo os poucos sobreviventes, espécies em extinção, ora são tidos como primitivos em estado de barbárie, pagãos e por isso passíveis de serem catequizados/cristianizados, civilizados. Ou ainda, sobre aqueles povos habitantes em regiões de maior tempo de colonização, aplicam-se os desatualizados conceitos de aculturação e integração a sociedade nacional. Enfim, uma cegueira eurocêntrica, etnocêntrica baseada no evolucionismo, impede de ver esses povos como sujeitos da/na História. Assim é que, A recusa etnocêntrica da contemporaneidade de sociedades de orientação cultural diversa tem sedimentado uma visão quase sempre negativa das sociedades indígenas. Na postura ideológica predominante, os índios não contam para o nosso futuro, já que são considerados uma excrescência arcaica, ainda que teimosa, de uma “pré-brasilidade”. (Arruda, 2001, p.43). As mudanças conceituais e de abordagens no campo da Antropologia, no que diz respeito à cultura, as relações culturais, territorialização, etc. questionaram uma história colonial triunfalista. Além disso, as permanências dos povos indígenas colocaram em xeque os estudos tradicionais. Foi necessário desconstruir imagens até então sedimentadas sobre a História e esses povos. Os novos estudos são 3 pautados por outras preocupações, “Importa recuperar o sujeito histórico que agia (age) de acordo com a sua leitura do mundo ao seu redor, leitura esta informada tanto pelos códigos culturais da sua sociedade como pela percepção e interpretação dos eventos que se desenrolavam”. (Monteiro, 1999, p.248). Para isso, os/as estudiosos/as tem pesquisado novas fontes como a memória indígena, através de métodos e abordagens que rediscutem o contato procura recuperar o lugar e o protagonismo indígena nas relações coloniais. Nessa perspectiva, é importante refletir sobre certas tendências de reordenação sociocultural nas sociedades indígenas, focalizando-se o papel nelas desempenhado por alguns mecanismos simbólico-ideológicos e pela dinâmica das relações entre os componentes do campo de intermediação entre as sociedades indígenas e a sociedade nacional. (Idem, p. 44). DISCUTINDO AS RELAÇÕES DO CONTATO: AS DIFERENTES ABORDAGENS Como explicar os “resultados” dos (des)encontros entre colonizadores?! Como explicar as (des)continuidades indígenas? índios e Qual o futuro dos povos indígenas? São questões sobre as quais vem se debruçando como novos olhares antropólogos/as, historiadores/as, sociólogos/as, lingüísticas, etc. No Brasil, atualmente, grosso modo, é possível reunindo em blocos, identificar pelo menos duas teorias explicativas para essas questões. Uma primeira corrente se baseia na idéia das resistências/mestiçagens, uma leitura do historiador francês Serge Gruzinski (CNRS) que estudou o México colonial e em terras brasileiras tem sido a referência, por exemplo, para os estudos de Ronaldo Vainfas (UFF), como o seu conhecido livro A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial, onde esse autor utiliza ainda o conceito de hibridismo para explicar as relações coloniais. Vainfas definiu as expressões religiosas indígenas como 4 “idolatrias ajustadas”, aquelas realizadas no âmbito privado (a casa, o espaço familiar, durante o trabalho na roça), e as “idolatrias insurgentes”, aqueles movimentos muitas vezes de cunho messiânicos que reuniu contingentes indígenas em guerras contra as forças coloniais. Nessa visão, a colonização européia é vista como a ocidentalização do Novo Mundo e as resistências resultam em culturas mestiças, ou seja, preconiza-se o fim dos índios, enquanto povos com identidades étnicas próprias, com suas incorporações ao sistema, a sociedade colonial. Uma defesa da aculturação, da mestiçagem, da diluição cultural, da famosa tese da fusão das três raças para a formação da sociedade brasileira como pensava Gilberto Freyre, em quem Vainfas se apóia para escrever outros textos. Em uma segunda corrente teórica, é possível reunir conceitos semelhantes para explicar as relações adaptações/reelaborações/ressignificações, de contato, que pretendem tais como explicar/responder: como os índios interpretaram os códigos ocidentais a partir de seus universos culturais e cosmologias? Essa corrente se fundamenta nos estudos antropológicos mais recentes que discutem as relações culturais e as identidades em contextos coloniais, vendo os indígenas como povos do presente, “às sociedades indígenas como contemporâneas - as quais, em sua busca de identidade, apresentam-se cada vez ativas e realizadoras num mundo em transformação”. (Wright, 2004, p.11). Baseada nessa corrente existe uma produção bibliográfica considerável em que os/as pesquisadores/as ainda que em suas diferentes perspectivas dialogam com os recentes conceitos ora da História, ora da Antropologia nos estudos sobre populações indígenas no Brasil. Na área da História, podemos citar os trabalhos de John M. Monteiro (UNICAMP) que publicou Negros da terra, um novo estudo sobre 5 São Paulo colonial, evidenciando a importância da presença indígena e assim questionando a visão laudatória da epopéia dos bandeirantes. Por muito tempo, persistiu na historiografia a idéia que os aldeamentos significaram o fim dos índios. Maria Regina Celestino de Almeida (UFF) com Metamorfoses indígenas, a partir de uma nova abordagem das fontes, demonstrou que os aldeamentos no Rio de Janeiro colonial foram espaços de negociações e afirmação dos direitos indígenas. Já na área da Antropologia, podemos destacar a coletânea História dos índios no Brasil, organizada por Manuela Carneiro da Cunha (USP/Univ. Chicago) como também outros trabalhos por ela publicados. Os estudos de Robin Wright (UNICAMP) sobre os povos na região do Alto Rio Negro (AM) são também referências importantes, assim como as pesquisas que João Pacheco de Oliveira (MN/UFRJ) vem desenvolvendo nos últimos anos contribuindo decisivamente para os debates sobre o “ressurgimento” dos povos indígenas no Nordeste, onde as populações nativas foram consideradas por pesquisadores de longas datas extintas, ou em fase de desaparecimento com a integração como “caboclos” à população regional. Uma discussão em torno das pesquisas sobre os povos indígenas, questiona a idéia de uma história indígena com métodos de estudos próprios, uma história específica desses povos isolada das relações coloniais (Oliveira, 1999, p.105-106). É possível se fazer uma etno-história indígena? É possível se falar de etno-histórias do Cristianismo? Acreditamos que não. E as situações que iremos tratar no item seguinte comprovam isso. CRISTIANISMOS E POVOS INDÍGENAS: PESQUISAS RECENTES 6 Nesse item, baseamos nossas brevíssimas considerações em alguns dos textos escolhidos nas duas coletâneas intituladas Transformando os deuses (1999; 2004), organizadas pelo Prof. Robin W. Wright (UNICAMP). Na primeira delas, com o subtítulo “os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil”, são discutidas as experiências de missões religiosas, em sua maioria católica romana, entre os povos indígenas. Já na segunda, com o subtítulo “igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais entre os povos indígenas no Brasil”, os artigos tratam das diversas missões de origens da Reforma Protestante e suas atuações nas áreas indígenas. Analisando as relações dos Baniwa com a ação religiosa fundamentalista da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) Wright afirmou que “coerentes com a sua tradição profética, os Baniwa entenderam o processo inicial de conversão como um rito de passagem, no modelo de iniciação, em que eles procuravam produzir uma nova geração de crentes que, no entanto, enfrentou uma série de contradições na medida em que a nova fé foi adaptada às preocupações religiosas preexistentes”. (1999, p.12). (grifamos). Na apresentação do Volume I da coletânea Transformando os deuses, Robin Wright diante dos casos estudados afirma ser possível concluir que “as preocupações indígenas têm moldado as maneiras com que os missionários cristãos e seus ensinamentos foram compreendidos e interpretados”. E ainda, que as mudanças provocadas pelos missionários nas culturas indígenas, sempre foram “resultados de negociações” (1999, p.14). A antropóloga Dominique Gallois e o antropólogo Luis Donizete (USP), estudando as relações dos agentes do grupo religioso fundamentalista de origem norte-americana MNTB, com os Zo’e (Pará) e os Waiãpi (Amapá), afirmaram, 7 Concluímos que o resultado da atividade missionária depende mais da sua eficácia nos programas de saúde, educação e/ou desenvolvimento comunitário que o proselitismo religioso. É pela proteção e assistência que elas conseguem inserir os grupos indígenas alcançados numa relação de dependência ideológica, social e econômica, debilitando sua capacidade de adaptação às relações com a sociedade envolvente. Concluímos também pela distância radical entre as incorporações realizadas pelos índios e os propósitos das missões. A revelação que elas propõe se quer absoluta, ao passo que os índios escolhem adaptações, selecionando fragmentos da mensagem. (Wright, 1999, p. 119) (Grifamos). Os Wari (Pakaa Nova) em Rondônia foram “pacificados” em meados dos anos 1950 pela agência governamental Serviço de Proteção ao Índio (SPI) com a colaboração dos missionários da MNTB, como também a partir de meados dos anos 1960 tiveram a atuação da Igreja Católica Romana em suas aldeias. Aparecida Vilaça (MN/UFRJ) estudando a atuação dos missionários da MNTB junto a esse povo observa as dificuldades da aceitação do Deus cristão, “os Wari não aceitaram esse deus porque não existem deuses de qualquer espécie em sua cosmologia” (Idem, p.138). E de forma semelhante aos pesquisadores da USP, anteriormente citados, afirma, Os Wari foram então apresentados, pela voz dos missionários, a esse Deus que nunca experimentaram e sobre quem jamais haviam falado seus antepassados. O que fizeram não foi estabelecer com ele uma relação de crença/dúvida, mas digeri-lo, incorporá-lo ao seu universo, despindo-o de seus atributos divinos, humanizando-o e afinizando-o. O Deus cristão tornou-se um personagem mítico wari. Se os Wari o chamavam de pai em suas orações, o papel que lhe reservaram em sua ‘cosmologia revistada’ foi de afim, e mau afim. (idem, p.139). (Grifamos). 8 As conclusões desses estudos confirmam que os indígenas não são passivos, mas atuam como sujeitos frente às diversas agências de contato, sejam elas as missões religiosas em suas diferentes matizes, sejam as agências oficiais. No segundo volume da coletânea Transformando os deuses, a preocupação foi compreender “como os povos indígenas tem absorvido, rejeitado, transformado ou ressignificado as doutrinas e práticas cristãs introduzidas entre eles por missionários” (pentecostais e neopentecostais) (Wright, 2004, p. 7). Segundo os estudos da Artionka Capiberibe, os Palikur moradores no Amapá na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa, renegaram o catolicismo e em massa aderiram ao cristianismo evangélico, por uma série de razões de desencontros entre a teologia católica romana e a cosmologia Palikur. Percebendo esses impasses as missões evangélicas de cunho proselitistas se aproximaram dos Palikur usando como porta de entrada o tratamento de doenças, “Ao interferirem nesse campo, com razoável sucesso devido aos efeitos da alopatia, os missionários entraram diretamente no domínio dos xamãs e das práticas xamânicas”. Mas os Palikur fizeram sua própria leitura dessa nova situação, pois os missionários “passaram a ser vistos como uma espécie de xamãs poderosos que possuíam um espírito auxiliar mais poderoso ainda, Deus”. (Id., p.59). Assim, uma missionária pentecostal americana “enfermeira” foi incorporada no horizonte Palikur como uma xamã e suas ações como práticas xamânicas. Os Palikur sempre acreditaram no sobrenatural e em algo semelhante a um paraíso para além da vida terrena, e “No processo de evangelização, os Palikur foram apresentados a algo que, de alguma forma, já lhes era familiar, o contato com o sobrenatural”. (Id., p.96). O paraíso cristão se assemelha 9 com um longínquo primordial palikur, cujas histórias de destruição e recriação de mundos sucessivos (Palikur) se conectam diretamente à cosmologia e mitologia bíblica. O modo pelo qual os Palikur concebem o ser crente é amplo, contempla um universo de conhecimentos ancestrais assentados em sua história. Foi nela que encontraram sentido para o novo tipo de religião que lhes foi apresentado. (Id., p.96-97). A pregação sobre o Espírito Santo como caminho para conversão, para uma vida além da morte, um paraíso, foi entendida pelos indígenas como uma ligação entre a cosmologia Palikur e a cristã. A antropóloga Juracilda Veiga estudando os Kaingang (RS) que no passado foram “católicos” e no presente se dizem “crentes” da Assembléia de Deus, constatou que por serem organizados em metades fundadas em entidades míticas que explicam seu mundo, entre eles as oposições de crenças “católica versus crentes recoloca essa oposição própria da cosmovisão kaingang”. (Idem, p.19). (Grifado no original). Segundo a estudiosa “Do ponto de vista cosmológico de oposição complementares, a dualidade Kamé e Kairu pode ser transportada para a oposição católicos e evangélicos. Aos primeiros corresponderia o caráter conservador das características antigas do povo Kaingang, e aos segundos, o caráter dinâmico, moderno, empreendedor”. (Idem, p.196). Assim um aspecto é expresso pela manutenção dos rituais Kaingang antigos em contraste com a rigidez de conduta para “crentes” índios convertidos. A afirmação dessas metades opositoras significa na prática uma reconfiguração social indígena. Uma situação até certo ponto com semelhanças é a dos Kaiowá em Dourados (MS), povo de longo tempo de contato que vive profundas mudanças culturais frente ao impacto das relações coloniais. Várias igrejas pentecostais 10 impedidas oficialmente de se instalaram na área indígena, investiram na formação de jovens missionários índios que multiplicaram os pontos de pregação no interior da Reserva de Dourados. Para Levi Pereira “a conversão ao pentecostalismo é encarada pelos Kaiowá como uma maneira de recompor formas de sociabilidade alteradas devidos às transformações históricas recentes. É isso que permite compreender o extraordinário crescimento dessas igrejas nos últimos anos” (Id., p.281) naquela área indígena. Para o pesquisador ainda “A conversão ao pentecostalismo parece ter, para muitos Kaiowá, o sentido de uma estratégia de reaproximação com a s divindades para, a partir daí, recompor os espaços e formas de sociabilidade através da vivência comunitária na igreja”. (Id., p.296). Embora essa busca não ocorra sem conflitos, em uma polarização entre tradicionais e crentes, onde os primeiros representados em grande parte pelos xamãs acreditam encontrar na tradição soluções para os impasses em que vivem em oposição à juventude e lideranças pentecostais se consideram “emissários de uma novo tempo” e investem nas relações exógenas com saídas para situação em que os Kaiowá se encontram. É nesse sentido que o pentecostalismo se apresenta como possibilidade de uma reconstrução da sociabilidade indígena. A apropriação pelos Terena (MS) do protestantismo americano foi estudada por Noemia Moura e Osvaldo Zorzato: “lideranças indígenas crentes se apropriaram do discurso e da prática dos protestantes norte-americanos e as estrutura da Missão UNIEDAS”. (in, Wright, 2004, p. 303). As lideranças indígenas passaram a utilizar a Missão como um instrumento político-religioso de ascensão e inclusão social. 11 Em fins da década de 1990 após um conflito que se arrastava há algum tempo, as lideranças “crentes” Terena, romperam com a União das Igrejas Evangélicas da América do Sul (UNIEDAS) vinculada ao protestantismo dos Estados Unidos e se apropriaram da estrutura da antiga missão, inclusive da rede física, afirmando cada vez mais a autonomia, fundando novas comunidades religiosas nas aldeias como a Igreja Independente Indígena Renovada. Essa apropriação religiosa Terena permitiu “um movimento contínuo de inclusão e ascensão das lideranças indígenas crentes”. (Id., 332). A pesquisa constatou que os missionários indígenas passaram a ocupar cargos de chefias de postos nas aldeias, além de em outros espaços públicos, a exemplo do legislativo, bem como nos cursos universitários, cuidaram da formação religiosa e produziram a formação escolar de seus membros, o que lhes permitiu assumir vários cargos políticos e de concurso: representam o seu e os demais povos indígenas em organismos municipais, estaduais e federais, governamentais e nãogovernamentais. Permitiu-lhes, numa palavra, ampliar os espaços sociopolíticos, dentro e fora das áreas indígenas. (Id., 333). A partir nas novas abordagens e novas concepções as fontes históricas estão sendo revisitadas. Cristina Pompa em “Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial”, estudando as relações entre missionários e indígenas no Sertão nordestino procurou fazer “uma releitura da história da evangelização... dos múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas...”, onde a partir de sua análise constatou que “as encontro entre fontes revelam a dialética do índios e missionários... houve um constante trabalho de transformação no plano das práticas e símbolos.” (Pompa, 2003, p.23). (Grifamos). 12 Segundo essa autora ainda “as fontes mostram, às vezes, uma surpreendente convergência de horizontes simbólicos”. Cabendo a o pesquisador “recompor a dinâmica pela qual, absorvendo seletivamente a alteridade e seus símbolos, os grupos indígenas do sertão do Nordeste tentaram reconstruir o sentido do mundo”. (Id., p.31). (Grifamos). São estudos como esses que têm contribuído de forma significativa para uma melhor compreensão das expressões religiosas indígenas no mundo das relações coloniais, acentuando os protagonismos nativos. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O CONCEBIDO, O VIVIDO, O EXPRESSADO. Iniciamos nossas considerações finais retomando a discussão do começo do texto, com uma citação de Egon Schaden que ao escrever “Religião guarani e cristianismo”, afirmou, Certo é que a religião de todos os grupos da tribo que hoje vivem no Brasil, no Paraguai e na Argentina não é cristã, mas guarani. De tudo o que de possível proveniência cristã se possa descobrir no conjunto de suas crenças, ritos e cerimônias conservaram-se apenas aspectos tangíveis e formais. O conteúdo é pagão. Entre índios cujos antepassados estiveram direta ou indiretamente na órbita de missionários, ter-se-ía a influência dos expectativa de encontrar pelo menos uma mitologia sincrética em que todos os elementos bíblicos e outras reminiscências cristãs estivessem amalgamados com os relatos autóctones. Mas o que na realidade se registrou foi um conjunto de mitos que manteve o seu genuíno caráter aborígine. Nada do que se depara na estrutura do pensamento mítico-religioso reflete a visão do 13 mundo que deve ter sido a dos jesuítas. (apud, Brandão, 1994, p.301302). (Grifamos). Se por um lado a reflexão do renomado antropólogo reconhece e a apropriação do cristianismo pelos indígenas, a partir de seus horizontes para reafirmarem sua própria religião, por outro lado demonstra nossas dificuldades de não-índios em entender a como ocorre esse processo. Desde o início da colonização portuguesa no Brasil os missionários mencionaram as constantes dificuldades para conversão total dos índios. A exemplo do Ceará Colonial quando os Jesuítas lamentavam que mesmo após longos anos de catequese os índios continuavam com suas prática pagãs. (Barros, 1997). Em tempos recentes os missionários do Conselho Indigenista Missionário que atuavam junto aos Fulni-ô em Águas Belas/PE, falavam da grande ênfase na figura de Maria/Nossa Senhora em contraposição ao quase esquecimento de Jesus nas rezas daquele povo. Os Fulni-ô que além da língua nativa tem como uma das suas marcas identitárias, apesar de mais de quinhentos anos de catequese cristã, o ritual do Ouricuri onde nenhum não-índio tem acesso, ao fazer essa ênfase não está relacionando Maria com alguma importante divindade feminina Fulni-ô? Os Xukuru do Ororubá (Pesqueira/PE), como demonstramos em outro texto (Silva, 2002) participam anualmente da Festa de N. Sra. das Montanhas a quem chamam “Nossa Mãe Tamain” no templo católico romano localizado na área indígena onde outrora foi a implantada a missão dos Oratorianos. Com muita fé e devoção, os Xukuru carregam o andor da procissão, participam ativamente da missa, dançam o Toré dentro da igreja gritando “vivas a Mãe Tamain”. Eles afirmam ser ela é uma cabocla, que lhes apóia na luta pelas suas terras, que a sua imagem 14 foi encontrada por um índio xukuru, em uma expressão clara da apropriação e ressignificação de um símbolo cristão. Os exemplos são vários, todavia “Não podemos ignorar os impactos dramáticos, brutais e desmoralizantes do contato como um forte incentivo para adotar estratégias de sobrevivência, apropriando-se de modelos externos, que buscam reestruturar, ou ‘refundar’, o social” (Wright, 2004, p.26) (Grifamos). As relações entre os povos indígenas e os cristianismos se tratam de situações complexas. Até onde se pode falar de um cristianismo indígena? De índios cristãos? Por essas razões se faz necessário estudar, aprofundar caso a caso. No tocante as práticas missionárias, salvo os grupos fundamentalistas e declaradamente proselitistas, as tradições cristãs históricas mudaram suas ações em anos recentes. Para isso foi e são de fundamental importância os questionamentos de antropólogos/as que põem em xeque as atuações das missões religiosas nas áreas indígenas. Em um balanço da ação missionária da Igreja Católica Romana nos últimos 60 anos (Prezia, 2003), foi constatado que a atuação catequética que durou até 1955 foi substituída pela “missão calada” e a denúncia dos missionários das violências contra os indígenas. Essa fase perdurou até o início doa anos 1970. Em seguida ocorreu até fins dos anos 1980 a fase da inculturação, onde missionários/as tinham como objetivo conhecer profundamente e participar da vida indígena reconhecendo e respeitando os valores e os modos de ser desses povos. Nos anos 1990 iniciou uma outra fase que vigora até os dias atuais, onde o/a missionário/a estabelece um diálogo inter-religioso com o povo indígena e tem o papel de assessoria as demandas que surgirem. 15 Nas pesquisas sobre as relações entre os povos indígenas o os cristianismos, os índios são vistos como sujeitos do processo em diferentes contextos. A maioria deles se trata de situações de conflitos e tensões, por isso a análise para um debate exige uma atenção apurada para o concebido, o vivido, o expressado. REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. (2001). Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Editora do Arquivo Nacional. ARRUDA, Rinaldo S. V. (2001). Imagens do índio: signos da intolerância. In, GRUPIONI, Luís D. B.; VIDAL, Lux; FISCHMANN, Roseli. (Orgs.). Povos indígenas e intolerância: construindo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo, Edusp, p.43-61. BARROS, Paulo S. (1997). 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