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OPUS
15∙1
OPUS ∙ REVISTA DA ANPPOM
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
Editores
Rogério Budasz (University of California, Riverside, EUA) - Editor-Chefe
Conselho Executivo
Acácio Piedade (UDESC)
Carlos Palombini (UFMG)
Norton Dudeque (UFPR)
Paulo Castagna (UNESP)
Conselho Consultivo
Bryan McCann (Georgetown University, EUA)
Carole Gubernikoff (UNIRIO)
Cristina Magaldi (Towson University, EUA)
Diana Santiago (UFBA)
Elizabeth Travassos (UNIRIO)
Graça Boal Palheiros (Instituto Politécnico do Porto)
John P. Murphy (University of North Texas, EUA)
Luciana Del Ben (UFRGS)
Manuel Pedro Ferreira (Universidade Nova de Lisboa)
Pablo Fessel (Universidad Nacional del Litoral, Argentina)
Paulo Costa Lima (UFBA)
Projeto Gráfico e Editoração
Rogério Budasz
Capa
Tuti Fornari, ver artigo à página 59.
Opus : Revista da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música – ANPPOM – v. 15, n. 1 (jun. 2009) – Goiânia (GO) : ANPPOM, 2009
Semestral
ISSN – 0103-7412
1. Música – Periódicos. 2. Musicologia. 3. Composição (Música). 4. Música –
Instrução e Ensino. 5. Música – Interpretação. I. ANPPOM- Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. II. Título
OPUS
REVISTA DA ANPPOM
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
VOLUME 15 ∙ NÚMERO 1 ∙ JUNHO 2009
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
Diretoria 2009-2011
Presidente: Sonia Ray (UFG)
1a Secretária: Lia Tomás (UNESP)
2a Secretária: Cláudia Zanini (UFG)
Tesoureira: Sonia Albano de Lima (FCG)
Conselho Fiscal
Denise Garcia (UNICAMP)
Martha Ulhôa (UNIRIO)
Ricardo Freire (UnB)
Claudia Zanini (UFG)
Jonatas Manzolli (UNICAMP)
Fausto Borém (UFMG)
Conselho Editorial
Rogério Budasz (UCR)
Paulo Castagna (UNESP)
Norton Dudeque (UFPR)
Acácio Piedade (UDESC)
sumário
volume 15 • número 1 • junho 2009
Carta do Editor
6
ATUALIDADE
An interview with the composer Sérgio Roberto de Oliveira.
Tom Moore.
8
Os estilhaços da orquestra. Resenha do livro de
Bernard Lehmann, L’orquestre dans tous ses éclats.
Marcos Câmara de Castro.
23
Soul brasileiro e funk carioca. Artigo-Resenha.
Carlos Palombini.
37
Música Soul.
David Brackett.
62
ARTIGOS DE PESQUISA
O mapeamento sinestésico do gesto artístico em objeto sonoro.
José Fornari; Jônatas Manzolli; Mariana Shellard.
69
O tratamento documental dos arquivos musicais e a
busca de práticas comuns no tratamento da música brasileira
para orquestra.
Maurício Marques de Faria.
85
Música e políticas socioculturais:
a contribuição do canto coral para a inclusão social.
Rita de Cássia Fucci Amato.
91
Por que vamos ensinar música na escola?
Reflexões sobre conceitos, funções e valores da
educação musical escolar.
Ana Carolina Nunes do Couto; Israel Rodrigues Souza Santos.
110
O método Da Capo na aprendizagem inicial da
Filarmônica do Divino, Sergipe. Marcos dos Santos Moreira.
126
Instruções para autores
141
carta do editor
E
m 2009 Marlos Nobre comemora 70 anos. É também o ano em que
lembramos os 50 anos da morte de Villa-Lobos e os 20 anos da morte de
Cláudio Santoro e Lindembergue Cardoso. E em dezembro de 2009 a OPUS
faz 20 anos. Embora a maioria de nós hoje atuando na área tenha entrado mais tarde,
senão no mundo da música pelo menos no da pesquisa em música, todos os autores
que participaram do número inaugural da OPUS continuam firmes e atuantes, alguns
mesmo após a aposentadoria, outros mesmo após um redirecionamento em seus
interesses. Em 1989 alguns daqueles autores estavam em início de carreira, numa
época em que os cursos de pós-graduação em música eram poucos e as bolsas
limitadas. Outros já exibiam um sólido histórico de pesquisas e publicações. Vinte
anos depois, o volume 15 da OPUS também apresenta a mesma diversificação em
seu índice de artigos, talvez com uma amplitude maior nos enfoques. É bem provável
(jamais diríamos com certeza) que em 1989 artigos como os de Brackett e Palombini
e do trio Fornari, Manzolli e Shellard não fossem recebidos na Academia de forma
tão natural como hoje. Estudos utilizando modelos computacionais para desvendar
aspectos da performance musical e estudos abordando segmentos estigmatizados da
música popular poderiam aparecer excepcionalmente durante a década de 1980, mas
hoje fazem parte do cotidiano de vários programas de pós-graduação em música no
Brasil. A Educação Musical permanece como uma das subáreas mais fortes e bemestruturadas da pesquisa em música e isso fica evidente nos três artigos desse
número, abordando aspectos práticos (Moreira), filosóficos (Couto, Santos), sociais e
políticos (Fucci Amato) dessa disciplina. Completa o número uma reflexão sobre o
sempre-presente problema do armazenamento e catalogação de manuscritos
musicais (Faria), uma entrevista com o compositor Sérgio Roberto de Oliveira
(Moore), e uma resenha sobre o pertinente livro de Bernard Lehmann (Castro),
fazendo uma etnografia da orquestra sinfônica.
Rogério Budasz
An interview with the composer Sérgio Roberto de Oliveira
Tom Moore (Duke University)
S
érgio Roberto de Oliveira is now in the second decade of a very active career as
composer. The last year has included a semester as visiting Mellon Artist-inResidence at Duke University (Spring 2009), where he composed works for faculty
member Susan Fancher, saxophone, and the Ciompi Quartet, both premiered at Duke on
April 25, 2009, as well as a new work for Carioca flutist Maria Carolina Cavalcanti. My
previous interviews with Oliveira have appeared in the periodical 21st Century Music, as well
as at the website MusicaBrasileira.org.
The present interview took place at A Casa Estudio, Rio de Janeiro, August 1, 2008.
.......................................................................................
MOORE, Tom; OLIVEIRA, Sérgio Roberto de. An interview with the composer Sérgio Roberto
de Oliveira. Opus, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 8-22, jun. 2009.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . MOORE; OLIVEIRA
Tom Moore: In the United States the eighties and nineties saw a turning-away from the avantgarde, and from high-modernism. How do you see this dynamic playing out in the Brazil of the
same period?
Sérgio Roberto de Oliveira: As you know, I was born in 1970, and I feel much more
comfortable talking about what I personally experienced than about what I studied, but I
can give you my point of view from the moment when I started to follow contemporary
music more closely. First, there is the problem of vanguards in general. I think that after
the seventies in Brazil people had exhausted what they had to say that was new. I have a
problem with this idea of “avant-garde” today. I am very suspicious of someone who says
that he is going to make a complete break, to do something completely new, because we
have already experimented with almost everything. I hear concerts of electroacoustic
music, which theoretically would be avant-garde, and I heard old music. I hear music that
sounds like it is at least twenty or thirty years old.
From the end of the eighties on you have a mixture of everything. If, before, someone
was considered better because he was part of the avant-garde, with all other styles
thought to be inferior, now we see all these styles happening at the same time. Brazilian
music privileges communication and avant-gardes don't communicate. On the contrary,
they shock to communicate via alienation. My generation, and the generation before
mine, has a relationship to the idea of contemporary music that is a little different. Even at
the university, there are professors talking a great deal about theory of communication,
which points you in a certain direction. Not in the sense of making the music easier, but
to have tools that are more efficient in accomplishing what you want with the public. As a
student, before I became a composer, I was already interested in dialectics, mathematics,
philosophy, trying to understand how music as an artistic expression relating to the public
could take place.
I think that the path that we are on today, where I am working each day, and that is the
path of Brazilian culture, with sponsors, the Lei Rouanet ... it is important to say this,
because without money, you can't eat, make music, make culture - is that of providing
access. If you are going to provide access for the public, you have to communicate. I think
that the trend has been to make music that communicates more.
In my own work I have used techniques that in another time might have been avantgarde, and which still may not be very palatable to the public, but using elements which
communicate. For example, my piece premiered last year in England, which is a
dodecaphonic frevo. The recorderist himself, John Turner, a great musician, and very
experienced, told me after the premiere, “I didn't know that it was twelve-tone”. And it
was. The question of communication comes before the flags of the various esthetic
schools. This is the big difference today.
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Interview with Sérgio Roberto de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
When you see people doing things that might be considered “avant-garde”, and which
are in fact rather “passé”, they are usually trying to use humor as a means of
communication. A few years ago at the Bienal [of contemporary music in Rio de Janeiro]
there was a piece which was a game on the stage, like a sort of tennis match, by Leo
Fuchs, and which was simply a big joke. He was communicating through irony and humor.
I see Tim Rescala doing this as well.
The word of the moment is communication, because we are increasingly realizing that
access, getting through to the public, is important.
TM: It used to be that you could imagine classical music as an island without connections to other
musical universes. Someone could be trained in classical music, without ever getting into any sort
of popular music, rock.... anything that wasn't classical. For your generation there is no such thing
as a classical music uncontaminated by other possibilities.
SRO: True. What sometimes escapes people when they are thinking about nationalism in
music is that the European model is one without contamination, because in Europe there
is a tradition of classical music which is very strong and very old, much stronger than the
model for popular music. In making a national music, more than trying to reproduce
folkloric music, something which had its moment in Brazil, we are thinking about how
people behave culturally. You can take musicians who specialize in Baroque music, like
our friend Laura Rónai, and who nevertheless knows the songs of Chico Buarque,
because she hears them on the radio, she relates to them, knows how to sing them... and
so our culture is a culture of mixture, a complete mixture. Especially in Rio de Janeiro,
and in the great capitals, you have a mixture of the popular, the erudite, and the
intellectual in your day-to-day life. What happens in music is only a reflection of what is
going on in the street daily. It's true that this generation has heard ever more popular
music, but this is also the case with imported music. Around the world there is this trend
to incorporate jazz and rock into classical music.
Fundamentally, though, in Brazil we are trying to express in our music what we have in
our culture. You won't be able to find a classical composer who is not in continuous and
direct contact with popular music, with popular culture. When I talk about culture, I am
talking about everything, from what people eat, to how they talk - it all affects us. I think
there will always be an oscillation, but for the moment all of our different esthetic and
compositional trends are taking place at the same time. We don't have one group that is
putting down another group.
TM: Whereas it used to be the case that if you were a serialist, you couldn't admit that there was
anything of value in a more romantic school, and vice versa.
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SRO: I recall that a professor of mine at the university mentioned that he received an
application form for the Bienal or something like that, where he had to talk about his
music, and they asked what esthetic school he belonged to, and he said he didn't know
what to put down. I was studying with him in the early nineties, and this took place in the
late eighties, so people were still thinking with those attitudes of the seventies.
For me, mixing samba with classical music is no different from mixing different schools,
esthetics in the same piece. It's possible.
TM: The question of mixture of styles has been around in Brazil at least since the time of Jackson do
Pandeiro.
SRO: In fact it goes back, as far as I know to the modernist movement towards the
beginning of the last century, with Oswald Andrade, which was just a bringing to
awareness of what we have always done. Brazil is a culture of immigrants. Comparing it
with the culture in the United States, a country that I have visited numerous times, I see
that in the United States people are much more concerned to keep their roots intact, as
is this case for Jewish culture as well. In Brazil these roots don't last more than one or
two generations, because people really do mix. Someone's great-grandfather may have
come from Africa, but he is Brazilian. If you listen to black Brazilian music, samba, or any
other manifestation, and compare it with African music, you will see that yes, there are
points of contact, but it's something different.
I think that music which is a mix, like jazz, is much more interesting than pure music. I
think that African music is much more boring that samba or jazz. I think it has to do with
the possibilities of mixture.
TM: This is where you have the great similarity between the United States of America and the
United States of Brazil, the great nations which have this mixture, in different ways, of course.
SRO: And this is why these two have the most interesting popular music in the world, in my
opinion. And the fact that they are young nations means that they have traditions of
classical music which are imported. As long as I am importing music, I will always be
behind. They took the lead long ago. If I try to imitate their music I will never come close
to what they are doing. But if I discover my own identity, which is not theirs, but is theirs
mixed with the identities of other peoples...
TM: After eating them, digesting them....
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Interview with Sérgio Roberto de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
SRO: After digesting them I can present a different culture. I am enchanted with these
concepts of anthropophagism. After all this time they still explain what is going on with
Brazilian culture. And music is no different.
TM: Let's talk about some recent pieces. You have told me on various occasions that for you the
most important point, the most creative point, is when the light goes on, the kernel of the piece
appears... Pauxy Gentil-Nunes did some research in talking with people about this. Where does
the light come from?
SRO: A while ago, I used to have contempt for inspiration - I thought “inspiration doesn't
exist”. It's foolish to talk about whether it exists or not, but the question is where the
ideas come from. When I am facing a piece, it always has to do with communication. I am
always thinking about “who am I composing for?” what is my channel of communication,
and these things are a big help in defining the piece that I am composing. The idea comes
from trying to resolve this objective problem, that has to do with the performer, or the
ensemble, and the public for whom the piece will be played.
Where does it come from? I don't know. I think it comes from the same place as the
other ideas. It's not a flash - rarely is it a flash - more often it is something that matures,
to think of various things, and change my mind until finally... this is why I tell you that it is
crucial moment. It is very unlikely that I will apagar [to erase] when I am composing.
This is the moment when I apago. This the moment when I think of various possibilities,
and change various possibilities. It takes me much more time to begin a piece than to
finish a piece. In the moment when I settle on the idea, which will structure the entire
piece, when I come to writing down the notes, I am already very much headed in the
right direction. I am already certain about what I want. Of course, sometimes I can
change my mind about some notes, but since it is very much connected to the
structure....
I composed a piece last year, which is still unpublished, for trombone and piano, Humana,
for which I established a structure, and when I came to compose, I was little by little
subverting the structure, until I realized it was a different piece. And I threw out the
structure, and made a different one. But this is an exception for me. The idea generates
the structure. Everything serves to communicate the idea. It's the idea that has to be
intact, that has to be played.
Once I have the idea, I only have to think about how this idea can be best communicated,
how to translate it into sounds.
TM: Let's talk about 7. It's hard to imagine what sort of piece composition students would produce if
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you asked them to write a piece about the concept of “seven”. And what do you suppose
audience members imagine if you tell them, before the piece begins, that it's about “seven”? It
seems rather dry... but perhaps one might imagine that it has to do with the great Brazilian
mastery of rhythms?
SRO: There are two things. The first has to do with the public, since Prelúdio XXI always
has each composer speak to the public before the pieces are performed. The aspect of
“seven” is something completely technical, so that's why in introducing the piece I am
always joking about all the manifestations of seven in our culture, and the public even
begins to participate.
I think this piece is extremely technical, and from the first moment of irony, when I have
the two instruments playing in unison, and gradually drifting apart, I am already subverting
the idea of precision in the first measures of the piece. If someone was expecting
something mathematical, well, yes, it's mathematical, but the mathematics is subverted in
the service of art.
TM: The reaction of the public is “oh no... he's messing up!!! already!!”
SRO: ...until it gets to a point where they realize that it can't be a mistake.
TM: “OK, now I get it....”
SRO: At the same time that seven is the basis of the structure, there are two extremely
clear, singable tunes... the guy who putting away the instruments yesterday [after the
piece was performed] was whistling one of them. I am sure that it's the only tune in seven
that he has whistled in his life. I also took advantage of the fact that there are two
percussionists. That stereotype of the Brazilian who is good with rhythm is why I never
use typically Brazilian rhythms in this piece. There's a moment with the clave, a quieter
passage in the music, where I was playing with material from salsa... there are moments
which remind me of solos by a rock drummer... I was trying not only to explore the
possibilities of the percussion, but the possibilities of contrast, working with irony to
produce something that the listener is not expecting, from the opening moments.
TM: The communication in this piece also comes, I think, from the ostinato in this piece, which is not
present as an ostinato per se, but the fact that the listener is always counting up to seven in his
head. The most popular pieces in the history of music are those in which the layman can easily
participate - the Bolero of Ravel, the Canon of Pachelbel... the listener can participate physically
with what is taking place, and the more cerebral layers they may or may not perceive.
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Interview with Sérgio Roberto de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
SRO: It wouldn't make any sense to write a piece called “Seven” for percussion, in 7/4, if it
weren't very clear. So the structure was what made communication possible.
TM: You have a piece in seven, one of the Bagatelles for solo flute, “Arpeggios”, but there you are
always obfuscating the rhythm...
SRO: There I was communicating “I am playing arpeggios”, not “I am playing in seven”. If I
am not mistaken, the last movement of Mot Pour Laura is also in seven, but there, yes,
there is an ostinato.
TM: Let's talk about Atonas, which is perhaps your most abstract piece.
SRO: I think it's worthwhile for someone who listens to Atonas to hear Studies on Alban
Berg as well. I was commissioned to write a piece for piano solo to be played after the
Sonata by Alban Berg. I spent quite some time studying the sonata, not just from the
obvious point of view of trying to understand the material he was using, which is very
rasteiro, but what he does with it, how it gets to the audience. And in doing this analysis, I
ended up with a lot of material, some of which also went to create the Studies on Alban
Berg, which has many more of these elements than does Atonas. Atonas is already heading
in a different direction, in the direction of communication. The Berg sonata ends placidly,
at a low dynamic, a low density, and this is where Atonas begins. I tried to imagine a
sonata that went from back to front. Our friend Caio Senna said to me “there's no such
thing as a sonata that goes from back to front - something that does so isn't a sonata”,
and I said, “No, if I think that a certain theme sounds like an A theme, and the other like a
B, then it will sound like that”. But it is certainly an abstract piece, with no metaphorical
idea, as is also the case with the Studies.
TM: I recall attending a performance of the Berg sonata at Brandeis, a piece which is around a
century old, and the friend who was with me asked afterwards “Was I supposed to enjoy that?”
So it is a piece that continues to be too modern for many listeners.
SRO: That's interesting to hear, because to my ears it's very beautiful - I fell in love with it. In
Atonas I give other things which the listener can enjoy, including the rhythm. People have
told me it sounds like a tango. It isn't a tango, but there are rhythmic hooks which
connect the listener with the music.
Communication has to do with giving the listener some kind of reference. I like to be able
to speak before a performance in order to provide a reference, even if a layperson's ears
will not be able to perceive it. But he will try. If I talk about “Seven”, a layperson will not
know what 7/4 is, what a septuplet is - none of it makes any sense to him. But he will be
trying to hear sevens as he listens to the music. These references, whether they are
14 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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conscious or unconscious, are what makes it possible to communicate. In the case of
Atonas and the Studies, rhythm is the primary channel of communication.
TM: We have been talking about music up till now, but do you think that in the area of
communication there are influences from other arts in your music?
SRO: Not in a conscious way, but this certainly takes place, because these other arts are
part of my cultural universe. In the case of literature, talking about my Brazilian side, there
is certainly influence.
Last year [2007] I had a crisis, and thought that I would be unable to compose anything
more. I thought that I had already said everything that I had to say, and in fact I couldn't
manage to compose. It's a good thing that this didn't last for very long. I made a piece that
turned out well, with considerable success, called Dores [Sorrows]. It's the piece of mine
that has had the most performances up until now, with 73 or 74 performances, but it's a
transitional piece. After this work, the thing that helped me find my path was a book by
Ariano Suassuna, the Pedra do Reino [ Romance d’a Pedra do Reino e o Príncipe do sangue
do vai-e-volta: romance armorial-popular brasileiro]. Literary references are strong for me. It's
probably the other art that I consume the most. Cinema is something that I consume like
any other airhead that watches commercial films. I am not a lover of the cinema.
TM: A gourmand, rather than gourmet.
SRO: Exactly. The arts which really touch me are theater, music, and literature, including
poetry.
TM: Let's talk about Dores, and then Suassuna. Dores is a work that is very dark, obscure,
completely different, for example from Seven, which has brilliance, light, something tropical. There
is nothing of this in Dores.
SRO: Certainly not. Dores has to do with my crisis, what it is to be human, with the age that
I am - I hope to live for a long time, but I am entering that phase we call middle age, at
least that is how I feel psychologically. It was a moment in my life when I looked back and
thought “I have accomplished a lot of things, but what do I want to do in the next thirtyseven years?” This generated a psychological process for me; I began to do therapy,
which was very important, an attempt to really look at myself, because as you know I am
a guy who works a lot. Often we spend more time working and less time thinking about
what we are doing. I think my crisis as a composer had to do with this. I had been
composing in a rhythm that produced eighteen pieces in two years, which is considerable.
This pause to look within was necessary. Getting out of it was difficult. It's easier to push
a car that is already moving than one that is stopped. Since I felt exhausted esthetically, I
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Interview with Sérgio Roberto de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
was looking for another way. Something that I think you must never lose is expression
and communication. Dores was a commission to be played on a tour throughout Brazil,
principally in the interior, where people are not so cultured and have little information
available to them.
TM: Where they have no access to culture.
SRO: I wanted to make something that would speak directly to people. I think sorrow does.
I didn't want easy applause - it wasn't a moment for easy applause. It's not a piece which
has brilliance with this in mind.
Anyone who does therapy or any form of self-analysis begins to deconstruct himself...
TM: Discovering that is inside and repressed.
SRO: And it's a painful process. This painful process generated a piece called Dores. It was a
piece that was commissioned a very short time before it was to be premiered. This also
served as a metaphor for me. I thought “I will make a piece in which each instrument
plays only one theme throughout the whole piece”. What will change is how the theme
relates to the other themes - a sort of kaleidoscope. I have a tendency to think vertically,
something that has to do with my activities in popular music, but in this piece I was much
more preoccupied with the line, but not in terms of counterpoint, because these themes
do not change. I am thinking horizontally the entire time, but the horizontal is delimited
by the size of each theme.
TM: You can imagine this piece as four people, each one with their own individual problem...
SRO: Exactly...
TM: ... and nothing changes.
SRO: I made a metaphorical connection of a particular sorrow with each performer. Each
person has a different sorrow. The sorrows don't change, and they remain the same.
TM: And that's why we do therapy.
SRO: Exactly.
TM: Because the definition of crazy is doing the same thing and expecting a different outcome.
SRO: In Dores things change, at least for the listener, but not for those inside.
16 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . MOORE; OLIVEIRA
TM: To move on to Suassuna, he is a great figure, but little-known outside Brazil.
SRO: Ariano Suassuna is a writer and thinker from Paraiba who is based in Recife,
Pernambuco. His art, his literature is very strongly based in Northeastern Brazilian
tradition, and this has a tremendous amount of influence from Iberia. He developed the
movimento armorial, which also has a musical expression.
What he is trying to do is give sophistication to the Brazilian element. If we see a film of
knights in armor, this is completely distant from the actual reality of the Middle Ages they weren't great knights in shining armor, with well-fed horses....
TM: They were filthy....
SRO: ... and probably sick, weak, with bad teeth. He tries to do the same thing with
Northeastern culture. In Pedra do Reino, he describes the cangaceiros as if they were
knights, with leather armor - romanticizing Brazilian reality, and not seeking romanticism
in a foreign reality.
I realized, reading Suassuna, that this has a lot to do with the music that I make, and the
way that I think. When I take twelve-tone materials, and make a frevo, or take Brazilian
elements, and make a complex structure, this is exactly what I am doing. I am presenting
that Brazilian element in a sophisticated, erudite way, but when I relate to it, I think “ah,
that little baião that I did”, in the same way that Tom Jobim said that he never composed
bossa nova - what he was doing was samba. The way I present it to the world is a
romanticization of something that I took from popular music, not as a researcher from
outside, but as an active participant in popular music.
What I need to do is to do this in a more conscious way - this is the direction that my
music needs to go.
TM: A “música de cordel”...
SRO: I had a nanny from the Northeast, who still works at my house, and she had an
enormous influence in my upbringing. It was through her that I had contact with literatura
de cordel, with Luiz Gonzaga, with all this. I have a sentimental connection to the
Northeast. I feel like someone from the Northeast, although I have only been there as a
tourist. I have a Northeastern heart.
TM: Although Rio may be the Brazilian face that foreigners see, the soul of Brazil is in the
Northeast.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Interview with Sérgio Roberto de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
SRO: Our nannies are from the Northeast, the doormen in our buildings... my generation,
which grew up in apartment buildings, and played in the streets, always had this presence
of doormen who were almost uncles looking after us, from Paraíba or from Ceará, so of
course the Northeast is part of our culture.
TM: But also because the Northeast was the place where the earliest colonization took place, and
because there there was not the internationalizing influence of the national capital, traditions
remained untouched.
SRO: Of course we are talking about the perspective from Rio de Janeiro. The view from
somewhere like Mato Grosso would be different. But because of the rural exodus, the
Northeast is part of the “mainstream” in Brazil. We lament that this five-hundred-year
old tradition is gradually being lost to globalization. We have to take care with our
traditions now. In Parati there was a ciranda that has now been replaced by a baile funk in another 30 years the children of our generation will no longer now what a ciranda is.
I am always talking about mixing, but in this case I am talking about really not mixing. In
order to mix we need to have the pure stuff so that we can drink from that spring.
Somebody has to this - Suassuna is very concerned with this.
Mar do Norte is the first piece that I composed with this point of view. It is a maracatu period. It's a piece for winds and contrabass, with a percussion soloist, and will be
premiered Oct. 22, 2008. The whole time I am talking about music from Pernambuco. I
also refer to caboclinho, another musical style from Pernambuco.
I wanted to discover how I could make this maracatu sophisticated, not that the popular
maracatu is not sophisticated, but sophisticated within this world of the intellectual, the
classical, using this technique of classical music.
I have technique, I studied composition, I have an education in this. This is not the most
important thing for me, but simply a tool. I know that there are composers who place
technique at the center of their music - their technique is sophisticated, and they are so in
love with it that that is what they want to talk about the whole time. For me technique is
a tool that allows me to communicate the ideas that I want to get across
I had the idea for Mar do Norte when I went to hear Dores in Recife. I had already been
reading Suassuna, and took my computer and sat on the veranda looking at the sea.
Everyone thinks I am talking about the North Sea in Europe, which they think is “the”
North Sea, but this name is already something very Brazilian, because nordestinos do not
say that they are from the Northeast - they say that they are from the North. They are
18 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . MOORE; OLIVEIRA
correct, because for them Brazil is this vertical coastline, north to south, so Mar do
Norte is a Brazilian way of saying “sea of the Northeast”.
TM: I recall you went to the Northeast, met a rabequeiro... was this before or after your crisis?
SRO: Before... or during... because this sort of thing is a process - it's hard to say exactly
when it begins or ends.
TM: To simplify enormously... with this crisis hovering you went to find your soul in the Northeast.
SRO: Yes... to simplify things enormously. Something else that I think is important is that last
year when I was in the USA and Europe, in the midst of this crisis, I traveled with my
copy of Suassuna's book - I was reading it at that moment. When you are a foreigner you
are desperate to look for your roots. I never cry when I hear our National Anthem - only
when I am outside Brazil. Perhaps the fact that I was resolving this esthetic crisis while I
was outside Brazil caused it to become even more acute.
Now that I recall, my visit to the rabequeiro was in Dec. 2006, and the crisis was clearly
in 2007. I stopped to look at myself in May of 2007.
TM: Please talk about another piece for mixed ensemble, which you wrote for Mélomanie.
SRO: Colors.
TM: In Portuguese, Cores and Dores.
SRO: Except for the rhyme, they don't have too much to do with each other. Cores was
written soon after Dores. This thing of each performer speaking only of himself is
repeated in Cores. I decided to assign a different color to each instrument in the group. I
created a physical relationship of frequencies with the music, taking the colors and
transposing their frequencies down by octaves until I got down to the audible frequencies
of notes. I defined the fundamental of each color and created themes that had to do the
psychological view of the colors by cultures. So red is something vibrant, sometimes
military, something to do with victory... If I am not mistaken, red was given to the cello.
The piece is divided into two large sections, named for Newton and Goethe, two great
theorists of color, with an intermediary section named Dalton, for the man who
discovered Daltonism (color-blindness), a section which is obscure, and where the colors
do not correspond to what they ought to.
TM: By the way, readers, the composer is color-blind...
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Interview with Sérgio Roberto de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
SRO: And the interviewer as well... This is why I felt it necessary to talk about Dalton,
particularly because my approach to the piece is ironic. My relation to colors, because I
am color-blind, is something very individual. I know that the way that I see colors is
different from the way the world sees colors, so I made a piece reflecting my vision of
colors. Of course the media made a point of this when the publicity for the premiere was
being done...
TM: Another recent piece is the duo for flute and piano titled A Véspera do Fim, commissioned by
the Duo Barrenechea. My perception is that this piece has more to do with your earlier esthetic.
SRO: It's a piece that closes that esthetic. Mar do Norte is the first piece from the new point
of view. A Véspera do Fim has a title that is quite indicative if I am talking about the end of a
phase. It belongs to the earlier esthetic for practical reasons, given that I had to compose
the piece very quickly - the premiere was already scheduled, I was busy writing other
music, and I had to take a break from Mar do Norte to write it. And of course I can write
much more rapidly if I am working the same way that I always have, with mental work
that is more automatic. I should make it clear that I am not rejecting this earlier esthetic it's fine, I like all the pieces that I wrote, but I began to feel unable to say new things using
that esthetic. Perhaps after another three pieces I will discover that I was wrong, that I
have lots more to say in that style. I am just in a moment of searching, something that has
to do with someone that is 37 doing therapy, looking for things that have to do with selfknowledge. A Véspera do Fim has two movements, Love and Fidelity. These two have to
do with the Beginning of the End. The beginning of the end of love often is connected
with the beginning of the end of fidelity. Sometimes it is the lack of fidelity that causes love
to end, or the contrary - love ended, and you can no longer manage to be faithful.
But it also has to do with a joke - when Fidel Castro, who is no doubt one of the great
figures of the history of the twentieth century, stepped down, he didn't die - but it was as
if he had - there were specials on television...
TM: Here in Brazil that is, not in the USA...
SRO: This sort of thing only happens when a great figure dies. I felt like they had buried
Fidel Castro alive, and I felt like that moment was the beginning of the end of Fidel
Castro. Thus the pun with the word Fidelidade (fidelity), a movement in honor of Fidel
Castro, and in which I use Cuban rhythm to express this.
TM: The flute has such an important place in your work, and you manage to say so many things
with this instrument, without ever repeating yourself. Many composers have various works for
flute and piano, and you have such a large body of pieces, and only two for this traditional
combination.
20 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . MOORE; OLIVEIRA
SRO: What happened in my career as a composer is that beginning from the moment when
I decided that I would not write pieces that were not commissioned, would not write
pieces without knowing that they would be performed, and had many people asking me
for pieces, all of the instrumental combinations in my work are determined by the
practical context. There was no duo for flute and piano asking me for pieces, because if
there had been there would be more works for that combination. I wrote Micareta for a
concert in the United States, and this most recent work for a concert here in April. Mar
do Norte appeared because of a discussion like this. Ana Letícia Barros, the percussionist,
was being interviewed about the relation of the composer to percussion, and at the end
someone asked why Rio composers write so little for percussion. I said that I could not
speak for other composers, but that in my case it was because the percussionists didn't
ask me. If they ask me, I'll write. And that is when she asked me for the work, as simple
as that.
TM: And the great future? are there things that you've been wanting to do but haven't been able to?
a grand opera?
SRO: I am not an opera fan as a listener, much less... [as a composer...]. I prefer the operas
of Mozart, which are less grandiose than those of the Romantics. There are two things
that I would like to work on more, which are choral music and orchestral music. For two
years now I have been trying to compose a Christmas mass, and I can't find the time. It's a
work that is very important to me, a promise that I made to God, so I have to compose
it, want to compose it, fell in love with the idea of composing it. The problem is that God
hasn't arranged a concert and a date for the premiere... so it always gets pushed back...
TM: ...hasn't arranged it yet....
SRO: Not yet. I have composed almost half of a Te Deum, which I began writing for a
competition. I saw that I wasn't going to be able to meet the deadline, but I think that
nobody else did either. I never heard anything more about the competition.
I am beginning to get more interested in orchestral music. I am beginning to romance the
idea that in the not-so-distant future, perhaps in five years, I will write my first symphony.
I think that I have the maturity for it. I am in a moment of discovering things, and I need
to discover time for works that are mine, because my works have been dedicated to
their performers. If I only am writing commissions, there is no time for the music that I
want. Perhaps I need a moment in my year for one or two works that I want. I am getting
over the trauma of the beginning of my career, when I had many works that were not
performed. I have a piano concerto that has never been performed that I adore. As I have
had the luck, the result of work, rather, to have many commissions - I am always owing
things to great performers - I have resolved the problem of having unperformed works.
The commissions are only useful if there is a date by which I have to deliver the piece - or
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
Interview with Sérgio Roberto de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
the money has to be good. With the structure we have these days, it is very unlikely for
an orchestra to commission a work from a young composer... or even from an old
composer. It's very rare. And since I don't want to be writing my first symphony when I
am eighty, I will have to save a space in my year to compose one. I want to take
advantage of the concert in December with Calliope [a chorus] in collaboration with
Prelúdio XXI to compose part of the mass and premiere it at the concert, which would
serve an impetus to compose the entire mass.
This year and last I composed much less than I wanted to. This will only change if all the
ideas that are bubbling in my head have time to happen. Not just time to sit in front of
the blank score, but because for me the moment of creation, of structuring the piece, is
crucial, I need to have a mental space, not sitting in front of the computer, but walking in
the street, without having to worry about the next concert, about other things, but
walking in the street, thinking about the music that I am composing.
TM: Letting the soul do its work.
SRO: In the shower is my best moment for composing, a moment when you are doing
something automatic and your head is free. 15 minutes a day, plus time driving, walking almost an hour per day, composing. Unfortunately at the moment I am spending this time
thinking about other things.
TM: As we say in Brazil, your head has been rented. You have to un-rent it to leave space for other
things to come in.
SRO: Even if it's just those moments in the shower.
..............................................................................
Tom Moore has degrees in music and library sciences from Stanford University (DMA, MA),
Simmons College (MLS), and Harvard College (BA). He is active as a flutist and music critic,
and was a CAPES Visiting Professor at the Graduate Program in Music, UFRJ, during 2005-6.
His interviews and reviews can be found in musicabrasileira.org, fanfaremag.com, 21stcenturymusic.blogspot.com, operatoday.com, and many other places. He is Head of the Music
Library at Duke University.
22 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
Resenha
Os estilhaços da orquestra
LEHMANN, Bernard. L’orchestre dans tous ses éclats: ethnographie
des formations symphoniques. Paris, Éditions La Découverte, 2005.
259 p., ISBN 2-7071-4610-2, 10.50 €
Marcos Câmara de Castro (USP)
O interesse pelo desinteresse, o interesse pelo sofrimento como princípio de criação são
socialmente determinados e não representam senão uma das modalidades de ser artista.
— Bernard Lehmann
M
uitas das indagações pertinentes ao trabalho do músico profissional não
são formuladas ou pertencem ao campo das ciências sociais. Uma
adequação de nossas grades curriculares, sobretudo nos cursos
superiores de música, visando uma preparação mais realista do aluno, deveria
necessariamente passar por uma antropologia musical, a etnomusicologia — que não
se restringe absolutamente ao estudo das manifestações musicais de tribos indígenas
ou práticas afro-brasileiras. A moderna etnomusicologia estuda a música em seu
contexto: tanto o rap da periferia, o funk, como também os nichos onde se
desenvolvem atividades musicais bem mais próximas à realidade urbana neoliberal. A
etnografia das formações sinfônicas insere-se nesse campo de pesquisa. Que
figuração social é essa? Quais as relações de interdependência? O que faz esses
indivíduos estarem juntos, convivendo diariamente? Quais os mecanismos de
autocoerção que se transformam numa segunda natureza inquestionável? É o que
Lehmann realiza com... maestria, sintonizado com as atuais reflexões da História e da
Sociologia, falando numa linguagem familiar ao universo musical.
.......................................................................................
CASTRO, Marcos Câmara de. Os estilhaços da orquestra: Resenha do livro L’orchestre dans tous
ses éclats: ethnographie des formations symphoniques, de Bernard Lehmann. Opus, Goiânia, v. 15, n.
1, p. 23-36, jun. 2009.
Resenha: L’orchestre dans tous ses éclats, Lehmann . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Estrutura e morfologia da orquestra
A orquestra em todo seu esplendor — que tanto pode ser seu brilho como
seus estilhaços (éclats). Vestidos “como pinguins”; submetidos às pressões do “dom
inato” e da “precocidade”, a loteria da consagração do talento do artista concorre
para transformar o engajamento artístico em vocação e o artista em personagem
carismático, “movido, pelo pouco que a sorte venha em seu auxílio, pela única
necessidade de se realizar como expressão de si mesmo”. Uma empreitada
“encarregada de fabricar um bem sublime e com forte carga de encantamento” (p.
10). O maestro, com seu ouvido mais social que musical (sic), tem como função
principal gerir os antagonismos internos de uma formação sinfônica — integrada por
24 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CASTRO
músicos “raramente programados para trabalhar no coletivo” (p. 11), devido ao
isolamento que os anos de aprendizagem requerem, ainda que a orquestra constitua
no desaguar mais provável de um músico.
Formado para ser solista, o músico é destinado a ser “tuttista” durante toda
sua vida. Todavia, a orquestra não é a mesma do ponto de vista dos sopros ou das
cordas; da origem social do músico e ainda pelos filhos de músicos — estes, como se
verá, que são os que mantêm a convivência mais saudável com a realidade sinfônica.
Compreender, portanto, seu funcionamento supõe igualmente considerar as
atividades extra-orquestrais que “permitem a certos músicos suportar a realidade de
seu emprego” (p. 13).
As cordas, devido à tradição e riqueza de seu repertório, não são
requisitadas senão a ser elas mesmas, enquanto que os sopros — cuja presença
sinfônica cresceu a partir do século XIX — devem trabalhar por sua legitimação.
Lehmann trata das formações francesas, tendo no Conservatório de Paris o centro
irradiador dos profissionais que preencherão as posições das principais orquestras
do país; mas sua abordagem etnográfica e sociológica permite-nos compreender que,
trocando os nomes, a análise se aplica com facilidade a qualquer orquestra do
mundo, excetuando talvez as alemãs, onde os músicos participam mais ativamente
das decisões institucionais.
Passando pelo histórico daquele Conservatório, Lehmann cita Berlioz:
“Quando um violino é medíocre, diz-se: ele dará um bom violista”; e aborda as
preconizações sazonais de acordo com as necessidades do momento e da região: os
instrumentos que são necessários e que ninguém se interessa em estudar. 1 Esse é o
problema permanente das escolas de música que, “se for preciso contratar [...] um
professor novo para cada inovação que se fizer nos instrumentos, isso não terá fim”
(p. 24).
Depois de discutir as diversas disposições que se ensaiaram para instalar
sopros, cordas e percussão no palco, até o padrão atual, o autor revela uma
“hierarquização pela tessitura” e se verá que “existe uma relação entre a altura
Isso varia de país para país e de região para região. Por exemplo, a experiência da Orquestra
Universitária no Departamento de Música da USP em Ribeirão Preto revelou uma ausência
quase total de interesse pelo estudo do oboé e providências estão sendo tomadas.
1
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
Resenha: L’orchestre dans tous ses éclats, Lehmann . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
musical de um instrumento e a altura social de seu recrutamento” (p. 31) que se lê
da esquerda para a direita 2 e pela visibilidade no palco:
A orquestra é assim [...] uma trama na qual se entrelaçam fios que têm sua função na
estética do todo. Basta faltar um para que se sinta a ausência, um pouco como os
contrabaixistas que dizem com frequência que “só são ouvidos quando não tocam”
(p. 32).
Os estatutos das orquestras acabam por revelar esse tecido complexo,
quando tomam providências que visam não prejudicar acima de tudo o concerto,
como por exemplo a proibição de viajar no mesmo carro dois músicos de uma
mesma estante ou os primeiros e os spallas, além de toda comunicação à imprensa
ser igualmente proibida (p. 38).
As hierarquias sociais da orquestra
Longe da “visão harmoniosa” dos concertos, a orquestra sinfônica “é um
universo socialmente hierarquizado e dividido” (p. 41). De acordo com suas tabelas
construídas através de pesquisas de campo até o ponto de saturação, Lehmann
mostra 41, 6% das cordas serem filhos de executivos ou de profissionais intelectuais
de nível superior, contra 28% das madeiras e 14,5% dos metais. Uma superrepresentação de filhos de executivos junto aos percussionistas se explica pelo fato
de sua maioria ter um passado de pianista (p. 42). Às fotografias de mulheres nuas
encontráveis nos estojos dos metais, contrapõem-se fotos da família nas cordas (p.
44). Já na Ética a Nicômaco, Aristóteles aponta a inferioridade da boca em relação aos
prazeres do corpo e essa relação “sem mediação” dos sopros com a boca, a baba, o
barulho d’água que produzem, o peso de uma tuba, tudo os coloca numa posição
mais próxima das classes dominadas, em oposição ao distanciamento “como luvas”
com que o arco intermedia o contato direto com o corpo — fazendo-os assim
Em 1981, no MIS de São Paulo, o cineasta alemão Werner Herzog comentou a elaboração de
seu filme Fata Morgana, cujos planos correm sempre da direita para a esquerda, como forma
de se contrapor ao hábito, por ele identificado na totalidade dos faroestes e filmes de TV, de o
“mocinho” sempre correr atrás do “bandido” no sentido horário; e, mais, que toda
linguagem cinematográfica obedece a este padrão.
2
26 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CASTRO
“instrumentos vitorianos”, aos quais se junta o piano. Há ainda, “como o bom vinho”,
a valorização dos instrumentos de cordas com o tempo. Entre as elas, as violas
aparecem como “de segunda mão”, de origem popular, uma vez que são geralmente
violinistas convertidos.
Em suas entrevistas, o autor constata que a base de formação dos futuros
músicos de orquestras são justamente o que nos falta: escolas municipais de música,
conservatórios municipais e de região, orientados por professores que são,
igualmente eles, músicos de orquestra. 3 Dois anos de solfejo precedem a escolha do
instrumento. Num país como o nosso, onde ainda se discute que tipo de ensino
musical deverá ser dado nas escolas, tudo isso pode parecer estranho... Na página 70,
lê-se que “essas escolas de música de província são frequentemente ligadas às bandas
municipais, elas tem por função formar os futuros integrantes e de preencher as
lacunas instrumentais da orquestra local”, além de legitimar a passagem para os
meios dominantes (cf. p. 72). Disciplina absolutamente corporal, os cursos e exames
colocam com frequência o jovem músico diante do público e do trac (medo do
palco). Trabalho muscular intenso, sobretudo dos metais — que em compensação
exigem menos tempo de preparo —, o próprio trabalho repetitivo e diário do
instrumentista já o prepara para suportar os longos ensaios sem cansaço.
Os herdeiros são de longe os mais adaptados. Filhos de músicos
profissionais, sabem escolher o instrumento que ofereça mais oportunidades e que
“maximize suas chances de sucesso” (p. 56). “O fato de escutarem música
diariamente em casa, de verem seus pais trabalhar seus instrumentos, tornam esse
trabalho solitário menos duro, menos ascético, menos ingrato e permitem levá-los a
seu objetivo final que é a obra” — levando-os facilmente a uma concepção “técnica”
de uma arte “cultivada” (erudita) (p. 61) e os permitem viver sem contradição os
universos do conservatório e a rotina da orquestra. “Iniciados desde cedo,
A socióloga Dilma Pichoneri constatou, em sua dissertação de mestrado (2006), “os altos
custos de formação de um músico de orquestra no Brasil, enfatizando a necessidade de que
ele seja ajudado pela família, dada a total omissão do Estado na formação de seus músicos
desde a infância, como se requer para um profissional instrumentista. Não há conservatórios
públicos no Brasil e o ensino de música nas escolas de nível fundamental [...] não incentiva a
formação na área. Mesmo os músicos de orquestras, geralmente funcionários públicos, não
conseguem se dedicar exclusivamente às atividades pertinentes ao cargo, tendo que
complementar seus rendimentos dando aulas particulares, realizando gravações em estúdio,
apresentando-se em casamentos e festas, tocando em grupos instrumentais menores, ou seja
'prestando serviço' como um free-lancer”.
3
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
Resenha: L’orchestre dans tous ses éclats, Lehmann . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
orientados, cercados de mil precauções, eles seguem um caminho balizado e sem
choques” (p. 63).
Já os filhos de executivos seguem uma outra sociodisseia: estudar um
instrumento insere-se nas práticas obrigatórias da pequena burguesia que é a de se
ocupar de maneira nobre e, consequentemente, sem que os pais saibam prepará-los
para a vida profissional de músico — origem do futuro ressentimento e das práticas
paralelas como cameristas, como forma de auto-expressão, contra o tuttismo a que
são obrigados nas formações sinfônicas. Falta-lhes o que não se ensina nos
conservatórios, mas que é o não-dito dentro de um lar de músicos.
Além do mais, pode-se ser músico clássico de profissão sem ter o menor
gosto pelo cânone clássico (p. 73) 4 e essas fanfarras populares do interior preparam
da melhor maneira aqueles mais distantes da música clássica.
Hierarquias estatutárias da orquestra e momentos-chave da carreira
Os músicos socialmente mais elevados são os que ocupam os cargos menos
reconhecidos e o “interesse pelo desinteresse” varia segundo a classificação como
“herdeiros”, “promovidos” ou “rebaixados” — que é a taxonomia adotado pelo
autor. “Arte sagrada”, a música só poderia ser praticada por “seres excepcionais,
dotados de uma sensibilidade muito mais aguçada do que a média, de uma
sensibilidade empunhada como um estandarte” e “por um processo de sublimação
do sofrimento, pode se desdobrar mais do que as raízes sociais que a tornaram
possível e a condicionam”. Citando um de seus entrevistados: “As pessoas têm uma
imagem mágica dos músicos: os músicos são bons, maravilhosos, não tem problemas.
Porque não, se isso lhes faz bem? É verdade que não é bem assim. É verdade que
temos uma sensibilidade maior que a média”.
Parte dessa auto-imagem é consequência das “disposições ‘solísticas’
moldadas pelo sistema de ensino”.
A inculcação musical nos meios populares é análoga à inculcação sacerdotal
no meio rural, uma vez que os pais, sem cultura musical, deixam na mão dos
professores a responsabilidade da orientação vocacional do aluno. Aqui, uma
Vemos com naturalidade as diversas formações de Jazz ou MPB que se formam entre os
integrantes de nossas orquestras profissionais que funcionam também como uma válvula de
escape, unindo o ressentimento e a origem popular de alguns integrantes.
4
28 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CASTRO
diferença fundamental: “prática burguesa da música como prática do ócio e prática
popular como prática de urgência. [...] Os burgueses podem-se dedicar
tranquilamente à prática da arte pela arte, enquanto que os dominados, em situação
de urgência, tem que fazer escolhas racionais, optando por instrumentos rentáveis
rapidamente”.
Conscientes de sua posição social de origem, os filhos de executivos e de
profissionais de nível superior não podem aspirar senão uma carreira de concertista
ou camerista e o rebaixamento que a seus olhos representa sua condição de tuttista
é proporcional às suas expectativas, às vezes irrealistas (cf. p.117). Os herdeiros —
devido a seu capital familiar — têm condição de estabelecer objetivos bem mais
realistas, tornando sua situação bem mais viável.
Trajetórias de exceção de dois autodidatas
Neste capítulo ao narrar duas experiências complementares a esse
raciocínio, lê-se também algo sobre a vestimenta: “short e camisa com motivos do
Taiti” que não se encontram no meio dos músicos clássicos, mais austeros na
aparência. Enquanto que nas formações sinfônicas clássicas seus integrantes mantêm
“uma certa distância”, nas bandas de Jazz pratica-se o beijinho (bise) entre homens. O
Jazz é ignorado pelo ensino musical e o autodidatismo 5 afasta o músico da ortodoxia:
o amor pela música que faz um músico de origem popular procurar a sinfônica é o
mesmo que vai fazê-lo abandoná-la. Conscientes de suas “ilusões perdidas”, 6 as
cordas desclassificadas procuram refúgio na “formação etérea” do quarteto de
cordas, em busca de um mundo melhor. Já o ecletismo dos músicos de Jazz —
gênero em via de legitimação — deve-se principalmente ao desejo de ter uma
competência completa da história e do espaço em que buscam reconhecimento (p.
131).
5 Sendo o autodidata uma mistura de melômano (amador) e técnico (profissional), porque,
sentindo-se discriminado dentro da orquestra, sente-se impedido de apreciar a música como o
fazem os leigos instruídos, criando com isso a situação paradoxal em que “são os músicos de
orquestra sinfônica que menos se interessam pela música” (p. 128).
6
Referência ao título de um romance de Balzac.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
Resenha: L’orchestre dans tous ses éclats, Lehmann . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O mundo social é um terreno áspero no qual cada um tenta firmemente manter seu
lugar” e ser ou não filho de músico (herdeiro) é o fator principal da relação que o
músico estabelece com a orquestra: naturalizados e “peixes-dentro-d’água” (p. 136142).
A terra prometida: as funções (usages) sociais
das atividades extra-orquestra
No quadro intitulado “Hierarquia das formas”, citando Drillon, Jacobson,
Huysmmans e Oscar Wilde, lê-se: “[O público] dos concertos dominicais, por
exemplo, tem duas características: gosta de música de câmara, e não vai à missa.
Como se vê, trata-se de um bom público”. A oposição entre música de câmara e
sinfônica é identificada jocosamente com o que se costuma dizer da música popular:
a “tranquila sabedoria do classicismo” ou “Wagner é meu compositor preferido. Sua
música é barulhenta! Pode-se falar o tempo todo sem ser ouvido”.
A prática do quarteto de cordas pelos rebaixados insere-se, portanto, no
ajustamento à ideologia que eles têm da arte como prática desinteressada (cf. p. 151);
muitas vezes também não por amor a esta formação, mas “mais por oposição à
orquestra que não reserva lugar algum para a criatividade pessoal”. É um pouco
como o exército: “a gente vem para servir” (p. 152). A necessidade de fazer música
de câmara aparece, portanto, depois da formulação da necessidade de
reconhecimento — constatação que se opõe “à seleção por concurso (anônima, e
sem considerar afinidades) das formações sinfônicas onde o maestro é o princípio de
resolução dos antagonismos sociais”. E o quarteto recupera a distinção social que a
orquestra havia desfeito. Não se faz música de câmara para ganhar dinheiro. 7
“Quanto mais os músicos venham de um meio social distante da música, e a
fortiori de um meio elevado, mais eles interiorizam as representações da estética
dominante e mais parecem sofrer de sua situação” — sofrimento que pode levar ao
No caso brasileiro, segundo Pichoneri “o trabalho em uma orquestra pode significar por um
lado prestígio, mas, ao mesmo tempo, significa um trabalho rotinizado, hierarquizado, com
pouca possibilidade de criação (sobretudo para os tuttistas), distante da visão romântica do
músico como artista inspirado, criativo, gênio. Assim, a multiplicidade de trabalhos realizados
fora da orquestra pode significar para alguns, a possibilidade de concretizar um trabalho mais
prazeroso; para outros, apenas uma estratégia de sobrevivência” (2009, p. 8). Dilma F. M.
Pichoneri, Estabilidade e precariedade: as duas faces da mesma orquestra. Disponível na internet:
<http://starline.dnsalias.com:8080/abet/arquivos/24_6_2009_10_11_27.pdf>
7
30 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CASTRO
ressentimento 8 que é produto, segundo Scheler, “de grandes pretensões interiores
contidas, uma arrogância desproporcional típica da situação social que se ocupa” (p.
156). Falar de música de câmara com os entrevistados é como autorizá-los a falar de
si próprios. Nada disso, no entanto, vale para os herdeiros, que praticam a música de
câmara ou a pedagogia, da mesma maneira que fazem com a orquestra, sem
necessidade de justificação: trata-se de atividades anexas que uma carreira, por
natureza eclética, lhes oferece. Podem inclusive ganhar dinheiro com cachês diversos
(música popular, de câmara, gravações, etc.) sem se sentirem “traindo a causa” (cf. p.
157).
As cordas desclassificadas estão na triste situação de consolo, investindo
simbolicamente na música de câmara — miragem da terra prometida — cume da
hierarquia de onde se creem destinados a fazer parte. Daí, vê-se que “o interesse
pelo desinteresse e a ideologia do sofrimento não se distribui igualmente entre todos
os músicos e mesmo artistas, dependendo da defasagem mal digerida entre
aspirações e realidades profissionais” (p. 164).
Pontos de vista sobre a orquestra
“Quando você bebe com as cordas, cada um paga a sua”. Os metais são os
“jogadores de rugby” da orquestra e as madeiras “encarnam o desejo e as aspirações
musicais das cordas desclassificadas” (p. 166-173). Os originários das classes
populares — nunca interiorizam a música clássica da mesma maneira que as cordas
(ver p. 218). Os oboístas, por exemplo, estão pouco ligando (ils s’en foutent) de
soprar suas palhetas e instrumentos para eliminar água enquanto outros estão
tocando. Difícil de compreender que as escolas não previnam seus alunos de seu
futuro mais provável, a orquestra.
Entre os metais, as trompas (“os intelectuais dos metais”) ocupam posição
equivalente aos violinos nas cordas. Casam-se bem com todos os instrumentos,
fazendo parte do quinteto de metais e dos quinteto de sopros (que inclui madeiras).
Por “hipergamia”, as trompas ganham e procuram seu prestígio e, por isso, não se
sentem como parte da família dos metais, uma vez adquirido um enobrecimento “por
8 De que fala Bourdieu em L'invention de la vie d'artiste”. In Actes de la recherche en sciences
sociales, Anée 1975, Volume 1, Numéro 2, p. 67-93. Disponível na internet:
<http://www.persee.fr> Acesso em 26 dez. 2009.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
Resenha: L’orchestre dans tous ses éclats, Lehmann . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
contato” (Veblen) [cf. p. 188]. A partir da situação particular das trompas, é possível
pensar numa sociologia da instrumentação: ter um som potente para fazer frente aos
metais e tocar delicado e pianissimo num quinteto de sopros, com clarinete, oboé e
flauta.
Claro está que “a disposição de perceber divisões no seio da orquestra é
própria dos filhos de não-músicos, sejam os rebaixados ou os promovidos”.
O ensaio: construção social da interpretação
Da sociologia da instrumentação, fica mais fácil deduzir uma sociologia da
interpretação. 9 Fenômeno “indissociavelmente musical e social”, a interpretação é
produto de uma negociação entre agentes que dispõem de certos trunfos sociais”.
“A autoridade do maestro não se manifesta em virtude de seu status, mas pela
interação que ele propõe (met en face) aos membros da orquestra que definem
pouco a pouco a situação em função da experiência que eles têm com maestros e a
competência que reconhecem a cada um” (p. 193), além da visibilidade que um
“figurão” pode emprestar à orquestra, somadas as oportunidades de gravações, rádio
e TV — componentes que lhe conferem uma função mais ou menos sagrada e que
A esse respeito, logo que ingressei como docente na área de regência no Departamento de
Música da ECA-USP de Ribeirão Preto, fui abordado no “bandejão” por um aluno que,
provocadoramente, me perguntou sobre qual linha de regência eu seguia. Respondi que seguia
a linha do possível e que isso depende sempre de muitos fatores, entre os quais, o grupo que
se tem à frente, as condições materiais etc. Esse raciocínio derruba boa parte da bibliografia
glamorosa sobre regência, considerada sempre como uma profissão “complexa” e para
poucos. Outro exemplo significativo ocorreu quando eu regia o Madrigal Santa Luzia em São
Paulo e um cantor comentou sobre o meu “naturalismo”, já que sempre me neguei a impor
uma determinada interpretação, deixando que o grupo também manifestasse sua concepção da
obra para chegarmos a uma média ponderada no resultado final. É preciso que se diga que um
grupo de amadores instruídos deposita no regente a confiança do monopólio da verdade
sobre a obra e quer saber dele qual a maneira mais adequada de interpretá-la. Uma liderança
naturalista pode, portanto, levar ao descrédito ou à ilusão perdida aqueles que buscam na
prática coral amadora um enobrecimento ou a reconquista de um espaço social ao qual se
creem fazer parte.
9
32 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CASTRO
lhe faz ganhar muito mais do que um músico: vinte vezes, cem vezes mais, ninguém
sabe. 10
O ensaio não é senão “uma série de negociações efetuadas entre os músicos
e o maestro sobre a definição do tom que se deve dar a uma obra, definição que tem
mais chances de ser aceita pelos músicos quando o maestro souber bem colocá-la”
(p. 203). Toda diferença social e política será neutralizada pela “hipocrisia ritual” do
concerto; e, no caso da orquestra da Ópera de Paris, são 300 prêmios do CNSM e
122 prêmios internacionais — técnicos diferenciados à disposição do maestro para
tocar qualquer repertório.
A maior sintonia entre as famílias instrumentais ocorre em momentos de
disputa com o maestro — cada naipe com suas táticas típicas de promover a
desestabilização — com direito a concursos internos de piadas e irreverências que
não extrapolam as fronteiras dos naipes. Resultado do compromisso entre as duas
partes por um objetivo comum — que é o sucesso do concerto — na pior das
hipóteses, a orquestra assegurará um mínimo de qualidade musical sem respeitar
qualquer indicação do maestro.
O mau maestro, do ponto de vista dos músicos, é, portanto, aquele que faz
despertar a iconoclastia reprimida de uns e a indiferença ou a irritação de outros e o
ensaio é o momento em que a carga do passado de cada um (herdeiro, promovido
ou desclassificado) vem-se atualizar no presente (p. 220).
A orquestra em concerto: a unidade recomposta?
Os grandes gestos só permitidos ao maestro na hora do concerto são como
uma “demonstração física e social de sua autoridade” e não, como todos veem, um
meio de insuflar expressão à orquestra e à obra. Quanto mais uma obra é julgada
bem interpretada, maior visibilidade ao maestro e mais anonimato à orquestra, a
ponto de ser corrente a ideia de que, quando o concerto é bom, o mérito é do
maestro e, quando vai mal, a culpa recai sobre a orquestra.
Em suas três formas principais de representação — o concerto ao vivo, o
programa impresso e a transmissão pela TV — nota-se, sobretudo, a teatralização
10 É conhecido o desgaste entre Karajan e os músicos da Filarmônica de Berlim, quando quis
introduzir uma clarinetista mulher (Sabine Meyer) num meio até então exclusivamente
masculino.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
Resenha: L’orchestre dans tous ses éclats, Lehmann . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
das hierarquias (p. 222). A sala de concerto tem uma estrutura de um espelho que
traduz a realidade social. Para os lugares mais baratos, mais os instrumentos menos
valorizados são visíveis. Diferentemente das disposições para a música popular em
que o conjunto dos instrumentos é igualmente visível por todos os espectadores.
O rito do concerto — comparável ao religioso — impõe uma reverência
intransponível, como uma espécie de “prática religiosa profana”: 11 “A sala de
concerto é um lugar sagrado e serve de templo enquanto que o hall de entrada faz
parte ainda do espaço profano onde músicos e não-músicos se confundem” e a
entrada em cena “faz o papel ‘mágico’ da transubstanciação” (p. 228-229). Uma vez
que “a vida religiosa e a vida profana não podem coexistir num mesmo espaço” (p.
230).
O momento do concerto coloca face-a-face dois grupos distintos: os
músicos, oficiantes do sagrado, uniformizados “anulando toda veleidade em favor da
música (o sagrado) e do público (os devotos). Pelo uniforme [“vestidos como
pinguins”, cf. p. 7], os músicos ficam identificáveis como grupo e é somente na sala
que esta “eficácia mágica se operará” (p. 231). Citando Broch (1956), 12 “a verdadeira
função do uniforme não é outra coisa que manifestar e estabelecer a ordem do
mundo, de suprimir o vaporoso (flou) e o movente da vida, da mesma maneira que
esconde a maleabilidade e a flacidez do corpo humano” (p. 231). No “torpor
silencioso” do apagar das luzes, um silêncio “quase religioso” onde qualquer ruído
que ameace o “estado catártico” é censurado por pesados olhares de reprovação. Só
é permitido tossir entre os movimentos; é proibido ler jornais, comer pipoca (que,
aliás, nem se encontra à venda nas salas de concerto); de falar; de chegar atrasado e,
à chegada do maestro, os músicos são convidados a se levantar e compartilhar um
pouco de seu sucesso, assim como nos aplausos finais, numa verdadeira
“orquestração rítmica do público”. O spalla, que representa o ancestral do maestro,
o Konzertmeister, distingue-se como uma metonímia da orquestra (p. 232-234).
11 Dividi, certa vez, o programa de uma sinfônica com um colega, igualmente compositorregente. Era domingo, e como de hábito, antes de ir trabalhar, fui fazer a feira na rua de casa.
Ocorreu que, ao fazer a “parada obrigatória” na barraca de pastéis e caldo de cana, larguei
minhas compras no chão, sem prestar atenção a elas, e meus mamões foram furtados. No
camarim, ao comentar o incidente com meu colega, já em êxtase pré-concerto, ouvi como
resposta: “— Mas que prosaico!”.
12
Les somnambules, Paris: Gallimard, p. 22.
34 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CASTRO
O concerto é a hierarquia presente. Magister e Minister: o primeiro, aos
olhos do público, realiza gestos milagrosos que desencadeiam os sons, manifestando
sua superioridade; o segundo (o músico) torna-se o servidor a executar ordens (p.
235), muito embora essa capacidade de dirigir tenha sido questionada o tempo todo
ao longo dos ensaios. Raros são os maestros que tomam café com os músicos
durante a pausa. O folder do concerto e a transmissão pela TV são os espelhos bi e
tridimensionais dessa mesma ordem, no que se refere à visibilidade de cada um; dos
instrumentos mais “corporais” aos mais “espirituais”, e dos mais “militares” aos mais
“artísticos”.
A oposição principal sobre a qual repousa a orquestra não é de ordem
social, mas entre os herdeiros (sem ilusões, “peixes na água”) e os filhos de nãomúsicos. Um jogo de atração dos herdeiros, repulsão dos rebaixados (que aspiram a
ser o que jamais serão) e meio de sobrevivência para os promovidos. “Ocupando
posições que não correspondem às suas elevadas aspirações, os artistas de origem
dominante acham-se na obrigação de enobrecer e elevar a posição que ocupam; a
ideologia do sofrimento como princípio de criação, o ‘culto’ da arte pela arte, etc.
são as ferramentas que [...] usam [...] para fazer reconhecer como artística sua
própria posição”, enquanto que os herdeiros ja´sabem de antemão onde estão
pisando (p. 252).
Na demanda crescente por justificar sua utilidade, o músico é requisitado
com frequência a contribuir na instrução musical dos jovens em escolas, a fim de
reduzir as desigualdades sociais de acesso à música e à formação de público, além de
concertos populares, ensaios públicos, apresentações em fábricas e presídios,
transformando virtuoses em “missionários da democratização cultural” (p. 253-254).
Essa dissecação operada por Lehmann, sociólogo, mestre de conferências na
Universidade de Nantes e pesquisador do Centre Nantais de Sociologie, é útil na
construção de uma cultura musical erudita brasileira, na medida em que aponta os
problemas dessas formações seculares e nos ajuda a organizar as nossas, ao invés de
repetir os procedimentos europeus. Uma etnografia de nossas formações sinfônicas
— já iniciada por Dilma Pichoneri — traz, como foi visto acima, outras questões a
serem solucionadas, entre as quais, um programa nacional de ensino musical público
sonhado por Villa-Lobos e hoje realizado de maneira sistemática e eficiente no
estado de São Paulo pelo Projeto Guri, numa aliança com a Secretaria de Estado da
Cultura.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
Resenha: L’orchestre dans tous ses éclats, Lehmann . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
..............................................................................
Marcos Câmara de Castro é doutor em música pela ECA/USP, compositor e professor de
regência e canto coral no Departamento de Música da ECA/USP de Ribeirão Preto. Prêmio de
Composição do Florilège Vocal de Tours (1986); prêmio de “melhor obra experimental” da
APCA/1986; primeiro prêmio da Academia Brasileira de Música por seu livro Fructuoso
Vianna, orquestrador do piano, 2003. Frequentou as classes de Michel Philippot no CNSMParis, como “auditeur libre”, bolsista do CNPq (1988-1990). Seu catálogo inclui obras para
piano, violão, coro misto e infantil a cappella e com instrumentos, orquestra sinfônica e música
de câmara. Como pesquisador e conferencista, vem publicando em jornais e revistas
especializadas e participando de eventos no Brasil e no Exterior.
36 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
Artigo-Resenha
Soul brasileiro e funk carioca
Carlos Palombini (UFMG)
E as raridades do apogeu do soul, os frutos curiosíssimos de um fenômeno curioso — trabalhos como
o Racional de Tim Maia — são procurados e valorizados como chaves para se entender um Brasil
diferente, um Brasil cujos contornos e mistérios mal foram vislumbrados antes que desaparecesse.
— Bryan McCann (2002, p. 35)
A
música que hoje conhecemos como funk carioca não deriva diretamente do
funk norte-americano (vide BURNIM e MAULTSBY, 2006, p. 293–314), mas
de uma variedade de hip-hop (vide BREWSTER e BROUGHTON, 2000, p.
203–65; BURNIM e MAULTSBY, 2006, p. 353–89; KEYES, 2002; ROSE, 1994; ROSS
e ROSE, 1994, p. 69–144) conhecida como Miami bass. O nome “funk” aderiu à
música em função de sua gestação na cena (vide COHEN, 1999) dos bailes funk
cariocas dos anos oitenta, movidos a funk e rap norte-americanos (vide VIANNA,
1988). Estes, por sua vez, constituem um desenvolvimento dos bailes black cariocas
dos anos setenta, movidos a soul (vide BURNIM e MAULTSBY, 2006, p. 271–91 e
431–89; Guralnick 1986) e funk norte-americanos.
.......................................................................................
PALOMBINI, Carlos. Soul brasileiro e funk carioca. Opus, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 37-61, jun.
2009.
Artigo-Resenha: Soul brasileiro e funk carioca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Fig. 1: Versão em preto e branco, impressa nas quatro páginas do artigo de Frias,
da logomarca na contracapa do álbum Black Power, Only Soul, lançado pelo selo
brasileiro Black Horse (Tapecar Gravações) em meados dos anos setenta.
De acordo com a jornalista Lena Frias, que nomeou e revelou a cena Black
Soul nas páginas da grande imprensa em 1976, 1 os bailes black do Rio costumavam
O artigo de Frias chamou uma atenção indesejável para os bailes, desencadeando respostas
dos aparatos repressivos da ditadura militar e da intelligentsia nacional (ESSINGER, 2005, p.
35–36 e 40–42; McCANN, 2002, p. 30; HANCHARD, 2001 e 1994). De acordo com Vianna
(1988, p. 28), depois da matéria de Frias, praticamente todas as revistas brasileiras publicaram
artigos sobre o “mundo funk carioca”. Bahiana (1977) cita um artigo de Nelson Motta em O
Globo, 2 de janeiro de 1977. Essinger (2005, p. 31) cita um artigo no New York Times acerca do
qual ele não fornece maiores detalhes. McCann (2002, p. 62) cita os artigos “Turismo vê só
comércio no Black Rio”, Jornal do Brasil, 15 de maio de 1977; um artigo de Gilberto Freyre no
Estado de São Paulo, 30 de maio de 1977; e o artigo “Black Rio assusta maestro Júlio Medaglia”,
Folha de São Paulo, 10 de junho de 1977. Silva (2004, p. 69) cita o artigo “Black Rio” no
semanário Veja, 24 de novembro de 1976. Thayer (2006, p. 106) cita o artigo “O que é Black
Rio, segundo Ademir”, Jornal da música, 17 de fevereiro de 1977; e mais um artigo de Gilberto
Freyre, “Atenção brasileiros”, Diário de Pernambuco, 15 de maio de 1977, p. A–13. Vianna
(1988, p. 26–29) cita uma nota na seção “Afro-Latino-América” da publicação Versus,
maio/junho de 1978, p 42; uma entrevista com Dom Filó no Jornal de música 30, 1976 (excerto
da página 4); e um artigo de Carlos Alberto Medeiros no Jornal de música 33, agosto de 1977
(excerto da página 16). Hanchard (2001) reproduz excertos de alguns desses artigos.
1
38 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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atrair, a cada fim de semana, de quinhentos mil a um milhão e meio de jovens negros
ou identificados com a negritude — isto é, com a pobreza — dos subúrbios do Rio
de Janeiro para dançar ao som de James Brown e outros soul brothers em grandes
festas promovidas por equipes de som que chegavam a congregar quinze mil pessoas
(Frias 1976, p. 1). 2 Estes eventos eram os equivalentes locais dos sound systems
jamaicanos dos anos sessenta (vide BREWSTER e BROUGHTON, 2000, p. 108–22)
e das block parties do South Bronx dos anos setenta (vide BREWSTER e
BROUGHTON, 2000, p. 203–65). Quando, uma década mais tarde, o electro e o
Miami bass substituíram o funk e o soul como paisagem sonora de dileção das nãopessoas do Rio de Janeiro, o antropólogo Hermano Vianna calculou que setecentos
bailes estivessem ocorrendo a cada fim de semana no grande Rio, cada um atraindo
de quinhentos (um fracasso) a mil (a média), dois mil (pelo menos cem bailes) ou até
mesmo entre seis mil e dez mil funqueiros, num total de pelo menos um milhão de
jovens todos os sábados e domingos (Vianna 1988, p. 13). 3
Oito anos depois, o DJ Marlboro estimava que, a cada semana, oitocentos
bailes estivessem reunindo, cada um, uma média de dois mil funqueiros,
correspondendo a, no mínimo, um milhão e meio de jovens por semana, só no
estado do Rio (MATTA e SALLES, 1996, p. 42).
Como o nome indica, o funk carioca coloca a cultura musical do Rio de
Janeiro em relação com a música negra norte-americana, numa combinação única, de
reverberações transcontinentais. Se remontarmos às componentes musicais africanas
do Brasil e dos Estados Unidos, provavelmente encontraremos, em exílios
involuntários, expressões musicais relativamente parecidas.
2
A fonte de Frias é Ademir Lemos, discotecário da Soul Grand Prix.
Em artigo de 1990 publicado em Estudos históricos, Vianna fornece dados ligeiramente
diferentes: “hoje, segundo pesquisa que realizamos em 1987, acontecem cerca de seiscentas
festas funk [...] por fim de semana, atraindo um público de mais ou menos um milhão de
pessoas” (VIANNA 1990, p. 244). A discrepância entre o número de festas parece refletir o
caráter estimativo das estatísticas: tanto o livro de 1988 quanto o artigo de 1990 remetem-se
à mesma pesquisa, de 1987. A fonte provável de Vianna é o DJ Marlboro, e o aumento no
número de bailes — de seicentos em 1987 para setecentos em 1990 — é coerente com a
estimativa de Marlboro em 1996 (vide infra).
3
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
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Fig. 2: Integrantes da cena Black Soul fotografados por
Almir Veiga para o artigo de Frias (1976)
Todavia, enquanto a cultura africana norte-americana, da invenção do
fonógrafo ao apogeu do soul, desenvolve-se sob o signo do “separados, mas iguais”, a
história da música popular brasileira, desde os anos trinta, gravita em torno de
tropos de mediação e integração: “flor amorosa de três raças tristes”, os três
recintos da casa de Tia Ciata, a modinha e o lundu, o morro e o asfalto. Tão
poderoso é o ímpeto integracionista aqui que chega a re-significar o próprio
emblema da interdição: menos do que a segregação de espaços, a casa grande e a
senzala aludiriam ao prazer de intercursos semiproibidos. Mas o funk carioca não
marca necessariamente o reencontro de sujeitos oprimidos de hemisférios distintos
40 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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na consciência das forças opressoras, numa espécie de “africanos de todas as
Américas, uni-vos”. Esta relação, aliás, é mais antiga.
A apropriação e ressignificação de músicas africano-norte-americanas por
industriais e artistas brasileiros 4 é tão velha quanto a própria indústria fonográfica. 5
“Laughing Song”, de George Washington Johnson, a gravação mais vendida dos anos
1890 (BROOKS, 2006, p. 4 e 41), apareceu em cilindro no hemisfério sul
provavelmente já em 1902 (FRANCHESCHI, 2002, p. 44; 1984, p. 48 e 50). Gravada
em disco por Eduardo das Neves em 1906–1907 sob o título “Gargalhada (Pega na
chaleira)” com letra de Vagalume (GUIMARÃES, 1978, p. 68), ela permaneceu no
catálogo da Casa Edison por aproximadamente um quarto de século. Mas enquanto
Johnson, um africano norte-americano, caricatura o comportamento de um negro de
acordo com padrões brancos, Neves, um “crioulo” (como ele se autodenominava),
satiriza o chaleirismo, que ele apresenta como um traço característico das classes
dominantes. No processo, uma coon song 6 transforma-se num lundu, como
“Gargalhada” foi constantemente anunciada. Por outro lado, “At a Georgia Camp
Meeting”, de Kerry Mills, um cakewalk mundialmente famoso (HARER, 2006, p. 140;
WONDRICH, 2003, p. 65), apareceu no Brasil sob várias formas nas primeiras
décadas do século vinte, uma delas a canção “O mulato de arrelia”. 7 Mas enquanto o
cakewalk se associa a uma paródia coreográfica, por escravos negros, do
comportamento de seus proprietários brancos, “O mulato de arrelia” mostra um
cantor de cor desconhecida personificando a bravata de um negro suburbano na
capital europeizada da nação. No processo, um cakewalk se transforma na
contrapartida brasileira de uma coon song.
Sobre o estabelecimento de relações entre a América do Sul e os Estados Unidos na
pesquisa sobre música negra, vide Béhague (2002).
4
A este respeito, vide Carlos Palombini, “Fonograma 108.077: o lundu de George W.
Johnson”, Per musi, v. 23, jan.-jun. 2011, (no prelo).
5
“Estilo de canção popular do final do século XIX e início do século XX que apresentava uma
visão estereotipada dos africanos norte-americanos, frequentemente interpretada por
cantores brancos com as caras pintadas de preto” (BURNIM e MAULTSBY 2006, p. 644).
6
Sou grato à pesquisadora austríaca Ingeborg Harer por ter identificado, a meu pedido, a
fonte norte-americana de “O mulato de arrelia” numa mensagem eletrônica de 16 de abril de
2008.
7
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
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Fig. 3: George W. Johnson, Laughing Song.
42 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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Fig. 4: Kerry Mills, At a Georgia Camp Meeting.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
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Em 1961 o LP Os anjos cantam, com Nilo Amaro e Seus Cantores de Ébano,
anunciou a febre de soul do início dos anos setenta com repertório eclético, arranjos
de doo-wop e estilo vocal semelhante aos Platters. No dia 18 de março de 1965 a
aparição épica de Clementina de Jesus no musical Rosa de Ouro (SEVERIANO, 2008,
p. 413–16; PAVAN, 2006, p. 11–22; COELHO, 2001, p. 16–23 e 40–46;
MALDONADO, 2000, p. 4–7, 10–15, 28 e 33; BEVILAQUA et al. 1988, p. 71–76)
colocou em cena a negritude máxima da vocalidade religiosa afrobrasileira e “teve
para a música popular brasileira a importância que presumivelmente corresponda em
Antropologia à descoberta de um elo perdido” (Ary Vasconcelos citado por
SEVERIANO, 2008, p. 415; COELHO, 2001, p. quarta capa; MALDONADO, 2000, p.
6).
Fig. 5: Clementina de Jesus no espetáculo Rosa de Ouro,
Teatro Jovem, Rio de Janeiro, 1965.
44 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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No dia 24 de junho de 1967, no primeiro aniversário do programa semanal
de televisão de Wilson Simonal, o Show em Simonal, gravado ao vivo em LP duplo,
três mil pessoas cantaram com ele seu “Tributo a Martin Luther King”: “cada negro
que for, mais um negro virá para lutar com sangue ou não, com uma canção também
se luta irmão, ouve minha voz!” 8 Gravado em fevereiro, o compacto duplo esperou
nas gavetas da censura até junho, quando foi finalmente liberado (ALEXANDRE,
2004). Três anos depois, o soul e o funk explodiam na televisão brasileira com as
aparições meteóricas de Toni Tornado e o Trio Ternura em “BR-3” (de Antônio
Adolfo e Tibério Gaspar) e de Erlon Chaves e a Banda Veneno em “Eu também
quero mocotó” (de Jorge Ben). A vista de uma performatividade negra não
domesticada desencadeou uma guerra multimídia: dois anos depois, Tornado se
exilara e Simonal fora levado a juízo e difamado; profundamente ferido, Chaves
morreu de um ataque cardíaco em 1974 (ALEXANDRE, 2004; CASSEUS, 2004;
No livreto que acompanha a caixa de CDs Wilson Simonal na Odeon, Ricardo Alexandre narra
a criação e performance desta canção.
8
Durante uma passagem de som, o cantor chamou Cesar Mariano e mostrou, dedilhando o
piano, um spiritual que compusera, algumas horas antes, com Ronaldo Bôscoli. “Na época
— acho que posso dizer isso agora —, Simonal estava muito atento à criação do Partido
dos Panteras Negras nos Estados Unidos”, lembra o pianista. “Era algo que dizia muito a
ele, que estava se transformando em um astro, mas pouco tempo antes era obrigado a
entrar pelas portas de trás nos lugares em que queria ir. Esse assunto sempre estava em
pauta nos shows, ou como uma piada leve, ou em um texto sério. E ele ficou encantado
com (o pastor batista americano) Martin Luther King e acompanhava em detalhes a luta dele
como ativista dos direitos dos negros. Eu fiquei arrepiado com a música que ele me
mostrou, com a força do texto, e vi o quanto era séria a consciência civil dele. Imaginei um
arranjo pesado, compatível com toda aquela dor da letra, mas ele pediu o contrário —
‘vamos swingar isso aí, deixar este assunto mais leve’. É um dos arranjos de que mais me
orgulho.” (ALEXANDRE, 2004)
Após interpretar “Tributo a Martin Luther King” como número final no aniversário de seu
show, em 25 de junho de 1967, Simonal, cuja voz soa perceptivelmente perturbada na
gravação ao vivo, retirou-se para o camarim e chorou, antes de retornar ao palco para o extra
final. Em 26 de janeiro de 2008, seu filho mais velho, o cantor e instrumentista Wilson
Simoninha, colocou um vídeo de “Tributo a Martin Luther King” no Youtube,
<www.youtube.com/watch?v=FH0Ws4Sw0ZE>. Simonal inicia esta performance, que
Simoninha data do final de 1966 ou início de 1967, pedindo permissão para dedicá-la a seu
filho, “esperando que, no futuro, ele não encontre nunca aqueles problemas que eu encontrei,
e tenho às vezes encontrado, apesar de me chamar Wilson Simonal de Castro.”
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
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MELLO, 2003). 9 Em 1971, Marcos Valle e Elis Regina lançaram, nos álbuns Garra e Ela
respectivamente, “Black is Beautiful” dos irmãos Valle, demonstrando a aceitabilidade
da negritude feminina ou masculina enquanto artigo de luxo para brancos por
brancos — qualquer inquietação que a imagem de uma mulher branca cantando sua
submissão a um corpo negro em horário nobre pudesse deflagrar, convenientemente
deflacionada pela caracterização circense da cantora. 10 O ano de 1975 viu o
lançamento do ascético Racional, de Tim Maia (vide McCANN, 2002, p. 33; MOTTA,
2007, p. 130–43), apogeu do soul brasileiro. Maria fumaça, da Banda Black Rio, em
1977, e Tim Maia disco club, de Tim Maia, em 1978, fecharam o ciclo de modo
decididamente funqueado. 11 O jornalismo cultural contemporâneo, porém, ouviu o
som contagiante — e internacionalmente admirado — da Banda Black Rio como a
fabricação de um executivo sírio para um conglomerado ianque (BAHIANA, 1977).
Negros ou não, para os DJs brasileiros dos anos setenta e oitenta, a disco (vide
BREWSTER e BROUGHTON, 2000, p. 123–202; BURNIM e MAULTSBY, 2006, p.
315–29; FIKENTSCHER, 2000; GILBERT e PEARSON, 1999; LAWRENCE, 2003;
ROSS e ROSE, 1994, p. 147–57; SHAPIRO, 2005) era aquela coisa branca sem
suingue que acabara com os bailes (Mr Funky Santos em ESSINGER, 2005, p. 42–45;
DJ Marlboro em MATTA e SALLES, 1996, p. 23).
O humor, por assim dizer, foi uma das armas desta guerra. Veja-se, por exemplo, uma
paródia despudoradamente racista da performance de Toni Tornado, com o próprio e os
Trapalhões, no final dos anos setenta: <www.youtube.com/watch?v=sf2OZw1jf7U>. Embora
este tipo de humor seja moeda corrente na televisão brasileira, é surpreendente ver o próprio
cantor participando desta encenação. Numa entrevista concedida em 1999, Tornado
confessou ter subido ao palco num show de Elis Regina em 1972 para dirigir-se à plateia com a
saudação dos Panteras Negras. Algemado e detido, ele foi forçado a cantar e dançar “BR-3”
para os policiais, um a um, na delegacia, passando a detestar a canção (CARDOSO, 1999).
9
Vide Youtube, <www.youtube.com/watch?v=FVoJwaCm568>, para o excerto
correspondente do primeiro show mensal Elis Especial, dirigido por Ronaldo Bôscoli, então
esposo da cantora, e Luiz Carlos Miéle para a TV Globo, televisonado em junho de 1971
(ECHEVERIA, p. 1985). O serviço de censura vetou a letra original — “eu quero uma dama de
cor, uma deusa do Congo ou daqui, que melhore o meu sangue europeu” — a pretexto de
que os irmãos Valle estariam trazendo para o país um problema racial que não existia aqui
(BOMFIM e VALLE, 2006). O trecho foi então adequado à mística integracionista: “eu quero
uma dama de cor, uma deusa do Congo ou daqui, que se integre no meu sangue europeu”.
10
11 Sobre as música soul e funk norte-americanas no Brasil, vide ESSINGER, 2005, p. 15–48,
FRIAS, 1976, GIACOMINI, 2006, McCANN, 2002, THAYER, 2006 e VIANNA, 1988; sobre as
músicas soul e funk brasileiras, vide BAHIANA, 1977, McCANN, 2002, MOTTA, 2000 e 2007,
ZAN, 2005A e 2005B e MARQUAND e BARBO, 2006.
46 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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De meados dos anos sessenta a meados dos anos setenta, uma legião de
artistas brasileiros flertou com o soul ou o funk norte-americanos, alguns com
sucesso imenso: Antônio Adolfo e a Brazuca, Antônio Marcos, Azymuth, Caetano
Veloso, Cláudia Telles, Djavan, Dudu França, Ed Lincoln, Eduardo Araújo, Elis
Regina, 12 Erasmo Carlos, Eumir Deodato, Evinha, Fábio, Gilberto Gil, Os Incríveis,
João Donato, Jorge Ben, Joyce, Lady Zu, Luís Vagner, Luiz Melodia, Manito, Marcos
Valle, Maria Alcina, Marku Ribas, Orlandivo, Quinteto Ternura, Regininha, Rita Lee,
Roberto Carlos, 13 Ronaldo Resedá, Sérgio Mendes, O Som Nosso de Cada Dia,
Taiguara, Trio Esperança, Trio Ternura, Wilson Simonal, Zé Rodrix. A relação destes
artistas com os bailes black foi nula. No mesmo período, alguns artistas brasileiros
dedicaram-se, sobretudo ou exclusivamente, ao soul e ao funk, pelo menos um deles
com sucesso enorme: Banda Black Rio, Carlos Dafé, Cassiano, Os Diagonais, Hyldon,
Dom Mita, Dom Salvador e Abolição, Robson Jorge, Sônia Santos, Tim Maia, Toni
Tornado, União Black. Quaisquer que tenham sido as relações destes artistas com os
bailes, é evidente que os bailes não necessitavam deles.
A relação entre os bailes black dos anos setenta e os bailes funk dos anos
oitenta não foi elucidada ainda. Em seu notável estudo do Renascença Clube, onde,
de 1972 a 1975, Asfilófio de Oliveira Filho, o Dom Filó, organizou a Noite do Shaft,
um dos bailes mais importantes dos anos setenta, Sonia Giacomini recorre a
entrevistas com antigos frequentadores para sublinhar rupturas entre as duas cenas
(vide GIACOMINI, 2006, p. 189–256). A maioria dos autores (ESSINGER, 2005, p.
36–48; GIACOMINI, 2006, p. 239; McCANN, 2002, p. 53–57; THAYER, 2006, p.
104–6) concorda que, na segunda metade dos anos setenta, os bailes haviam sido
mortalmente atingidos por uma combinação de fatores: atenção negativa gerada pelo
artigo de Frias; hostilidade do mundo do samba; chegada da disco. Contudo, Vianna
(1988, p. 11) registra a existência, em meados dos anos oitenta, de bailes funk nos
quais os DJs tocavam “um funk mais antigo” (provavelmente funk puro e simples),
fornecendo ainda detalhes sobre a substituição do soul e do funk norte-americanos
pela disco e, depois, por uma variedade mais lenta de rhythm’n’blues (vide BURNIM
12 Para uma performance de Elis Regina e os azes do soul jazz brasileiro, Dom Salvador e
Abolição, no épico “Uma vida”, de Dom Salvador e Arnoldo Medeiros, apresentado no
terceiro programa mensal Elis Especial, em 1971, vide
<www.youtube.com/watch?v=80sNe90sNqs>.
13 Para ouvir Roberto Carlos numa performance soul de “Não vou ficar”, de Tim Maia, em
1971, vide <www.youtube.com/watch?v=0uyV1D4r1-U>.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
Artigo-Resenha: Soul brasileiro e funk carioca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
e MAULTSBY, 2006, p. 245–69), localmente conhecida como charme, antes da
adoção definitiva do hip-hop norte-americano, um processo que ele julga ter-se
completado em 1985 (VIANNA, 1988, p. 30–31). A comparação de fotografias que
ilustram o artigo de Frias (1976) com fotos do livro de Vianna (1988) e fotogramas
do filme de Denise Garcia, Sou feia mas tô na moda (2005), mostra, antes de mais
nada, a proletarização pós-milagre da pobreza. Parece-me preferível, portanto,
realçar as conexões que ligam os locais onde os bailes acontecem, a posição social
dos bailantes, os lugares de onde eles provêm, as relações de suas formas de vestir e
dançar com as da Zona Sul e, sobretudo, a dependência comum do vinil negro norteamericano. Todavia, se é verdade que nos sulcos deste vinil se inscreve o parentesco
entre o soul, o funk e o hip-hop norte-americanos, é verdade também que
recordadores dos bailes black dos anos setenta não hesitam em dar voz a seu
desprezo pelos funqueiros de hoje (vide GIACOMINI, 2006, p. 239–44), no que são
seguidos por representantes do hip-hop brasileiro (vide DAYRELL, 2005). Citando
Vianna (2005, p. 20), o funk carioca é “o excluído do excluído”. Ainda assim, Oséas
Moura dos Santos, ou Mr Funky Santos, o DJ/MC por trás dos primeiros bailes black
dos anos setenta (ESSINGER, 2005, p. 19), no extinto Astoria Futebol Clube, do
Catumbi, admite a contragosto um parentesco ao afirmar que “se hoje tem pagode
— vê o visual e o linguajar dos caras —, se hoje tem funk — por mais medíocre que
ele seja —, se hoje tem rap — mas um rap bonito, como o dos Racionais MCs — a
culpa toda é do soul” (ESSINGER, 2005, p. 48).
De modo análogo à cena Northern Soul inglesa (vide BIDDER, 2001, p. 53–
55; BREWSTER e BROUGHTON, 1999, p. 76–105; SHAPIRO, 2005, p. 48–56), que,
de 1963 a 1981, gravitou em torno da discotecagem, em cidades tão pouco turísticas
como Wolverhampton, Tunstall, Wigan, 14 Blackpool, Cleethorpes e Stroke-on-Trent
(BREWSTER e BROUGHTON, 2000, p. 103), de compactos obscuros produzidos
nos Estado Unidos no estilo mais acelerado da Motown, os bailes do Rio de Janeiro
dependeram, de 1970 a 1989, da discotecagem, em topônimos tão pouco
glamourosos como Acari, Andaraí, Bangu, Catumbi, Coelho da Rocha, Coleginho,
Duque de Caxias, Grajaú, Irajá, Leopoldina, Madureira, Marechal Hermes, Méier,
Mesquita, Nilópolis, Niterói, Parada de Lucas, Pavuna, Pendotiba, Penha, Ramos,
Rocha Miranda, São Gonçalo, Tijuca, Vila da Penha e Vilar dos Telles, de músicas
14 Para um documentário sobre o Wigan Casino, o último santuário da cena Northern Soul,
vide <www.youtube.com/watch?v=TbEuq54FcBg>.
48 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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africanas produzidas nos Estados Unidos. Mas se a cena Northern Soul perde
momento no final dos anos sessenta, quando a música africana norte-americana
orienta-se para o soul da Filadélfia ou o funk e não há mais compactos do tipo certo
para se desencavarem, os bailes brasileiros mostram uma disposição para assimilar
uma variedade de músicas norte-americanas, do selo King ao gênero booty,
alimentando-se de importados por duas décadas antes de gerar uma música própria.
Fig. 6: Frequentadores dos Baile Funk fotografados por Guilherme Bastos
para o livro de Hermano Vianna (1988)
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
Artigo-Resenha: Soul brasileiro e funk carioca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Fig. 7: Funqueiros filmados por Denise Garcia em 2005
Execrado e exaltado na mídia, 15 para a qual o morador da favela ou é
bandido ou é muito criativo, como afirma Ivana Bentes numa entrevista recente
(MELO e BENTES, 2007; vide também GILLIGAN, 2006), e figurando lado a lado
com o sertanejo, o pagode romântico e o axé entre os gêneros mais citados nas listas
de abominações musicais, o funk carioca, no qual o morador da favela pode ser, ao
mesmo tempo, violento e muito criativo, constitui o primeiro gênero brasileiro de
música eletrônica dançante; a nossa música house. Como a house de Chicago (vide
BIDDER, 1999 e 2001; BREWSTER e BROUGHTON, 2000, p. 291–317; BURNIM e
MAULTSBY, 2006, p. 315–29; FIKENTSCHER, 2000; KEMPSTER, 1996), o funk
carioca resulta da apropriação criativa de tecnologia barata por não-músicos para a
produção de música destinada a setores marginalizados da população: jovens negros
15 Sobre a relação entre o funk carioca e a mídia, vide George Yúdice (1994) e Micael
Herschmann (2000).
50 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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gays de Chicago no início dos anos oitenta; jovens habitantes de regiões urbanas
economicamente muito deprimidas do Rio de Janeiro no final dos anos oitenta.
A fim de evitar a realização de free parties ou raves animadas por acid-house
(vide BIDDER, 1999 e 2001; COLLIN, 1997; KEMPSTER, 1996; REYNOLDS, 1998),
em 1994 o Parlamento do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte
conferiu à polícia “poderes para remover pessoas participando ou se preparando
para participar de uma rave” na qual se executasse “música total ou
predominantemente caracterizada pela emissão de uma sucessão de batidas
repetitivas” (Cláusula 63 do Criminal Justice and Public Order Act 1994). Objeto
constante das preocupações da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro,
que, no artigo sexto da Lei 3410 de 29 de maio de 2000 sentenciou — com
concordâncias e sintaxe precárias — ficarem “proibidos a execução de músicas e
procedimentos de apologia ao crime nos locais em que se realizam eventos sociais e
esportivos de quaisquer natureza” (Cláusula 6 da Lei 3410 de 29 de maio de 2000), 16
os bailes funk já dividiram com as raves britânicas o privilégio de alimentarem-se de
uma música regida por legislação específica. Eles devem ser compreendidos no
contexto não apenas da apropriação das músicas africanas norte-americanas por
setores marginalizados das populações brasileiras (sub)urbanas, mas também dos atos
de violência física ou simbólica perpetrados pela mídia, os indivíduos, a sociedade civil
e o estado contra estas populações e suas manifestações culturais (vide ALVES
FILHO, 2006; ARAÚJO, 1999A e 1999B; BORGES, 2007; CABRAL, s.d.; ESSINGER,
2005; GILLIGAN, 2006; GUEDES, 2007; HERSCHMANN, 2000; HERSCHMANN,
16 Esta lei foi revogada e substituída pela Lei 5265 de 18 junho de 2008, ainda mais draconiana,
reprimindo também as raves. Contudo, em 22 de setembro de 2009, a Lei 5265 foi revogada
pela Lei 5544, assinada pelos deputados Marcelo Freixo e Paulo Melo, através da qual os bailes
funk e as raves cessaram de estar sujeitos a legislação discriminatória. Ainda em 22 de
setembro, a Lei 5543, de Marcelo Freixo e Wagner Montes, determinou que: (1) o funk
[carioca] é um movimento cultural e musical de caráter popular; (2) o poder público deve
garantir a realização de seus eventos — festas, bailes e encontros — sem quaisquer regras
discriminatórias diferentes daquelas que regem outros eventos da mesma natureza; (3) as
questões relativas ao funk devem ser tratadas preferencialmente no âmbito das organizações
públicas de cultura; (4) fica proibido todo o tipo de discriminação e preconceito, seja de
natureza social, racial, cultural ou administrativa, contra o movimento funk e seus integrantes;
(5) os artistas do funk são agentes da cultura popular e, como tal, seus direitos devem ser
respeitados. Aprovada por unanimidade pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro, ambas as leis resultaram de ação conjunta da Associação dos Profissionais e Amigos
do Funk (APAFunk) e de um grupo de deputados de vários partidos (Araújo 2009).
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
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2007; LURIE 2000; LYRA 2006; MATTOS 2006; MEDEIROS 2006; MELO e BENTES
2007; RUSSANO 2006; SNEED 2003 e 2007; VIANNA 2005 e 2006). A história do
funk carioca consuma a implosão da mística da interação pacífica entre senhores e
escravos, entre o morro e o asfalto, a sala de estar e a cozinha, a modinha e o lundu,
que é uma das forças motrizes das narrativas de nossas músicas, eruditas ou
populares. A nação que o funk carioca retrata é uma nação dividida. E contudo, na
historiografia do funk carioca, o paradigma integracionista predomina.
Para Vianna (1988, p. 24–25), Macedo (2003, p. 43), Essinger (2005, p. 17–
18) e Thayer (2006, p. 90), os Bailes da Pesada, que o DJ branco de classe média
Newton Duarte, também conhecido como Big Boy, e o DJ de mestiço Ademir
Lemos organizavam na cervejaria Canecão, na Zona Sul do Rio de Janeiro, no início
dos anos setenta, desempenham o papel de eventos fundadores. Se Vianna (1988, p.
9 e 12–13) e Marlboro (MATTA e SALLES, 1996, p. 63–64) estão certos, o funk
carioca surgiu quando um antropólogo branco da classe média alta — o próprio
Vianna — presenteou um DJ suburbano branco da classe média baixa, Luís Fernando
Mattos da Matta, também conhecido como DJ Marlboro, com uma bateria eletrônica.
Para Essinger (2005, p. 81–94) e Marlboro (MATTA e SALLES, 1996, p. 66–73), o
primeiro lançamento comercial de funk carioca — o LP D.J. Marlboro apresenta funk
Brasil, produzido por Marlboro em 1989 — resultou desse presente, uma
interpretação endossada pelo próprio Marlboro na capa do LP. Até mesmo o rap de
contexto, um subgênero que lida com os feitos e as lutas das facções criminosas
(vide SNEED, 2007 e 2003), é apresentado por Essinger (2005, p. 91) como
originando-se do primeiro álbum de um Marlboro bem barbeado e, até algum tempo
atrás, queridíssimo da mídia.
Além do proibidão, também conhecido como funk proibido, rap de contexto ou
funk de facção, os subgêneros musicais incluem o funk sensual (ou putaria), funk
consciente, funk melody, funk de raiz, gospel funk e montagem (explorando a repetição
rítmica de fragmentos vocais, como no início da house). Todavia, as fronteira entre
crime, sexo, consciência, romance, enraizamento, o Evangelho e a fala desumanizada
são frequentemente indistintas. Os bailes podem dividir-se em bailes de comunidade,
dentro da favela; bailes de asfalto, fora dela; bailes de rua, mais raros; e bailes do bicho,
bailes de briga, bailes de corredor, lado A e lado B e quinze minutos de alegria, hoje
extintos, nos quais a violência assumia um caráter recreativo. Em qualquer um desses
eventos, a música pode vir de um DJ que toca faixas de funk carioca a partir de CDs
ou de um HD; de um ou mais MCs que rapeiam/cantam — frequentemente
52 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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acompanhados por um grupo de dançarinos (a combinação de MC e dançarinos
formando o bonde) — ao som de um DJ que toca uma combinação de batidas e
breaks disparados de uma bateria eletrônica; ou de um DJ invisível que dispara uma
faixa pré-gravada sobre a qual o MC rapeia/canta ao vivo. Não importa o formato,
uma parede de alto-falantes é de rigor. As equipes de som são dirigidas por donos de
equipe que contratam DJs, técnicos de som e dançarinos, além de deterem direitos
fonográficos, apresentarem programas de rádio e televisão e manterem os MCs sob
contratos mais ou menos exclusivos. Para um dos mais importantes MCs atuais, eles
são “os cânceres do funk” (CATRA, 2007). Todavia, um estudo recente do
Laboratório de Pesquisa Social Aplicada da Fundação Getúlio Vargas mostrou que os
MCs do Rio recebem, de longe, a maior parcela dos lucros da economia do funk
(TOSTA, MIBIELLI e MENEZES 2008, p. 79–83), sessenta e um por cento deles
nunca tendo estado sujeitos a contrato com uma equipe de som (TOSTA, MIBIELLI e
MENEZES 2008, p. 40).
O fim do milênio assistiu a um incremento do interesse pela “música soul”
(uma expressão que, na fala brasileira, pode incluir também o funk norte-americano,
de modo a diferenciá-lo da variedade carioca, menos prestigiosa), em certa medida
devido à emergência na mídia de questões relativas ao racismo e às políticas de ações
afirmativas. Novos artistas apareceram, artistas antigos retornaram e muitos
daqueles que nunca interromperam suas carreiras viram-nas reflorescer. “Bailes da
saudade” nos quais DJs dos anos setenta executam seu antigo repertório têm
atraídos um público jovem. Além disso, DJs-produtores de house, drum’n’bass e hiphop têm remixado seleções do repertório brasileiro de soul e funk dos anos setenta
(o quanto este repertório é valorizado no exterior, sabem-no os proprietários de
lojas de discos usados no Brasil), dando origem aos modismos da bossa’n’bass,
drum’n’bossa etc. O mundo funk carioca, por sua vez, continua em rápida
transformação. Um estudo diacrônico de sua música, todavia, ainda está para
realizar-se.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
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Carlos Palombini é professor de musicologia na UFMG e pesquisador do CNPq e da
FAPEMIG. Seus trabalhos enfocando a história da escuta e a historiografia da música popular
brasileira em suas relações com as questões negra e homossexual têm aparecido em livros e
periódicos no Brasil, no Reino Unido, nos Estados Unidos, na França, na Finlândia, na Espanha,
na Austrália e no Canadá. Com Sophie Brunet, colaboradora de Pierre Schaeffer, preparou
uma edição crítica de um original inédito e inacabado de Schaeffer, o Ensaio sobre a rádio e o
cinema (1942), que será publicada pelas edições Allia, de Paris, em novembro de 2010.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Música Soul
David Brackett
Originalmente publicado no New Grove Dictionary of Music and Musicians. Londres:
Macmillan, 2001. Traduzido por Carlos Palombini. Publicado sob permissão do autor.
U
m estilo de música popular negra norte-americana. O termo soul, no
linguajar negro norte-americano, tem conotações de orgulho e cultura
negros, mas seu uso em conjunção com a música apresenta uma genealogia
complicada. Grupos de gospel, nos anos quarenta e cinquenta, ocasionalmente
usaram o termo como parte de seus nomes, como em Soul Stirrers. Por sua vez, o
jazz que deliberadamente usava figuras melódicas ou riffs derivados da música gospel
ou do folk blues veio a ser chamado soul jazz no final dos anos cinquenta. À medida
que cantores e arranjadores começaram a usar técnicas da música gospel e do soul
jazz na música popular negra durante os anos sessenta, música soul passou
gradualmente a funcionar como um termo abrangente para a música popular negra
da época, com a música gospel em particular fornecendo um rico fundamento para
os estilos de canto de vários astros. Além de sua associação com um agregado de
práticas musicais, a ascendência do termo está inextricavelmente ligada ao
movimento pelos Direitos Civis e ao crescimento dos nacionalismos negros culturais
e políticos do período.
.......................................................................................
BRACKETT, David. Música soul. Trad. Carlos Palombini. Opus, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 62-68, jun.
2009.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . BRACKETT
I. Origens
O fato do termo soul ter sido usado em relação à música gospel, ao jazz e
ao rhythm and blues indica a interconexão entre essas diferentes práticas musicais
negras norte-americanas, todas elas já compartilhando abordagens harmônicas,
rítmicas, melódicas e tímbricas. Mas os gêneros realmente se diferenciam, seja pela
forma e o grau em que esses elementos são colocaos em jogo, seja pelo tema das
letras. Assim, a emergência da música soul a partir do rhythm and blues no início dos
anos sessenta é mais uma mudança de ênfase do que uma importação de novos
elementos da música gospel (como se diz às vezes). Todavia, o crescente emprego de
técnicas vocais para significar êxtase espiritual, intensidade e devoção num contexto
secular intensificou tanto o senso tanto de identificação apaixonada do cantor com a
canção quanto de conexão entre o estilo de música e a comunidade negra.
O primeiro cantor de rhythm and blues a atrair a atenção por sua dívida
para com a técnica gospel foi Clyde McPhatter, o lead singer de várias gravações de
sucesso da primeira metade dos anos cinquenta, com Billy Ward and the Dominoes
e com o Drifters. Estas gravações apresentavam os melismas apaixonados de
McPhatter e suas alternâncias de chamada e resposta com outros cantores do grupo
num grau maior do que fora evidente em gravações prévias de rhythm and blues. O
que distinguia McPhatter dos cantores de grupos mais antigos advindos do gospel,
como o Ink Spots e o Mills Brothers, era a forma como ele adotava o estilo dinâmico
de solo de cantores como Mahalia Jackson e Clara Ward em canções com
progressões harmônicas derivadas do gospel, nas quais a mudança de uma só palavra
podia transformar a canção de volta num número de gospel, como de have mercy
baby (tem pena, querida) para have mercy Lord (Senhor, tende piedade). Importante
também no final dos anos cinquenta foi Jackie Wilson, o sucessor de McPhatter no
Dominoes. Este intérprete marcante empregou técnicas vocais derivadas do gospel
num idioma de orientação pop.
Ray Charles colocou em foco várias das inovações de McPhatter, numa série
de gravações a partir de 1954. Muitas dessas canções faziam uso óbvio de modelos
de gospel, como “I’ve Got a Woman”, baseada em “I’ve Got a Savior”. Nessas
gravações, Charles canta numa sonoridade áspera e exuberante, cheia de
interjeições, gritos, bends, melismas e gritos, acompanhado de seu piano gospel e
padrões de chamada e resposta entre sua voz e ora os metais ora um grupo feminino
de backing vocals, as Raelettes. A apoteose dessa abordagem aparece em sua gravação
de 1959 de “What I’d Say”, que não só importou elementos musicais da música
gospel como também produziu uma simulação condensada de um serviço religioso
pentecostal negro norte-americano. De modo semelhante, James Brown empregou
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
Música Soul . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
elementos da música gospel com o fervor de um pregador pentecostal em canções
como “Please, Please, Please” (1956) e “Try Me” (1958). Ao contrário, Sam Cooke
usou uma técnica vocal polida e sofisticada, desenvolvida no popular grupo de gospel
Soul Stirrers, para gravar “You send me”, um sucesso maior de crossover (isto é, da
parada negra para a parada pop) em 1957. Sua abordagem das baladas, expressando
espiritualidade e sensualidade contidas, foi uma influência maior em cantores de soul
dos anos sessenta e setenta como Otis Redding e Al Green.
II. Os anos sessenta
O início dos anos sessenta viu um aumento dramático de gravações
influenciadas pelo gospel, quando uma confluência de intérpretes, autores e
gravadoras começou a produzir discos num estilo coerente que se tornaria
conhecido como soul. Os trabalhos iniciais de Solomon Burke (“Cry to Me”, 1962),
Otis Redding (“These Arms of Mine”, 1963) e Wilson Pickett (“I Found a Love”, com
o Falcons, 1962), gravados em selos independentes como Atlantic e Stax e dirigidos a
um público majoritariamente negro, combinaram-se com os de veteranos como
Charles, Cooke, Brown e outros como Bobby “Blue” Bland para marcar o
surgimento de um gênero reconhecível. Além dos melismas, bends e amplo espectro
de timbres empregados pelos lead vocalists, estas canções, todas em tempo lento,
davam destaque a subdivisões em quiálteras, frequentemente articuladas em arpejos
de piano ou violão. Elas também costumavam apresentar “sermões” interpostos, que
normalmente assumiam a forma de conselho romântico endereçado aos ouvintes.
À medida que o termo soul começou a integrar o vocabulário da grande
mídia, a música popular negra passou a cortar seus elos com o rhythm and blues dos
anos cinquenta de modo cada vez mais radical, estabelecendo um estilo característico
de soul dos anos sessenta. Começaram a tornar-se claras as diferenças entre, por um
lado, um estilo de soul atávico, do sul, identificado com as companhias de gravação
Stax e Atlantic e estúdios em Memphis e Muscle Shoals, no Alabama, e, por outro,
um estilo de soul afluente ou refinado, do norte, identificado primariamente com a
companhia Motown Records, de Detroit. Entre os anos de 1964 e 1966, as técnicas
de gospel empregadas pelos lead vocalists continuaram, enquanto os instrumentos
acompanhantes adquiriram maior definição através do uso de riffs rítmicos. O baixo,
em particular, ganhou proeminência através do emprego crescente de padrões
sincopados e os metais começaram a ser usados em rajadas sincopadas em staccato.
Canções em andamento médio ou rápido, como “Out of Sight” (1964) de James
Brown, “Mr Pitiful” (1964) de Otis Redding, “In the Midnight Hour” (1965) de
Wilson Pickett, “Shotgun” (1965) de Jr Walker and the All Stars e “Rescue Me”
64
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opus
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(1965) de Fontella Bass, exibem todas uma crescente dependência dessas
características, bem como um distanciamento dos ritmos shuffle dos anos cinquenta
em direção às subdivisões regulares que caracterizam estilos posteriores como o
funk, a disco e o hip-hop. As baladas continuaram a apresentar subdivisão em
quiálteras, mas com arranjos mais elaborados e maior uso de metais, particularmente
em gravações de “soul do sul”; ou instrumentos orquestrais, especialmente nas
gravações produzidas pela Motown. Exemplos incluem “I’ve Been Loving You Too
Long (to Stop Now)” de Otis Redding, “Hold What You’ve Got” de Joe Tex e “Ooh
Baby Baby” do Miracles, todas de 1965. Todos esses artistas transmitem a impressão
de identificar-se apaixonadamente com aquilo que cantam, quer o tema seja elevação
espiritual, devotamento a alguém, aflições de amor, ou conflitos na comunidade ou na
sociedade como um todo. Tal senso de identificação criou o efeito de fundir o
espiritual, o pessoal e o político.
Durante o período 1965–66, gravações dos artistas já famosos da Motown,
especialmente o Supremes e o Four Tops, atingiram novos patamares de
popularidade. Gravações de artistas de soul do sul como Redding, Pickett e Percy
Sledge (“When a Man Loves a Woman”) atingiram o mercado pop. James Brown
também iniciou uma longa série de sucessos pop de crossover e, residindo em
Chicago, o Impressions teve uma série de sucessos com tópicos mal disfarçados
(“Keep on Pushing”, “People Get Ready” e “Amen”). Em 1967–68 “Respect”, com
Aretha Franklin, uma versão cover de uma canção de Otis Redding, e “Say It Loud —
I’m Black and I’m Proud” de James Brown assinalaram a entrada da música soul numa
nova fase de comprometimento político. A ascenção de Franklin, uma das primeiras
artistas solo no gênero, teve um impacto imenso: sua tessitura enorme, domínio de
todos os aspectos da técnica de canto gospel e impactante execução pianística em
estilo gospel aplicadas a um material sempre excelente resultaram numa série de
gravações brilhantes de 1967 a 1970. Nesse período, ela vendeu mais discos do que
qualquer outro artista negro norte-americano.
A popularidade fenomenal de Aretha Franklin, o sucesso em curso de James
Brown e dos praticantes mais gruturais do soul do sul e a contínua onipresença das
produções de orientação pop da Motown atestavam a continuada relevância da
música soul para uma ampla interseção da audiência dos Estados Unidos no final dos
anos sessenta. Musicalmente, várias das características do período 1964–66
persistiam, embora nas canções em andamento moderado ou rápido as linhas de
baixo se tornassem mais ativas, os arranjos mais cheios, com maior uso de partes
múltiplas de guitarra, instrumentos orquestrais e percussão auxiliar (especialmente
na Motown). As partes individuais se tornaram cada vez mais sincopadas,
principalmente na música de James Brown, o que, por sua vez, levou ao Funk. Um
novo tipo de balada soul, exemplificada por canções como “Hypnotized” (1967) de
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
Música Soul . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Linda Jones e “If This World Were Mine” (1968) de Marvin Gaye e Tammi Terrell,
começou a emergir, rompendo a dependência anterior que as baladas apresentavam
em relação às divisões em quiálteras e começando a incorporar em maior grau as
inovações texturais e rítmicas das canções mais rápidas.
Otis Redding morreu em dezembro de 1967 à véspera de seu maior
sucesso, “Sittin’ on the Dock of the Bay” (1968), e a atividade e popularidade da
primeira onda de praticantes do soul declinou daí em diante. Os produtores e
autores Holland, Dozier e Holland, que haviam sido responsáveis pela maior parte
dos sucessos do Supremes e do Four Tops durante o apogeu de 1964–67, deixaram
a Motown, enquanto a Stax sofreu uma reorganização administrativa e tornou-se
cada vez mais inconsistente, em termos tanto artísticos quanto comerciais; em 1975
a companhia pediu falência. Em 1969, no momento em que a popularidade da música
soul diminuía junto à audiência pop, a indústria tardiamente reconhecia sua
importância, com a Billboard mudando o nome da parada de música popular negra de
Rhythm and Blues para Soul e mantendo este nome até 1982.
III. Desenvolvimentos posteriores
Nos anos setenta a música soul tomou os rumos divergentes de, por um
lado, um estilo suave de soul, que se inspirou na Motown e em baladistas como
Curtis Mayfield, e, por outro, um estilo funqueado de soul, inspirado em James
Brown, os praticantes do soul do sul e Aretha Franklin. Os principais expoentes da
categoria do soul suave residiam na Philadelphia. Os produtores Gamble e Huff, bem
como Tom Bell, junto com um núcleo de músicos de estúdio, criaram um corpo de
trabalhos que dominou a música soul no início dos anos setenta. As marcas
registradas musicais incluíam gravações limpas e nítidas realçadas por generoso
adoçamento de cordas e metais. O som característico de bateria enfatizava os
médios e frequentemente acentuava cada batida; em evidência já em “Only the
Strong Survive” (1969) de Jerry Butler, estas marcas registradas atingiram a
maturidade em “Love Train” (1973) do O’Jays e “The Love I Lost” (1973) de Harold
Melvin and the Blue Notes, criando uma abordagem rítmica e sonora que preparou o
cenário para a disco. O som despudoradamente romântico das baladas de grupos
como o Delfonics (“La La Means I Love You”, 1968) e o Stylistics (“Betcha By Golly
Wow”, 1972), normalmente apresentando vozes em falsete e orquestração suntuosa,
também obteve sucesso de crossover. Gravando em Memphis, Al Green teve uma
série de hits no início dos anos setenta, começando com “Tired of Being Alone”
(1971), e esses hits representaram uma síntese do suave e do funqueado.
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opus
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No início dos anos setenta, a corrente funqueada de soul começou a
condensar-se num estilo que se tornava cada vez mais diferenciado da música soul.
As influências de Brown e de Sly and the Family Stone, que misturava o estilo funk de
Brown com elementos do rock psicodélico, foram sentidas por vários artistas de
soul. Na Motown, o produtor Norman Whitfield gravou uma série de canções com
o Temptations — entre outros — que mostravam a companhia enveredando por
caminhos novos e apresentavam claramente a influência de Brown e Sly and the
Family Stone. Elas incluíram “Cloud Nine”, “Ball of Confusion” e “Papa Was a Rolling
Stone”, todas de 1968–72. Os trabalhos iniciais do Jackson Five contam-se ainda
nesta categoria. É o caso de “I Want You Back” (1969). Artistas há muito
estabelecidos da Motown também se moviam em novas direções, com álbuns
conceituais como What’s Goin’ On (1971) de Marvin Gaye e Talking Book (1972) de
Stevie Wonder.
Em meados dos anos setenta, os números rápidos no estilo suave
começaram a ser chamados disco. As baladas formavam a conexão aural mais óbvia
com a música soul do final dos anos sessenta e início dos anos setenta, mas, em
1982, até a Billboard teve de admitir que Soul já não era um rótulo adequado para a
música popular negra norte-americana em geral e mudou o nome de sua parada soul
para Black Music. Aspectos da música soul continuam vivos no rhythm and blues
contemporâneo e nos samples de várias faixas de hip-hop: “Tramp” (1987), de Salt
’n’ Pepa, homenageia o “Tramp” de Otis Redding e Carla Thomas, vinte anos mais
velho. O uso contemporâneo do termo, contudo, refere-se a um estilo que começou
com uns poucos esforços esparsos de cantores pioneiros dos anos 50, ganhou
momento nos anos 60 com as correntes gêmeas do soul do sul e da Motown, e
finalmente desdobrou-se no funk e na disco nos anos setenta.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
Música Soul . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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David Brackett, compositor, intérprete e pesquisador de música popular, é atualmente
Chefe do Departamento de História da Música / Musicologia da Schulich School of Music,
McGill University, Montreal. Suas publicações incluem Interpreting Popular Music (Cambridge
University Press 1995, University of California Press, 2000), The Pop, Rock, and Soul Reader:
Histories and Documents (Oxford University Press, 2005) e vários artigos e resenhas na Popular
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como consultor da nova edição do AmeriGrove (Oxford University Press).
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opus
O mapeamento sinestésico
do gesto artístico em objeto sonoro
José Fornari (NICS, UNICAMP)
Jônatas Manzolli (IA, NICS, UNICAMP)
Mariana Shellard (IA, NICS, UNICAMP)
Resumo: O gesto, sempre presente na criação da obra artística, seja esta plástica ou musical,
vem sendo recentemente explorado por ferramentas tecnológicas que permitem seu
interfaceamento multimodal. Este trabalho trata de um mapeamento sinestésico de gestos,
formadores dos desenhos conceituais, em objetos sonoros. A imagem de um desenho é aqui
vista não como um fim, mas como a representação de uma forma no decorrer do tempo. Esta,
por sua vez, é o registro de um movimento contendo uma intenção expressiva. O som
resultante é aqui composto por objetos sonoros que são unidades formantes de um sistema
sônico maior, auto-organizado em uma paisagem sonora dinâmica.
Palavras-chave: som, imagem, sinestesia, processo criativo, computação musical, síntese
evolutiva, sonologia.
Abstract: The gesture, always present in the creation of an artistic piece, being it a visual or
musical artwork, has been recently explored by technological tools to allow its multi-modal
interfacing. This article presents a synesthesic mapping of artistic gestures, formant of
conceptual drawings, into sonic objects. The drawings images are here seen, not just as the
aim, but rather as the representation of a dynamic process. They are the registry of a
movement that embodies expressive intention. The resulting sound is here compounded by
sonic objects that are formant units of a larger sonic system, self-organized into a dynamic
soundscape.
Keywords: sound, visual, synesthesia, creative process, evolutionary synthesis, computer
music, sonology.
.......................................................................................
FORNARI, José; MANZOLLI, Jônatas; SHELLARD, Mariana. O mapeamento sinestésico do
gesto artístico em objeto sonoro. Opus, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 69-84, jun. 2009.
O mapeamento sinestésico do gesto artístico em objeto sonoro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A
década de cinquenta foi matriz de um conjunto de transformações importantes na
trajetória do século XX. No momento do pós-guerra emergiram interações em
diversas direções políticas, sociais e artísticas. Em particular, a interação da música
com a tecnologia fomentou o surgimento de novas vertentes, como o trabalho de Max
Mathews e Hiller (HILLER, 1979) de forma que a linguagem do fazer artístico sofreu
mudanças conceituais profundas. Esta complexa interação foi palco de vários vetores
importantes que trouxeram para a atualidade reflexões artisticamente relevantes. No
campo das artes visuais, destaca-se o trabalho de Norman McLaren (1971), relevante para a
nossa pesquisa, à medida que este artista visual criou processos de interação entre o campo
sonoro e o visual, interagindo diretamente com a película filmográfica, criando desenhos e
padrões musicais.
Varias ações e movimentos estéticos, influenciados pela reflexão sobre o processo
do fazer artístico colocaram em evidência a preocupação com os meios e os materiais.
Estes expandiram a noção de objeto artístico para além de limites materiais, envolvendo (e
modelando) o espaço processual. Este foi um momento de grande florescência e ao mesmo
tempo de interação entre distintas linguagens e sistemas artísticos. Desse modo, o domínio
das artes plásticas influenciou a criação de novos métodos de composição e notação
musical, frente à concepção de que, graças aos avanços tecnológicos, o som também
passava a ser passível de ser modelado, similar ao objeto plástico. Este conceito
naturalmente se aproximou da definição cunhada por Pierre Schaeffer de “objeto sonoro”
(SCHAEFFER, 1966).
Este artigo apresenta dois pressupostos. O primeiro é que o contexto histórico
de interação entre diferentes formas artísticas, conforme citado acima, fomentou as bases
do que hoje é conhecido como Arte Generativa, principalmente no que se refere ao uso do
computador como ferramenta construtora de processos sistêmicos que, em si, podem ser
considerados como obras artísticas, sem necessariamente valerem-se da materialidade física.
A representação computacional consiste num meio importante para caracterizar, gerar e
implementar tais processos. Nesse trabalho apresentamos um sistema computacional que
realiza a sonificação dinâmica de desenhos conceituais, utilizando processos iterativos
advindos de algoritmos genéticos.
O segundo conceito no qual esse artigo se baseia, e que motivou o seu
desenvolvimento inicial, é o da sinestesia. A relação sinestésica entre som e cores, também
chamada de cromostesia, desde há muito tempo inspira compositores e artistas plásticos,
tais como: Scriabin, Messian e Kandinsky. Em termos psicológicos, sinestesia refere-se à
condição sensorial peculiar que ocorre quando um indivíduo, ao receber um estímulo em
uma modalidade sensorial, imediatamente o percebe como um estímulo advindo de outro
70 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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sentido (como ouvir uma cor ou ver um som). A ocorrência de um fenômeno
absolutamente sinestésico é rara e parece estar em desalinho com uma concepção sã de
mundo, onde os cinco sentidos humanos são canais independentes de comunicação de
impressões da realidade externa à mente. Tais fenômenos são, muitas vezes, considerados
como anomalias da integração entre o cérebro e o sistema sensorial perceptivo. No
entanto, num sentido mais geral, a sinestesia pode também se referir ao processo de
interação entre os diferentes canais da percepção e da cognição. Ou seja, os sentidos nos
passam informação incompleta e é a interação entre sensações multimodais que talvez
permita à mente estruturar um significado mais abrangente sobre um fenômeno externo.
Exemplificando, a própria percepção de timbre passa por interações do modo visual (ex:
som brilhante), tátil (ex: som áspero) ou gustativa (ex: som doce). Quando damos um
significado multissensorial a um estimulo sonoro, estamos vinculando este conceito sonoro
a uma noção sinestésica.
Segundo Campen, depois que Schoenberg publicou a sua teoria sobre a música
atonal, Kandinsky quis utilizar esses novos princípios musicais na pintura e no teatro.
(CAMPEN,1999). Em “Der Gelbe Klang” (O Som Amarelo), este experimentou com a
oposição de três tipos de movimentos: movimento visual (película), movimento musical e
movimento físico (dança). Outros autores também exploram o domínio visual e a
performance num contexto multi-sensorial. Ahsen (1997) apresenta uma interação com o
movimento introduzindo um outro campo de estudos, a “sinestesia cinética”. O estudo da
sinestesia no campo artístico e cientifico vem sendo desenvolvida por diversos grupos e
instituições, como o Instituto Prometeus, criado em homenagem a Scriabin.1
Dunn e Clark (2005), um artista e um biólogo, se uniram para colaborar num
processo de sonificação de dados de uma proteína, a fim de produzir o álbum musical
intitulado: “Música de Vida”, onde está descrito o processo pelo qual esta colaboração, que
funde o conhecimento científico com a expressão artística, produz paisagens sonoras
(soundscapes) a partir de segmentos protéicos, tratados como os blocos básicos do “edifício
de vida”. Neste, as soundscapes podem ser encaradas como experiências estéticas,
inquisições científicas ou ambos. Esses autores descreveram o raciocínio adotado por
ambos: para o uso artístico da ciência e para o uso científico da arte, a partir dos pontos de
vistas individuais do artista e do cientista.
Dentro dessa temática, este artigo descreve a primeira etapa do desenvolvimento
de uma obra artística multimodal que se baseia no mapeamento de desenhos conceituais
em objetos sonoros pertencentes a uma população que se auto-organiza dinamicamente
1
Ver o website do instituto: <http: //www.prometheus.kai.ru>
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
O mapeamento sinestésico do gesto artístico em objeto sonoro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
em paisagens sonoras. A obra consiste em uma instalação artística onde as paisagens
sonoras são geradas por um sistema computacional adaptativo (FORNARI,2008).
Do Domínio Visual ao Sonoro
O trabalho aqui apresentado é inspirado na atividade artística dos músicos da
chamada “Escola de Nova York”, na qual artistas como Morton Feldman, John Cage, Earle
Brown e Steve Reich formaram um pensamento que ressalta a noção do processo da
construção musical. O tema de muitas das composições destes músicos era o processo
vinculado ao fazer musical, especialmente com relação ao acaso e à indeterminação. Nyman
descreve esta visão composicional como uma variante entre “o mínimo de organização e o
máximo de arbitrariedade”, ocasionando diferentes relações entre o acaso e a escolha
(NYMAN, 1999). A obra 4’33’’ de John Cage foi inspirada na série White Paintings, de
Robert Rauschenberg, que procurou suprimir as escolhas pessoais de cores para não
subordinar ou impor a prevalência de uma cor sobre a outra (GENA, 1992). Na obra
Pendulum Music, o compositor Steve Reich escolheu artistas plásticos como intérpretes, ao
invés de músicos, denotando assim uma interveniência de conceitos gráficos na criação
música. Esta obra utiliza um processo pendular para gerar trajetórias sonoras a partir da
realimentação de microfones que agem como pêndulos. Earle Brown, por sua vez, inspirouse no improviso das pinturas performáticas de Jackson Pollock, que evocam o ritmo e a
ação resultante de suas decisões artísticas tomadas durante o processo de criação
(SELZ,1996). Brown criou December 52’ para um ou mais instrumentos, inspirado na
dinâmica espacial dos móbiles de Alexander Calder. A partitura gráfica foi descrita pelo
músico como “uma imagem deste espaço (de uma infinidade de direções e pontos) em um
instante, o qual deve ser sempre considerado como “irreal e/ou transitório”
(WELSH,1994).
Similar à partitura musical, um desenho pode também registrar uma informação
artística: o gesto. Um desenho projeta-se assim em outras linguagens, como um processo
de registro artístico, que possui significado por si só. Conforme descrito por Richard Serra,
este processo é “uma forma de ver dentro de sua própria natureza. [...] Não existe uma
maneira de se fazer um desenho, existe apenas o desenho” (SERRA,1994).
Os desenhos aqui utilizados foram concebidos como sendo o registro de um
gesto, no qual pretendia-se inicialmente analisar as variações e transformações de um
movimento delimitado, ao longo de um determinado período de criação da obra
(aproximadamente dez meses). Ao todo, foram criados cerca de 380 desenhos. Cada um
72 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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deles foi realizado num período de dez a trinta segundos, de gestos com nanquim sobre
papel-filtro, material que se mostrou mais adequado para o registro desta ação, devido à
característica aquosa da tinta associada à alta absorção deste papel, criando também
respingos e acúmulos de tinta conforme a intensidade e orientação do movimento.
A Figura 1 mostra um exemplo das imagens de oito desenhos da série de 380
desenhos, conforme explicado acima. Todos os desenhos dessa série são bastante similares,
porém, cada qual apresenta características gráficas peculiares, de forma que, apesar de
serem similares, cada desenho é único.
Fig. 1: Imagem digital de 8 desenhos gestuais da série de 380 desenhos.
Ao longo da realização da série, o aspecto dos desenhos foi evoluindo através da
mudança gradual do gesto, inicialmente contido, que foi se alongando com o passar do
tempo. Também o momento da execução de cada desenho expressou as variações do
estado emocional do artista e das condições ambientais (temperatura, umidade,
irregularidades do papel). Essas duas escalas temporais (da execução de cada desenho e da
execução de toda a série) caracterizaram a natureza processual da obra resultante e
evidenciaram a ocorrência da evolução dos desenhos ao longo do tempo, assim como sua
característica generativa espontânea, dada pela ocorrência de “acidentes” ao longo de seu
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
O mapeamento sinestésico do gesto artístico em objeto sonoro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
percurso gestual, como: rasgos o papel, espalhamento acidental de tinta, etc. Tudo isso se
encontra expresso no registro do gesto, em forma de desenho.
Do Desenho aos Objetos Gráficos
O mapeamento partiu da identificação e interpretação de aspectos gráficos em
aspectos sônicos, a partir de três características referentes ao gesto e ao comportamento
do material (tinta nanquim e papel-filtro) durante o movimento, presente em todos os
desenhos. Estas características foram aqui denominadas: 1) Acúmulo, 2) Repetições, 3)
Fragmentos. Para tais características concebemos seus equivalentes sônicos que, no
domínio da acústica, representam sinestesicamente cada aspecto gráfico dos desenhos.
Fig. 2: Imagem do desenho 13 (esquerda) e as indicações das
3 características gráficas estabelecidas (direita).
A Figura 2 mostra um exemplo de imagem de um desenho (esquerda) com as três
características, acima estabelecidas, grafadas sobre essa imagem (direita). Em nossa
classificação, cada desenho possui apenas um acúmulo, que é a região de maior
74 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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concentração de tinta, normalmente associada ao início do gesto na região inferior
esquerda. As repetições são os traços localizados na região central, onde o gesto era mais
determinado e reto. Os fragmentos são dados pelas áreas de respingo de tinta, destacados
do acúmulo; são manchas aproximadamente circulares e aleatoriamente criadas.
Cada elemento caracterizado por um aspecto (acúmulo, fragmento ou repetição)
é uma entidade única, componente do desenho. Estes são aqui chamados de objetos
gráficos. Foi desenvolvido um algoritmo para o reconhecimento dos objetos contidos em
cada imagem dos desenhos. Este mapeia cada desenho em distintos objetos gráficos,
consistindo em um único acúmulo, diversas repetições e diversos fragmentos. Na figura 3
tem-se a sequência de imagens do processamento feito por esse modelo computacional.
Tem-se na Figura 3 (a) a imagem do desenho 13, o mesmo mostrado na Figura 2, porém já
sem a imagem de fundo (background). Na Figura 3 (b) tem-se a inversão dessa figura, a fim
de iniciar o reconhecimento das regiões de contorno, denotadas pela linha branca. A Figura
3 (c) mostra o preenchimento de pequenos buracos dentro das regiões dos objetos e a
eliminação daqueles objetos muito pequenos (menores que 30 pixels). Na Figura 3 (d) temse o reconhecimento dos 35 objetos encontrados no desenho 13. Na Figura 3 (e) vê-se um
detalhe ampliado do mesmo mapeamento mostrado em (d), onde se pode observar melhor
alguns objetos reconhecidos pelo algoritmo. Esses apresentam uma legenda à sua esquerda
do objeto, o primeiro valor refere-se ao número do objeto. Em (e) pode-se ver, entre
outros, os objetos 1, 2, 4, 6, 8 e 12. O segundo valor de cada objeto refere-se a uma
métrica que descreve o grau de circularidade deste objeto. Essa é dada pela seguinte
fórmula:
Equação 1
Essa métrica é aqui utilizada para distinguir os fragmentos das repetições. Para
objetos circulares, como os fragmentos, apresentam valores próximos de 1. Para objetos
não circulares, como são as repetições, esse valor aproxima-se de zero.
O terceiro valor refere-se à área do objeto, em pixels. Esse é também utilizado
para encontrar o objeto Acúmulo, que é o objeto mapeado de maior área. Observa-se, por
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
O mapeamento sinestésico do gesto artístico em objeto sonoro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
exemplo, que o objeto 1, com área de 480 pixels, é visivelmente menor que o objeto 2, com
área de 7125. O quarto e último parâmetro refere-se às coordenadas retangulares do
centro de massa do objeto, em relação à origem da imagem, localizada no canto superior
esquerdo. Esse será utilizado para criar a disposição temporal da somatória de todos os
objetos gráficos encontrados, em objetos sonoros.
Fig. 3: Sequência de processamento da imagem do desenho 13.
Em termos sonoros, relacionamos o Acúmulo a sons de natureza estocástica
(ruídos), constantes, de longa duração e de baixas frequências. As Repetições foram
associadas a sons tonais (com altura definida), com níveis de frequências e intervalos de
tempo medianos. Os Fragmentos foram relacionados a sons de curta duração, sendo estes
sons das duas naturezas (ruidosa e senoidal). A partir deste conceito, criamos a Tabela 1,
que mostra a correspondência entre as características escolhidas para representar cada
desenho e criar a associação entre os aspectos gráficos e sonoros dos objetos gráficos
encontrados pelo algoritmo de mapeamento.
76 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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Tab. 1: Os objetos gráficos mapeados dos desenhos e a correspondência
entre seus aspectos gráficos e aspectos sonoros
Objeto Gráfico
Aspecto gráfico
Aspecto Sonoro
Acúmulo
Concentração maior de tinta na
base do desenho, onde se
iniciou o gesto
Ruídos de baixa frequência e
constantes
Repetição
Traços gerados pelo
movimento repetitivo do gesto
Senóides, variação de amplitude
e frequência
Fragmento
Respingos de tinta, decorrentes
da intensidade do movimento
Pulsos de curta duração,
variando do ruidoso ao tonal
Do Objeto Gráfico ao Objeto Sonoro
Cada objeto gráfico, encontrado pelo modelo computacional descrito acima,
corresponde a um objeto sonoro de tal forma que os aspectos gráficos estejam presentes e
perceptualmente evidenciados no som resultante. A duração temporal de cada objeto
sonoro foi estabelecida a partir da consideração dos três níveis hierárquicos de
comunicação sonora: Estes níveis são aqui chamados de: 1) Perceptivo, 2) Cognitivo, e 3)
Afetivo. Nas artes sônicas, o nível perceptivo é aquele que descreve a maneira como a
informação sonora é percebida pelo sistema auditivo, conforme é estudado pela psicoacústica. As informações desse nível não estão atreladas a qualquer tipo de contexto da
informação musical e suas variações são coletadas em intervalos curtos de tempo, da
ordem de poucos milésimos de segundos. Os aspectos cognitivos são relacionados às
características sônicas que podem ser aprendidas e reconhecidas pelo ouvinte. Inicialmente
analisadas pelo psicólogo William James que desenvolveu o conceito de “presente especial”,
consistindo da consciência instantânea e simultânea que os estímulos sonoros evocam
(JAMES, 1890). Pode-se argumentar que o “presente especial” está relacionado com a
memória de curta duração, que pode variar de indivíduo para indivíduo e de acordo com o
sentido da modalidade ou intervalo no qual a informação musical é experimentada, como
uma unidade, uma sentença ou frase musical (POIDEVIN, 2000). Alguns experimentos
mostraram que na música, a identificação do presente especial corresponde
aproximadamente à ordem de três segundos de duração (LEMAN, 2000). Os aspectos
afetivos são aqueles que evocam emoção no ouvinte. Características afetivas são associadas
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
O mapeamento sinestésico do gesto artístico em objeto sonoro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
a maiores intervalos de tempo (acima de trinta segundos) e podem estar associadas à
memória de longa duração, onde se pode reconhecer um gênero ou estilo musical.
A partir deste conceito, decidimos mapear cada objeto gráfico dos desenhos por
esta ordem de grandeza da escala de tempo. O acúmulo está associado à escala de longa
duração, representando o aspecto afetivo. A repetição refere-se à escala de média duração,
representando aspectos cognitivos. E os fragmentos referem-se à escala de curta duração,
correspondendo aos aspectos perceptuais, ou psico-acústicos.
Seguindo esta classificação, definimos como aspectos gráficos alguns parâmetros
básicos para serem coletados automaticamente pelo modelo computacional de cada objeto
gráfico mapeado dos desenhos. Foram escolhidos os seis parâmetros que estão explicitados
na Tabela 2.
Tab. 2: Os seis parâmetros coletados de cada objeto gráfico.
Area
Medida da área de cada objeto encontrado pelo mapeamento. A medida é
feita pela quantidade de pixels de cada objeto. O objeto que apresenta maior
valor desse parâmetro é o maior objeto encontrado no desenho e, portanto,
catalogado como o objeto Acúmulo
Round
Corresponde à medida de circularidade de cada objeto, dado pela métrica da
equação1. Este parâmetro permite catalogar os objetos em: repetição ou
fragmento. Os objetos mais circulares (métrica > 0,5) são fragmentos,
correspondendo aos sons de curta duração, enquanto que os menos
circulares (métrica > 0,5) são repetições, correspondendo aos sons contínuos
e tonais.
Orient
Medida do ângulo de inclinação de cada objeto, a partir do eixo horizontal da
imagem mapeada. Se o objeto for bastante circular (fragmentos) não faz
sentido utilizar este parâmetro. Já, se o objeto é pouco circular (repetições)
este parâmetro é utilizado para controlar a frequência fundamental do som
tonal.
Distance
Medida da distância entre o centro de gravidade de cada objeto e a origem da
imagem mapeada. Este parâmetro é utilizado para ordenar temporalmente o
início dos sons correspondentes aos fragmentos e repetições.
MaAl
Medida da maior extensão do formato de cada objeto.
MiAl
Medida da extensão mínima do formato de cada objeto. Se o objeto é
circular, MaAL e MiAL são idênticos.
78 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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No exemplo da Figura 3 (desenho 13), este algoritmo encontrou 35 objetos. A
Figura 4 mostra um detalhe ampliado desse mapeamento, similar ao apresentado na Figura
3 (e), onde se pode observar mais detalhadamente a região de contorno dos objetos 1, 2 e
8, dado por um contorno em branco, e os seis parâmetros coletados do objeto 2.
Fig. 4: Detalhe dos objetos gráficos: 1, 2 e 8 da imagem do desenho 13.
Os valores normalizados dos seis parâmetros, que foram automaticamente
calculados pelo algoritmo para os três objetos mostrados na Figura 4, são apresentados na
Tabela 3.
Tab. 3: Valores normalizados dos (entre -1 e +1) da somatória dos valores dos seis parâmetros
(da Tabela 2) calculados para os objetos gráficos 1, 2 e 8 (da Figura 4).
Aspectos /
Objeto
Area
Round
Orient
Distance
MaAL
MiAL
1
0.0026
0.64
-0.61
0.53
0.0164
0.0419
2
0.0379
0.42
0.56
0.55
0.0693
0.1515
8
0.0012
0.78
-0.97
0.58
0.0096
0.0330
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
O mapeamento sinestésico do gesto artístico em objeto sonoro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(a) (Area) 0,5
Valores normalizados da raiz quadrada
das áreas de cada objeto.
(b) Distance = ( x 2+ y2 ) 0,5
Distância de cada objeto com relação à origem da
imagem, no plano de coordenadas.
(c) MaAL
Medida da maior extensão do formato de
cada objeto.
(d) Orient
Medida do ângulo de inclinação de cada objeto, a
partir do eixo horizontal da imagem mapeada.
(e) MiAL
Medida da menor extensão do formato de
cada objeto.
(f) Round
Medida de circularidade de cada objeto, dado pela
métrica da Equação1.
Fig. 5: Parâmetros dos 35 objetos pictóricos.
80 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . FORNARI, MANZOLLI, SHELLARD
Note que os valores de Round e Area, da Tabela 3 não coincidem com os valores
mostrados na Figura 4. Isto ocorre porque os valores da Tabela 3 foram normalizados em
relação aos valores encontrados para os 35 objetos. A Figura 5 mostra os seis gráficos em
barras, dos valores normalizados dos 35 objetos que foram encontrados pelo mapeamento
realizado pelo algoritmo.
Na Figura 5(a) temos os valores normalizados da raiz quadrada das áreas de cada
objeto. Isto foi feito porque a diferença de valor entre a área encontrada no objeto
Acúmulo e os demais é muito grande, o que tornaria difícil a visualização dos demais valores
do gráfico de barras. Na Figura 5(b) vêem-se as distâncias, dadas pela raiz quadrada da soma
dos quadrados das coordenadas cartesianas do centro de gravidade de cada objeto, em
relação à origem das coordenadas da imagem. Neste é possível ver o espalhamento dos
objetos encontrados durante o mapeamento. Na Figura 5(c) e 5(e) tem-se respectivamente
a máxima e a mínima extensão de cada objeto. A Figura 5(d) apresenta o ângulo
normalizado da orientação de cada objeto, onde 1 corresponde a 90º e -1 a -90º. Na Figura
5(f) tem-se o valor da métrica da equação 1, que define o grau de circularidade de cada
objeto. Valores próximos de 1 correspondem aos objetos circulares e valores próximos de
0, a objetos na forma de traços.
De posse desses dados, objetos sonoros foram criados, de acordo com as regras
descritas anteriormente.2
Discussão e Conclusões
Este trabalho apresentou um processo de mapeamento de objetos gráficos em
objetos sonoros. Chamamos tal processo de mapeamento sinestésico por se tratar de um
processo multimodal que visa relacionar o gesto artístico, em objetos gráficos que, por sua
vez, são mapeados em objetos sonoros. Na seção 2 discutimos a relação do desenho com
o gesto que o gerou e consideramos este como um registro material do processo artístico
de criação, ao invés de considerar o desenho como o objetivo artístico final. Assim,
utilizamos aqui o viés da arte conceitual que vê o processo do fazer artístico como o objeto
artístico em si, onde o processo passa a ser o fim e não o meio para se chegar ao resultado
artístico.
2 Os resultados sonoros de tais mapeamentos encontram-se disponíveis na página
<http://www.nics.unicamp.br/~fornari/sbcm09>
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
O mapeamento sinestésico do gesto artístico em objeto sonoro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Na seção 3 apresentamos e descrevemos o método sinestésico de mapeamento
dos objetos gráficos, onde foi mostrado como identificamos as características fundamentais
dos desenhos da coleção aqui utilizada e as relacionamos com os objetos gráficos.
Desenvolvemos um modelo computacional que automaticamente processa o desenho e
reconhece os diversos objetos componentes. Este modelo relaciona os objetos em três
grupos: acúmulo, fragmentos e repetições, que são mapeados em objetos sonoros, de
acordo com a aparente similaridade artística e sinestésica que estes aparentaram possuir. A
seção 4 apresentou os seis aspectos selecionados dos objetos que compõem cada desenho
da coleção. Estes são desenhos bastante similares, porém nenhum deles é idêntico ao
outro. Neste aspecto, esta coleção de desenhos pode ser comparada a uma população de
indivíduos onde todos são similares mas nunca idênticos, ou seja, não existem clones. Em
seguida relacionamos os objetos gráficos com objetos sonoros de acordo com os conceitos
de cognição musical, referindo os diferentes objetos às sensações musicais: perceptuais,
cognitivas e afetivas.
Este trabalho tratou assim de apresentar um mapeamento sinestésico de gestos,
formadores de desenhos conceituais, em objetos sonoros onde a imagem de um desenho é
vista como a representação de uma forma dinâmica no tempo, que é o registro de um
movimento contendo uma intenção expressiva onde o som resultante é composto por
objetos sonoros que são unidades formantes de um sistema sônico maior, auto-organizado
em uma paisagem sonora dinâmica.
Os desenhos foram analisados a partir de seus aspectos gráficos formantes, os
quais foram mapeados em aspectos sônicos. Estes foram posteriormente usados num
modelo computacional evolutivo similar àquele descrito em Fornari (2008). Tal sistema de
síntese evolutiva representa cada objeto sonoro como um indivíduo em uma população de
sons. Tais características sonoras são aqui chamadas de genótipos, que neste trabalho
advêm dos aspectos gestuais. A evolução dinâmica na população de objetos sonoros cria
uma paisagem sonora que infere uma espécie de “metáfora acústica” dos objetos sonoros a
representar a expressividade do gesto artístico.
Cada desenho deste trabalho foi posteriormente mapeado em um som resultante,
dado por um modelo computacional com seis tabelas, ou arrays, que controlam os
parâmetros de geração deste som. Estas tabelas dividem-se em dois grupos: três para o
controle da parte chamada de: tonal (que gera sons aproximadamente periódicos) e três
tabelas para controle da parte estocástica (que gera sons ruidosos). O modelo tonal possui
os parâmetros de controle: 1) Intensidade, 2) Frequência, 3) Distorção. O modelo
estocástico: 1) Intensidade, 2) Frequência central, 3) Largura de banda (Q). Estes seis arrays
correspondem ao genótipo de um indivíduo. Cada array representa uma série temporal
82 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . FORNARI, MANZOLLI, SHELLARD
onde o afetivo (acúmulo), cognitivo (repetição) e perceptivo (fragmentos) são mapeados.
Esperamos que este trabalho abra novas possibilidades e inspire novas
perspectivas de exploração de sistemas sinestésicos artísticos, que correlacionem gestos de
diferentes formas artísticas, de modo a possibilitar a ampliação exploratória da criação
artística atual.
Referências
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synaesthesia and phosphenes. Journal of Mental Imagery, v. 21, 1997, p. 1-40.
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O mapeamento sinestésico do gesto artístico em objeto sonoro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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..............................................................................
José Fornari é pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora (NICS) desde
2008. Fez PosDoc em Cognição Musical da Universidade de Jyvaskyla, Finlândia (2007). É
doutor em Síntese Evoluitva pela FEEC/UNICAMP (2003). Graduado em Música e Engenharia
Elétrica pela UNICAMP. Desenvolve trabalhos artísticos e acadêmicos na interação entre
Música, Multimídia, Cognição e Tecnologia.
Jônatas Manzolli é professor livre docente do Departamento de Musica da Unicamp e vicecoordenador do Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora (NICS), Unicamp. É doutor
em composição pela University of Nottingham, Inglaterra e pesquisa processos criativos e
sonologia com especial interesse em cognição musical.
Mariana Shellard é artista plástica e aluna de Mestrado no Instituo de Artes da Unicamp.
Graduada pela Fundação Armando Álvares Penteado (2006). Seu trabalho de mestrado é
orientado pelo Prof. Jônatas Manzolli, sobre Poéticas Visuais e suas interações com as Artes
Sonoras.
84 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
O tratamento documental dos arquivos musicais e a busca de
práticas comuns no tratamento da música brasileira para orquestra
Maurício Marques de Faria (UFRJ)
Resumo: O tratamento documental em arquivos musicais de orquestras no Brasil apresenta
características diferenciadas de tratamento por acervo, carecendo de uma base teórica
comum. Tanto as escolas de biblioteconomia e arquivologia quanto as de música não abordam
o tema com a profundidade necessária para a disseminação de uma base mínima comum de
tratamento, o que dificulta o trânsito de dados e pessoas, e pode dificultar a recuperação da
informação. Um trabalho de pesquisa e sistematização desse serviço deve ser desenvolvido a
fim de criar uma base comum de preparação e desenvolvimento das coleções de repertório.
Palavras-chave: arquivologia e arquivística; acervos musicais; música orquestral.
Abstract: Practices of document processing in music collections of Brazilian orchestras differ
from those in other music archives and lack a common theoretical basis. Library and archival
sciences schools do not treat the subject with the necessary depth that could lead to the
establishment of a minimum set of common procedures, and that makes difficult the transit of
data and people, as well as information retrieval. Efforts in research and systematizing should
be undertaken in order to create a common basis for the preparation and development of
repertory collections.
Keywords: archival sciences; music collections; orchestral music.
.......................................................................................
FARIA, Maurício Marques de. O tratamento documental dos arquivos musicais e a busca de
práticas comuns no tratamento da música brasileira para orquestra. Opus, Goiânia, v. 15, n. 1, p.
85-90, jun. 2009.
O tratamento documental dos arquivos musicais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
V
emos um crescente interesse pela recuperação dos arquivos musicais manuscritos
no Brasil, principalmente com relação à música colonial brasileira. Sem dúvida isto
é um importante passo na preservação da memória musical nacional, por permitir
a redescoberta e a difusão de obras de compositores locais e guarda preservada dessa
documentação, no entanto, não há produção científica em grande escala no país sobre
como as orquestras tratam sua documentação musical no dia a dia, campo igualmente rico
em material, que tem sido pouco explorado em termos de pesquisa e sistematização, e que
pode ser considerada uma área de extrema importância para tornar a música brasileira de
concerto conhecida, disponível, divulgada, executada e, enfim, viva, conforme propõe
Dobedei (apud LARA, 2004), em que é necessário organizar a informação como meio de
socializar seu uso e gerar conhecimento.
As Escolas de Biblioteconomia e Arquivologia no Rio de Janeiro examinam com
pouca profundidade a questão do tratamento de partituras e as Escolas de Música tratam
do assunto de forma ainda mais superficial, como demonstram suas grades curriculares. Os
bibliotecários e arquivistas geralmente não têm conhecimento musical suficiente para
atender às necessidades informacionais dos músicos e regentes e estes, de modo geral,
desconhecem técnicas e padrões biblioteconômicos ou arquivísticos estabelecidos de
tratamento documental. Assunção (2005) nos diz que “la documentación musical continua a
ser mirada por los bibliotecarios y archiveros como un dominio hermético de músicos y
musicólogos y las técnicas documentales siguen a ser miradas por los musicólogos como
complicaciones inútiles de tecnócratas. Unos y otros están equivocados”. Para Ostrower
(1987), um leigo em música considera o assunto hermético pois “sem ter a familiaridade
com o pensamento musical e as formas musicais, é difícil apreciar os caminhos de
elaboração imaginativa de um gênio como Beethoven. [...] Quando desconhecemos a
materialidade da música e sobretudo não a vivenciamos enquanto materialidade, torna-se
impossível ter noção do processo de criação musical porque ele é um problema de
linguagem musical. Não sabemos o que em realidade significa ‘imaginar musicalmente’”.
Entretanto, isto não impede, em absoluto, que um bom trabalho de tratamento documental
em partituras seja realizado por não músicos que sejam dotados de um ferramental
adequado, da mesma forma que músicos podem realizar um bom trabalho de catalogação
musical, se devidamente instruídos. Na verdade, os conhecimentos do profissional da
informação e do músico são igualmente necessários neste caso.
Em geral, os arquivistas de orquestra são formados em música e desenvolvem
métodos próprios de tratamento de partituras, heterogêneos, pouco documentados e
difundidos, impedindo uma preparação prévia de profissionais para lidar com o tratamento
dessa documentação e dificultando o trânsito entre arquivos. Concordamos com Assunção
86 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . FARIA
(2005) quando afirma que “es importante que la documentación musical sea tratada de
forma interdisciplinaria. El trabajo del bibliotecario, en este caso, es más lo de un
coordinador de equipo pues existen muchas materias que le escapan. Lo musicólogo es
siempre importante. En muchos casos, el archivero también. En otros casos, deviene
fundamental el museólogo. También los medios técnicos y tecnológicos son indispensables”.
Cabe ressaltar que a dificuldade no tratamento de partituras musicais é algo
intrínseco à própria forma musical. Ainda segundo Assunção (2005), “la documentación
musical no es dotada de un contenido fácilmente expreso por palabras. En verdad, siendo
una arte eminentemente abstracta, la posibilidad de exprimir un contenido musical por
palabras no puede ir más allá de la forma, del género y de la función. Esta constituye la
razón principal por la cual hay sido tan difícil llegar a un buen sistema de clasificación
(quedando la CDU, la CDD y la LCC muy acá de lo deseable) y, más difícil aún, un buen
lenguaje de indexación. Las peculiaridades de la terminología musical, las sutilezas de las
clasificaciones por forma y género, su variabilidad en el tempo y en el espacio han impedido
que se constituyan buenos sistemas de análisis y descripción de contenido para los
documentos musicales”.
Aliada a estas dificuldades encontramos ainda uma questão mais crítica no que se
refere à música erudita brasileira para concerto. Como diz Rocha (2003), “o fato de seu
desconhecimento é doloroso e fácil de se perceber: uma quantidade significativa de obras
está se perdendo, vítima do anonimato e do descaso. São manuscritos se deteriorando pelo
tempo, pela umidade, pelos fungos, pelo apagamento das tintas utilizadas na escrita, pelo
manuseio irresponsável e, no caso dos contemporâneos, por um desconhecimento geral de
sua existência, o que leva o todo da literatura, antiga e atual, a padecer pela falta de
investimentos em pesquisa, restaurações, revisões e, principalmente, edições, execuções
públicas, registros fonográficos e, claro, mídia - um marketing cultural eficiente para
"descobrir" o véu que paira sobre este patrimônio, levando estas obras ao grande público.”
Julgamos que contribui para esse problema a dificuldade de tratamento do material musical
e do preparo adequado dos responsáveis pelo mesmo.
Esta situação de esquecimento da produção intelectual, musical ou outra, não é
nova nem exclusiva da música brasileira; citando o encantamento de Charles Perraut no
século XVII com o fim das limitações da memória com o advento da multiplicação dos
livros com o advento da imprensa, Choay (2001) nos diz que “o imenso tesouro do saber,
colocado à disposição dos doutos, traz consigo a prática do esquecimento”.
O desconhecimento de algum desses tesouros esquecidos em um arquivo, aliado
à deficiência no tratamento da documentação dificultam que os mesmos sejam recuperados
quando se procura algo “novo” ou “diferente” para se executar. Um trabalho de “garimpo”
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
O tratamento documental dos arquivos musicais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
dessas partituras, que demandaria um longo período de tempo, do qual os maestros e
músicos dificilmente dispõem, poderia ser minimizado se técnicas conhecidas de tratamento
documental fossem aplicadas por pessoal treinado e qualificado. A correta identificação dos
metadados necessários a uma boa catalogação e classificação torna-se fundamental nesse
processo. É neste âmbito que o trabalho atualmente desenvolvido torna-se heterogêneo e
de difícil execução, como observa Neves (1997), referindo-se a música colonial brasileira,
indicando que alguns conjuntos musicais guardavam zelosamente, ainda que em ordem só
entendida por seus diretores, preciosas coleções de manuscritos musicais antigos. Um
ponto chave é o estabelecimento de uma terminologia minimamente comum já que esta,
como diz Cabré (1995) é um conjunto de unidades de expressão, que atuam na
reconstrução do pensamento, utilizando a linguagem como veículo de comunicação para
assimilação do conhecimento.
A elaboração de uma base de dados estruturada, segundo os conceitos de
Mugnaini (2004), ao considerar que estas bases utilizam a linguagem documentária para a
identificação do documento com objetivo de possibilitar sua recuperação com eficiência,
deve permitir que se ofereça ao usuário toda uma gama de possibilidades de busca que, de
outra forma, se tornaria impossível. Esta linguagem documentária deve utilizar os conceitos
de descritores tal como mostrado por Sayão (1996) que considera os descritores termos
usados para representar um documento, como metáforas da informação original,
produzidas por linguagens artificiais, e que tem por objetivo a referência a um
conhecimento real. São redutoras de seu significado, mas sustentam sua identidade,
ordenação e classificação. Estes descritores devem ser complementados por um conjunto
mínimo de metadados, comumente definidos como dados sobre dados ou como
informações sobre conteúdo, qualidade, condições ou outras características dos dados, que
forneçam esta gama de possibilidades de busca. Neste ponto a sistematização metodológica
é peça chave para impedir a dispersão, confusão ou sobreposição de conceitos e
classificações que lograriam o sucesso de tal empreitada.
Acreditamos que os sistemas atualmente utilizados devem oferecer vários pontos
de convergência e possíveis similaridades com padrões documentais, mesmo carecendo de
bases comuns de desenvolvimento.
Assim como não existe um sistema único para e definitivo para o tratamento da
documentação tradicional, também não o há para a música. Sempre poderão existir
sistemas diversos que atendam às peculiaridades de cada orquestra, repertório, local, etc.
Entretanto, da mesma forma que os sistemas tradicionais de catalogação, classificação e
arquivo, todos devem compartilhar uma base mínima conceitual, metodológica e prática
que permita seu bom funcionamento e divulgação, evitando que a cada novo arquivo
88 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . FARIA
musical criado ou a cada troca de responsável, seja “reinventada a roda”. Para tanto
acreditamos que os princípios teóricos desta empreitada partem dos padrões estabelecidos
pela International Standard Bibliographic Description for Printed Music (ISBD-PM), AngloAmerican Catalogation Rules II e Music Preparations Guidelines for Orchestral Music da
Major Orchestra Librarians Association.
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opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
O tratamento documental dos arquivos musicais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
..............................................................................
Maurício Marques de Faria é graduado em Biblioteconomia e Documentação pela
Universidade Federal Fluminense (UFF), graduado em Música pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ) e mestrando em História das Ciências e Técnicas e Epistemologia pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
90 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
Música e políticas socioculturais:
a contribuição do canto coral para a inclusão social
Rita de Cássia Fucci Amato (USP)
Resumo: O objetivo deste artigo é discutir a relevância do canto coral para projetos de
inclusão social. O trabalho apresenta e analisa filosófica e historicamente o papel social do
canto em conjunto, destacando pensamentos de filósofos como Platão, Aristóteles e Rousseau;
também analisa sociologicamente as potencialidades de coros para a inclusão sociocultural de
comunidades carentes – apresentando conceitos e reflexões de Pierre Bourdieu, Domenico
de Masi e Paulo Freire – e estuda múltiplos casos de projetos bem-sucedidos de canto coral
inclusivo por todo o Brasil. Por fim, apresenta uma proposta-modelo de um projeto inclusivo
(Pró-InCanto – Programa de Inclusão Social pelo Canto Coral), que pode ser adaptada às
diversas realidades e contextos sociais do país. Conclui-se que ainda há um grande potencial
social do canto coral a ser explorado.
Palavras-chave: canto coral; inclusão social; políticas socioculturais.
Abstract: The aim of this paper is to discuss the relevance of choral singing for projects of
social inclusion. It presents and analyzes philosophically and historically the social role of singing
together, highlighting the thoughts of philosophers as Plato, Aristotle and Rousseau; it also
analyzes sociologically the potentialities of choirs for the socio-cultural inclusion of
underprivileged communities – introducing concepts and reflections by Pierre Bourdieu,
Domenico de Masi and Paulo Freire – and studies multiple cases of successful projects of
inclusive choral singing in several regions of Brazil. Finally, it presents a model-proposal of an
inclusive project (Pro-InCanto - Program of Social Inclusion through Choral Singing), which can
be adapted to the different realities and social contexts of the country. The article concludes
that there is a great social potential of choral singing yet to be explored.
Keywords: choral singing; social inclusion; socio-cultural practices.
.......................................................................................
FUCCI AMATO, Rita de Cássia. Música e políticas socioculturais: a contribuição do canto coral
para a inclusão social. Opus, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 91-109, jun. 2009.
Música e políticas socioculturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Um povo que sabe cantar está a um passo da felicidade;
é preciso ensinar o mundo inteiro a cantar.
– Heitor Villa-Lobos
P
rojetos socioculturais começam a ocupar, cada vez mais, papel de destaque dentre
as iniciativas educativo-musicais promovidas para minimizar o efeito devastador
causado pela grande lacuna no ensino de música na educação básica. Segundo
Santos (2005), governos de diferentes esferas (municipal, estadual e federal) apóiam esses
projetos com o intuito de “livrar-se” da obrigação de oferecer uma educação musical de
qualidade na escola regular, destinando pequenas verbas a essas iniciativas, geralmente
coordenadas por organizações não-governamentais (ONGs). O desenvolvimento dessas
iniciativas de educação não-formal por outros centros comunitários e instituições também
tem se relevado no cenário atual.
Este artigo é delineado na perspectiva de apresentar e discutir o papel social do
canto coral como ferramenta de inclusão, ilustrar tal função por meio da apresentação de
diversos casos e propor um programa de ação inclusiva pelo canto coral. Para tanto, lança
mão, inicialmente, de uma revisão bibliográfica dos conceitos e reflexões pertinentes aos
fundamentos históricos, filosóficos e sociológicos da educação. Destaca elaborações de
pensadores relevantes da história da filosofia – tais como Platão (1973), Aristóteles (1988) e
Rousseau (1995) – sobre o potencial da música para a ação social e, a seguir, analisa
sociologicamente a questão, apresentando reflexões e conceitos elaborados por Pierre
Bourdieu (1998a; 1998b; 2003), Domenico de Masi (2003) e Paulo Freire (1978).
Apresenta, então, relatos de experiências que evidenciam a tese do canto coral como
relevante ferramenta inclusiva, o que pode ser compreendido dentro da metodologia de
estudo de casos múltiplos, a qual evidencia as nuances de processos semelhantes exercidos
em diferentes contextos (YIN, 2001). Por fim, apresenta uma proposta-base para ações de
inclusão social por meio do canto coral, que pode conjugar a investigação acadêmica à ação
social, por meio de técnicas da pesquisa-ação e da pesquisa participativa (THIOLLENT,
2005).
Canto coral e educação musical: história e pensamento social
Desde a Antiguidade clássica, as funções sociais do canto em conjunto são
louvadas e, àquela época, a música era concebida como um fator integrado à política e à
justiça. Na Grécia Antiga, tinham papel de destaque na educação dos cidadãos a música
92 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . FUCCI AMATO
(mousiké) e a ginástica (gymnastiké), exercícios para a alma e o corpo:
por música entende-se a aculturação ao patrimônio ideal, transmitido através dos hinos
religiosos e militares, cantados em coro pelos jovens (naquele tempo não havia transmissão
escrita, portanto o verso cantado era necessário para a memória e a prática coral para a
socialidade), e por ginástica entende-se a preparação do guerreiro. (MANACORDA, 2000,
p.46)
A iniciação social e ao canto coral preparava os adolescentes para sua vida adulta,
já que a educação dos jovens era concebida como fundamento da organização política e
social (MANACORDA, 2000). Em Atenas, a educação (paidéia) era sobretudo voltada à
formação cultural, ao studia humanitatis, que permitiria o amadurecimento do indivíduo por
meio da reflexão filosófica e estética (CAMBI, 1999).
O pensador grego Platão (429-348 a.C.), em A República, debateu a justiça,
harmonia e virtude política. Nessa obra, estabeleceu a educação como principal meio para
se atingir equilíbrio político, destacando seu “poder e a responsabilidade [...] na execução de
ideais tais como a liberdade, a justiça, a formação cívica, tendentes à efetivação de uma
sociedade mais virtuosa e humana” (GAINZA, 2002, p. 20). A música, sob a visão platônica,
deveria integrar a educação da classe guerreira da polis, antecedendo inclusive a ginástica,
pois, para Platão (1973, p. 134-5), antes mesmo de exercitar o corpo, fazia-se necessário
modelar a alma e o caráter por meio da música. A educação pela música traria, então,
benefícios à formação moral do cidadão: “a educação musical é soberana porque o ritmo e
a harmonia gozam, ao mais alto ponto, do poder de penetrar na alma e comovê-la
fortemente” (PLATÃO, 1973, p. 174). Platão ainda estabeleceu uma hierarquia de saberes,
na qual colocou as artes manuais (agricultura, carpintaria, etc.) como inferiores e
inadequadas aos guerreiros, sendo próprias de uma classe inferior. Já o ciclo elementar
destinado às classes superiores deveria se basear na ginástica para o corpo e na música para
alma (FRAILE, 1965). Essa concepção revela-se, assim, bastante apartada da idéia de inclusão
social e difusão democrática da música, porém denota o reconhecimento de que a música
poderia contribuir na formação do indivíduo e seria uma ferramenta de caráter social.
Já Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, apesar de divergir de seu mestre
em alguns aspectos de seu sistema filosófico, também colocou a música em uma posição
importante no cenário político da polis, em sua obra Política, dizendo que a música “tem o
poder de produzir um certo efeito moral na alma [e sobre o caráter], e se ela tem este
poder, é óbvio que os jovens devem ser encaminhados para a música e educados nela”
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
Música e políticas socioculturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(ARISTÓTELES, 1988, p. 277). O pensador ainda colocou que os jovens deveriam atuar
como intérpretes apenas durante este período da vida, sendo na maturidade dispensados da
prática, uma vez que já seriam capazes de julgar a beleza e desfrutá-la adequadamente.
Ademais, para Aristóteles, instrumentos que requeressem grande preparo técnico não
deveriam fazer parte da educação musical. Assim, o canto seria a forma ideal de
musicalização.
Ao longo da história da filosofia, diversos outros pensadores teorizaram a respeito
das funções sociais da música. O pensador tcheco Comênio (1592-1670), em sua Didática
Magna, incluía no seu modelo de educação o conhecimento da totalidade das ciências e das
artes, além de quatro línguas. Na escola materna, a criança deveria adquirir “os primórdios
da música, aprendendo alguns dos mais fáceis salmos e hinos sagrados” (COMÊNIO, 1985,
p. 418); a seguir, todos os jovens seriam enviados a escolas de língua nacional, e nestas
também haveria a educação musical: “Cantar melodias das mais correntes; e aos que
tiverem mais aptidões para isso, ensinar também os rudimentos da música” (COMÊNIO,
1985, p. 428). Para o pensador, além de formar gramáticos, dialéticos, retóricos,
matemáticos, historiadores, entre outros profissionais, a escola latina deveria formar
“músicos, práticos e teóricos” (COMÊNIO, 1985, p. 437).
O pensador iluminista Rousseau (1712-1778) propôs, em sua obra Emílio ou Da
Educação, uma pedagogia – do nascimento aos 25 anos de idade – que contemplasse a
sensibilidade, a moral, o intelecto, a sociabilidade, a sensação e a estética. Para a criança de 2
a 12 anos, por exemplo, Rousseau propõe, entre outras, uma educação sensorial, que
envolvia a educação auditiva: “quanto ao canto, tornai sua voz [da criança] justa, regular,
flexível e sonora, seu ouvido sensível à medida e à harmonia, nada mais” (ROUSSEAU,
1995, p. 178).
Já no século XX, Kodály, na Hungria, e Villa-Lobos, no Brasil, teorizaram e
empreenderam projetos que clarificaram o poder social intrínseco à música, e
especificamente ao canto coral. Zoltán Kodály (1882-1967) colocava a experiência do canto
como antecedente obrigatória do ensino instrumental; enfatizando o canto coral, via a voz
como a maneira mais imediata e pessoal de expressão. O canto em conjunto fomentaria o
desenvolvimento emocional e intelectual, a felicidade e o prazer, além de incentivar a
fruição musical e estética (cf. FONTERRADA, 2005).
Sob o influxo do projeto de Kodály, que difundia a música folclórica nacional por
meio do canto coral, Villa-Lobos (1887-1959) desenvolveu o canto orfeônico no Brasil,
estruturando-o durante a Era Vargas (1930-45). Não obstante os desacertos do projeto –
tais como o caráter cívico e moralizante visando diretamente à obediência ao Estado, as
dificuldades na formação de educadores e a estreita vinculação ao varguismo –, sua inclusão
94 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . FUCCI AMATO
na educação básica foi fundamental na escola brasileira; a vivência musical possibilitada pela
aprendizagem do canto orfeônico confiou à escola um papel de grande relevância na
formação cultural dos indivíduos (FUCCI AMATO, 2008a). O maestro brasileiro também
notou exemplarmente a função social do canto coral, destacando:
O canto coletivo, com seu poder de socialização, predispõe e indivíduo a perder no
momento necessário a noção egoísta da individualidade excessiva, integrando-o na
comunidade, valorizando no seu espírito a idéia da necessidade de renúncia e da disciplina
ante os imperativos da coletividade social, favorecendo, em suma, essa noção de
solidariedade humana, que requer da criatura uma participação anônima na construção das
grandes nacionalidades. (VILLA-LOBOS, 1987, p. 87)
Destarte, o canto coletivo constitui uma notável ferramenta de integração
interpessoal e socialização cultural. O canto coral atua, na perspectiva da integração, como
um meio de eliminação de quaisquer barreiras entre os indivíduos, colocando todos em
uma posição de aprendizes. Ao cumprir com as normas do coro, dedicar-se ao aprendizado
da música nos ensaios e em horas extras, o indivíduo se integra ao grupo na busca de metas
comuns, configurando um carisma grupal, por meio do qual todos os sentimentos e
obstáculos são transpostos (ELIAS e SCOTSON, 2000), para que todos os indivíduos
contribuam para o cumprimento dos objetivos comuns a todos os coralistas. Essa prática
musical desenvolve um senso de união grupal em torno de metas e objetivos comuns,
canalizando as ações e sentimentos individuais para uma produção artística coletiva, na qual
se conjugam a disciplina rigorosa, o estudo com afinco e dedicação de cada um dos agentes,
culminando na constituição do carisma grupal. Assim, em corais:
As relações interpessoais são predominantemente horizontais, calorosas, informais,
solidárias e centradas na emotividade. Para o indivíduo ou para o grupo no conjunto
contam, principalmente o reconhecimento e a gratificação moral. Prevalece uma liderança
carismática. Cada um está atento àquilo que deve dar aos outros; atribui muita importância
ao empenho; tende a aprender o mais possível, para melhorar a qualidade de suas próprias
contribuições; sente-se responsável; sabe para que ele serve; sabe para que serve a sua
contribuição pessoal; não tende a descarregar sobre os outros as suas próprias
responsabilidades. A disciplina provém do empenho pessoal, da atração exercida pelo líder,
da adesão à missão, da dedicação ao trabalho, da fé, da generosidade, da participação na
“brincadeira”. (DE MASI, 2003, p. 675-6)
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
Música e políticas socioculturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Noto ainda que o coro também oportuniza a aquisição de saberes artísticos e
estéticos que podem provocar uma transformação na mentalidade dos coralistas e os
auxiliar em seu desenvolvimento intelectual e crítico. O canto em conjunto “desvela-se
assim como uma extraordinária ferramenta para estabelecer uma densa rede de
configurações sócio-culturais com os elos da valorização da própria individualidade, da
individualidade do outro e do respeito das relações interpessoais, em um
comprometimento de solidariedade e cooperação” (FUCCI AMATO, 2007, p. 81).
Conforme expressou Mathias (2001), um coro tem diversos níveis de ação, desde um nível
micro até o macro, proporcionando que o indivíduo se integre às dimensões pessoal
(motivação), grupal (relações interpessoais), comunitária (melhora da qualidade de vida),
social (inclusão) e política (participação democrática nas ações públicas).
O regente de um coral deve atuar com a perspectiva de realizar um trabalho de
educação musical dos integrantes de seu grupo. Para a condução de um trabalho artístico
que envolve um grupo diversificado como um coral, faz-se necessária a capacidade de
estabelecer critérios, motivar cada um de seus integrantes, liderá-los e levá-los a uma meta
estabelecida. A partir desse processo, pode-se gerar e difundir conhecimentos musicais e
vocais, estimulando o aumento da qualidade de vida dentro de uma comunidade e a
propriocepção – percepção de si próprio em suas nuances internas. Nessa perspectiva, o
conceito da inclusão social revela uma importância ímpar, pois as oportunidades de
participação em todo e qualquer tipo de manifestação artística e cultural devem constituirse em um direito irrefutável do homem, independentemente de suas origens, etnia ou
classe social, assim como deveriam ser todos os demais direitos fundamentais à vida
humana.
O coro pode ser encarado como uma eficaz ferramenta do ponto de vista da
inclusão social, partindo do viés de uma inclusão cultural. Os trabalhos com grupos vocais
nas mais diversas comunidades, escolas, empresas, instituições e centros comunitários pode,
por meio de uma prática vocal bem conduzida e orientada, realizar a integração, dissipando
fronteiras sociais. O regente-educador, na igualdade da transmissão de conhecimentos
novos para todos os coralistas, independentemente de origem social, faixa etária ou grau de
instrução, tem o poder de envolvê-los no fazer do “novo”, ou seja, de colocá-los como
agentes do instigante processo da criação artística. Ademais, a inclusão sociocultural se
processa a partir da motivação individual de cada um dos integrantes do coral. Tal
motivação é cultivada no corista a partir da construção do conhecimento de si – de sua voz,
de seu corpo, de suas potencialidades musicais – e da realização da produção vocal em
conjunto, que culmina na alegria de cada execução com qualidade e reconhecimento dentre
seus pares fazedores de arte e pelo público. Nas palavras de De Masi (2003, p. 681), pode96 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . FUCCI AMATO
se dizer que em tais grupos é requerido do regente “assegurar um clima entusiasmado [e]
condições de máximo prazer estético e afetivo”. Portanto, também atuam como fatores
motivacionais a sociabilização e o prazer estético advindo da fruição artística, que
encaminha a manifestações significativas – emoções e sentimentos – transcendentais.
Também como possibilidade de lazer e expressão individual, o coro é fundamental, pois,
como notou Rousseau (1995, p. 271): “Primeiro não sabemos viver; logo já não podemos,
e, no intervalo que separa estas duas extremidades, três quartos do tempo que nos sobra
são consumidos pelo sono, pelo trabalho, pela dor, pela obrigação e pelos sofrimentos de
toda espécie”.
Outrossim, para Paulo Freire (1978, p. 42), “minimizado e cerceado, acomodado a
ajustamentos que lhe sejam impostos, sem o direito de discuti-los, o homem sacrifica
imediatamente a sua capacidade criadora”. Sob essa ótica, o canto coral, como meio de
inclusão social, atua no desenvolvimento do pensamento crítico do indivíduo, criando neste
a capacidade de uma nova leitura dos conceitos difundidos pela sociedade e permitindo-o
estabelecer padrões e gostos individuais, capazes de revogar a estética questionável
deflagrada pelos meios de comunicação de massa. Ao elaborar um pensamento crítico, a
partir dos conceitos transmitidos por meio da educação coral – em elementos como o
repertório, a intersubjetividade dos coralistas, a troca de opiniões dentro do grupo –, a
pessoa dará um importante passo na consolidação de sua integração e inclusão social. Tal
pensamento harmoniza-se com a conceituação de Freire (1978, p. 42): “A integração
resulta da capacidade de ajustar-se à realidade acrescida da de transformá-la, a que se junta
a de optar, cuja nota fundamental é a criticidade”.
No sentido estrito, referente à inclusão social em comunidades carentes, é
importante notar que as ações de inclusão social ganham maior relevância quando inseridas
na sociedade contemporânea, na qual a naturalização da exclusão tem se revestido das mais
diversas maneiras, com implicações mais profundas no que diz respeito à interiorização da
exclusão, retirando de todos os excluídos o direito às conquistas individuais (FRIGOTTO,
1995). No que concerne a esse aspecto, cabe ilustrar a eficiência que o coral pode
apresentar ao lidar com a quebra do processo de interiorização da exclusão; em coros
existe a possibilidade de realizar um trabalho real de informação, de quebra de
procedimentos enraizados, de estímulo à vida cultural, de descobertas de possibilidades
criativas, de esclarecimento e de dignificação do ser real, que está ao nosso lado.
A questão da inclusão social por meio da arte se adensa ainda mais sob a
perspectiva da teoria sociológica bourdieuniana. Para Pierre Bourdieu (1998a; 1998b), as
famílias transmitem socialmente, entre gerações, uma herança que se constitui dos capitais
econômico, escolar, social e, também, do capital cultural. Estas formas de capital constituem
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
Música e políticas socioculturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
a estrutura de um capital global (BOURDIEU, 2003), mobilizado em maior volume pelas
classes mais favorecidas socialmente; assim, as classes dominantes tendem a acumular
também um maior capital cultural, transmitido a seus descendentes. Ou seja, tais formas de
capital encontram-se historicamente distribuídas de forma desigual entre as classes e grupos
sociais, e a transmissão destas pela família implica uma conservação das desigualdades
socialmente determinadas. Sob tal ângulo de análise crítica, que refuta as doutrinas inatistas
do “dom” ou de predestinação, em artigo anterior (FUCCI AMATO, 2008b), analisei a
trajetória de oito dos mais importantes expoentes da música brasileira erudita e popular,
mostrando a intensa influência do capital cultural transmitido no seio familiar para a
formação artística desses compositores e intérpretes. Isso mostra que as atividades
socioculturais, como coros comunitários, ao permitirem a indivíduos de baixa renda o
acesso a bens culturais dificilmente difundidos nas famílias de classes sociais inferiores,
promovem o acúmulo de um capital cultural na comunidade, o qual contribuirá para a
inclusão social.
Canto coral e inclusão social: experiências
Em minha experiência como regente coral, pude verificar claramente a relevância
sociocultural do canto coral em um coral municipal, aberto à participação de todos os
cidadãos, e em um coro de empresa.
No Coral Municipal de São Carlos, dentro do projeto “São Carlos Canta”, foi
possível desenvolver um intenso trabalho de educação musical e integração. O grupo era
aberto a toda a população da cidade, sendo que a maioria dos participantes não possuía
conhecimento teórico-musical. Participaram do grupo indivíduos de diferentes situações
socioeconômicas e culturais: uma manicure, um padeiro, donas de casa, comerciantes,
professores universitários e da educação básica, estudantes, bibliotecárias, entre outros,
todos unidos pela felicidade resultante da aprendizagem musical, da convivência, da
cooperação e do prazer de uma realização individual e coletiva com qualidade artística.
Já no Coral Metal Leve formou-se um grupo, também amador, composto por
funcionário dos mais diversos setores da indústria. Primeiramente, foi possível verificar uma
quebra nos níveis hierárquicos estabelecidos pelo trabalho dentro da empresa: para
participar do coral só era necessário querer cantar. O gosto pelo canto estabeleceu as
condições para uma quebra das barreiras sociais e criou a possibilidade de diferentes
pessoas, de diferentes categorias profissionais, se integrarem para realizar um mesmo
trabalho. Em certa ocasião, o Theatro Municipal de São Paulo promoveu uma montagem da
98 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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ópera Cosi fan tutte, de Mozart, a preços populares. Os coralistas foram estimulados para
que fossem assistir ao espetáculo e até aludidos quanto à não-necessidade trajar
vestimentas formais para a entrada no teatro. Dessa forma, alguns cantores decidiram ir ao
evento e, após a ocasião inédita que tiveram a possibilidade de vivenciar, passaram a narrar
por meses a belíssima experiência que tinham tido, ao não se sentirem excluídos da vida
cultural e, em particular, da possibilidade de entrar em uma sala de concertos geralmente
destinada a um público seleto. Tal acontecimento ilustra a possibilidade que um coro tem
para a formação de platéias, produzindo efeitos colaterais para o indivíduo criar interesse
para ouvir outros corais, assistir a concertos e participar outros eventos de natureza
artística, redefinindo o seu papel e a sua posição na sociedade.
A partir de um levantamento de iniciativas de inclusão social pelo canto coral na
atualidade, destacou-se um imenso e rico universo, que corrobora a tese da inclusão pela
arte. Dois exemplos bastante conhecidos são as atividades promovidas pelo Instituto
Baccarelli e o Projeto Guri. O Instituto Baccarelli atende o público infantil e jovem de
Heliópolis (São Paulo-SP) – a maior favela da América Latina –, cuja população é composta
em grande parte por indivíduos dessa faixa etária. O instituto desenvolve projetos apoiados
por grandes empresas, por meio da Lei Nacional de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet).
Conforme declarou o maestro Silvio Baccarelli (PORTAL APRENDIZ, 2008): “Por meio da
música levamos ao jovem a liberdade, a consciência, os sonhos e a missão da bondade”. A
página de divulgação do instituto elabora:
O Instituto Baccarelli é uma associação civil sem fins lucrativos que tem por objetivo
oferecer formação musical e artística de excelência para crianças e jovens em situação de
vulnerabilidade social, proporcionando desenvolvimento pessoal e criando a possibilidade de
profissionalização.
Localizada na comunidade de Heliópolis, em São Paulo, a entidade gerencia os projetos:
Sinfônica Heliópolis, de prática orquestral; Orquestra do Amanhã, de iniciação e
aprimoramento em estudo de instrumentos; Coral da Gente, de iniciação e
aperfeiçoamento em canto coral com técnicas de expressão cênica e Encantar na Escola,
iniciação em canto coral aplicado em escolas da rede pública. (INSTITUTO BACCARELLI,
2009)
Já o Projeto Guri é desenvolvido pela Secretaria de Cultura do estado de São
Paulo, desde 1995, e visa à inclusão sociocultural de crianças e adolescentes. Atualmente
contando com mais de 380 pólos, em mais de 300 municípios, e atendendo a
aproximadamente 40 mil jovens, o projeto visa ao “desenvolvimento da concentração, da
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Música e políticas socioculturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
disciplina, do trabalho em grupo, da respeitabilidade e a apuração da sensibilidade”
(PROJETO GURI, 2009). As atividades educativo-musicais – ensino de instrumentos e canto
coral – destinam-se às comunidades carentes e, também, aos jovens que cumprem medidas
socioeducativas na Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao
Adolescente), antiga FEBEM (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor).
Outra iniciativa exemplar consiste no Coral Santa Cecília, formado por detentas
de uma penitenciária feminina em Teresina (PI). “Duas vezes por semana, elas deixam as
celas onde cumprem suas penalidades para exercitar técnicas de respiração, dicção,
afinação, equalização, ritmo e saúde vocal”, informou o site JusBrasil Notícias (2008). O coro
funciona como uma atividade de inclusão social e emocional, aliviando o encargo espiritual e
psíquico resultante do encarceramento; visa também a oferecer possibilidades para o
desenvolvimento de potenciais musicistas, que posteriormente poderão obter renda por
meio da atividade musical. Segundo seu regente, Fernando Ferreira (citado por JUSBRASIL
NOTÍCIAS, 2008): “O coral dentro da penitenciária cumpre um triplo papel: Evita a
ociosidade dentro da penitenciária; facilita a reinserção, na sociedade, pós-cárcere, e
permite um vislumbre das atividades fomentadas dentro da Instituição”.
Há muitos outros exemplos de aplicação do canto coral na inclusão social. Na
Bahia, por exemplo, a ONG AJIR (Ação Jovem de Inclusão Regional) desenvolve um
projeto de canto coral infanto-juvenil por meio do Coral Meninos da Prainha, com cerca de
80 membros (ASSIS, COSTA e GOMES, 2007). Os pacientes afásicos1 da Faculdade de
Odontologia de Bauru, da Universidade de São Paulo (FOB/ USP), são atendidos por
discentes do curso de Fonoaudiologia e tem, durante seu tratamento, aulas de canto coral,
que permitem o auxílio musicoterápico para o restabelecimento da capacidade de
comunicação pelo paciente (USP, 2008). Em Sergipe, a ONG Revoada - Educação, Arte e
Cidadania Para a Vida promove atividades visando ao desenvolvimento econômico regional,
à alfabetização, à educação ambiental e à cultura; mantém, dentre seus programas, aulas de
canto, musicalização, flauta doce, dança, teatro, expressão corporal, dentre outras
(INCLUSÃO SOCIAL, 2005). A prefeitura de Itatiba (SP) promove um projeto de canto
coral junto a 12 escolas municipais, com a participação de 1.240 crianças de terceiras e
quartas séries do ensino fundamental (PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE ITATIBA, 2004;
JUNDIAÍ ON LINE, 2008). Em Nova Andradina (MS), um coral formado por jovens
atendidos pelo PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), do Ministério do
“A Afasia refere-se ao conjunto de distúrbios de linguagem resultante de uma lesão que afeta
ou destrói, total ou parcialmente, regiões cerebrais e provoca alterações na comunicação oral
e/ou escrita” (USP, 2008).
1
100. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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Desenvolvimento Social, trabalha na busca por melhorar a auto-estima dos jovens,
proporcionar-lhes nova visão de mundo e qualidade de vida. A regente, Delma Prado
(citada por MDS, 2008), comentou: “Percebo que eles [os jovens] estão mais disciplinados.
Depois das aulas, os alunos me procuram para falar sobre os problemas familiares. Acho
que as atividades os ajudam a superar as dificuldades enfrentadas”. Também no município
de Dourados (MS) foi formado outro coral com jovens do PETI, o Grupo de Canto
Caminhos do Sol (PREFEITURA DE DOURADOS, 2006). Enfim, outra experiência de
sucesso foi levada a efeito em Apucarana (PR):
Município novo, com pouca oferta de atividades culturais e lazer, sem local apropriado para
eventos culturais, enfim carência grande de uma ocupação contra-turno para as crianças,
adolescentes, jovens e adultos. Projeto iniciado através de experiência implantada junto a
Escola Estadual Jardim Boa Vista, localizada em bairro de grande população, através da Profa.
Lozangela Machado de Morais Calado, quando diretora no período de 1997 a 2001; com o
objetivo de evitar a evasão escolar, a drogacidade, prostituição, vandalismo, falta de interesse
de inclusão social, o ostracismo [...] e outras diversas formas de marginalização propiciadas
pelas ruas, através da ociosidade e ofertas das "facilidades", foi assim que implantou-se em
1998 o projeto de oferecer um grupo de canto coral nesta escola, através de recursos
advindos de empresária que se prontificou a assumir os recursos financeiros. O resultado foi
de uma aceitação além do esperado, com inscrições que chegaram a mais de 200
componentes, fazendo com que se trabalhasse nos horários manhã e tarde, sempre em
contra-turno, a obtenção de melhoria de comportamento, da alegria e auto-estima,
melhoria no aprendizado, tratamento com os professores e colegas, funcionários,em todas
as faixas etárias foi surpreendente, inclusive com o envolvimento dos pais e comunidade
através das apresentações em dias festivos e comemorações, enfim houve um envolvimento
em toda a comunidade escolar, com manifestações de surpresa e tranquilidade verificada
junto a toda a comunidade do bairro, diminuindo inclusive o índice de vandalismo no bairro.
(CALADO, 2008)
A bela experiência expandiu-se com a crescente adesão da população local e
atualmente inclui todas as escolas, colégios e duas instituições sociais (PETI Rural e Piá
Ambiental), contando também com um coral de adultos. Segundo Calado (2008), na
“Cidade dos Corais” é “um motivo de orgulho para todos fazerem parte de um grupo de
canto coral, onde todos passam assim a ter mais um núcleo familiar onde se aprende a
trabalhar em parceria, pois cada um é responsável pela unificação em geral”.
Por meio das diversas experiências relatadas é possível notar como o processo de
inclusão social por meio do canto coral se efetua na direção de integrar o indivíduo à
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
.
Música e políticas socioculturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
coletividade social e gerar oportunidades para que este possa aprender arte
independentemente das informações que recebeu ou não no seu ambiente sociocultural,
familiar ou escolar. As iniciativas se difundem por todo o país, em projetos com diferentes
enfoques – de gênero, faixa etária ou tipo de comunidade atendida –, a partir de parcerias
envolvendo um esforço conjunto de organizações do terceiro setor, prefeituras, governos
estaduais, governo federal e setores empresariais.
Programa de Inclusão Social pelo Canto Coral (Pró-InCanto): uma proposta
Elaborarei a seguir algumas considerações sobre um projeto-modelo de canto
coral inclusivo que poderia ser implantado em diversos contextos.
O Pró-InCanto teria por objetivo inicial mapear a produção vocal/coral de dadas
populações, buscando identificar suas deficiências musicais, educacionais e vocais – abuso
vocal, desconhecimento do funcionamento do aparelho fonador e respiratório, de técnicas
de saúde e educação vocal, entre outros aspectos. A partir de então, seriam identificadas
oportunidades de aprimoramento dessas práticas, no intuito de promover uma melhor
qualidade da vivência musical em tais comunidades. Seria intento do projeto o aumento de
qualidade da música coral/vocal que já vem sendo praticada em igrejas, escolas e outros
locais comunitários – sem fundamentos mais aprimorados da técnica vocal ou regência
coral, na maioria das vezes –, assim como o incremento dessa prática em todos os bairros
de uma dada localidade. Ligados necessariamente a esses objetivos estão a melhoria da
integração interpessoal, da inclusão social e da qualidade de vida da população, por meio da
viabilização de desejos e potencialidades de produção musical de valor, em diversas faixas
etárias.
O projeto visaria, ainda, gerar oportunidades de obtenção de novos
conhecimentos ligados à música, à educação e ao canto, saberes estes que normalmente
são adquiridos em escolas especializadas não acessíveis a toda a população. A consciência de
que é possível executar música vocal com qualidade deve ser altamente estimulada, pois o
ato de cantar está ao alcance de todo ser humano, na medida em que a produção vocal não
requer investimentos além de um corpo saudável e bem educado. O canto coral, por
harmonizar a menor demanda de recursos materiais com a intersubjetividade seria a forma
ideal de inclusão sociocultural.
Nesse caso, o projeto seria comandado por uma universidade, integrando ensino
(discussão das experiências e participação de docentes e discentes na efetivação do
102. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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projeto), pesquisa (análise das experiências) e extensão universitária (atendimento às
comunidades locais).
A pesquisa teria um caráter exploratório, pois buscaria oferecer uma visão
panorâmica da problemática apresentada. Tratar-se-ia, de fato, da tentativa de uma primeira
aproximação a um objeto de pesquisa ainda pouco explorado – o potencial inclusivo do
canto coral. Nesse sentido, buscar-se-ia construir um referencial básico, a partir de dados
elementares, que poderiam dar suporte a estudos mais aprofundados no futuro.
O referencial teórico seria, inicialmente, fundamentado em uma revisão
bibliográfica referente a diversas áreas do conhecimento – fisiologia da voz, fundamentos da
voz cantada, educação musical e prática coral –, que deveria dar o suporte teórico para o
desenvolvimento das análises dos dados obtidos na pesquisa de campo. Seria, portanto, uma
investigação multidisciplinar, abrangendo áreas como as ciências da saúde (fonoaudiologia e
otorrinolaringologia), as artes (canto e regência coral) e a educação (educação musical e
pedagogia). Por exemplo, a produção acadêmica referente à emissão vocal cantada está
intimamente ligada ao desenvolvimento da área de fonoaudiologia e, nesse sentido, destaco
os autores Behlau e Pontes (2001), Ferreira (1998), Andrada e Silva e Costa (1998) e
muitos outros que estão desenvolvendo numerosos trabalhos para intensificar o
entendimento da voz falada e cantada, incrementando subsídios teóricos para a área de
música coral.
Do ponto de vista do procedimento metodológico de coleta de dados, propõe-se
realizar uma pesquisa de campo, combinando aspectos de estudo de casos múltiplos (YIN,
2001) – que permitem a ampliação das nuances vislumbradas na pesquisa – e da pesquisaação com observação participante ou pesquisa participativa (THIOLLENT, 2005), já que se
deseja uma participação ativa da população nos vários casos selecionados. Sobre a pesquisaação, é relevante notarem-se alguns aspectos específicos. Segundo Thiollent (2005), essa
técnica de investigação originou-se nos Estados Unidos, a partir dos anos 1940, com as
pesquisas de Kurt Lewin. Trata-se de uma técnica que redefine a função da universidade,
conferindo-lhe maior compromisso social.
Os projetos de pesquisa voltados para a identificação e, quando possível, a resolução de
problemas sociais, educacionais, organizacionais, tecnológicos no seio de comunidades
urbanas ou rurais, podem ser concebidos à luz da metodologia participativa ou, em
particular, da metodologia de pesquisa-ação. Tais metodologias possuem características
valorativas e procedimentos operacionais potencialmente favoráveis à dimensão solidária
dos projetos, tanto no contexto universitário como no quadro de atividades promovidas
por outros tipos de entidades públicas ou por organizações da sociedade civil. [...]
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
.
Música e políticas socioculturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Enquanto propostas metodológicas, a pesquisa participativa e a pesquisa-ação são destaque
aos aspectos qualitativos da concepção, da organização do processo investigativo e de suas
relações com a capacidade de ação dos atores envolvidos. (THIOLLENT, 2005, p. 172-8)
O público-alvo da pesquisa empírica seria composto de cantores de corais e
grupos vocais de várias instituições, tais como igrejas, escolas e demais centros
comunitários. O instrumento de investigação mais apropriado para este tipo de pesquisa
seria o questionário semi-estruturado, que poderia contemplar, dentre outros, os seguintes
aspectos: histórico musical e vocal do cantor; capacitação pedagógico-musical; grau de
conhecimento do aparelho pneumofonoarticulatório (mecanismos de controle de fluxos
inspiratórios e expiratórios e de produção da voz falada); treinamento vocal (aulas de canto,
conhecimento do trabalho fonoaudiológico); produção vocal cantada (classificação vocal,
abuso vocal, cuidados com a voz); outros cuidados referentes à saúde vocal: alimentação,
ingestão de líquidos, práticas esportivas, automedicação, etc.
O projeto resultaria, então, em subsídios para a formulação de políticas
educacionais e culturais, por meio do desenvolvimento de uma série de produtos e práticas.
Poderiam ser promovidos encontros, seminários e oficinas, objetivando a difusão de
conhecimentos gerados a partir da pesquisa, intercâmbios científicos – incluindo o
desenvolvimento de pesquisas e projetos integrados e cooperativos – e o desenvolvimento
de debates e investigação acerca de assuntos como a voz cantada, a educação musical e o
canto coral comunitário. Seria de suma importância elaborar-se material didático musical,
fonoaudiológico e educacional, visando a geração do conhecimento sistematizado da
produção musical cantada, do canto coral e suas especificidades. O programa seria
difundido por meio de agentes multiplicadores: poderia ser realizada uma seleção e
capacitação de agentes corais comunitários (ACCs), promoveriam a educação musical e vocal
nas comunidades selecionadas. Esses agentes seriam selecionados segundo o grau de seus
conhecimentos musicais e deveriam frequentar cursos intensivos de educação, educação
musical, regência coral, técnica vocal, prática coral e outras áreas afins. Prosseguir-se-ia à
implantação e ao desenvolvimento das atividades dos ACCs, o que envolve um
monitoramento contínuo, por parte da instituição promotora da pesquisa, das atividades
mantidas em cada bairro, tendo em vista o aprimoramento do conhecimento e das ações
musicais comunitárias.
Cabe salientar que o Pró-InCanto poderá ser implantado com diversas
conformações, adequando-se a necessidades específicas. O projeto pode gerar
oportunidades profissionais, por meio da formação de educadores musicais e do incentivo à
qualificação de futuros músicos. Em comunidades locais isoladas, o projeto sociocultural
104. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . FUCCI AMATO
pode se integrar a um projeto de desenvolvimento regional, por meio de redes de
cooperação produtiva e cooperativas baseadas nos princípios da economia social ou
economia solidária (SINGER, 2002; 2005). O programa pode abranger diversas faixas
etárias – sendo constituídos corais infantis, juvenis, adultos e de terceira idade –, e, em
comunidades em que não se identifiquem atividades vocais ou musicais que já venham
sendo desenvolvidas, pode-se redirecionar o programa, a fim de se criarem núcleos corais
comunitários (NCCs), que funcionariam dentro de um projeto-piloto. Ao se implantar um
NCC em uma escola pública, por exemplo, poder-se-ia promover a melhoria da integração
da comunidade escolar, abrindo grupos vocais à participação de alunos, professores,
funcionários, pais de alunos e demais interessados da comunidade externa. Quanto à
dimensão investigativa, poder-se-ia pesquisar as dificuldades na implantação desse tipo de
projeto comunitário, as carências musicais, vocais, socioeconômicas e socioculturais da
comunidade em que se atua, dentre outros aspectos.
As possibilidades de efetivação do projeto podem surgir da ação sinérgica de
diversos agentes, tais como organizações não governamentais, governo, empresas, institutos
de ensino e universidades. No caso do apoio de empresas, por exemplo, pode-se inserir o
projeto em programas de responsabilidade social corporativa (cf. TORRES, 2005), que
constituem “um tema gerencial emergente que estende as responsabilidades das empresas a
áreas e problemas sociais e ambientais que, anteriormente, eram vistos como fatores
‘externos’” (THIOLLENT, 2005, p. 182).
Considerações finais
Os objetivos socioculturais e educativo-musicais estão intimamente relacionados
no canto coral, e sua efetivação dá-se por meio do respeito às relações interpessoais, tanto
por parte do regente quanto dos coralistas. O canto em conjunto talvez seja uma das mais
antigas expressões artísticas e comunicativas do ser humano, tendo historicamente revelado
um imenso potencial social. Permite integrar pessoas de diferentes condições
socioeconômicas e culturais e dar a conhecer uma nova forma de expressão ao mesmo
tempo individual e coletiva. Informa noções essenciais para a manutenção de uma saúde
vocal em longo prazo, estabelece, na convivência, uma nova concepção de possibilidade de
lazer e cria um compromisso de união do grupo com responsabilidade, respeito e
dedicação, independentemente de origem socioeconômica, faixas etárias e de dificuldades
de aprendizado que possam surgir. Cantar em um coro é relevante na perspectiva da
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105
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manutenção de um corpo saudável e apto para a prática do canto, quer seja profissional,
quer seja como meio de expressão, integração, motivação ou lazer.
Dessa forma, pelo canto coral comunitário e inclusivo, o indivíduo passa a
vislumbrar novas dimensões sociais e estéticas, assim como, ao ser alfabetizado, o
analfabeto
[d]escobriria que tanto ele, como o letrado, têm um ímpeto de criação e recriação.
Descobriria que tanto é cultura o boneco de barro feito pelos artistas, seus irmãos do povo,
como cultura também é a obra de um grande escultor, de um grande pintor, de um grande
místico, ou de um pensador.
Que cultura é a poesia dos poetas letrados de seu País, como também a poesia de seu
cancioneiro popular. Que cultura é toda criação humana. (FREIRE, 1978, p. 109)
Para finalizar, é necessário destacar que, a possibilidade de inclusão social pela
cultura, em difusão progressiva há alguns anos, ainda exige maior atenção por parte de
gestores de políticas públicas e setores organizados da sociedade civil.
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Rita de Cássia Fucci Amato é doutora e mestra em Educação (UFSCar), especialista em
Fonoaudiologia (EPM/ UNIFESP) e bacharel em Música com habilitação em Regência
(UNICAMP), teve a sua dissertação (Santo Agostinho: ”De Musica”) patrocinada pela CAPES e a
sua tese (Memória Musical de São Carlos: Retratos de um Conservatório) financiada pela FAPESP.
Aperfeiçoou-se com Lutero Rodrigues (regência) e Leilah Farah (canto lírico). Com
experiência profissional como regente, cantora lírica e professora de técnica vocal/ voz
cantada, foi pesquisadora nas áreas de Pneumologia e Fonoaudiologia na EPM-UNIFESP e é
professora doutora da Faculdade de Música Carlos Gomes. Autora de artigos publicados em
anais de eventos e periódicos nacionais e internacionais, nas áreas de música, educação e
filosofia. No momento realiza pós-doutorado na Universidade de São Paulo.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
.
Por que vamos ensinar música na escola?
Reflexões sobre conceitos, funções e valores da educação musical escolar
Ana Carolina Nunes do Couto (UFPE)
Israel Rodrigues Souza Santos (UEMG)
Resumo: O fato de o Brasil não possuir uma tradição em ensinar música na escola regular
pode levar a diferentes percepções da sociedade sobre essa atividade. Ideias equivocadas sobre
conteúdos, formas e funções podem comprometer o retorno da Educação Musical como
componente curricular obrigatório - garantido através da lei 11.769/08. Neste sentido, o
presente artigo traz uma revisão literária sobre os motivos que tornam válida a aula de música
no contexto escolar. O texto aponta determinados valores tradicionalmente atribuídos à
musica e ao seu ensino, valores ainda hoje utilizados como argumentos de justificativa para sua
presença na escola.
Palavras-chave: educação musical; ensino médio; políticas educacionais.
Abstract: The fact that Brazil does not have a tradition of music teaching in public schools can
lead to different perceptions of the society about this activity. Misconceptions about its
contents, forms and functions can compromise its value as a required curricular component –
as prescribed in the law 11.769/08. In this sense, this article reviews the literature that has
provided reasons for the importance of teaching music in the context of public schools. This
article points out to certain values traditionally attributed to music and its teaching, which are
still used to justify its presence in public schools.
Keywords: music education; middle school; educational policies.
.......................................................................................
COUTO, Ana Carolina Nunes; SANTOS, Israel Rodrigues Souza. Por que vamos ensinar
Música na escola? Reflexões sobre conceitos, funções e valores da Educação Musical Escolar.
Opus, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 110-125, jun. 2009.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . COUTO; SANTOS
A
inexistência de uma tradição em se ensinar música na escola regular no Brasil pode
levar a diferentes ideias da sociedade a respeito dos conteúdos, objetivos e
funções dessa disciplina. Partindo deste pressuposto, é importante refletir sobre o
papel que a música deve desempenhar na escola regular, bem como suas funções e valores,
para que seu retorno à escola (lei 11.769/2008) aconteça de uma forma bem compreendida
e fundamentada pela comunidade de educadores musicais.
Delimitação de conceitos
A falta de compreensão sobre o que é educação musical, o quê ela aborda e como o
faz, é uma das principais causas da dificuldade que se tem em justificar sua presença na
educação formal básica do indivíduo. Terminologias da área, como musicalização, educação
musical, ou até mesmo o próprio conceito de música, são constantemente concebidas de
forma equivocada, tornando o trabalho do profissional que lida com a educação musical
uma verdadeira incógnita para muitos. De acordo com Hentschke, talvez a explicação para
a falta de entendimento que a sociedade tem sobre o que é educação musical “esteja ligada
à própria concepção que o homem ocidental tem da arte, ou seja, do seu engajamento com
o processo criador em geral, ou ainda pela ideia generalizada de que arte refere-se a um
inatingível processo subjetivo” (HENTSCHKE, 1991, p. 57).
As artes, em geral, são tipos de linguagens que intencionam expressar sensações
e/ou sentimentos, contudo, sem o mesmo grau de automatismo e comunicabilidade da
linguagem falada (DUARTE JUNIOR, 1991, p. 46-47; PENNA, 1991, p. 22). No caso
específico da música, as ideias e sentimentos do homem seriam expressos em formas
sonoras (SWANWICK, 2003, p. 18). Por serem criadas pelo homem, tais formas estão
vinculadas ao tempo e ao espaço, e as combinações de seus elementos ocorrem de
maneiras diferentes em cada época e local, determinando o que chamamos de “estilo”.
Assim, a linguagem musical é uma linguagem socialmente construída e compartilhada, o que
significa que pode ser também estudada e compreendida (PENNA, 1991, p. 20-21). Nesta
perspectiva, abandona-se a ideia de que o estudo da arte, e da música, mais especificamente,
seja um processo tão subjetivo a ponto de ser inatingível.
Para que a linguagem musical seja compreendida e compartilhada, há a necessidade
do conhecimento de seus códigos. Esse conhecimento, segundo Penna, pode ser adquirido
não apenas na escola, mas também de maneira dita “informal”, pela vivência, pelo contato
cotidiano, o que leva à sua familiarização (PENNA, 1991, p. 20-21). De acordo com
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
.
Por que vamos ensinar música na escola? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Swanwick, para que haja a compreensão da música e sua linguagem, ela precisa ser vista
como uma “forma simbólica com camadas de significados” (SWANWICK, 2003, p. 50).
Swanwick remete a quatro elementos para definir o que ele chama de “discurso”
artístico, o que colabora na compreensão da música enquanto linguagem. São eles:
•
Internamente, representamos ações e eventos para nós mesmos: nós imaginamos.
•
Reconhecemos e produzimos relações entre essas imagens.
•
Empregamos sistemas de sinais, vocabulários compartilhados.
•
Negociamos e trocamos nossos pensamentos com outros.
Esses elementos, intercalados, caracterizam o pensamento e a produção nas artes, tanto
quanto em deliberação filosófica, racionalização científica ou pensamento matemático. [...]
Minha tese é que o fenômeno dinâmico da metáfora serve de base a todo discurso
(SWANWICK, 2003, p. 23).
O autor argumenta que, ao compreender a música enquanto discurso, o indivíduo
é capaz de trabalhar internamente conhecimentos previamente adquiridos, mas agora em
um novo contexto, assimilando-os em uma nova situação. Assim, confere-lhe novo
significado, tal qual no processo da metáfora. Segundo ele, “o processo metafórico reside
no coração da ação criativa, capacitando-nos a abrir novas fronteiras, tornando possível
para nós reconstituir ideias, ver as coisas de forma diferente” (SWANWICK, 2003, p. 26).
A educação musical existe para auxiliar o indivíduo a alcançar esta compreensão
da música enquanto linguagem. Para o desenvolvimento, manifestação e mesmo para a
avaliação desta compreensão, a pessoa pode utilizar-se das modalidades do “fazer musical”,
conhecidas como execução, onde se faz música através da execução instrumental e/ou vocal;
da apreciação, que é a modalidade na qual a pessoa ouve música de maneira crítica e
participativa; e também da composição, que implica na criação musical através da
manipulação dos elementos da música (FRANÇA; SWANWICK, 2002). Assim, a educação
musical pode envolver diversos estágios da aprendizagem musical, indo dos seus primórdios
até graus mais elevados de instrução, como por exemplo, em níveis superiores da
educação.
A primeira etapa da educação musical é chamada de musicalização (PENNA, 1991,
p. 37). Nessa fase o educador musical busca desenvolver no indivíduo os instrumentos de
112. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . COUTO; SANTOS
percepção básicos, necessários para que este compreenda o material sonoro de maneira
significativa, enquanto linguagem artística, ou como prefere Swanwick (2003), enquanto
discurso. Contudo, o nível de domínio dos códigos musicais durante a etapa da
musicalização seria diferente do de um profissional, por se ater ao fornecimento de “um
referencial básico, [d]os esquemas de percepção necessários para sustentar uma disposição
de se apropriar de obras musicais” (PENNA, 1991, p. 43). Penna tem o cuidado de ressaltar
que, diferentemente do que comumente se acredita, a musicalização não é um processo
dirigido exclusivamente ao público infantil, mas sim a qualquer faixa etária, embora haja a
necessidade de adaptação da linguagem, dos estímulos motivacionais, do repertório, e o
respeito pela capacidade de abstração de cada faixa etária específica (p. 53).
Um eixo básico comum sugerido por Penna para o trabalho metodológico com a
musicalização envolveria primeiramente a vivência musical, a qual permitiria a “atividade
perceptiva” (PENNA, 1991, p. 53). Em seguida, há a formação de conceitos fundamentais da
linguagem musical, seu reconhecimento e identificação. Tais aspectos devem acontecer
através de atividades que promovam a formação de imagens auditivas e de representações
simbólicas; e atividades de expressão para que os conceitos aprendidos sejam aplicados. Tal
ação pedagógica deve ser capaz de dar condições para a “compreensão crítica da realidade
cultural de cada um” (p. 33). Processo semelhante é também descrito por Martins, o qual
afirma que a aprendizagem musical passaria primeiramente por um momento do
desenvolvimento da percepção, onde se deve focar determinado elemento para a atenção
do indivíduo. Em seguida teríamos “operações internas de classificação, de categorização e
de organização”, momento onde aconteceria a formação de conceitos (MARTINS, 1985, p.
19).
Na etapa da musicalização, diversos autores alertam para a necessidade de tornar
o processo significativo para o aluno (ARROYO, 1990; FREIRE, 2001; GROSSI, 1990). Isso
implica a não redução do trabalho na pura focalização dos elementos musicais, como por
exemplo, a altura, duração, intensidade, andamento, timbre, etc., esquecendo do caráter
musical, pois a “linguagem musical é uma linguagem artística e expressiva, e deverá ser
apreendida enquanto tal” (PENNA, 1991, p. 49). Para Swanwick esses elementos seriam
apenas “materiais” sonoros, e apenas uma maneira de analisar a experiência musical. O
educador musical deve estar consciente de que existe a necessidade de ultrapassar a
simples conceituação e reconhecimento de tais elementos, e fazê-los adquirir sentido
dentro do contexto musical, caso contrário não haverá nenhum envolvimento nos níveis
metafóricos do discurso musical (SWANWICK, 2003, p. 59). Martins adverte para que
tentativas de explicar a percepção a partir do conceito, ao invés da própria percepção deste
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
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conceito, não evoluam “em um significado musical, o que transforma o estudo de música
numa atividade pseudoteórica, estéril e antimusical” (MARTINS, 1985, p. 19).
Ao compreendermos a musicalização enquanto uma etapa dentro da educação
musical, automaticamente colocamos esta última dentro de uma processo mais amplo. Ela
pode atingir fases que ultrapassam a musicalização, podendo, por exemplo, abordar a
notação musical enquanto representação simbólica convencionada (PENNA, 1991, p. 36). Já
a musicalização trabalharia nos níveis da concreticidade sonora.
Com os pressupostos acima citados, acreditamos que a discussão que se segue a
respeito do papel da educação musical na formação básica do indivíduo, bem como do que
é ensinado e de como se almeja fazê-lo, estará melhor situada. Sintetizando essa seção, de
acordo com Swanwick, “em educação musical a principal meta é, certamente, trazer a
conversação musical do fundo de nossa consciência para o primeiro plano” (SWANWICK,
2003, p. 50).
O papel da Educação Musical na educação formal do indivíduo
Como mencionado anteriormente, o processo de educação musical pode
acontecer de maneira “natural”, ou também dita “informal” (PENNA, 1991, p. 22). Tal fato
pode dificultar uma tentativa de explicar qual seria, então, a função de um trabalho com a
música nas escolas, já que tal processo independeria, até certo ponto, dela.
Apesar de processos não-formais de musicalização estarem presentes na vida de
muitas pessoas, eles não seriam equivalentes, obtendo resultados distintos que
dependeriam diretamente das condições socioculturais de cada um (PENNA, 1991, p. 23).
Neste sentido, a escola, e mais especificamente a escola pública – entidade aberta a todas as
classes e, portanto, um espaço democrático por excelência – seria o espaço ideal para
promover o acesso à linguagem musical a todos que dela participem (LOUREIRO, 2004, p.
66; PENNA, 1991, p. 25-26; QUEIROZ; MARINHO, 2007, p. 70).
Encontramos diversos motivos que legitimam a presença e a necessidade do
ensino artístico nas escolas. O primeiro deles invoca o fato de que as artes e suas diferentes
formas de manifestações são produtos do homem, e por isso uma forma de registro de sua
própria história (SANTOS, 1990, p. 49).
Duarte Júnior (1991) acredita que o ensino das artes permite que o indivíduo
reconheça e eduque o seu próprio processo de sentir, que fora perdido numa concepção
de mundo onde a “primazia da razão”, a “primazia do trabalho” e “a natureza infinita”
114. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . COUTO; SANTOS
orientam o comportamento e pensamento do mundo ocidental (DUARTE JUNIOR, 1991,
p. 63-77). Neste sentido, o ensino das artes contribuiria para que houvesse o resgate da
capacidade do homem de criar um sentido pessoal que oriente sua ação no mundo. De
acordo com suas palavras:
Encontrando nas formas artísticas Simbolizações para os seus sentimentos, os indivíduos
ampliam o seu conhecimento de si próprios através da descoberta dos padrões e da
natureza de seu sentir. Por outro lado, a arte não possibilita apenas um meio de acesso ao
mundo dos sentimentos, mas também o seu desenvolvimento, a sua educação. Como,
então, podem ser educados e desenvolvidos os sentimentos? Da mesma forma que o
pensamento lógico, racional, se aprimora com a utilização constante de símbolos lógicos
(linguísticos, matemáticos, etc.), os sentimentos se refinam pela convivência com os
Símbolos da arte. [...] Conhecer as próprias emoções e ver nelas os fundamentos de nosso
próprio “eu” é a tarefa básica que toda escola deveria propor, se elas não estivessem
voltadas somente para a preparação de mão-de-obra para a sociedade industrial (DUARTE
JUNIOR, 1991, p. 66-67).
Poder-se-ia dizer então que o papel da educação musical na vida escolar dos
indivíduos seria o de democratizar o acesso à linguagem musical, a partir de um
engajamento dos educadores musicais com uma sólida fundamentação teórica que conduza
sua prática nesse ambiente, buscando ações que possibilitem o desenvolvimento perceptivo
para as diferentes manifestações musicais que nos cercam.
Reflexões sobre os Valores da Educação Musical
Notamos a importância e o valor que determinada área do conhecimento possui
para uma determinada sociedade na medida em que analisamos a estruturação de seu
currículo escolar. O ínfimo espaço atual concedido às artes na escola, e a virtual inexistência
da música, demonstra que esta não faz parte do que se estabeleceu como “importante”
pelo senso comum de nossa sociedade (HENTSCHKE, 1991, p. 56). Duarte Júnior
menciona que o intelectualismo de nossa sociedade é reforçado dentro do ambiente
escolar, onde o que é considerado relevante é apenas aquilo que se pode conceber
racionalmente, logicamente, e as artes não se enquadram nesta perspectiva (DUARTE
JUNIOR, 1991, p. 66). Logo, o papel que a música desempenha numa escola que a encara
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
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desta forma restringe-se apenas ao lúdico, a um mero lazer e divertimento, em contraste
com “as atividades “úteis” das demais disciplinas” (p. 81).
Hentschke (1991) levanta a questão da necessidade de uma conscientização dos
valores da música e da educação musical entre os agentes de toda prática educacional. Essa
autora, baseada na literatura ocidental de educação musical e em fundamentos encontrados
em diversas áreas, como a filosofia, a sociologia, a psicologia e etnomusicologia, discute
como tais valores sofreram transformações ao longo da história, causando consequências
na estruturação dos currículos em cada época. Fonterrada reforça tal pensamento, ao
afirmar que “o impacto que determinada profissão pode ter na sociedade depende, em
grande parte, do entendimento do que ela tem a oferecer” (FONTERRADA, 2005, p. 11).
Assim, essas duas autoras discutem como a falta de compreensão sobre os valores da
música e da educação musical afetam a inserção do ensino de música nas escolas regulares
brasileiras.
Merriam (apud SWANWICK, 2003, p. 47) identifica e categoriza determinadas
funções que a música geralmente desempenha na sociedade. Swanwick no entanto, tem o
cuidado de separar tais categorias em duas listas distintas. Na primeira lista encontram-se as
categorias que possuem um caráter com potencial para o desenvolvimento do discurso
simbólico, que são: “expressão emocional”, “prazer estético”, “comunicação” e
“representação simbólica”. De acordo com o autor, essas funções simbólicas teriam
“potencial tanto para a transmissão quanto para a transformação cultural” (p. 49). Portanto,
tais funções seriam as mais apropriadas aos objetivos de uma educação musical que busca o
desenvolvimento da linguagem musical enquanto discurso simbólico.
A segunda lista que Swanwick faz sobre as categorias de Merriam, enquadra as
funções da música vinculadas ao apoio e/ou reprodução cultural. São eles: “reforço da
conformidade a normas sociais”, “validação de instituições sociais e rituais religiosos”,
“contribuição para a continuidade e estabilidade da cultura”, “preservação da integração
social”. Já que tais categorias não tendem a criar ou encorajar a exploração metafórica, não
seriam, de acordo com Swanwick (2003, p. 49), funções a serem atribuídas à educação
musical. Contudo, isso não significa que não possam estar presentes, desde que não
ocupem o objetivo primeiro da Educação Musical.
Conhecer e discutir tais valores é importante para que o fazer musical seja
concebido como interligado à outras áreas do conhecimento humano, demonstrando assim
“que a questão do acesso ao fazer artístico ultrapassa a do lazer ou da indústria do
entretenimento” (FONTERRADA, 2005, p. 10-11). Tais valores serão discutidos de forma
mais aprofundada na sequência.
116. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . COUTO; SANTOS
Valor Estético
A estética é uma área do conhecimento humano ligada aos efeitos que
determinada criação artística pode causar no homem. Estamos falando então sobre a
interação do sujeito com os efeitos que a obra artística, nesse caso a música, lhe
proporciona numa dimensão afetiva.
Ao falar do valor estético entramos numa dimensão muito pessoal, pois as
percepções acerca do belo, de certo modo, podem ser parecidas na linguagem oral, mas as
sensações são particulares e correspondem a uma interação do universo de cada pessoa
com o objeto/música a ser apreciado e não podem ter significação unicamente conceitual.
Essas sensações independem de conhecimento teórico pré-estabelecido. O seu sentido é
intrínseco à questão humana. “Não é pela faculdade de conhecimento intelectual que o belo
é captado, nem a sua impressão corresponde à experiência rudimentar da satisfação de um
desejo físico” (NUNES, 1991, p.12). Contudo, lembramos, como mencionado
anteriormente por Duarte Júnior (1991, p. 66), que isso pode ser educado através de um
trabalho sistemático.
Nunes (1991) menciona duas vertentes para o estudo da experiência estética,
sendo um subjetivo e o outro objetivo. O subjetivo valoriza os “elementos heterogêneos,
como o prazer sensível, os impulsos, os sentimentos e emoções” (NUNES, 1991, p. 14),
sendo que algumas correntes inspiradas pela psicologia, chamadas psicologistas, dedicam-se
a estudar a tendência do aspecto subjetivo da experiência estética. No aspecto objetivo da
experiência estética, valorizam-se os “elementos materiais (sons, cores, linhas, volumes), as
relações formais puras (ritmo, harmonia, proporção, simetria), as formas concretas no
espaço e no tempo, capazes de produzir efeitos estéticos” (NUNES, 1991, p. 14).
De acordo com Hentschke (1991), o argumento utilizado de que a educação
musical possui, sobretudo, um valor estético, permitiu que se libertasse a música e seu
ensino de uma subserviência a outras disciplinas. De acordo com a autora, no século XIX e
princípio do XX o ensino musical servia principalmente de apoio para o desenvolvimento
de preceitos religiosos ou de boa cidadania, e só quando a educação musical passou a ser
vista como possuidora de objetivos e justificativas específicas ela pôde se libertar de tal
subserviência, principalmente nos países mais desenvolvidos (HENTSCKHE, 1991, p. 58).
No entanto, Fonterrada afirma que a falta de clareza na comunidade escolar brasileira sobre
as funções da música continua fazendo com que esta seja destinada a ser utilizada como
auxiliar à outras áreas ou disciplinas: “auxiliar a aula de matemática, contribuir para a instalação
de bons hábitos, e outras” (FONTERRADA, 2005, p. 12).
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
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Valor Social
O valor social da música foi utilizado como argumento para justificar a presença da
educação musical principalmente em escolas do século XIX, pois servia como reforço aos
valores religiosos e de ornamento em seus rituais, bem como para ajudar no
desenvolvimento de uma boa conduta social, como já mencionado anteriormente neste
trabalho. Contudo, tal visão é limitadora, pois a utilização da música apenas como apoio a
determinadas funções sociais não propicia o seu desenvolvimento enquanto linguagem
simbólica (SWANWICK, 2003, p. 54).
A área da música que se ocupa com a organização social da prática musical é
conhecida por sociologia da música. Segundo Green (1997, p.25), as pessoas se agrupam
socialmente, podendo tais grupos serem organizados por classe, etnia, gênero, etc. Os usos
que tais grupos fazem da música podem ser os mais variados. Neste sentido, a sociologia da
música se interessa em conhecer tanto a organização social da prática musical, quanto em
estudar a construção social do significado musical para os diferentes grupos.
Green coloca-nos o significado musical chamado por ela de “significado delineado”
(GREEN, 1997, p. 28 e 29) como atrelado aos contextos de produção, distribuição e
receptividade da música. Tal significado afeta diretamente nossa forma de compreender
música. Segundo esta autora, ao ouvirmos determinada música costumamos delinear
aspectos extramusicais, consciente ou inconscientemente. Por exemplo, imaginamos o que
o intérprete está vestindo, ou que tipo de pessoa escuta aquela música, etc. Apesar de o
“significado delineado” não se referir aos materiais sonoros propriamente ditos, eles
aparecem para os indivíduos de uma forma tão ligada a estes que parecem emergir da
própria música (GREEN, 1997, p.34). Assim, as pessoas fazem uso da música também como
um símbolo de identidade social.
Green faz um alerta aos professores para a necessidade de se considerar como
tais significados interferem na maneira que o aluno se relaciona com a música, pois as
abordagens que não são capazes de considerar os contextos sociais nos quais os indivíduos
estão inseridos podem afetar seu trabalho em sala de aula. Segundo a autora:
Não importa se se toca, canta, ouve, compõe, estuda ou ensina-se música, pode-se se
apossar da música e usá-la como uma peça de nossa indumentária, indicando alguma coisa
sobre sua situação social, etnia, gênero, preferência sexual, religião, subcultura, valores
políticos, etc. Particularmente no caso de crianças a adolescentes que buscam sua identidade
como adultos novos numa sociedade em constante alteração, a música poderá oferecer um
118. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . COUTO; SANTOS
poderoso símbolo cultural ajudando-os na adoção e representação de um ‘self’ (GREEN,
1997, p. 34).
O conhecimento a respeito dos significados delineados expostos acima, bem
como de sua força influenciadora na forma de nos relacionarmos com música ajuda a
justificar o porquê de a educação musical acreditar que o trabalho pedagógico deve partir
da vivência musical na qual o aluno está inserido, sendo o início de um trabalho que visa a
ampliação do alcance musical destes (PENNA, 2002, p. 18).
Do valor social que se atribui à educação musical espera-se a oportunidade para o
desenvolvimento de um pensamento crítico da realidade de cada um, onde o aluno é capaz
de transformar uma postura de consumidor passivo do que lhe é imposto pela mídia, tendo
condições agir de forma mais refletida sobre aquilo que ouve (HENTSCKHE, 1991, p.59).
Outra função atribuída ao valor social para legitimar a educação musical em
escolas é de que ele seria uma forma de preservar e perpetuar o que é produzido social e
culturalmente, o que proporcionaria uma compreensão e valorização das nossas bases
culturais (HENTSCKHE, 1991, p. 59). Além disso, tais limites poderiam ser ultrapassados,
permitindo que, ao conhecer nossa própria cultura, possamos adentrar contextos distintos
dos nossos (SWANWICK, 2003, p. 36). Schafer (2001) acredita que estudar a música de
outras culturas ajuda a colocarmos a nossa em uma perspectiva adequada (SCHAFER, 2001,
p. 296).
Tais pensamentos geraram uma ramificação do valor social, denominado
multicultural, considerado um dos mais recentes valores atribuídos à educação musical. Ao
considerar a inexistência de sociedades monoculturais, já que todos carregaríamos, de certa
maneira, uma dificuldade de identificar nossas raízes (SWANWICK, 1988, p. 25, apud
HENTSCHKE 1991, p. 59), não poderíamos mais ignorar este aspecto dentro da educação
musical. Por isso, acredita-se na música como um meio de propiciar uma melhor integração
entre as mais diversas culturas nas escolas. Este valor se vincula diretamente com o valor
social, pois ambos tendem a expandir o olhar do individuo sobre a diversidade cultural,
muitas vezes, dentro da própria comunidade onde vive ou até mesmo dentro da escola,
pois “morar no mesmo bairro ou frequentar a mesma escola não corresponde
necessariamente a pertencer à mesma rede de relação social, econômica, simbólica,
ideológica” (SANTOS, 1990, p. 42). Tal diversidade está presente em espaços menores,
como a sala de aula, onde os valores podem se confrontar em virtude do posicionamento
cultural de cada um. Neste sentido a música favoreceria a integração e a socialização através
das trocas de experiências que o educador terá que favorecer.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119
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Valor Psicológico
Houve um aumento considerável em pesquisas que procuram investigar e
conhecer o aspecto cognitivo da experiência musical nas últimas décadas (HENTSCHKE,
1991, p. 59; ILARI 2002 e 2003; PARIZZI, 2006). Através da aquisição destes novos
conhecimentos, a cada dia que passa o valor psicológico vem exercendo uma influência
maior na justificativa da presença da educação musical nas escolas.
De acordo com Hentschke (1991, p. 59), os primeiros interesses por esta área,
datados do início do século XIX até meados da década de 1970, envolviam principalmente a
observação e experimentação da maneira pela qual o indivíduo processa a música e quais
seriam os possíveis efeitos nele exercidos. Após este período, as investigações voltam-se
para a tentativa de conhecer as etapas do desenvolvimento musical nos indivíduos, e o
acúmulo de conhecimento nesta área têm inspirado muitos educadores musicais a
elaborarem currículos baseados em tais descobertas (BEYER, 1995, p. 56).
Hoje em dia sabe-se que a percepção e a cognição musicais podem ser
estimuladas já no primeiro ano de vida do bebê (ILARI, 2002, p. 88). Parizzi, ao estudar o
canto espontâneo da criança de zero a seis anos de idade, afirma que é possível notar uma
previsibilidade da evolução do curso deste canto, assim como já se conhece o
desenvolvimento cognitivo e musical da criança (PARIZZI, 2006, p. 15). Tal dado permite
reforçar a contribuição que um educador musical pode trazer ao desenvolvimento musical
desde a mais tenra idade, principalmente através de atividades que estimulem o
envolvimento da criança com a música, desde que com um bom planejamento.
Desde o surgimento em 1983 da teoria das inteligências múltiplas, de Howard
Gardner, que a partir da constatação da existência de várias áreas distintas de cognição no
cérebro, sugeriu que a inteligência não é unitária, mas sim compartimentada por
competências específicas (ILARI, 2003, p. 12), a música e seu estudo podem encontrar
justificativa a partir do momento que este pesquisador estudou a inteligência musical. Tal
inteligência corresponde à capacidade para perceber e classificar diferenças de sons, de
nuances de intensidade, de andamento, de timbres, estilos, etc., que podem ser manifestos
não apenas na execução instrumental – como não raramente se associa – mas também
através da composição e da apreciação de música. O surgimento dessa teoria ajuda a
separar a inteligência musical do conceito de “talento”. Segundo Ilari (2003):
A teoria de Gardner (1983) sugere que todos os seres “normais” (isto é, não portadores de
doenças congênitas como autismo ou Síndrome de Down) possuem todos os tipos de
120. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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inteligência, todos abertos ao desenvolvimento. Ou seja, diferentemente do talento, a
inteligência musical é um traço compartilhado e mutável, isto é, um traço que todos
possuem em um certo grau e que é passível de ser modificado (ILARI, 2003, p. 12).
Também encontramos estudos que procuram demonstrar o desenvolvimento que
pode ocorrer em outros campos do conhecimento humano como decorrência de
experiências musicais. Acredita-se que a prática musical estimule o desenvolvimento do
cérebro da criança, auxiliando, além do aprendizado da música em si, também o
desenvolvimento da afetividade e da socialização, na aquisição da linguagem, etc. (ILARI,
2003, p. 14).
Valor Tradicional
Para uma sociedade que não possui uma tradição no ensino musical escolar, a
concepção acerca do que seria uma educação musical quase sempre se restringe à ideia da
prática musical que ocorre em escolas especializadas, ou seja, de que a performance musical
em um determinado instrumento é tida como “referência de realização musical” (FRANÇA
e SWANWICK, 2002, p. 8). Segundo Hentschke (1991):
Esta concepção parte de certos princípios que asseveram que a música significa demonstrar
habilidade em ao menos um instrumento, capacidade de compor de acordo com o sistema
tonal e capacidade de discriminar elementos, estilos e compositores da música. O papel do
educador musical neste caso restringe-se ao de dispensador de um sistema tradicional
vigente. No entanto se tal valor for tomado como carro-chefe de práticas de Educação
Musical, o mesmo pode encaminhar-nos a uma prática etnocêntrica, ou seja, limitar o
repertório musical do aluno à nossa cultura ocidental, ou mais especificamente a repertórios
regionais (HENTESCKHE, 1991, p. 60).
Entretanto, para a educação musical destinada à escola regular, o tipo de
aprendizado mencionado acima nem sempre é o mais indicado, seja pelas próprias
condições oferecidas pelo sistema (aulas com turmas com número grande de alunos,
ausência de equipamentos tais como instrumentos musicais, além da carga horária
insuficiente), seja pelo próprio objetivo da Educação Musical neste contexto (o de não
formar músicos-instrumentistas, mas sim desenvolver a capacidade de compreensão da
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
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linguagem musical como discurso simbólico) (PENNA, 1991; FRANÇA; SWANWICK,
2002; SWANWICK, 2003).
Neste sentido, França e Swanwick acreditam no que chamam de “uma educação
musical abrangente”, como aquela que vai além da concepção tradicional de ensino de
música (FRANÇA; SWANWICK, 2002, p. 8). Tais autores defendem que não só a
performance, mas também que a composição e a apreciação devem constar de forma
integrada e interativa a Educação Musical. Isto porque “embora diferentes em sua natureza
psicológica, [as modalidade de composição, apreciação e performance] são indicadores da
compreensão musical e as janelas através das quais ela pode ser investigada” (p. 7).
A crença de que o fazer musical restringe-se apenas à performance instrumental
pode reforçar a ideia, preconceituosa, de que a música é uma atividade reservada apenas
para alguns indivíduos portadores de um merecimento “divino”, ou “inspirados”. A prática
instrumental requer determinadas habilidades motoras que são adquiridas tão somente
através de muita prática e esforço ao longo de certo tempo de estudo. Contudo, como já
mencionado, a prática instrumental não é a única maneira de adquirir conhecimento em
música e de demonstrar tal conhecimento. A performance que estará presente numa
educação musical dentro da escola regular vai além da ideia de virtuosismo instrumental
tradicionalmente conhecido. Para França e Swanwick, a “performance musical abrange todo
e qualquer comportamento musical observável, desde o acompanhar de uma canção com
palmas à apresentação formal de uma obra musical para uma plateia” (FRANÇA;
SWANWICK, 2002, p 14).
Conclusão
O sucesso de uma boa educação musical no contexto da educação formal exige a
compreensão sobre suas etapas, valores e funções, que devem ser os principais guias para o
trabalho do educador musical. Saber aonde se quer e se pode chegar através da educação
musical, bem como utilizar de maneira consciente os meios que se podem adotar para se
alcançar determinados objetivos são coisas que precisam estar claras a todos os educadores
musicais.
Para que haja maior clareza em relação a tudo isso, é extremamente importante
refletir e planejar ações para que a educação musical não se torne apenas um elemento
alegórico no currículo escolar. Devemos trabalhar para que seus valores sejam
compreensíveis não só por músicos, mas pela sociedade em geral, incluindo diretores de
122. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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escolas, pais, alunos e todos aqueles dispostos pela causa da educação. É preciso conhecer
as potencialidades da música no desenvolvimento humano, desde o aspecto físico até o
mental, explorando todos os níveis de compreensão da música enquanto linguagem. Se
conseguirmos oferecer esse tipo de educação musical, estaremos dando importantes
contribuições para que tenhamos, num futuro próximo, indivíduos mais capazes de agir de
maneira crítica e consciente sobre o produto artístico de sua sociedade, e isso poderá se
refletir em questões sociais, políticas e, sobretudo, aquelas intrinsecamente humanas.
Este artigo é fruto da revisão bibliográfica do projeto de pesquisa “Música e valor: concepções de diretores de
escolas da rede pública estadual de Belo Horizonte sobre a aula de Música”, desenvolvido no Centro de
Pesquisa da Escola de Música da UEMG e financiado pela FAPEMIG. Prevê-se uma futura publicação com o
resultado da pesquisa em momento oportuno
Referências
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Ana Carolina Nunes do Couto é mestre e especialista em Educação Musical pela UFMG,
graduada em Licenciatura em Música pela UEL (PR). Atuou como professora da Escola de
Música da UEMG de 2005 a 2009, onde idealizou e iniciou a pesquisa “Música e valor:
concepções de diretores de escolas da rede pública estadual de Belo Horizonte sobre a aula
de Música”, em andamento nesta instituição. Atualmente é professora assistente no
Departamento de Música UFPE.
Israel Rodrigues Souza Santos é aluno do 6° período do curso de Licenciatura em
Educação Musical Escolar na Escola de Música da UEMG. Atualmente é bolsista de iniciação
científica pela FAPEMIG participando da pesquisa intitulada “Música e valor: concepções de
diretores de escolas da rede pública estadual de Belo Horizonte sobre a aula de Música” (em
andamento). Também atua como professor da Fundação de Educação Artística ministrando
aulas de musicalização e violão. Ministra aulas para alunos de escolas públicas no programa de
concertos didáticos da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais e é oficineiro de musicalização
e violão no Programa Fica Vivo!
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
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O método Da Capo na aprendizagem inicial da
Filarmônica do Divino, Sergipe
Marcos dos Santos Moreira (UFAL, UFBA)
Resumo: Este artigo pretende fazer uma abordagem do processo de ensino do Projeto
Filarmônica Coral e Escola de Música de Indiaroba, município a 100 km de Aracaju, SE. O
objetivo do tema procede para que possamos entender e refletir sobre educação musical em
Sergipe através de métodos de ensino musical instrumental, resultado da utilização do método
Da Capo e conceitos de pedagogos da Educação, particularmente o tema o ensino coletivo.
Palavras-chave: educação musical; banda filarmônica; ensino coletivo.
Abstract: This article concerns processes of music teaching within the project Philharmonic
Band, Choral, and Music School in the city of Indiaroba, 100 km from Aracaju, State of Sergipe.
This study aims at understanding and reflecting upon music education through the use of
traditional methods of instrumental music teaching. It includes comparisons with other areas of
knowledge, considering how certain sociological ideas correlate with these particular musical
education approaches, especially in regards to group teaching of wind instruments.
Keywords: music education; wind band; group teaching.
.......................................................................................
MOREIRA, Marcos dos Santos. O método Da Capo na aprendizagem inicial da Filarmônica do
Divino, Sergipe. Opus, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 126-140, jun. 2009.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . MOREIRA
C
arinhosamente chamada pelos moradores de Índia Bela, o município de Indiaroba
fica na região sul do Estado, a 102 quilômetros da capital sergipana, Aracaju, e
possui cerca de 12.000 habitantes, tendo na atividade pesqueira seu principal ofício.
Fig. 1: Indiaroba e região.
Já a história da Banda Filarmônica do Divino é bem mais recente. Surgida em 22 de
maio de 2000 na gestão do então Prefeito Municipal Raimundo Mendonça de Araújo, é
denominada assim por causa do padroeiro do município; o Divino Espírito Santo. As
atividades da banda estão entre os objetivos educacionais propostos pela Secretaria de
Educação, vinculada à prefeitura municipal e sob coordenação do Departamento de Música
do Centro Social da Paróquia do Espírito Santo (CSOPES). O CSOPES é uma entidade
católica local de fins sociofilantrópicos, que viabilizou o projeto junto à Prefeitura, em
parceria com o Projeto Bandas de Música promovido pelo Governo Federal, através da
Secretaria de Música do Ministério da Cultura, a FUNARTE e Governo do Estado de
Sergipe (por meio da Secretaria do Estado da Cultura).
Era necessária, para o município, a organização de um grupo musical local para as
diversas atividades e eventos tradicionais como, por exemplo, a Festa do Divino Espírito
Santo, a principal festa do município ribeirinho. Sobre isto, no ano de 2003 na 53ª edição da
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
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O método Da Capo na Filarmônica do Divino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Festa, houve o batizado da filarmônica indiarobense, na Igreja Matriz, solenidade que ficou
registrada como um importante marco histórico da festa e da cidade.
Fig. 2: Primeira formação da Banda Filarmônica do Divino em 7 de setembro de 2001.
Ao centro, Maestro José Alípio Martins. (Foto do autor)
Por curiosidade, e abrindo um parêntese, na história das festas do Divino, há
importância significativa da banda de música, não só no nordeste como em outras regiões
do Brasil. Assim, tratando-se de uma manifestação tradicional de longa história, era um
sonho antigo na comunidade ter uma agremiação musical própria vinculada a essa
festividade.
A assembleia geral e extraordinária do CSOPES em 22 de maio de 2000 teve por
finalidade alterar os estatutos da instituição, buscando, entre outras questões, eleger e dar
posse ao Diretor do futuro Departamento de Coral, Filarmônica e Escola de Música. Em 2000
fui aprovado em concurso municipal para a vaga de educação artística e em seguida
designado Coordenador de Arte e Diretor deste departamento e regente a partir do ano
de 2004.
Por Lei, a Filarmônica só poderia receber os instrumentos vindos do Governo
Federal se fosse uma instituição não pública e sem fins lucrativos. Foi então proposto pela
Prefeitura local que a Filarmônica pertencente juridicamente ao CSOPES, mas fosse mantida
128. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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pelo governo municipal e atrelada à Secretaria de Educação. Agraciada com um kit de
dezoito instrumentos, deu-se início às atividades. A pedido do coordenador, foi permitida a
contratação pela prefeitura de mais um profissional específico1 da área de música. Para
auxiliar neste processo de seleção, o contratado escolhido foi José Alípio Martins, formado
em regência pela UFBA. O Regente/Prof. Martins trabalhou à frente do grupo titular
durante os anos de 2000 a 2003.
O Método Da Capo.
Historicamente fundamentado e baseado em métodos modernos norteamericanos de ensino coletivo instrumental, o Da Capo foi exposto na tese de doutorado
de Joel Barbosa, intitulada An Adaptation of American Instruction Methods to Brazilian Music
Education: Using Brazilian Melodies de 1994. Já na sua publicação de 2004, o método foi
intitulado Da Capo: Método elementar para ensino coletivo ou individual de instrumentos de
banda. Neste mesmo ano o método foi editado pela Editora Keyboard com apoio da
empresa de fabricação de instrumentos musicais Weril. Ele trabalha as habilidades
instrumentais, de leitura e de se tocar em grupo com músicas folclóricas brasileiras
aproximando os alunos-músicos de sua realidade melódica, diferentemente dos métodos
tradicionais trazidos para o Brasil, baseados na Europa, particularmente Itália, Portugal e
Alemanha, países historicamente ligados ao histórico das bandas de música brasileiras.
Basicamente o método é direcionado para a formação de banda sinfônica, mas
pode ser adaptado facilmente para a filarmônica. Por causa da estrutura do método para
esta formação, alguns instrumentos são inclusos, como trompa em fá, oboé e fagote. É
relevante o diferencial da leitura instrumental, no caso da escrita para tuba. Normalmente
em métodos convencionais, este instrumento está escrito em si bemol, comum em bandas
brasileiras. Mas pelo entendimento e direcionamento sinfônicos, a tuba ou bombardão do
Da Capo está em dó. Em alguns casos, o Da Capo ainda encontra resistência a determinadas
concepções, observada em algumas filarmônicas interioranas tradicionais que, nos últimos
anos, têm conhecido este processo didático. Os mestres dessas agremiações, mesmo
buscando novas metodologias, na maioria das vezes, não aceitam tal processo de escrita
O profissional específico seria aquele formado em Regência. Este teria a capacidade de
formar uma banda, pois teria habilidade na formação de orquestras, sendo que um educador
musical nem sempre é especialista nessa função. Neste caso a remuneração do maestro
corresponderia à de um professor da rede municipal de ensino com carga horária integral.
1
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
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para tuba e utilizam o método modificando a escrita da tuba para si bemol, refazendo as
partes relativas ao instrumento e alterando o método neste ponto. Hoje, o Da Capo já
incorpora livros para diferentes escritas de tuba e bombardino. Em Indiaroba foi utilizado o
método de tuba para o instrumento em si bemol e escrito em dó, som real.
A principal característica do método está no fato do aprendiz ter o contato com o
instrumento desde a primeira aula e a possibilidade de formar, além da banda, conjuntos
menores como duos, trios e quartetos, promovendo uma forte motivação nos alunos.
Consiste em utilizar músicas folclóricas com células rítmicas simples, utilizando a teoria e a
prática no instrumento simultaneamente, diferentemente do tradicional, que ensina o
instrumento após o aprendizado da teoria e leitura musical. Do método, consta um livroguia para o professor-maestro e um livro para cada instrumento, da família das madeiras,
metais e percussão. Os livros dos instrumentos são para os alunos e possuem 27 páginas
cada. No livro do aluno constam 80 músicas do folclore brasileiro, 2 estudos para banda
completa, 1 ditado melódico, 1 ditado rítmico, 2 exercícios para improvisação, exercícios de
teoria, 2 arranjos de música folclórica para banda completa, 3 composições para banda, 3
estudos técnico-instrumentais e 8 exercícios de divisão musical.
José Pereira explica que o método surgiu da necessidade de materiais didáticos de
ensino coletivo, de textos informativos e de experimentação com outras ideias pedagógicas
no ensino da música no Brasil:
Os métodos americanos usados no Brasil trazem só música americana e os alunos
brasileiros tinham dificuldade em cantar as melodias. É importante cantar quando se está
aprendendo um instrumento para que haja um desenvolvimento musical completo, não
apenas instrumental. O método é desenvolvido passo a passo com 126 lições. Em cada
lição, o aluno aprende uma ou duas notas no instrumento, aprende duas músicas novas,
aprende um novo ritmo. Em cada página vai ter melodias para cantar... Há um estudo muito
profundo nesta área, há diversas correntes. No Brasil não temos nada. “Lá [Estados Unidos],
você faz experimento com a Banda e pode medir o desenvolvimento dos alunos, existem
vários testes de avaliação, desde 1926, que é o mais antigo que pesquisei”. (PEREIRA, 1999,
p. 53; grifo nosso).
José Pereira também aborda a importância da questão do ensino coletivo do
método e a utilização da Banda de Música nas escolas. O método Da Capo vem sendo
aplicado integralmente ou parcialmente com outras formas de ensino em vários projetos
sociais pelo Brasil e fazendo parte de currículos escolares de algumas escolas, como por
exemplo, a Banda Sinfônica do Colégio Adventista de Salvador-Ba (CAS), sendo o seu
130. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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divulgador o Maestro José Alípio Martins, o mesmo Regente-fundador da Filarmônica do
Divino de Indiaroba. Nesta instituição de ensino, vemos um exemplo de como a Banda
entra no contexto curricular. A Banda Sinfônica do CAS é formada exclusivamente pelos
alunos da Instituição, dentro da disciplina Artes do currículo escolar, onde os alunos optam
por Música ou Artes Plásticas. A escolha dos instrumentos pelos alunos segue um padrão
de definição para cada série e a necessidade do grupo musical, a critério do Maestro
Martins. A avaliação segue de acordo com o regimento pedagógico do CAS, tendo provas,
exames finais etc.
O Da Capo em Kodály e Vigotsky.
Se fizermos comparativos com as filosofias e métodos tradicionais de educação
musical, identificaremos ideias e linhas de pensamento semelhantes entre o método Da
Capo e a didática de Zoltan Kodály (1882-1967), importante educador musical húngaro.
Para Kodály, a música deveria estar presente no sistema educacional como aspecto a ser
desenvolvido pelo ser humano, visando a sua formação integral. Esta também é uma
afirmação dos defensores do ensino coletivo, pois este ensino facilita a inclusão do
aprendizado da música instrumental no ensino fundamental. Dois outros enfoques
defendidos pelo método Da Capo e a metodologia de Kodály são a utilização da música
folclórica, já acima citada, e o canto no processo de aprendizagem musical. Kodály defende
que:
É uma verdade longamente aceita o fato do canto ser o melhor início para a educação
musical...a música folclórica não deve ser omitida nunca... o sentido das relações entre a
linguagem e a música (KODÁLY, 1974, p. 3) 2
Nas instruções da utilização de aplicação Da Capo, Barbosa adverte:
Traduzido e citado por Ricardo Goldemberg, A Educação musical: a experiência do canto
orfeônico no Brasil, disponível em <http://metodoeeducacaoe.com.br>
2
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
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O método Da Capo na Filarmônica do Divino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Tocar e cantar: Varie a ordem dessas duas atividades a cada canção nova a ser aprendida.
Havendo dificuldade em entoar alguma canção, divida a classe em dois grupos, enquanto um
toca o outro canta, e vice-versa. Se possível, use um instrumento harmônico (violão, piano,
teclado, etc.) para acompanhar essas atividades. Procure cantar em tonalidades que sejam
mais apropriadas para classe. (BARBOSA, 2004, p. 3)
Ao analisarmos os princípios do ensino coletivo de uma maneira geral, podemos
dizer que esta metodologia musical inspira-se também em teóricos da Educação como
Vigotsky (1896-1934), 3 defensor da análise do reflexo do mundo exterior no mundo
interior dos indivíduos. O referencial educativo-social vigotskyano enfatiza a construção do
conhecimento como uma interação mediada por várias relações. Essa interação age
decisivamente na organização do raciocínio, reestruturando funções psicológicas como
memória, atenção e formação de conceitos. A ideia de “Relação Proximal” de Vigotsky
defende o aprendizado pela própria ação imediata e não somente pela expectativa da
resposta ou análise do conteúdo dado, pois o fazer, já implica em um processo de
aprendizagem. Esta hipótese relacional filosófica pode ser entendida após a leitura das três
etapas procedimentais a seguir, (pág. 68) onde podemos ter uma visão geral do que se
realizou com o método e permite-nos afirmar tal possibilidade.
Sendo um ensino musical coletivo, o Da Capo, proporciona a interação no
contexto musical entre os aprendizes e eles com as ações de relações coletivas dessa
prática.
Em Indiaroba
Retornando o relato para Indiaroba, visando o maior aproveitamento das aulas
por parte dos alunos, a coordenação do Projeto buscou diversas correntes de pensamento
no planejar e executar. Muito antes da seleção dos futuros alunos e dos primeiros
conceitos musicais, o planejamento de ensino foi detalhado em correntes como entre os já
citados Vigotsky e Benjamin Bloom.
Vigotsky, professor e pesquisador; viveu na Rússia, em plena efervescência da Revolução
Comunista. Tendo sido contemporâneo de Piaget, Vigotsky elaborou uma teoria que tem por
base o desenvolvimento do indivíduo como resultado de um processo sociohistórico e o papel
de linguagem e da aprendizagem neste desenvolvimento.
3
132. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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Somando-se ao método Da Capo a filosofia de ensino de Swanwick e mais o
embasamento obtido com teóricos educacionais estudados, partiu-se para a primeira
reunião pedagógica realizada entre os meses de junho e julho de 2000 para definir o
planejamento. Assim, o coordenador do projeto e o maestro concluiram as diretrizes do
plano pedagógico para a formação de uma banda no município.
O recebimento do kit do programa pró-bandas da FUNARTE, fornecido pelo
Governo Federal, foi o marco para o começo da banda. De estrutura inicial, contava-se
apenas com os 18 instrumentos do kit composto de 4 clarinetas, 1 sax tenor, 4 trompetes,
3 saxhorn (trompa), 3 trombones, 1 bombardino e 2 tubas (bombardão). Além disso, nesse
primeiro ano o fardamento, o bombo e os pratos foram emprestados de uma escola
pública municipal local. Meses depois, foram adquiridos, com recursos próprios, outros
poucos instrumentos.
Instrumento e
fardamento
Quantidade
Marca
Ano de
aquisição
Fardamento
1 Conjunto de gala com túnica para
apresentações especiais e 2
conjuntos de apresentações
comuns, ambos contendo 37 peças:
Kit contendo 1 par de sapatos, 1
camisa pólo azul e/ou túnica e
camisa pólo vermelha e calça branca.
Hering
2001/2002
Clarineta
4
Weril
2000
Tuba/Bombardão
2
Weril
2000
Trombone
2
Weril
2000
Saxofone
1
Weril
2000
Saxhorn
3
Weril
2000
Trompete
4
Weril
2000
Bombardino
1
Weril
2000
Percussão/ Pratos
2 (pares)
S/ referência
2000
Bombo e baquetão
1 cada
Gope
2000
Caixa clara e para de
baquetas
1 cada
Gope
2000
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
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O método Da Capo na Filarmônica do Divino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Listaram-se os elementos do ensino proposto agrupando-os, didaticamente, nos
seguintes tópicos:
1. Teoria musical aplicada na execução.
2. Percepção musical.
3. Estudo da harmonia.
4. Técnica individual de naipe.
5. Apreciação musical (Audição de peças).
6. Interpretação das peças.
7. Análise do contexto musical da região.
8. Canto das melodias folclóricas aprendidas
Aplicação do Método e os resultados
Desta forma, fundamentou-se o programa de curso sobre o conceito de que
teoria, percepção e harmonia eram um conjugado resultante de estudos sistemáticos.
Significava que a prática nunca fosse dissociada dos conteúdos teóricos e que ambas fossem
aprendidas simultaneamente, ou seja, teoria aplicada ao repertório. Sobre esta concepção,
Swanwick4 defende e destaca uma estratégia de ensino multifacetado eficaz: “A
aprendizagem musical acontece atrás de um engajamento multifacetado, solfejando,
praticando, escutando os outros, apresentando, improvisando... o ensino deve ser musical”
(SWANWICK, 1997, p. 7).
No próprio Da Capo as definições de atividades estão muito claras e a proposta de
ensino era aplicada sistematicamente. Durante as aulas, notou-se que os alunos de Indiaroba
cantavam a melodia, batiam o ritmo dela e depois a tocavam. De regra, todo aluno da banda
realizava não só esta atividade, mas também seguia as dicas indicadas do próprio Da Capo
como duetos e cânones, duetos com palmas, exercícios para decorar melodias, exercícios
rítmicos, complemento de compassos (improvisação), ditados melódicos, exercícios de
Keith Swanwick: Educador musical inglês que sistematizou um modelo de ensino musical
denominado CLASP, traduzido por Alda Oliveira (UFBA) em português por TECLA (Técnica,
Execução, Composição, Leitura e Apreciação). Swanwick é também co-idealizador do modelo
espiral de desenvolvimento musical.
4
134. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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divisão musical, além da prática de audições públicas dos subgrupos (duetos, trios,
quartetos) e da banda completa periodicamente. Assim, a fim de descrever o processo de
ensino-aprendizagem em Indiaroba, precisamos apresentar o conteúdo e atividades
pedagógicas do Da Capo.
O processo de ensino-aprendizagem em três etapas:
Etapa 1
Desde o início do projeto houve uma mobilização em toda a comunidade local,
começando com a abertura de inscrições. Inicialmente foram inscritos 80 candidatos para
um projeto que constituía de uma banda (futura banda do Divino) com 36 elementos, um
coral com 30 integrantes e uma escola de música. Essa última não chegou a ser efetivada
com as vagas restantes. Nesta primeira inscrição não havia limite de idade, tendo sido
aberta à comunidade em geral.
Portanto, a primeira etapa estava imbuída de novidade para a comunidade local,
afinal, era a primeira vez que se iniciava uma filarmônica na cidade. Não se podia excluir a
comunidade ansiosa por participar. De fato, nos primeiros dias de inscrição muitos adultos
se candidataram às 36 vagas iniciais. Com o tempo, apenas os adolescentes permaneceram.
Entre as diversas razões estavam a disponibilidade de horários para aulas e ensaios e para
trabalhar as dificuldades comuns nas primeiras lições. Os adultos sempre alegaram que o
emprego e as tarefas do cotidiano dificultavam não só a aprendizagem como a disposição
para tal. Assim a maioria das vagas foi preenchida entre adolescentes de 12 anos a adultos
de até 30 anos. Mas passado certo tempo, como o projeto estava se adaptando a realidade
local, alguns ajustes no critério de seleção foram tomados e optou-se pelas faixas etárias
dos adolescentes e jovens, visando uma maior presença de candidatos. Estipulou-se então
uma faixa etária de 12 a 18 anos como média.
Assim sendo, a banda, a esta altura, tinha um número equilibrado de inscritos em
relação ao material oferecido pelo projeto, ou seja, 18 instrumentos para 36 alunos mais
estantes e cadernos de música.
Os ensaios na primeira fase do projeto aconteciam somente nos finais de semana
a partir das sextas-feiras, pois só havia esta disponibilidade de carga horária por um dos
professores. Nas quintas-feiras o regente auxiliar revisava as lições da semana anterior.
Passados alguns meses, com o desenvolvimento do projeto e o surgimento das monitorias,
a sequência das aulas foi ampliada (ver etapa 3).
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
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O método Da Capo na Filarmônica do Divino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Segundo o Maestro Martins, o grupo responderia satisfatoriamente se dividido em
dois: Grupo I e Grupo II. O Grupo I responderia por um grupo titular, o grupo principal do
projeto, a Filarmônica do Divino. O Grupo II seria aquele que abarcaria os alunos que não
se desenvolveram satisfatoriamente nesta fase de iniciação instrumental e funcionava como
uma Banda “reforço de aprendizes” ou reservas. Depois este grupo II se ampliou,
naturalmente, pela inclusão de novos alunos. Não existia um critério em relação à data de
entrada destes novos no início de um ano letivo, por exemplo. Isso acontecia
periodicamente, pois as próprias apresentações do grupo titular serviam de certa forma
como propaganda do projeto durante todo o ano para a comunidade. Apenas em 2004 é
que houve a tentativa se estipular um ano letivo musical, mas a ideia não foi bem-sucedida.
Mas voltemos à atenção na formação deste grupo titular. A Filarmônica tinha nas
suas primeiras aulas, como já foi dito, toda prática baseada no método Da capo, ou seja,
aprendendo uma nota nova, um ritmo novo e um símbolo novo a cada passo e praticandoos em melodias folclóricas. Até a lição 40 (ver tabela de livro guia, Quadro 4) este grupo já
tinha tido o contato com as seguintes células rítmicas: semibreve, mínima, semínima.
Nota-se que o método Da capo tem toda uma sequência própria, mas, que de vez
em quando, não era aplicada pelo maestro ou monitor de forma sequenciada, adequando a
necessidade das atividades e do contexto pedagógico no decorrer do ano letivo musical. Na
aplicação perceptiva o solfejo não era aplicado separadamente, era sim, vivenciado pelas
músicas folclóricas proposta pelo livro nas formações de duos, trios e quartetos e
aconteciam quando necessário respeitando a concepção proposta no método. A duração
desta etapa leva em média de 6 meses a 1 ano.
Etapa 2
Logo após esse período, viu-se a necessidade de se criar as primeiras monitorias.
Essas monitorias eram preenchidas pelos alunos mais adiantados e pelos músicos
convidados. Os músicos convidados eram músicos de filarmônicas de cidades circunvizinhas
e músicos trazidos de Salvador e Aracaju. O critério do convite era ter relação a algum
detalhe pedagógico que poderia ser especificado de certo naipe ou instrumento específico:
dúvidas e curiosidades eram tiradas por estes profissionais que visitavam o município
trimestralmente ou quadrimestralmente a convite da coordenação do projeto ou pelo
próprio Maestro Martins.
Nesta fase o Grupo I já alcançara 80% do método e consequentemente
demonstrava domínio de compassos simples e células rítmicas incluindo até colcheias.
Aparecem as primeiras células sincopadas, compassos compostos e notas pontuadas.
136. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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Trabalhou-se, primeiramente, as notas das regiões médias dos instrumentos, depois as das
regiões semigraves e graves e, por último, as da região aguda. A partir daí o direcionamento
pedagógico mescla-se com as primeiras inclusões de métodos americanos e arranjos do
Maestro Martins com nível paralelo à sequência final do Da capo.
No grupo dos alunos adiantados criou-se a denominação “Padrinho”. Cada aluno
do grupo titular era responsável por trazer mais dois candidatos para o grupo II e o próprio
teria a missão de repassar o que lhe foi dado de ensinamento das primeiras lições. Desta
forma, oferecia ao grupo musical o seu crescimento ao mesmo tempo em que designava ao
aluno titular certo grau de hierarquia em relação ao grupo II e uma função dessa própria
responsabilidade de ampliação e continuidade da filarmônica. Em relação ao método,
durante sua utilização foram incluídas no processo de aprendizado, com base na proposta
de ensino, atividades mescladas por jogos musicais e brincadeiras com células rítmicas.
Também foram utilizados juntamente com os arranjos propostos no método, materiais
recicláveis na percussão, como “coquinhos” e “claves” feitos com madeiras aproveitadas de
árvores ribeirinhas, dando uma conotação ecologicamente regional.
Posteriormente, as atividades consistiam em execuções de obras para banda de
marcha e aprimoramento das peças para duos, trios e quartetos, além da aplicação de
métodos americanos e execução dos primeiros dobrados e hinos. Neste respeito, as
filarmônicas, bandas de música do interior do Brasil são bandas de marcha, pois têm
tradicionalmente a necessidade de acompanhar os cortejos cívicos e procissões religiosas.
Estas atividades a céu aberto requerem repertórios como hinos, dobrados e marchas que
exploram com frequência as regiões agudas dos instrumentos. É neste momento do
aprendizado que o grupo se aproxima do ensino tradicional. E é nesta ocasião que o novo
(método Da Capo) e o antigo se encontram, a tradição e a inovação. Paralelamente o
Grupo II estava na primeira etapa.
Tempos depois, tanto o grupo I como o II tinham aulas de teoria musical comigo,
planejadas de acordo com o nível dos aprendizes e aplicadas exclusivamente ao repertório
do Da capo ou dos outros métodos preparatórios auxiliares para a fase seguinte.
Etapa 3
Na etapa 3, o grupo titular, já com a média de 2 a 3 anos de vida a esta altura,
estava em fase bem adiantada. Agora havia três ensaios por semana e aulas de teoria,
história da música e apreciação musical separadas em dias alternados aos ensaios,
completando 5 encontros semanais. Em 2003 o Grupo II já cumpria a mesma organização
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
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O método Da Capo na Filarmônica do Divino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
no sistema “curricular” do Grupo I, ressalvando, porém, o nivelamento natural, em relação
à técnica e o contexto no procedimento pedagógico de um modo geral.
No entanto, o método Da capo não atendia mais sozinho às necessidades musicais
e técnicas dos alunos-músicos do grupo titular. Assim, foi então necessária a continuação
em outros métodos, tanto brasileiros como americanos, com novidades harmônicas. Ou
seja, o Da Capo funcionou, em Indiaroba, como ferramenta para um determinado objetivo
dentro do plano pedagógico, a formação inicial do grupo musical, mas, não como um
método único e completo para todas as fases e funções da banda de música. Seu próprio
título deixa claro que se trata de uma ferramenta para o ensino elementar.
Métodos de apoio, utilizados em Indiaroba:
Método
Etapa
Ano de
aprendizado
Autor e editora
Da Capo (todos os
instrumentos de
Banda)
1ª Etapa
1º e 2º ano
Joel Barbosa,
Keyboard, 2004.
Brass players.
2ª Etapa
2º ano
John Cage,
Vitale Italiana, 2000.
Arranjos facilitados
2ª e 3ª Etapas
2º e 3º ano em
diante
José Alípio Martins,
s.e.
Essential Elements
2ª e 3ª etapas
2º e 3º ano em
diante
Michel Sweeney,
Hal Leonard Corp., 1996.
Alfred Basic Band
Method.
3ª Etapa
3º em diante
Alfred Publishing Co.,
2000.
Conclusão
Pela evolução das etapas, os coordenadores viram a possibilidade de uma base
renovável. Foi proposto em 2002 que houvesse uma interação com atividades interligadas
ao PETI, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, do Governo Federal. Seria o
aproveitamento de alunos de flauta doce dos 4 aos 10 anos, dando um suporte para futuros
aprendizes de instrumentos de sopro, formando uma pré-banda e por consequência uma
extensão do Projeto. Funcionou até 2003, mas, segundo os atuais coordenadores não se
138. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . opus
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evidencia mais tal aproveitamento por razões administrativas.
Para finalizar pensamos que na Música, esta conjectura da socialização que se faz
diariamente em grupos de aprendizado, auxilia e exercita a prática da convivência, o
respeito às diferenças de pensamento, da identidade, da cidadania e política. Uma excelente
possibilidade de aguçar o gosto e o interesse por manifestações e atividades da sua terra,
da sua cidade, ajudando direta ou indiretamente a passar as tradições do seu município às
gerações futuras. Acreditamos que a discussão e pesquisas sobre os temas banda
filarmônica e formas de ensino coletivo não se esgotam. Ainda serão com certeza palco de
muitos debates, exposições em comunicações em congressos de educação musical, de
cultura e sociologia, já que a banda de música sempre será fonte abundante de estudos
científicos.
Com isso esperamos ter alcançado pelo menos o objetivo de promover uma
discussão mais aprofundada sobre o contexto da Banda Filarmônica na Educação Musical
Referências
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BONA, Pascoal. Método Completo para Divisão. São Paulo e Rio de Janeiro: Irmãos Vitale.
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opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
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O método Da Capo na Filarmônica do Divino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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INEP. Instituto de Economia e Pesquisa. Série monografias municipais. Indiaroba. Aracaju:
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LABUTA, A. J. Music Education: Contexts and perspectives, New Jersey- EUA, Upper Saddel
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PEREIRA, José Antônio. A Banda de Música; Retratos Sonoros Brasileiros. São Paulo: UNESP,
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VIGOTSKY, Leontiev, L. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 1988.
..............................................................................
Marcos dos Santos Moreira é mestre em Educação Musical pela Universidade Federal da
Bahia, onde também obteve o diploma de Licenciatura em Música, e especialista em Gestão
Escolar pela Faculdade Montenegro. É Professor Assistente e mantém o Grupo de Pesquisa
"Metodologia e concepção social no ensino coletivo" na Universidade Federal de Alagoas.
Atualmente também exerce na mesma universidade a função de Editor da Revista Eletrônica
de Música – MUSIFAL – e cursa doutorado em Educação Musical na Universidade Federal da
Bahia, sob orientação de Joel Barbosa.
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diversas áreas do conhecimento musical, sempre encorajando o
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