A MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS

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A MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS:
BREVES APONTAMENTOS SOBRE A PASSAGEM DA
JUSTIÇA DE JUÍZES AO IMPÉRIO DA LEI
Lara Ferreira Lorenzoni1
Fecha de publicación: 01/10/2015
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 O instituto processual da
fundamentação das decisões judiciais. 3 A obrigação de motivar:
Estado Moderno, liberalismo e Estado de Direito. 3.1 A
prevalência da imotivação e a figura do judex perfectus. 3.2 O
paradigma da motivação: a ascensão do império da lei. 3.2.1
Modernidade e jusracionalismo. 3.2.2 Prever e justificar:
codificação e motivação das sentenças. 4 Conclusão. 5
Referências.
RESUMO: A obrigação de motivar as deciões judicias nem
sempre existiu. Houve um tempo em que a garantia da justiça
não estava na lei, mas sim, na pessoa do juíz, por meio de sua
conduta social e reputação. Foi no século XVIII que uma virada
de ordem econômica, política, social e cultural instaurou uma
nova forma de se entender a justiça e o direito: a lei positivada
tornou-se o principal norte e fonte jurídica. Todos passaram a
ser obrigados a seguir o que diziam os códigos, inclusive o
Estado e, portanto, os juízes, enquanto membros daquele.
Fundamentar as decisões não era mais uma opção, mas sim uma
proteção inelutável contra o arbítrio jurídico-estatal. Este artigo
pretende compreender essa mudança paradigmatíca, por meio de
investigação hipotético-dedutiva dos institutos jurídicos
envolvidos, das leis atinentes ao marco temporal e das obras
bibliográficas acerca do tema.
Palavras-chave: Motivação das decisões judiciais; Estado
Moderno; liberalismo; Estado de Direito; juízes; leis.
1
Advogada, mestranda em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:
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ISSN: 2224-4131 │
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1
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho promoverá uma análise do instituto da fundamentação
das decisões judiciais sob uma perspectiva eminentemente histórica,
observando tal problemática, tanto no tocante às disposições legais a esse
respeito, quanto - e principalmente - no que se refere aos ensinamentos da
Dogmática Jurídica e da História do Direito. Com efeito, buscar-se-á
compreender o processo de formação desse instituto jurídico-processual, a
fim de demonstrar sua relevância e vínculo inexorável com o Estado de
Direito. A intenção, registre-se, não é a de se realizar uma mera apreciação
histórica “imparcial”, mas de se entender criticamente o significado
jurídico-social do instituto.
Nessa esteira, o primeiro capítulo será de índole eminentemente
conceitual e dogmática, no intuito de demonstrar as visões doutrinárias
sobre o princípio da motivação das decisões. Demonstrar-se-á a
importância da verificação desse postulado dentro do processo e seu
correspondente reflexo na reafirmação do Estado Democrático de Direito.
Doravante, no segundo título, preocupar-se-á em mostrar como o
instituto em exame está profundamente relacionado ao desenvolvimento do
Estado Moderno e do liberalismo. Para tanto, primeiramente, explicar-se-á,
em linhas gerais, que, antes do século XVIII, predominava uma lógica de
não motivação das sentenças judiciais na Europa ocidental, revelando-se a
maneira como a justiça era garantida às partes processuais e aos súditos,
época na qual preponderava uma justiça de juízes. A figura do juiz era o
que assegurava o direito.
Após, indicar-se-á de que forma esse paradigma foi suplantado pelo
ideal liberalista, que demandava segurança, previsão e controle do atos
estatais, o que gerou uma intensa marcha legiferante a fim de se antecipar,
por lei, todas as possibilidades de intervenção do Estado na esfera privada
dos indivíduos. É o tempo das codificações, da justiça de leis, lançando-se
amarras sobre os juízes, que, agora, só poderiam aplicar diretamente os
preceitos legislativos, e não mais fazer interpretações. Nesse momento,
torna-se crucial que os magistrados, que são a “boca da lei”, exponham
suas razões de decidir, no intuito de que o cumprimento do direito
positivado seja amplamente verificável. A fundamentação das decisões
judiciais vê-se indissoluvelmente associada ao Estado de Direito e à ideia
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que este traz de devido processo legal (o processo judicial em
conformidade com a lei).
Finalmente, chega-se à conclusão, na qual aduzir-se-á que, em que
pesem as rupturas e permanências históricas nesse sentido, o instituto da
fundamentação das decisões juciais triunfou notavelmente, irradiando-se
por diversos ordenamentos jurídicos por todo o mundo, demonstrando-se a
imensa vitória da justiça de leis, isto é, do controle dos atos estatais, um
legado amplamente constatável até os dias de hoje.
2
O INSTITUTO PROCESSUAL DA FUNDAMENTAÇÃO DAS
DECISÕES JUDICIAIS
Com o decorrer da história da humanidade, não obstante a existência de
diversas contramarchas e forças opositoras (muito ao contrário do que se
possa pensar numa concepção histórica linear-hegeliano-marxista), erigiuse - de formas e em tempos diversos, consoante cada contexto local - um
ente impessoal e abstrato ao qual se atribuiu o nome de Estado. A este,
delegaram-se as mais diversas funções relacionadas à vida social em
comunidades compostas por seres humanos. Com isso, os homens
renunciaram ao direito de exercer a força de maneira privada a fim de
solucionar seus atritos e o puseram nas mãos dessa instituição, que passou a
deter o monopólio da violência física e simbólica legítimas, fenômeno que
os filósofos contratualistas, no plano das ideias, atribuem a um suposto
“contrato social”. Embora esse processo tenha sido iniciado já na Idade
Média, é na modernidade que ele, a duras penas, consolida-se efetivamente.
Geovany Cardoso Jeveaux (2012, p. 16), em precisa lição sobre o assunto,
explica que:
Com o colapso do feudalismo e a passagem histórica do
medievo para o período moderno, entre os sécs. XV e XVI, o
termo Estado adquiriu conteúdo próprio e passou a designar uma
experiência diversa daquela vivida até então: o surgimento de
amplos espaços territoriais com uma grande concentração do
poder de comando, que incluiu o monopólio da produção legal e
do aparato coativo. Essa nova realidade produziu um marco
conceitual: a descontinuidade entre a experiência dos antigos até
o medievo e a nova realidade do Estado moderno. Tanto assim
que Max Weber defendeu a existência conceitual de Estado
apenas a partir daquele momento histórico, com duas
características até então desconhecidas: um amplo aparato
administrativo, tendente a prover a prestação de serviços
públicos, somado ao monopólio do uso da força legítima.
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O meio para o exercício de tal empreendimento (monopólio da
violência legítima) é a jurisdição, mais precisamente, em seu âmbito
processual: o processo jurisdicional é o instrumento pelo qual os homens
dissolvem suas contendas, ou o que os juristas costumam chamar de “lide”.
Passa-se do estágio dos meios privados ao paradigma da resolução pública
dos conflitos, que, nesse momento, são jurisdicionalizados.
De acordo com Moacyr Amaral Santos (2007, p. 9):
[...] ocorre comumente que as partes conflitantes não acomodam
espontaneamente seus interesses, na conformidade da sua
regulamentação jurídica. Ou, mais precisamente, o conflito pode
dar lugar à manifestação da vontade de um dos sujeitos, de
exigir a subordinação do interesse do outro ao próprio. A essa
atitude de vontade dá-se o nome de pretensão. Pretensão é, pois,
a exigência da subordinação de um interesse de outrem ao
próprio.
Em caso de não acomodação espontânea dos interesses, o sujeito do
interesse oposto pode assumir uma de duas atitudes: conformar-se com a
subordinação ou resistir. Na primeira configuração, o conflito se compõe
pacificamente. No segundo quadro, o conflito toma outras proporções: à
pretensão do sujeito de um interesse se opõe uma resistência do sujeito de
outro interesse, formando-se um litígio, ou lide, ou seja, um conflito de
interesses em que à pretensão de um dos sujeitos se opõe a resistência de
outro.
Lide, portanto, é o conflito de interesses qualificado pela
pretensão de um dos interessados e pela resistência de outro. Ou,
mais sinteticamente, lide é o conflito de interesses qualificado
por uma pretensão resistida (SANTOS, 2007, p. 9, grifo
nosso).
Significa dizer: há uma “ordem jurídica”, pautada em leis gerais e
abstratas no âmbito do direito material, e tal ordem precisa ser mantida.
Obviamente, o ideal é que os indivíduos de uma sociedade convivam
pacificamente entre si e, em caso de discórdia, entendam-se desde logo,
dentro do que estipula a norma primária do sistema jurídico estatal
(pretensão não resistida). Contudo, há situações em que a contenda não é
solucionada automaticamente entre os sujeitos envolvidos (pretensão
resistida), de modo que o Estado, em sua faceta jurisdicional, precisa
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intervir para fazer valer as normas jurídicas2 estabelecidas. Essa ingerência,
via de regra, não se dá sem a provocação de uma das partes pelos meios
oficialmente previstos. Uma vez provocado o Estado-juiz e estabelecida a
relação jurídico-processual, há o que se denomina processo. Segundo o
mestre supracitado,
Compor a lide é função da jurisdição. Processo, assim, é meio
de que se vale o Estado para exercer sua função
jurisdicional, isto é, para resolução das lides e, em
consequência, das pretensões. Processo é o instrumento da
jurisdição.
Como operação, o processo se desenvolve numa série de atos: atos dos
órgãos jurisdicionais, dos sujeitos da lide e até mesmo de terceiras pessoas
não envolvidas na demanda inicial. Essa série de atos obedece a uma
ordem, tendo em vista a conclusão que perseguem. “Processo, assim, é a
disciplina dos atos coordenados, tendentes ao fim a que visam”
(SANTOS, 2007, p. 276, grifo nosso).
Ademais, na lição de Marcelo Abelha (2004, p. 3):
[...] processo é um caminho para a frente. Sendo um caminho, é
óbvio que existe para servir de ponte, de ligação de uma coisa a
outra. E só tem sentido falar-se em caminho na medida em que
sirva de ligação e que, efetivamente, permita uma adequada
ligação a quem necessite percorrê-lo. Mas não é um caminho,
senão o caminho. É o único (ou quase) que existe entre a
proteção estatal e o direito lesado ou ameaçado. Quando há uma
crise social de cumprimento ou de satisfação espontânea da
norma concreta, então aquele que se sentiu prejudicado terá,
inexoravelmente, que percorrer esse caminho caso pretenda
satisfazer a sua pretensão.
Em outras palavras, uma vez não solucionada uma controvérsia no
plano dos fatos (ou plano do ser), esta deve ser direcionada ao mundo
jurídico (plano do dever-ser), que a traduzirá em linguagem jurídica, dentro
dos cânones da lógica deôntica, a fim de que seja aplicada a norma jurídica
pertinente. Nesse sentido, Pierre Bourdieu, sob uma perspectiva
sociológica, (1989, p. 229-230) afirma:
Ressalte-se que, neste trabalho, a expressão “norma jurídica” é utilizada no sentido de
significação, isto é, interpretação do sujeito cognoscente, pelo processo linguístico em que há:
locutor, interlocutor, linguagem, língua, fala, proposição, mensagem, signo, suporte físico e
significado.
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A entrada no universo jurídico [...] é acompanhada de uma
redefinição completa da experiência corrente e da própria
situação que está em jogo no litígio. A constituição do campo
jurídico é um princípio de constituição da realidade (isto é,
verdadeiro em relação a todo o campo). Entrar no jogo,
conformar-se com o direito para resolver o conflito, é aceitar
tacitamente a adoção de um modo de expressão e de discussão
que implica a renúncia à violência física e às formas elementares
da violência simbólica, como a injúria. É também, e sobretudo,
reconhecer as exigências específicas da construção jurídica do
objecto: dado que os factos são produto da construção jurídica (e
não o inverso), uma verdadeira retradução de todos os aspectos
do <<caso>> é necessária para ponere causam, como diziam os
Romanos, para constituir o objecto de controvérsia enquanto
problema jurídico próprio para ser objecto de debates
juridicamente regulados.
Portanto, adentrar no mundo jurídico-processual, lançar mão do
instrumento processo, é, para as partes envolvidas, perder a apropriação
direta e imediata do conflito, que passa a pertencer ao Estado,
transformando-se a defrontação direta dos interessados em permuta
regulada de argumentos racionais entre técnicos, sob o olhar e a gerência
do Estado-juiz. Destarte, o confronto irregular, disforme, pleno de emoções
e de influências difusas, é convertido em “causa”, isto é, batalha
formalizada, regulamentada, sob controle, com minimização de emoções,
neutralidade e polidez, num ambiente, por assim dizer, “esterelizado”,
posto que é jurídico, e não, factual. Não é um ambiente desprovido de
valores, bem pelo contrário: seus valores são deônticos; o que deve-ser já
está prescrito e precisa ser seguido: as regras do jogo processual são
públicas e previamente estipuladas.
O processo, conforme anteriormente delineado, ocorre por via de atos
processuais, que, por sua vez, tratam-se de “[...] atos que têm importância
jurídica para a relação processual, isto é, aqueles atos que têm por efeito a
constituição, a conservação, o desenvolvimento, a modificação ou a
cessação da relação processual” (SANTOS, 2007, p. 285, grifos do autor).
Quanto à relação processual, cabe destacar, in verbis:
[...] no processo, naquela série ordenada de atos, formando uma
unidade, tendentes a um fim, que é a provisão jurisdicional, se
contém uma relação jurídica, de natureza complexa,
compreendendo direitos, deveres e ônus das partes, mais
direitos, poderes e deveres do juiz, prescritos pela lei processual.
Trata-se, pois, de uma relação jurídica processual, da qual
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participam o autor, o réu e o juiz (SANTOS, 2007, p. 281, grifos
do autor).
Já no tocante aos atos processuais, tem-se que:
São, assim, atos dos sujeitos da relação processual: atos das
partes [...] e atos do juiz [...]. O principal ato da parte é o ato
constitutivo da relação processual – a petição inicial; do juiz, o
principal ato, no processo de conhecimento, é o que define e
resolve a relação – a sentença (SANTOS, 2007, p. 285, grifo
nosso).
Frente à diversidade de espécies do gênero pronunciamentos judiciais,
tratar-se-á, para fins deste trabalho, apenas do subtipo sentença, cuja
definição utilizada será a de ato jurisdicional tendente a encerrar o processo
de conhecimento. Assim, quando, neste estudo, falar-se em “decisão
judicial”, “ato jurisdicional” e demais terminologias similares para aludir à
práxis do Estado-juiz, é à sentença (no sentido acima formulado) que se
pretende referir.
De acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 (BRASIL, 1988), todos os pronunciamentos judiciais devem ser
fundamentados, sob pena de nulidade, que se opera de pleno jure. Senão,
veja-se:
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal
Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os
seguintes princípios:
[...]
IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário
serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena
de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados
atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes,
em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do
interessado no sigilo não prejudique o interesse público à
informação; (grifo nosso).
A legitimidade estatal para intervir no círculo dos direitos individuais
advém, obviamente, da imperatividade dos atos decisórios judiciais.
Contudo, esta é regulamentada por inúmeras regras que imprimem um
nítido caráter público e autônomo ao processo hodierno (José Rogério Cruz
e Tucci, 1987, p. 2).
Athos Gusmão Carneiro lembra que, no Brasil, a fundamentação das
sentenças “cuida-se de obrigação que vem de tempos pristinos, entre nós
pelo menos desde as Ordenações Filipinas” (1996, p. 221). No
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ordenamento jurídico brasileiro atual, é plenamente reconhecido que todas
as decisões devem ser fundamentadas, assegurando-se às partes a
prerrogativa de compreender o sentido do provimento jurisdicional,
possibilitando a interposição do recurso adequado e, por consiguinte,
suscitando o contraditório e a ampla defesa.
Trata-se de matéria de ordem pública, de interesse não só das partes
processuais, mas da sociedade e do Estado. Se o pronunciamento judicial
deixa a desejar na exposição de seus motivos, as partes estão autorizadas a
interpor recurso de embargos de declaração, a fim de que o magistrado sane
a omissão, contradição ou obscuridade (art. 535 do Código de Processo
Civil) (BRASIL, 1973). Dessa forma, permite-se que a sentença ofereça os
elementos necessários à oposição do recurso principal (agravo de
instrumento, apelação, recurso especial, recurso extraordinário etc). Sobre
os embargos de declaração, Flávio Cheim Jorge (2007, p. 262) esclarece
ser
[...] indiscutível que apresentam uma série de características
próprias: são de fundamento vinculado, ou seja, seu cabimento
fica adstrito à alegação específica de errores in procedendo:
omissão, obscuridade e contradição. Não possuem como todos
os demais recursos a função de anular ou reformar a decisão
recorrida, visando, apenas, esclarecê-la ou integrá-la; são
julgados pelo mesmo órgão que prolatou a decisão recorrida.
O princípio da fundamentação das decisões carrega consigo um dos
pilares da garantia fundamental ao direito de defesa, sendo de extrema
importância para a manutenção do Estado Democrático de Direito. Afinal,
há de se convir, é somente pela ampla defesa e pelo contraditório que o
cidadão pode permanecer com dignidade perante qualquer demanda contra
ele interposta. De acordo com Enrico Tulio Liebman (1983, p. 79),
A história do processo, nos últimos séculos, pode ser concebida
como a história dos esforços feitos por legisladores e juristas, no
sentido de limitar o âmbito do arbítrio do juiz, e fazer com que
as operações que realiza submetam-se aos imperativos da Razão.
Antes de tudo, há a lei, naturalmente. Mas não basta. Porque é
exatamente a lei que, de forma cada vez mais penetrante, quer
que o magistrado, ao realizar as diversas tarefas de ordem
material e intelectual a ele confiadas, tenha um comportamento
racional, equilibrado, de acordo com a lógica natural,
compreensível e convincente, para quem esteja interessado nas
pecualiaridades do caso ou as observe com atenção.
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Como garantia fundamental de tamanha importância, esse princípio
passeia por todo o ordenamento jurídico, sendo mencionado em vários
diplomas legais, podendo-se afirmar que uma sentença escassa de
fundamentação será eivada de nulidade. Nesta toada, asserta Teresa Arruda
Alvim Wambier:
Nula é a sentença totalmente desprovida de fundamento,
constituindo, a sentença assim proferida, ‘negativa de prestação
jurisdicional’ (2007, p. 310).
No Código de Processo Civil Brasileiro, a fundamentação das
decisões é determinada pelo art. 458, II, cuja redação afirma que “são
requisitos essenciais da sentença [...] os fundamentos, em que o juiz
analisará as questões de fato e de direito” (BRASIL, 1973).
Com relação ao instituto, o professor Alexandre Freitas Câmara
entende, ipsis litteris:
O primeiro interesse que se quer proteger com a obrigatoriedade
de motivação das decisões é o interesse das partes, que não só
precisam saber o motivo que levou o juiz a decidir as questões
da maneira como decidiu, o que é psicologicamente importante
(até mesmo para que a parte prejudicada pela decisão se
convença de que a mesma era correta), como tem a necessidade
de conhecer os motivos da decisão para que possam
adequadamente fundamentar seus recursos [...]. Há, além disso,
outro fundamento a exigir que as decisões judiciais sejam
motivadas. Trata-se de razão de ordem pública, embora ligada
também a interesse particular das partes. A motivação da
decisão é essencial para que se possa verificar se o juiz prolator
era ou não imparcial (CÂMARA, 2014, p. 64-65).
Já no Código de Processo Penal, esse princípio é insculpido no texto
do art. 381, inciso III, que diz que a sentença penal conterá a indicação dos
motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão (BRASIL, 1941).
A atividade intelectual do julgador é fiscalizada pelas partes e pela
sociedade por meio da apreciação da fundamentação utilizada na decisão.
Dessa maneira, é possível reconhecer se o julgador possui convicção
legítima, fundamentada na lei, e não arbitrária, embasada em concepções
absolutamente não-jurídicas.
Quando se lança um olhar mais amplo sobre o assunto, percebe-se que
o princípio do devido processo legal também se manifesta - já que no
sistema jurídico brasileiro os princípios dialogam entre si, a fim de o
indivíduo obter a melhor prestação jurisdicional possível -, impondo, na
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análise da motivação, a real interpretação da lei e dos fatos da causa, a
vinculação do juiz à prova colhida e sua posição final. É basicamente a
exteriorização das razões de decidir, justificada sob a ótica eminentemente
jurídica, perante as partes e a sociedade. Em outras palavras, pode-se dizer
que o princípio da motivação das decisões, em verdade, é uma das
manifestações do princípio do devido processo legal, que, por sua vez, é
um verdadeiro dispositivo de controle do poder do Estado. Neste aspecto,
faz-se válida a observação de Hermes Zaneti Júnior, pela qual:
Ao que tudo indica, excetuada a democracia grega, a fonte mais
antiga do controle do Poder Público remonta a 1215, à Magna
Charta Libertatum, com o surgimento do princípio do devido
processo legal, o qual, embora apresente diversos contornos
históricos, sempre esteve ligado ao controle do poder. (2014, p.
14, grifos do autor).
Por seu turno, Norberto Avena traz à luz o diálogo entre os princípios
processuais constitucionais quando afirma que o princípio da
obrigatoriedade da motivação das decisões judiciais
[...] guarda correspondência com o sistema do livre
convencimento do juiz. Este, adotado no art. 155, caput, do
Código de Processo Penal, faculta o magistrado, salvo exceções
legalmente previstas [...], valorar com liberdade a prova
coligida, sempre buscando aproximar-se da verdade como os
fatos realmente se passaram. Ora, na medida em que há essa
liberdade valorativa, a exigência de motivação surge como
corolário necessário ao Estado de Direito, impedindo ou ao
menos dificultando a prolatação de decisões arbitrárias ou à
margem da lei, pois os juízes e tribunais, ao exará-las, estarão
cientes de que tanto a deficiência de motivação quanto a
fundamentação errônea (error in judicando) ou arbitrária (error
in procedendo) poderão, em grau de recurso, conduzir à reforma
ou até mesmo à nulificação do julgado pelas instâncias
superiores (2011, p. 35).
Já nas palavras de Aury Lopes Júnior, a motivação das decisões
judiciais, no processo penal,
[...] serve para o controle da eficácia do contraditório, e de que
existe prova suficiente para derrubar a presunção de inocência.
Só a fundamentação permite avaliar se a racionalidade da
decisão predominou sobre o poder, principalmente se foram
observadas as regras do devido processo penal. Trata-se de
uma garantia fundamental e cuja eficácia e observância
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legitimam o poder contido no ato decisório. Isso porque, no
sistema constitucional-democrático, o poder não está
autolegitimado, não se basta por si próprio. Sua legitimação
se dá pela estrita observância das regras do devido processo
penal, entre elas o dever (garantia) da fundamentação dos
atos decisórios (2015, p. 101-102, grifo nosso).
A obrigatoriedade de fundamentação dos pronunciamentos
jurisdicionais deve ser entendida como uma das garantias do cidadão
inseridas no próprio conceito de Estado Democrático de Direito, conforme
mencionado anteriormente. O propósito da motivação da sentença é a
demonstração às partes e à sociedade, pelo juiz, das razões que legitimam
seu ato decisório e sua interferência na esfera privada dos indivíduos, o
que, numa democracia legalista, deve ser a exceção (muito bem explicada),
e não a regra. Nesta orientação, expressa WAMBIER:
A concepção de controlabilidade das sentenças não se restringe
‘ao quadro das impugnações previstas nas leis do processo. Não
é apenas o controle endoprocessual que se precisa assegurar:
visa-se, ainda, e sobretudo, a tornar possível um controle
‘generalizado’ e ‘difuso’ sobre o modo como o Estado
administra a Justiça’.
A obrigatoriedade e a publicidade de motivação é o que
permitem o exercício eficaz do controle extraprocessual (2007,
p. 314, grifo da autora).
Por fim, a autora depreende:
No curso destes séculos, foram diversas as situações políticas,
sociais e culturais em que a motivação das decisões judiciais se
foi tornando obrigatória [...]. O único ponto passível de
afirmação segura é que o dever de motivar as decisões tem
preocupado os povos de maneira acentuada (2007, p. 311).
Note-se, pois, que a motivação das decisões judiciais é amplamente
reconhecida hoje como garantia constitutiva e inerente ao Estado
Democrático de Direito. Entretanto, nem sempre foi assim: a conquista
deste postulado se deu às custas de muitos esforços entre agentes sociais
interessados na ascensão das leis em detrimento do jurisprudencialismo
casuístico. Portanto, feita esta pequena dilação sobre Estado-juiz, processo
e fundamentação das sentenças, passa-se à análise mais detida quanto ao
processo histórico pelo qual o instituto em tela se impôs.
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A OBRIGAÇÃO DE MOTIVAR: ESTADO
LIBERALISMO E ESTADO DE DIREITO
MODERNO,
O instituto processual da motivação das sentenças está profundamente
relacionado ao surgimento do Estado Moderno e ao do Estado Liberal (ou
Estado de Direito). É difícil encontrar, entre os historiadores (com exceção
dos de linha hegeliano-marxista), uma separação precisa entre Estado
Moderno e Estado Contemporâneo. Muitos utilizam esses termos como
sinônimos, em virtude da complexidade histórica que envolve a formação
da instituição social Estado, tal como hoje se conhece. Outros – e, entre
esses, encontram-se diversos juristas -, de maneira por demais simplória,
separam-nos de forma estanque, atribuindo ao Estado Moderno o período
de um suposto “absolutismo monárquico” (“absolutismo” esse que, na
prática, jamais ocorreu), e ao Estado Contemporâneo, ou Estado Liberal, o
momento em que os monarcas “absolutistas” são destituídos de seu poder,
assumindo o sistema social do ocidente europeu as feições e os ideais
burgueses.
Há muitos meandros a se percorrer por tais linhas, mas não é o
objetivo deste estudo adentrar profundamente nessa temática, pelo que se
delimitará apenas ao entendimento da gênese do instituto da motivação das
decisões judicias. Contudo, considerar-se-á, ao menos minimamente, as
complexidades históricas que cercam o instituto, a fim de manter uma certa
distância da visão histórica marxista, que divide a História simplesmente
entre “Pré-História”, “Idade Antiga”, Idade Média”, “Idade Moderna” e
“Idade Contemporânea”. Há muitas marchas e contramarchas na História
que precisam ser consideradas, inclusive pelos juristas, para o
entendimento correto das instituições sociais (das quais as instituições
jurídicas são espécie).
Dito isso, para os fins aqui pretendidos, utilizar-se-á o vocábulo
Estado Moderno em alusão ao modelo de Estado existente desde o fim do
período medieval até a vitória do liberalismo na Europa: a Revolução
Francesa (1789). Para o modelo inerente ao lapso temporal posterior (e
vigente até os dias de hoje), lançar-se-á mão do vocábulo Estado de Direito
(ou Estado Liberal), em homenagem ao advento do império da lei, sempre,
é claro, admitindo-se as continuidades e reformismos do Antigo Regime
com as quais a “guinada” histórica objeto de estudo teve que lidar.
3.1 A PREVALÊNCIA DA IMOTIVAÇÃO E A FIGURA DO
JUDEX PERFECTUS
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Antes da segunda metade do século XVIII, de forma geral, não existia
a obrigação de fundamentar as decisões judiciais (salvando-se, claro,
algumas exceções). Entretanto, conforme alerta Michele Taruffo, não se
pode confundir a obrigação de motivar com a prática de motivação das
sentenças, pois são fenômenos que apresentam conotações históricas
distintas. Nesse raciocínio, menciona o autor, além de outros, o exemplo
dos ordenamentos jurídicos da common law, em que a prática relativamente
generalizada da motivação por muito tempo convive com a ausência de
uma efetiva obrigação imposta ao juiz nesse sentido (TARUFFO, 2006, p.
302).
Apesar dos exemplos pretéritos existentes, “[...] lo que puede
considerarse predominante hasta el siglo XVIII es la práctica de la
sentencia sin motivación” (TARUFFO, 2006, p. 303). Assim, também, no
entendimento de Carlos Garriga e Marta Lorente, em contraposição ao que
se via na monarquia hispânica, ipsis verbis:
[...] Si echamos un vistazo a la situación coetánea (esto es,
anterior al Setecientos), de los restantes territorios europeos, en
efecto, observaremos que la disparidad es la única nota común –
si así puede decirse – que tienen sus respectivos derechos
(legales o no), aunque muy probablemente predomine la práctica
o estilo de no motivar (en ningún caso resultante de una
prohibición taxativa) frente a la obligación (legal) de expresar
las causas o motivos de la decisión judicial (1997, p. 102).
Cumpre destacar que, entre os séculos XV, XVI e XVII, ocorre uma
tendência para a unidade dos vários ordenamentos jurídicos europeus.
Diversos fatores confluíram para isso, sendo o principal deles a releitura do
direito romano. Neste ponto, válido é o ensinamento de António Manuel
Hespanha (1998, p. 70), ao aduzir, na literalidade:
[...] nos meados do século VI, o imperador Justiniano, um
apaixonado pela cultura clássica e um nostálgico das antigas
grandezas de Roma, empreende uma tarefa de recolha de textos
jurídicos da tradição literária romana, desde as obras dos juristas
romanos clássicos, que mandou reunir numa compilação a que
chamou Digesto (i.e, resumo, selecção) ou Pandectas (i.e., obra
enciclopédica), 533 d. C., até à legislação imperial dos seus
antecessores, que foi recolhida no Código (i.e., livro), 529 d. C.
A sua obra de recolha foi completada por um manual de
introdução, as Insituições, 530 d. C., e por uma compilação
póstuma, as Novelas, 565 d. C., as <<constituições novas>>
promulgadas pelo próprio Justiniano depois da saída do Código.
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É este conjunto de livros – a que, a partir do século XVI, se
dá o nome de Corpus iuris civilis – que vai constituir a
memória medieval e moderna do direito romano [...] (grifo
nosso).
Não por acaso, os séculos de recepção do direito de Roma (séculos
XIII a XVI) são os do desenvolvimento inicial da economia mercantil e
monetária européia, nos quais se buscava um direito estável, único e
individualista – não que o direito romano (precipuamente, o direito do
Império Romano), de fato, tenha reunido todas essas características, melhor
atribuíveis à memória que se forjou de tal sistema jurídico no medievo.
A esse corpo jurídico medieval de influência romana deu-se o nome
de “direito comum” (ou ius commune). Nas palavras de HESPANHA
(1998, p. 86), “O direito comum foi basicamente um direito romanocanônico, apesar de neles estarem também inseridos institutos dos direitos
tradicionais dos povos europeus”. Ocorre que
[...] El derecho común afirmó desde um primer momento como
regla general la inconveniencia de motivar las sentencias y,
em consecuencia, no consideraba obligatorio que los jueces
expresaran la causa – tal era la formulación corriente –de sus
decisiones (exprimere causam in sententia). El corpus iuris,
como es sabido, no proporcionaba al respecto ninguna
orientación, pero una decretal de Inocencio III había consagrado
la legitimidad de la decisión inmotivada propter auctoritatem
iudiciariam praesumi debet (33). Fundamentalmente sobre esta
base, y obviamente para satisfacer sus proprios intereses, los
juristas construyeron uma doctrina que recomendaba
abiertamente ocultar la causa de las decisiones judiciales. La
conveniencia (o el peso de las cirscuntancias) era la principal
razón que aconsejaba actuar así (GARRIGA & LORENTE,
1997, p. 103-104, grifo nosso).
Tal empreitada visa à proteção dos magistrados frente ao julgamento
público. Ora, expor os fundamentos de uma decisão judicial, acreditava-se,
seria um risco muito grande, na medida em que deixar-se-ia à vista de
todos os possíveis equívocos ocorridos no momento de formação do
entendimento do juiz, dando margem a toda sorte de contestações. Isso não
era nenhum pouco interessente numa época em que a justiça estava
garantida na própria pessoa do magistrado, que era reconhecidamente uma
espécie de semi-deus, logo, tinha que ser imune a qualquer tipo de falha,
sob pena de perda do seu posto e estremecimento da confiança coletiva no
direito. Por esta perspectiva,
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[...] aparece claro que las disposiciones que imponen la
motivación responden a razónes concretas de política jurídica,
que habrá que explicar en atención a las circunstancias jurídicopolíticas de cada territorio, en principio las únicas capaces de
impelir a abandonar el muy seguro secreto que está em la
lógica del ius commune, asumiendo los evidente riesgos que
comportaba la motivación (GARRIGA & LORENTE, 1997, p.
105, grifo nosso).
A orientação própria do direito comum no sentido de não motivar as
sentenças não significa que o iudicium realizava-se sem qualquer critério
de justiça, mas tão-somente que, nesse contexto, as garantias judicias nas
quais as partes envolvidas assentavam-se eram distintas e mais apropriadas
a um direito eminentemente jurisprudencial, como notadamente era o ius
commune. Onde não imperou a prática da motivação, consolidou-se todo
um conjunto de mecanismos institucionais, de todo dependentes das
peculiaridades jurídico-políticas de cada lugar, no intuito de assegurar a
legitimidade das decisões imotivadas. A garantia estava concentrada na
pessoa – e não na decisão – do juiz. E essa tarefa não era nada simples para
o magistrado. No Reino de Castela, por exemplo,
[...] la persona de los jueces debía ser, en efecto, la encarnación
rutilante de la justicia real: los jueces, y especialmente los jueces
supremos, que actuaban como si fuera el rey y habían de servir
de ejemplo a los inferiores, se comprometían mediante
juramento – y naturalmente, esa era la idea, arriesgaban al
hacerlo la salvación de su alma inmortal – a guardar las
Ordenanzas [...]. Si la justicia no figuraba objetivada en el
fallo, debía manifestarse en la conducta de sus artífices, los
jueces, que de este modo vivían condenados por razón de su
oficio a representar sin descanso el papel de Astrea en el
teatro de la vida. A falta de la ley, el juez era la imagen viva
de la justicia (GARRIGA & LORENTE, 1997, p. 106, grifo
nosso).
A essa representação viva da justiça, paradigma ideal a ser seguido
por todos os magistrados, atribui-se a denominação de judex perfectus.
Sobre tal eminente figura, Carlos Garriga e Andréa Slemian brilhantemente
obtemperam, in verbis:
[...] a cultura do ius commune levantou um arquétipo de juiz, o
judex perfectus que, por fiel tradução da antropologia católica
compartilhada, projetava sua sombra sobre todo o espaço ibérico
(a ambos os lados do Atlântico) e cobriu todo o tempo largo que
costumamos chamar Antigo Regime. Em sua vertente mais
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erudita, foi amplamente cultivado por uma elaborada literatura
de iudice perfecto que, invariavelmente, apresentava o
magistrado como sacerdote da justiça (iustitiae antistes) e o
dotava de atributos imaginados por Aulo Gelli, em um texto
célebre: grave, inatacável, severo, incorruptível, inacessível à
adulação, inexorável com os malvados e os criminosos,
firme, potente, terrível pela força e majestade que lhe
fornecem a equidade e a verdade (2013, p. 194, grifo nosso).
Num universo em que se concebia a justiça como uma “justiça de
juízes”, essa era a visão do que significava ser juiz: um indivíduo que
deveria ser perfeitamente ilibado e de todo intacto em sua reputação, pois a
consciência dos juízes era o mais importante, e não, a letra da lei. Por essa
razão, “[...] a regra comum de direito [...] era contrária à expressão da causa
da decisão (exprimere causam in sententia)” (GARRIGA & SLEMIAN,
2013, p. 195). Disso, deduzem os autores que:
[...] concentradas na pessoa – e não na decisão – dos juízes, as
garantias da justiça se moviam em um meio fortemente
endojurisprudential: eram os mesmos juristas, na sua dupla
condição de magistrados e tratadistas, aqueles que produziam e
reproduziam, doutrinaria e judicialmente, o arquétipo do juiz no
qual depositavam retoricamente a ‘alma da justiça’,
especialmente aqueles que, por serem supremos, representavam
o rei in iudicando. Naquele mundo pluralista, estes tribunais
ocupavam o único espaço jurisdicional diretamente governado
pelo princeps e estavam abaixo de seu imediato controle
institucional; mas, em sua condição de supremos, bem podiam
inclinar-se a julgar tanquam Deus, vinculados, antes e mais, à
ordem que às leis reais. Este foi o principal motivo de crítica à
justiça feita pelos homens da Ilustração, ainda que fosse seu
campo um dos menos afetados pelas reformas de seus
governantes (GARRIGA & SLEMIAN, 2013, p. 198).
Por tudo isso, depreende-se que havia, até o século XVIII, de maneira
geral, uma cultura jurídica predominantemente defensora da imotivação das
decisões judiciais, posto que se tratava de uma justiça de juízes, e não, de
leis. Entretanto, isso não significa que se estava sob o império de um
arbítrio ilimitado, ou numa selvageria societário-hobbesiana de cada um
por si e todos por ninguém. Ao inverso, preponderava um modelo de
garantia de justiça extremamente criterioso que se pautava exatamente na
própria figura do magistrado. Este deveria reunir uma infinidade de
características consideradas ideais ao exercício de sua função, buscando
adequar-se ao padrão de judex perfectus, a fim de obter e manter a
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confiança dos jurisdicionados e promover a paz social. Não podiam sequer
em sua vida privada desenvolver sinceras amizades ou quaisquer relações
profundas com os cidadãos da localidade em que atuavam, bem por isso
eram frequentemente demovidos a outras jurisdições e, via de regra, não
era adequado ter como magistrado pessoa nativa da região, preferindo-se
juízes oriundos de outras demarcações, sem vínculos pessoais com os
indivíduos do foro de seu exercício.
3.2 O PARADIGMA DA MOTIVAÇÃO: A ASCENSÃO DO
IMPÉRIO DA LEI
Por meio de uma mudança lenta e gradual, passa-se do paradigma da
justiça de juízes ao de uma justiça em que o legislador ganha toda a
importância no universo jurídico.
3.2.1 Modernidade e jusracionalismo
Paulatinamente, o ius commune, cosmopolita e genérico, foi absorvido
por um direito racional, nacional e específico, de acordo com as novas
demandas sociais típicas da modernidade, que eram muito distintas
daquelas concernentes à Baixa Idade Média (Adriana Pereira Campos,
2005, p. 24).
Durante o século XVI, a escola humanista foi a preponderante na
interpretação do direito. Foi a derradeira a colocar em evidência o Corpus
iuris, mas com uma abordagem em muito distante da que se utilizavam os
glosadores e comentadores da Idade Média. A novidade essencial consistiu
na aplicação do método histórico, pelo qual os seus adeptos consideravam
os erros e anacronias nas análises dos estudiosos medievais, tornando mais
precisos os conhecimentos acerca do iuris civilis. Significar dizer, os
humanistas viam os textos romanos como uma obra humana, um fenômeno
histórico, diferentemente de quem os compreendia como uma revelação
escrita de uma incólume verdade universal. Todas as adaptações por
oportunidade e conveniência das leis romanas realizadas no medievo foram
fortemente combatidas pelos humanistas, que, prezando pela “pureza” de
tais escritos, reduziram o direito romano à condição de relíquia acadêmica.
No ensinamento de CAMPOS (2005, p. 25),
Ao indicar a historicidade do Corpus iuris civilis, os humanistas
tiraram sua autoridade absoluta enquanto um direito universal;
afinal era apenas um produto circunstancial de sua época. A
renovação dos estudos acadêmicos dos textos jurídicos romanos
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produziu argumentos para sua superação, consequência,
evidentemente, inesperada. A partir da dissolução dos antigos
poderes universais e da reforma, nos Estados nacionais europeus
houve uma quebra da unidade e do consenso em torno do ius
commune, teoricamente fundado na ideia de Império. Nos
séculos XVII e XVIII, na mesma época do racionalismo e do
idealismo iluministas, apareceu e ascendeu o jusracionalismo,
advogando a existência de um direito universal e eterno que não
estava originado na vontade de Deus, como defendiam os
seguidores do jusnaturalismo teológico, mas tão-somente
originado na natureza da razão humana.
Uma nova concepção de direito foi deflagrada no período moderno.
Nela, o direito natural representava um corpo de princípios básicos,
alcançável pela razão e a partir do qual construir-se-ia o direito positivo. A
fonte primordial do direito não era mais as escrituras romanas: era a própria
razão. Partindo-se da premissa da existência de uma natureza humana, seria
possível, por critérios lógico-racionais, chegar-se aos axiomas gerais que
deveriam reger as condutas de todo e qualquer ser humano, o que o filósofo
racionalista Imannuel Kant (1724-1804) chamava de “lei moral”3.
Nessa conjuntura, a crítica à política e ao direito vigentes até então
calcava-se na ausência de igualdade diante da lei, tendo-se em vista a
persistência de antigos e injustificáveis privilégios remanescentes da Idade
Média, em se tratando, mormente, da parasitária nobreza, já
economicamente decadente devido à desvalorização de suas terras.
Injustificáveis, é claro, para a classe burguesa, pois, para a manutenção do
poder do monarca, era imprescindível manter os nobres satisfeitos. A esse
respeito, Nobert Elias (1994, p. 188) brilhantemente adverte:
A nobreza de corte não exercia função direta na divisão do
trabalho, mas tinha uma função para o rei. Era uma das
fundações indispensáveis de seu governo. Permitia-lhe
distanciar-se da burguesia, exatamente como a burguesia lhe
permitia distanciar-se da nobreza. Na sociedade, ela era o
contrapeso da burguesia. Essa, sem excluir algumas outras, era
sua função mais importante para o rei. Sem a tensão entre
nobreza e burguesia, o rei perderia a maior parte do seu poder.
3
"Duas coisas que me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e
frequentemente o pensamento delas se ocupa:o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de
mim” (acesso em: 05 de ago. de 2015).
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E, de fato, foi assim que o perdeu. Afinal, o rei “[...] depende
fortemente da estrutura da máquina e seu poder é tudo, menos absoluto”
(ELIAS, 1994, p. 151). Dessarte,
A capacidade do funcionário central de converter toda a rede
humana, sobretudo em seu interesse pessoal, só foi seriamente
restringida quando a balança sobre a qual se colocava se
inclinou radicalmente em favor da burguesia e um novo
equilíbrio social, com novos eixos de tensão, se estabeleceu. Só
nessa ocasião, os monopólios pessoais passaram a tornar-se
monopólios públicos no sentido institucional (ELIAS, 1994, p.
171).
Havia, ainda, a crítica à arbitrariedade das intervenções reais, à
exclusão do povo das decisões políticas, à intolerância religiosa e ao caráter
desumano das penas, considerando-se que “[...] Os velhos costumes
medievais e os textos romanos eram insuficientes para superar esses
obstáculos à igualdade e à liberdade” (CAMPOS, 2005, p. 27). Consolidouse uma nova forma de conceber o mundo, na qual o homem figurava como
o responsável pelo seu destino e, portanto, deveria ser livre. Daí a
emergência de um novo direito, racional, lógico, concebido pelo homem e
para o homem, irradiado da natureza humana por meio da razão e, dessa
forma, aplicável de maneira mais prática, simples e direta.
3.2.2 Prever e justificar: codificação e motivação das sentenças
O século XVIII ficou historicamente conhecido como “o século das
luzes”, em virtude da grande efervescência de ideias, convergindo todos os
pensamentos e ações para uma mesma conclusão: a razão é o meio
inescapável à aquisição de todo o conhecimento.
A liberdade é erigida à categoria de bem supremo; o homem é livre e
pode alcançar a verdade sem a necessidade de recorrer a quaisquer meios
externos, fazendo-se suficiente o seu próprio raciocínio lógico. “O homem
está condenado a ser livre”, como diria dois séculos depois o filósofo
existencialista Jean-Paul Sartre (1905-1980) (acesso em: 5 de ago. 2015). A
verdade é objetiva e pré-constituída: o homem não a cria, mas pode antingila sozinho, pela sua razão.
Essa nova demanda por liberdade requer um Estado enquanto ente
central, imparcial e abstrato. Na lição de Antônio Carlos Wolkmer,
A cultura jurídica produzida ao longo dos séculos XVII e XVIII,
na Europa Ocidental, resultou de um complexo específico de
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condições engendradas pela formação social burguesa, pelo
desenvolvimento econômico capitalista, pela justificação de
interesses liberal-individualistas e por uma estrutura estatal
centralizada [...] (2006, p. 24).
Não apenas deve haver um poder centralizado: além disso, é preciso
promover-se uma dicotomia entre Estado e sociedade, em que todos os
membros da última sejam iguais perante o primeiro. Neste raciocínio,
António Pedro Barbas Homem (2003, p. 197) aduz, ipsis litteris:
[...] A autonomia conceptual entre Estado e sociedade – como
essa outra distinção entre povo e nação –aspecto típico do
pensamento liberal- procura resolver os problemas normativos
de acordo com uma visão dogmática assente na realidade
histórica. O predomínio do Estado sobre a sociedade e da nação
sobre o povo exprimem-se no princípio da legalidade, que se
realiza na prevalência da lei sobre as outras fontes de direito e
na vinculação dos tribunais e da administração a uma lei criada
por um parlamento democraticamente eleito.
O triunfo do Estado liberal trouxe consigo a perspectiva de
universalização da cidadania: todos são iguais perante a lei, e a lei será uma
só para todos. É o momento em que os apadrinhamentos, clientelismos e
privilégios por critérios estritamente pessoais são veementemente
hostilizados; é a prevalência do indivíduo – considerado puramente
enquanto ator social anônimo e despersonalizado, sem ideologias e
representações peculiares – sobre a pessoa, com toda a sua rede de relações
interpessoais concretas, hierarquias e influências (Roberto DaMatta, 1997,
p. 218). Implementa-se uma separação precisa entre público e privado. Os
conflitos devem ser submetidos a um único sistema jurídico, com um único
conjunto de regras procedimentais iguais para todos, em que a legitimidade
para julgar universaliza-se no Estado, detentor do monopólio da violência
legítima.
Do ponto de vista da justificação filosófica, o direito de julgar
universalmente foi sustentado pela filosofia das luzes, da racionalidade
universal, da igualdade de todos, da forma republicana, liberal e
democrática de Estado. Da perspectiva das instituições, caminhou pelo
desenvolvimento da profissionalização do direito, pela organização da
burocracia profissional e especializada e, porque não dizer, pelo
estabelecimento da força pública, da violência propriamente dita,
monopolizada pelo Estado. Este é o modelo herdado pelas instituições
jurídicas atuais (José Reinaldo de Lima Lopes, 2003, p. 408).
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Com efeito, o Estado não pode mais interferir na esfera privada dos
seus cidadãos, a não ser em situações excepcionais, previamente
estipuladas, e de forma muito justificada. As regras do jogo estatal, agora,
devem ser claras, explícitas e prévias.
Previsão e justificação são as palavras de ordem, a fim de se atender à
liberdade de tipo individualista emergente. Um Estado de previsão não
pode ser uma instituição pela qual impere o casuísmo, o tratamento
distinto, de acordo com a consciência de cada funcionário encarregado de
julgar; tampouco pode furtar-se da exposição de seus motivos para explicar
seus atos. A justiça não pode mais ser de juízes, mas sim, de leis. Assim,
“[...] A proibição dos juízes julgarem de acordo com a sua consciência e a
obrigação de fundamentarem as decisões segundo os preceitos legais
constituem estapas necessárias de afirmação da legalidade dos julgados”
(HOMEM, 2003, p. 258, grifo nosso).
As sentenças não podem mais esconder suas razões, mas torná-las
públicas e em conformidade com o que diz a lei, e não, a pura concepção
do magistrado. Surge, então, o Estado de Direito, em que os indivíduos não
podem ser surpeendidos: tudo o que o poder estatal faz deve estar previsto,
em outras palavras, legislado. É o que explica José Carlos Barbosa Moreira
(1988, p. 89), literalmente:
No Estado de Direito, todos os poderes sujeitam-se à lei.
Qualquer intromissão na esfera jurídica das pessoas deve, por
isso mesmo, justificar-se, o que caracteriza o Estado de
Direito como [...] ‘Estado que se justifica’. Distingue a
doutrina dois aspectos complementares dessa ‘justificação’: o
material e o formal. A intromissão é materialmente justificada,
quando para ela existe fundamento: é formalmente justificada,
quando se expõe, se declara, se demonstra o fundamento
(grifo nosso).
Aos cidadãos, por outro lado, garante-se a prerrogativa de fazer tudo o
que não for expressamente proibido por lei, perante a qual todos devem ser
iguais. É o império da lei, do individualismo, do formalismo, da igualdade
formal e da liberdade privada. À administração pública, cabe cuidar dos
assuntos públicos, somente sendo-lhe permitido imiscuir-se nos assuntos
privados quando a lei assim o estabelecer.
Entrementes, insta salientar que o jusracionalismo, ao admitir a
existência de verdades absolutas - em claro acolhimento a uma filosofia
platônico-objetivista -, e admitindo que tais verdades seriam acessíveis a
todos por intermédio da razão, deu lugar a inúmeros casuísmos judiciários
(justamente o que se pretendia evitar). Os juízes, ao serem livres para
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decidir racionalmente com vistas a uma suposta verdade comum,
cometeram notáveis discrepâncias jurídicas na resolução de casos
concretos, o que comprometia sobremaneira os ideias liberais de liberdade
e igualdade. Desse modo, entendeu-se que o magistrado, enquanto
funcionário do Estado, deveria estar fortemente adstrito às regras por este
emitidas. Os estatutos legislativos foram eleitos a única fonte legítima do
direito, devendo os julgares ater-se estritamente ao que o texto daqueles
estabelecia. Surge a figura do juiz “boca da lei” e o movimento de
codificação difunde-se por toda a Europa ocidental. Neste panorama,
CAMPOS (2005, p. 29) disserta, in verbis:
A partir do século XVIII, combinado com o iluminismo, o
jusracionalismo exerceu influência direta sobre a legislação e a
codificação modernas, sobretudo com o Preubishe Allgemeine
Landrecht (Código-Geral do Direito Territorial Prussiano], o
Code civil francês de 1804 e o Allgemeine Bürgerliche
Gesetzbuch [Código Civil] austríaco de 1811. O movimento
geral de codificação distingue-se dos movimentos anteriores,
porque não visava ordenar, completar ou melhorar direitos já
existentes, dirigia-se a uma organização global da sociedade por
meio de um corpo de normas jurídicas.
E prossegue a autora:
[...] Diante das incongruências geradas pela aplicação
diferenciada dos princípios do direito natural, a codificação
apresentou-se como garantia da afirmação de um direito
fundado em princípios invariáveis, impessoais e universais
(CAMPOS, 2005, p. 32).
Não era apenas preciso prever, era imprescindível declarar em lei as
universalidades sociais, isto é, reduzir tudo oficialmente por escrito, pôr em
códigos de leis, codificar. O movimento de codificação baseava-se na
convicção da existência de leis válidas para qualquer tempo e lugar,
capazes de prever, portanto, todas as situações sociais passíveis de
acolhimento jurisdicional.
Passou-se a compreender o direito, definitivamente, como parte do
Estado, e alicerçou-se a prevalência da lei como fonte do direito. Nesse
prisma,
[...] O papel do juiz tinha se alterado radicalmente. A função
judiciária tinha sido despersonalizada e atribuída a um juiz
concebido como homos burocraticus, que agia, assim, segundo a
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lógica burocrática e cuja atividade era previsível, fungível, e
controlável (Nicola Picardi, 2008, p. 65).
E mais:
Nos projetos de reforma da magistratura apresentados no século
XVIII nos vários Estados europeus, a obrigação de
fundamentação
das
sentenças
judiciais
está
indissoluvelmente associada ao pensamento iluminista, como
pressuposto processual para a verificação do cumprimento
das leis pelos juízes na aplicação concreta do direito
(HOMEM, 2003, p. 303, grifo nosso).
É importante mencionar que o Código Civil Francês de 1804 teve uma
importância ímpar em toda a conjuntura setentista da qual se está tratando,
pois foi o suporte normativo de uma nova cultura jurídica, a cultura do
código, que reconhece como direito tão-somente a voluntas legislatoris.
Nesse paradigma, dever-se-ia fazer todo o necessário para construir a
ordem jurídica unicamente pela lei, mediante renovadas regras de
interpretação, valendo-se dos meios institucionais devidos a fim de se
impor à prática judicial o règne de la loi (GARRIGA, 2010, p. 88). Nesse
prisma,
[...] No campo do direito, o que melhor expressaria essa
mudança de paradigma seria a importância que a criação de
novas constituições ganhariam a partir de fins do XVIII – como
instrumento de projeção da garantia dos direitos dos cidadãos –,
e a codificação como a mais completa síntese de positivação
dos seus princípios. Se anteriormente os códigos eram
pensados como forma de organização da legislação sobre
determinada temática, eles assumiriam, sobretudo no
Oitocentos, definitivamente seu papel como fonte de direito:
a norma produzida por meio da ação do legislador –
imbuído de amplos poderes – passaria a determinar a
legitimidade do que seria direito, e não o contrário. Sua
implementação previa um ataque à magistratura, o que foi
especialmente contundente nos casos das monarquias
continentais e, em função da herança comum, aos regimes iberoamericanos: nessa concepção, deveriam os juízes e
magistrados aplicar a lei a partir da sistematização feita nos
códigos e não mais interpretá-la, função esta que ficava
resguardada à supremacia que se pretendia dar ao
legislativo (SLEMIAN, 2012, p. 227-228, grifo nosso).
Esclarece a autora, ainda, que, no Brasil,
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Uma das decisões do governo, divulgadas logo após a outorga
da Constituição de 1824, previa que todos os juízes deveriam
declarar circunstanciadamente as razões das sentenças
‘conforme o liberal sistema ora abraçado’. Ou seja, deveriam
eles prestar esclarecimentos de seus atos pelos quais, na lógica
do novo regime, poderiam ser responsabilizados. Além disso,
houve uma clara ação no sentido de declarar a necessidade
de publicidade das mesmas ações judiciais [...] (SLEMIAN,
2012, p. 238-239, grifo nosso).
Afinal, “[...] No século XVIII, é cada vez mais importante o ideal de
certeza, previsibilidade e calculabidade das decisões jurídicas” (LOPES,
2009, p. 112). Nesse quadro, ao juiz, cabia somente aplicar
automaticamente
os
preceitos
legislativos
às
controvérsias
jurisdicionalizadas, e era seu dever fundamentar suas decisões, a fim de
que, às partes, estivesse assegurado o cumprimento da lei na demanda em
que se encontravam envolvidas (controle endoprocessual), bem como, à
sociedade, estivesse garantida a precisa execução da vontade legiferante e,
por conseguinte, a realização da justiça (controle extraprocessual). Quanto
ao controle extraprocessual das decisões, vale destacar a lição de HOMEM
(2003, p. 201), pela qual:
O século XVIII [...] tenderá a idenficar lei e razão. O
pensamento dos fisiocratas, destacou-o Habermas, sublinha que
esta identificação exige a mediação da opinião pública, porque
só a opinião pública é susceptível de conhecer a ‘ordem natural’
(grifo nosso).
Frise-se que as reformas processuais ocorridas no século XVIII não
eliminam, ainda que incidam de maneira notável no panomara global, a
heterogeneidade das soluções normativas ocorridas nesse período.
Enquanto alguns Estados adotaram uma perspectiva estritamente técnicojurídica (isto é, endoprocessual) da fundamentação das decisões, outros - a
exemplo da França -, abrangeram, também, uma visão política do instituto,
ou seja, extraprocessual, que abarca não só as partes envolvidas na relação
jurídico-processual, mas todos os integrantes da democracia (TARUFFO,
2006, p. 307). Independentemente das diversidades com que se impôs em
cada território, é nesse momento histórico que a motivação das decisões
judiciais torna-se um instituto absolutamente indispensável ao processo e
ao devido processo legal, como o é até os dias atuais.
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CONCLUSÃO
A motivação das sentenças é um instituto jurídico-processual consagrado
nos diversos ordenamentos jurídicos ocidentais. No Brasil, a obrigação de
fundamentação das decisões encontra-se prevista na Lei Maior, em seu
artigo 93, inciso IX, bem como em dispositivos infraconstitucionais (art.
458, inc. II, do Código de Processo Civil e art. 381, inc. III, do Código de
Processo Penal). A doutrina é pacífica quanto à imprescindibilidade da
observação desta regra pelos magistrados, havendo até quem afirme ser
nula a sentença totalmente desprovida de fundamentação. Essa concepção é
tão cara ao sistema de direito positivo brasileiro que existe uma
impugnação específica para o caso de deficiência ou ausência na sentença
das razões de decidir, prevista em lei, que é o recurso de embargos de
declaração (art. 535 do CPC).
Contudo, de maneira geral, é possível inferir que, até o século XVIII,
nas civilizações ocidentais, o ato de motivar a decisões judiciais não era
uma obrigatoriedade. Inclusive, frequentemente, o procedimento de expor o
juiz suas razões de julgar era considerado inconveniente e prejudicial à
manutenção da justiça. Esse foi o entendimento predominante durante a
Idade Média e boa parte da modernidade. A estratégia do segredo era muito
cara aos monarcas para que estes mantivessem o seu poder e isso se refletiu
na magistratura. Os juízes, longe de ser mera longa manus do rei, tinham
uma relevante autonomia para decidir as controvérsias que lhe era
apresentadas. Isso era possível porque, nesse momento, a garantia da
justiça não se encontrava em leis formais escritas, mas habitava a própria
pessoa do juiz. Este, pelas suas reconhecidas características pessoais e
conduta social, era quem dava segurança às partes processuais e à
sociedade de que a justiça fazia-se efetiva, podendo, com isso, julgar
conforme a sua consciência, desvinculado que estava de mandamentos
externos. Nessa época, erige-se o paradigma do judex perfectus, isto é, do
julgador grave, incorruptível, firme, potente, e tantos outros adjetivos que
os magistrados deveriam buscar a fim de manter intacto o direito. Era o
momento da justiça dos juízes.
Doravante, no séc. XVIII, consubstancia-se uma virada política,
econômica e cultural que revoluciona radicalmente o direito e o Estado. É
por demais descompromissado historicamente afirmar que referido
revolvimento se deu de chofre, estabelecendo-se de imediato. Na realidade,
foi apenas a culminação no plano concreto daquilo o que já se vinha
delineando desde tempos mais remotos, pois, há muito, já se vivenciava
uma necessidade de um poder centralizador, único e sem distinções entre
“súditos”. Os arremedos de uma centralização da autoridade podem ser
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sentidos na Europa desde o séc. XIII, com a retomada dos textos romanos
(quiçá, desde o séc. XI, com o renascimento comercial).
O chamado Antigo Regime não foi deposto subitamente. Embora na
França isso tenha sido melhor observado, na maior parte dos lugares em
que os ventos liberalistas sopraram, deu-se um lento e gradual processo de
adaptação aos novos ideais, aproximando-se diversas experiências muito
mais de um reformismo do que de um lapso revolucionário.
A despeito das incrongruências, continuidades e resistências que o
modelo liberal enfrentou, valiosos foram os impactos que ele promoveu
sobre o direito. Num dado momento, o delicado equilíbrio entre burguesia e
nobreza ruiu e os privilégios dos quais os nobres gozavam foram
amplamente atacados. Era o tempo em que o homem tornava-se o
protagonista de sua história, pois ele detinha a chave para todas as respostas
sobre o universo: a razão. O humanismo e o racionalismo preponderam; a
razão é eleita o meio por excelência para se chegar à verdade. Nenhum
deus, nenhuma autoridade escolar ou religiosa, nenhuma instituição era
necessária para se alcançar os preceitos gerais regentes do mundo: o
homem é livre pelo seu próprio pensar, pois detém o raciocínio lógico.
Essa liberdade precisa de uma instituição social que a comporte. Para
serem livres, os homens devem ser iguais, haja vista que, no momento em
que um indivíduo é sobrelevado a outro, há o risco iminente da dominação,
e a liberdade não será plena, pois só existirá em relação aos dominantes. Ao
Estado Liberal, portanto, cabe realizar a nivelação de todos. Para isso,
precisa ser um ente autônomo, não se confundindo com o corpo social que
se lhe delega administrar. É preciso separar para igualitarizar, a fim de que
não prevaleçam quaisquer vínculos de ordem pessoal. Nesse
encadeamento, o direito deve ser igual para todos e passível de
conhecimento prévio e geral. Urge mais do que nunca a necessidade de
haver um corpo de leis escritas, formalizadas, documentadas e de público
acesso. O segredo e o casuísmo devem ser sumamente repelidos. Surge o
Estado de Leis, ou Estado de Direito, imparcial, abstrato e universalizante.
Desenvolve-se uma patologia legiferante que a fobia do imprevisto articula,
levando-se a uma absurda tentativa de se prever, de maneira atemporal e
inconteste, todos os dilemas sociais passíveis de tutela jurisdicional, o que
dá início ao movimento de codificação.
Ao juiz, nessa celeuma, cumpre apenas observar as previsões
cuidadosamente dispostas nos suportes físicos legislativos, recolhendo-se
ao papel de “boca da lei”. Os códigos, acreditava-se, traziam em seu bojo
todas as questões sociais relevantes para o direito em qualquer espaçotempo, fazendo-se plenamente dispensável o entendimento particular do
julgador. A garantia da justiça está, agora, na lei, e não, no juiz.
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A fim de as partes processuais e a sociedade em geral saberem se o
Estado-juiz estava atudando conforme os ditames legais, era vital que o
magistrado expusesse as razões que o levaram à conclusão da sentença. A
fundamentação das decisões revela-se um ponto nevrálgico do Estado de
Direito, que, enquanto Estado-legislador, deve predizer todas as
possibilidades de intervenção pública na esfera privada (ou seja, na
liberdade) dos indivíduos e, no espectro de Estado-juiz, tem a obrigação de
tornar públicos os motivos dessa ingerência, as razões de decidir. Não há
Estado de Direito sem leis e sem fundamentações decisórias públicas que
certifiquem o cumprimento da lei, entendimento esse tão vigorosamente
consolidado que impera até hoje.
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