Ver a partir de Roma: Dionisio de Halicarnasso e as origens gregas

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Universidade Nilton Lins – História – 2º Período
HISTORIOGRAFIA I – Prof. Me. Hélio Dantas
TEXTO 3
HARTOG, François. Ver a partir de Roma: Dionísio de Halicarnasso e as origens gregas de Roma.
In: _____. Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 119-140.
CAPITULO VI
Ver a partir de Roma: Dionisio de
Halicarnasso e as origens gregas de Roma
Quem sao os romanos? Autenticos gregos. E Roma, desde
sempre, desde 0 primeiro dia, e uma cidade grega; alias, ainda nao
era Roma e ela ja era grega. Essa e a simples e singular tese proposta,
repetida e demonstrada - com a ajuda de numerosos argumentos
de genealogia e de etimologia, de citavoes e de testemunhos - por
Dionisio de Halicarnasso em seu mais famoso livro. Essa e tambem
a razao de ser da longa pesquisa empreendida por urn letrado do
seculo I a.C. que fez a viagem de Halicarnasso ate Roma com 0
objetivo de se instalar nessa cidade. Em Roma, ele exerceu 0 oficio
de retorico e se dedicou a investigavoes. Enquanto, urn seculo e
meio mais cedo, Polibio foi obrigado a dirigir-se a Roma como
refem, Dionisio percorre a distancia ate essa cidade pela propria
iniciativa, pouco depois de Augusto ter posto fim as guerras civis.
o primeiro se tinha dedicado a traduzir a evi&ncia da dominavao
romana, improvisando uma novao operatoria de historia universal,
enquanto 0 segundo se interessou pelo terreno das origens, no qual
tudo, ou quase, ja estaria decidido.
Vinte e dois anos mais tarde, Dionisio apresenta sua obra, Antiquites romaines, como urn "dom em retribuivao" oferecido aRoma
por todas as vantagens - e, em particular, a paideia (cultura) - que
ela the havia prodigalizado (DIONisIO DE HALICARNASSO, 1990, 1,
65). 0 etimo paideia nao e neutro porque todos sabem que, desde
a definivao da grecidade como cultura por Isocrates, a diferenva
entre 0 grego e 0 barbaro e, antes de tudo, questao nao de natureza,
mas de cultura (ISOCRATES, Panegyrique, 50). Se, portanto, Roma
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EVIDENCIA DA HISr6RIA -
0
QUE as HISTORIADORES VEEM
e vista por Dionisio - a semelhanc;:a da Atenas de outrora - como
uma escola de paideia, fica bastante claro que os romanos nao sao
ou deixaram de ser, ou, melhor ainda, nunca foram birbaros. E,
sobretudo no pr610go de seu tratado sobre Les orateurs antiques, ele
se felicita exuberantemente pela volta da antiga ret6rica (philosophos
rhetorike), que tinha sido quase eliminada por aquela que havia chegado, na vespera ou na antevespera, de "algum lugarejo desprezivel
da Asia" (DIONisIO, 1978, 1, 1, 7). Na origem des sa auspiciosa
mudanc;:a, esta, julga ele, 0 poderio de Roma, que "tinha obrigado
todas as cidades a observi-Ia como referencia", alem do talento de
seus dirigentes, que sao homens de qualidade tanto por seus julgamentos quanto por sua cultura (eupaideutoi; Ibid., 1,3, 1). De modo
diferente das cidades da Helade, amnesicas de sua heranc;:a, sao eles,
portanto, que souberam revelar-se como os verdadeiros depositirios
do classicismo (ou do aticismo), os verdadeiros homens de cultura:
portanto, gregos autenticos. Ao preferir dedicar-se ao estudo dos
mais famosos oradores antigos (ou seja, gregos), Dionisio - critico
literirio instalado em Roma - pretende amp liar ainda esse sucesso,
consolidando as escolhas intelectuais dos dirigentes romanos, a fim
de fazer com que conhec;:am melhor "sua" heranc;:a e tomi-Ios, se
possivel, ainda mais "gregos".44
Nao seria factivel pensar que, em outro registro, seu livro, Antiquites romaines, persegue 0 mesmo objetivo? Demonstrar a origem
grega dos romanos visa, com efeito, uma dupla utilidade: do lado
romano, evidentemente, mas tambem do lano dos gregos, cuja informac;:ao tem sido sempre erronea ou insuficiente. Provar - e, pela
primeira vez, com todos os detalhes necessirios (akribos) - que os
roman os nao sao vagabundos sem residencia fixa, mas descendentes
de gregos - de tudo 0 que hi de mais autenticamente grego.
Em seu preficio, Dionisio (1, 4, 2) justifica assim a escolha
desse tema. De aparencia mediocre, merecendo a custo uma Arqueologia, os prim6rdios da Cidade se inscrevem, na realidade, de
pleno direito na grande hist6ria (koine historia) , posto que Roma,
44
DIONisIO DE HALICARNASSO, 1978, 1, 4, 1; HURST. 1982. Sobre as diferentes maneiras
de falar grego, em Roma, ver DUPONT e VALETTE-CAGNAC, 2005.
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VER A PARTIR DE ROMA: DIONisIO DE HALICARNASSO E AS ORIGENS GREGAS DE ROMA
pela extensao nunca igualada de sua dominayao, tanto no espayo
quanta na durayao, veio ocupar 0 ultimo (e 0 primeiro) lugar no
esquema da sucessao dos imperios. Assim, a Arqueologia se reivindica
como uma historia de pleno direito, melhor ainda, "hist6ria geral",
ao passo que seu autor, desde 0 inicio, nao se posiciona, ou nao
somente, como urn antiquario, mas como verdadeiro historiador.
Ele e ho suntaxas, aquele que reune e poe em ordem: portanto,
historiador que faz obra de historiador (Ibid., 1, 8, 4).
"Comeyo a minha hist6ria a partir dos ditos (muthol) mais antigos [... ] e prossigo minha narrativa ate a Primeira Guerra Punica"
(Ibid., 1, 8, 1). Eis a declarayao ortodoxa de urn historiador que
fixa os limites crono16gicos de sua obra. Com a diferenya de que,
no ponto em que 0 historiador comeya por estabelecer, de uma
maneira ou de outra, 0 corte - Her6doto propunha a divisao entre
o tempo dos deuses e 0 dos homens, enquanto Tucidides demonstrava, em sua Arqueologia, que era impossivel escrever a hist6ria do
passado -, Dionisio, por sua vez, reivindica a continuidade desde
os muthoi mais antigos. Sem soluyao de continuidade, a historia se
estende ate os muthoi. Na outra extremidade, 0 terminus ad quem
revel a urn curio so uso da pratica de legitimayao segundo a qual 0
historiador seguinte deve retomar os acontecimentos que haviam
sido 0 termo da obra do precedente. Os historiadores sao etemeros,
a narrativa continua e a hist6ria se faz no presente. Remontando a
corrente, Dionisio escolheu interromper-se exat~mente no epis6dio
em que Polibio, seu predecessor ja distante, tinha comeyado sua
Hist6ria. Praticante de uma hist6ria do passado, Dionisio se ins ere
retroativamente na corrente dos historiadores e se legitima por
intermedio de seu sucessor.
Arqueologia, hist6ria, as Antiquites pretendem ser, alem disso,
uma hist6ria "total" de Roma, na qual se encontram as guerras externas, mas tambem internas, as Constituiyoes e as leis, os costumes
e, portanto, uma hist6ria "cultural" (Bios). Outrora, Dicearco tinha
escrito uma Vida da Grecia (Bios Hellados); na atualidade, Dionisio
oferece ao leitor uma Archaios Bios de Roma (Ibid., 1, 8, 3). No
aspecto em que, justamente, esta provado que, desde sempre, ela
havia conhecido uma "Vida grega" (Bios hellen; Ibid., 1,90, 1). Nesse
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EVID~NClA DA HIST6RIA -
0
QUE OS HISTORIADORES VEEM
deslocamento do substantivo "Grecia" para 0 adjetivo "grego", vern
se inscrever 0 projeto de Dionisio.
De saida, seu empreendimento esta colocado sob 0 signa
da mistura. Dionisio descarta sobretudo uma hist6ria monoeides a
maneira de Polibio, que se circunscreve a urn genero e se limita
a uma s6 forma: a hist6ria "pragmatica", cuja austeridade vern
garantir a utilidade para seu unico destinatario reivindicado, 0 politico (PoLimo, 9, 2-7). E preferivel reivindicar a "mistura de cores
variadas" (poikilie) de Her6doto ou a "polimorfia" (to polumorphon)
de Teopompo (DIONISIO DE HALICARNASSO, Lettre a en. Pompee,
6). Para evitar 0 cansas;o dos leitores, convem misturar os generos
e variar os estilos, conjugando assim prazer e utilidade (sob a forma
de exempla) para 0 beneficio dos profissionais da eloquencia polltica, dos homens preocupados com filosofia ou dos leitores comuns
simplesmente desejosos de distras;ao (DIONISIO, 1, 8, 3; 11, 1). 0
ret6rico nao desaparece diante do historiador.
Gregos, b6rbaros, romanos
Por nao serem barbaros, serio os romanos, por isso, verdadeiramente gregos? Sim, responde Dionisio, que toma a precauS;ao
de sublinhar que ele nao e 0 autor dessa descoberta. Com efeito,
quanta mais sua autoridade for romana, ou apresentada como tal,
maior consideraS;ao ela vai obter no final; ora, os primeiros que a
haviam formulado sao aqueles que ele designa como "os mais eruditos" dos historiadores romanos (a comes;ar por Catao; Ibid., 1,7,
3). Os aborigines, os primeiros verdadeiros habitantes da Italia nao
eram aut6ctones, mas gregos. Para encontrar autenticos aut6ctones,
nascidos na terra, e necessario - demonstra Dionisio - voltar-se
para os etruscos; tal precisao nada tern de an6dina, ja que permite
introduzir uma diferens;a de natureza entre os etruscos e os romanos.
A identidade romana nao tern, portanto, nenhuma necessidade de
se referir a Etroria (MUSTI, 1970; BRIQUEL, 1983).
Quanto as hip6teses e outras proposis;oes defendidas pelos
autores gregos (desde 0 seculo V a.c., e possivel identificar, no
entanto, urn born numero de nomes; cf AMPOLO e MANFREDINI,
1988, em particular p. 262-278), elas sao pura e simplesmente
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VER A PARTIR DE ROMA: DIONisIO DE HALICARNASSO E AS ORIGENS GREGAS DE ROMA
descartadas como pouco serias. Tal critica atinge inclusive Timeu
- ou seja, 0 primeiro historiador grego que se dedicou a estudar
Roma de forma detalhada - e 0 proprio Polibio. Foram omitidos
tambem, pelo mesmo motivo, os primeiros historiadores romanos:
tanto Eibio Pictor quanta os primeiros analistas nao se serviram de
maior grau de "acribia" nas investigac;:oes sobre os primordios de
sua cidade. Restaram, portanto, na competic;:ao, apenas "os mais
eruditos" ja citados, dominados pela elevada e austera figura de
Catao, incontestavel autoridade nesses assuntos, visto que ele e 0
autor das Origens ou livro das Fundafoes (das principais cidades da
Italia). Pouco suspeito de ser excessivamente ftlo-helenico (mesmo
que soubesse grego; cf FERRARY, em particular p. 537-539), esta em
companhia de Cicero, Varrao e de alguns outros entre os grandes
intelectuais romanos que, propriamente falando, haviam "pensado"
Roma. Em seu entender, os aborigines - que tinham chegado a esse
territorio muitas gerac;:oes antes da Guerra de Troia e do desembarque de Eneias perto da foz do Tibre - eram de origem grega. Num
pis car de olhos, Dionisio se apropria, portanto, des sa tese (que se
torna: os romanos sao gregos). Sua contribuic;:ao e seu trabalho hao
de consistir, nao em discuti-Ia pelo confronto com outras (de saida,
desacreditadas), mas em fortalece-la, em fornecer-Ihe precisoes e
complementos, colocando a seu servic;:o todas as tecnicas da critica
literaria e todo 0 aparato da erudic;:ao antiquaria relativa aos gregos.
A elucidac;:ao da identidade dos aborigines oferece urn born
exemplo de sua postura (DIONISIO, 1, 10-13). Quem sao, na origem, aqueles que, mudando duas vezes de nome, hao de tornar-se
os latinos e, em seguida, os romanos? A pergunta nao deixa de ser
importante. Partindo da etimologia, a demonstrac;:ao de Dionisio
consiste em passar de uma etimologia inadequada para uma etimologia "correta". Segundo alguns autores, 0 termo aborigines significaria
autoctones; em grego, sublinha Dionisio, nos diriamos genarchai ou
protogonoi. Outros, porem, nos antipodas dessa primeira explicac;:ao,
corrigem aborigines por aberrigenes (aberrare) e, de acordo com determinada tradic;:ao, van transforma-Ios em nomades: a etimologia
identifica-se com 0 genero de vida ou vai implici-Io. A partir dai,
portanto, a equiparac;:ao possivel com os leleges, povo nomade bern
conhecido dos gregos e, na epoca, ainda existente.
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EVID~NClA DA HIST6RIA -
0
QUE OS HISTORIAOORES VEEM
Sem mesmo refutar essas explica~6es (que, ao se oporem, se
destroem por si mesmas), Dionisio introduz logo em seguida 0
argumento de autoridade: "os mais eruditos" dos romanos dizem
que os aborigines eram gregos, oriundos da Acaia, muitas gera~6es
antes da Guerra de Troia. 45 0 essencial, que ja nao sera questionado, esta dai em diante definido; assim, pode come~ar 0 trabalho do
arque6logo porque os pr6prios historiadores romanos desconhecern tambem esse aspecto. Ocorreu, certamente, uma migra~ao,
mas quando, a partir de onde, com quem, par que? Ao segurar 0
bastio, Dionisio inicia sua narrativa com base nesta f6rmula: "Se a
tese deles e exata (hugies)", entao, os aborigines "nao poderiam ser
os colonos de nenhum outro povo alem daquele que, atualmente,
e designado por arcadiano". Para comprovar essa afirma~ao, ele
come~a por produzir a genealogia arcadiana ate Enotro, filho de
Licaonte, que precisamente emigrou para a Italia. Em seguida, ele
cita tres testemunhas de peso que confirmam essa presen~a Enotriana
na Italia: S6focles, 0 poeta; Antioco de Siracusa, "urn historiador
razoavelmente antigo" (de fato, da segunda metade do seculo V);
e Ferecides de Atenas, "que nao fica devendo a ninguem como
genealogista". Conclusao: estou convencido (peithomai) que os
aborigines descendem dos enotrios. Pode, entao, vir a etimologia
"correta" do nome deles: correta por fornecer uma descri~ao exata
de sua hist6ria e de seu genero de vida. Por que aborigines? Porque
sao pessoas da montanha: ab-oros, segundo uma etimologia mista, simultaneamente, latina e grega. Eles viviam na montanha e vern dessas
paragens. De fato, "a particularidade dos arcadiahos e seu gosto em
permanecer nas montanhas".46 Assim, vai sendo apresentada a prova.
Alem da genealogia, da etimologia e da convoca~ao de "testemunhas", 0 investigador, para se convencer e para persuadir, recorre
a todas as marcas, vestigios, restos, objetos (menumata, ichne, mnemeia,
tekmeria) ainda visiveis na atualidade. 47 A esse acervo, acrescentam-se,
" Mesmo que os historiadares romanos tenham seguido um mutho5 grego (1, 11, 1),
que esse enunciado efetuado par eles.
e
0
importante
e
e
" Mesmo que nao sejam aut6ctones, os roman os sao descendentes de aut6ctones posto que essa
a condi,ao dos arcadianos. No entanto, esse ponto nao leva do em considera,ao por Dionisio.
e
47
Ver, por exenlplo, a maneira como Dionisio trata a aporia da viagem de Eneias para ten tar estabelecer 0 pithanos, algo de ··convincente" (1, 45ss.).
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VER A PARTIR DE ROMA: DIONisIO DE HALICARNASSO E AS ORIGENS GREGAS DE ROMA
enfim, OS testemunhos fornecidos pelas festas, pelos rituais e pelos
sacrificios. Os Grandes Jogos (Ludi magm) confirmam, em seu registro, 0 parentesco (suggeneia) entre romanos e gregos (DIONisIO,
7, 70-73). Ao se apoiar na dupla autoridade de Fabio Pictor e de
Homero, Dionisio (uma vez mais, ele deixa no esquecimento todo
o lado etrusco; cf. THUILLIER, 1976) encontra uma brilhante confirmac;:ao do carater grego dos rituais romanos e, em particular, de
sua mane ira de sacrificar. Dessa leitura cruzada, deduz-se ate que
os romanos conseguiram conservar alguns costumes que os gregos,
depois de Homero, haviam abandonado; como se eles se mostrassem
mais fieis a Homero que os pr6prios gregos.
Por que Dionisio teria feito essa escolha? Tratar-se-ia de uma
tarefa meramente cortesa, obra de urn literato que paga sua cotaparte (0 "dom em retribuic;:ao") aos poderosos da epoca? Ou seria
apenas urn jogo espirituoso erudito ou urn divertimento literario
sem verdadeira relac;:ao com 0 real em que a destreza em manejar
as genealogias e a habilidade em servir-se das tradic;:6es sao suficientes para alegrar os happy Jew e esgotam 0 assunto? Seria algo mais
semelhante, em suma, i epopeia La Franciade de Ronsard (1572)
e a todas as variac;:6es sobre as origens troianas dos francos, e nao
tanto i obra Recherches de la France de Etienne Pasquier (1560)? Nao
seria preferivel reconhecer urn verdadeiro desafio na escolha de
Dionisio e em sua resposta i questao da identidade dos romanos?
Qual pode ser 0 projeto de urn homem que, no momenta em que
a dominac;:ao romana se tornou, ha muito tempo, uma evidencia
cotidiana, empreende explicar as origens de Roma, em primeiro
lugar, a seus compatriotas informados de forma erronea ou preconceituosa? Ele nao estaria limitando-se a repetir, com atraso e em
grego, 0 que os romanos ja tinham escrito, ha muito tempo, em
latim? Eis uma hip6tese que, talvez, pudesse ser defendida se ele
estivesse sozinho; mas, no mesmo momento, tal preocupac;:ao era
manifestada por Varrao, Tito Livio e, mais que todos, por Virgilio,
ao compor a Eneida. Longe de estar ultrapassado, 0 ass unto parece,
pelo contrario, algo de atual.
Alem disso, sera que a afirmac;:ao - os aborigines sao de origem
grega - tern 0 mesmo significado quando e proposta por Catao e
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EVIDENCIA DA HIST6RIA -
0
QUE
as HISTORIADORES VEEM
quando Dionisio, ao cita-Ia, vai assumi-Ia? Em Catao, ou seja, 0
primeiro que decide escrever a hist6ria em latim, ela pode ter servido
de instrumento de emancipac;:ao simb6lica, ao permitir escapar da
bipartic;:ao entre gregos e barbaros ou, de preferencia, subverte-Ia.
"Voces, os gregos, tern 0 costume de nos classificar entre os barbaros, mas trata-se de urn equivoco pelo fato de que temos ancestrais
gregos". Retomada em grego por Dionisio para leitores gregos,
essa afirmac;:ao transmite uma informac;:ao que - convira reconhecer
- havia perdido sua atualidade depois de terem passado quase dois
seculos; nesse comec;:o da era de Augusto, nenhum grego pensa que
os romanos devam ser pura e simplesmente posicionados ao lado
dos barbaros. Nao e verdade que, no mesmo momento, Estrabao
havia reconhecido que eles tinham a missao hist6rica de substituir
os gregos na obra de civilizac;:ao da oikumene? Dai em diante, afirmar
que os romanos sao gregos nao significaria de preferencia: "N6s, os
gregos, somos em parte romanos; somos seus pais, na verdade seus
av6s, e 0 imperio deles e, portanto, tambem em parte 0 nosso"?
Desse imperio greco-romano que, sob a tutela de Augusto, se desenha de forma ainda mais consistente, a genealogia vern, em suma,
legitimar a existencia e a evidencia, assim como a posic;:ao ocupada,
em seu ambito, pelas elites gregas. Alias, uma posic;:ao que usufrui
de todas as prerrogativas.
Mas 0 horizonte intelectual no interior do qual se ins creve a
arqueologia romana de Dionisio e urn espac;:o grego do saber em
que Homero aparece como 0 primeiro organizador. Com as cinco
vagas sucessivas de migrac;:oes, estende-se sobre a Italia uma rede de
malhas bern compactas: a de uma genealogia grega que sabe nomear,
sem lacunas, a continuidade das gerac;:oes.
De Dionisio a Estrabao (no livro I de sua Geografia), encontrase 0 mesmo procedimento: 0 primeiro desenvolve uma genealogia,
ao passo que 0 outro percorre urn espac;:o, mas, nos dois casos, fica
estabelecido ou comprovado que as primeiras referencias sao gregas.
Por que Estrabao dedica tantas paginas e tanto esmero em defender
que Homero e 0 "arcageta" [archagetes] da geografia? A nao ser para
comprovar que, ja com Homero, os gregos conheciam e, portanto,
"dominavam" a oikumene e seus limites. Poeta, certamente, Homero
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VER A PARTIR DE ROMA: DIONisIO DE HALICARNASSO E AS ORIGENS GREGAS DE ROMA
nao deixa de ser verdadeiro. Resta a Estrabao defender uma leitura
realista das viagens de Ulisses, cuja moldura foi exatamente a Sicilia
e a Italia. Polibio ja tinha julgado necessario refutar 0 hipercriticismo de Eratostenes: "0 lugar das deambulayoes de Ulisses - tinha
escrito este ultimo - sera encontrado no dia em que for descoberto
o correeiro que costurou 0 odre dos ventos". De modo algum, replicam Polibio e Estrabao (ESTRABAo 1, 2, 15). A geografia e grega
significa, antes de mais nada, que Ulisses foi 0 primeiro a ter visto
e sobretudo relatado esses lugares, enquanto Homero havia sido 0
primeiro a transcrever 0 espayo inteiro em palavras (gregas).48
Dionisio de Halicarnasso entre os modernos
Se, para nos atualmente, Dionisio aparece como testemunha das
relayoes entre a Grecia e Roma, ele e tambem parte integrante na
construyao de uma representayao nova dessas relayoes. Algo como
a visao de urn vencido, mas da setima gerayao, e que fez a escolha
de Roma! A semelhanya de Polibio, Posidonio, Panecio, ou Estrabao e, em breve, Plutarco ou Elio Aristides, ele vern se inscrever
na linhagem dos intelectuais gregos que olharam para Roma, ate
mesmo, a partir de Roma, e que, de qualquer modo, acabaram por
adota-Ia como objeto de suas pesquisas ou reflexoes. Na Franya, a
ultima traduyao de Dionisio remonta a 1723 (se nao for levada em
considerayao aquela que esta sendo elaborada por encomenda da
editora Les Belles Lettres). Em seu Cours d'etudes historiques, Daunou
apresentava-o como "urn daqueles deuses desconhecidos, cujo culto
esta garantido pelo respeito que compele as pessoas a se afastarem de
seus altares. Prestam-Ihes, de born grado, as homenagens que eles tern
o costume de receber, exceto a {mica que teria algum valor e utilidade, ou seja, estudar suas obras" (DAuNou, 1842-1849, v. 13, p. 96).
48
De fom1J ainda mais abrangente, a demonstra~io de Dionisio ocorre em todas as reflexoes - verdadeiro genero - desenvolvidas pelos gregos sobre as origens dos povos; ver BICKERMAN, 1952.
Ela esta igualmente ligada a esse fenomeno (cada vez mais manifesto a partir da epoca helenista),
registrado pela epigrafia, e para 0 qual Louis Robert chamou a atenyio em varias ocasioes: 0 uso da
ideia de parentesco (su!i,J?eneia). Os decretos e a linguagem de chancelaria dio lugar e direito a essas
pretensoes e reivindicayoes; assim, a cidade de pequeno porte, Heracleia (do Latm05), reivindica
seu parentesco com os et6lios (ROBERT, 1987, p. 177-185). Ver tambem MUST!, 1963.
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EVIDENCIA DA HIST6RIA -
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QUE OS HISTORIADORES VEEM
De fato, Dionisio conheceu, postumamente, algumas vicissitudes: ele passou da luz para a poeira do esquecimento. Entre sua
redescoberta (a primeira traduc;:ao latina da obra, Antiquites, data de
1480, e a grande edic;:ao de R. Estienne e de 1546) eo seculo XVIII,
ele se beneficiou de uma grande autoridade: era considerado superior
a todos os outros historiadores latinos, mas tambem gregos, por sua
maneira de apresentar as antiguidades de Roma. Sublinhava-se que
ele havia descrito os romanos de maneira mais honrosa que, algum
dia, os romanos haviam conseguido fazer em relac;:ao aos gregos.
Scaliger (1583, 1606) chegou a felicita-Io por seu cuidado com a
exatidao da cronologia, e Bodin elogiou sua seriedade. Inquestionavelmente, ele era reconhecido como superior a Tito Livio; essa era
ainda a opiniao defendida nos preficios das duas traduc;:oes francesas
que foram publicadas, uma atras da outra, em 1722 e 1723 (LEJAV,
1722).49 Bellanger, 0 segundo tradutor, vai prestar-Ihe homenagem,
em particular, por ter pretendido derrubar "a distinc;:ao realmente
odiosa mediante a qual todos os povos eram gregos ou barbaros",
ficando bern claro que a "vaidade grega" classificava os romanos
nessa ultima categoria. Dionisio escolheu, portanto, Roma para se
opor a presunc;:ao grega.
Mas Dionisio viveu nessa cidade os ultimos momentos de
uma existencia p6stuma: aliando os cumprimentos as marcas de
deferencia, a curva de seu destino ia inverter-se durante urn longo
periodo de tempo. Arque610go dos primeiros tempos de Roma, ele
nao podia, de fato, deixar de ser parte integrante do imenso clebate
que se desencadeia e se propaga sobre "a incerteza dos primeiros
seculos de Roma". Sua primeira menc;:ao em publico ocorreu no
momenta da polemica que, de 1722 a 1725, opoe, na Academie des
Inscriptions et Belles-Lettres, Levesque de Pouilly ao abbe Sallier. 50
Pouilly, matematico e introdutor de Newton na Franc;:a, procura
demonstrar a incerteza; por sua vez, Sallier, professor de hebraico
49
A tradu,ao de 1723, inicialmente anonima,
so Pouilly abre
e de Bellanger. C( GRELL, 1983 e 1995.
debate com sua "Dissertation sur l'incertitude de l'histoire des quatre premiers siecies
de Rome" (15 de dezembro de 1722), Sallier responde, Pouilly replica, Sallier contra-ataca (tendo
dedicado, no minimo, quatro memorandos ao assunto) e Freret acaba por se intrometer (17 de mar,o
de 1724): "Sur l'etude des anciens historiens et sur Ie degre de certitude de leurs preuves".
0
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VER A PARTIR DE ROMA: DIONisIO DE HALICARNASSO E AS ORIGENS GREGAS DE ROMA
no College Royal, defende a certeza. 0 desaflO desse debate, duplamente sobredetenninado pela disputa entre antigos e modemos
e pela questao do pirronismo em historia, excede amplamente 0
conteudo de Antiquites romaines e, ate mesmo, Roma. No entanto,
Dionisio e questionado a respeito de suas fontes e intimado a apresentar suas provas. De onde e que ele tira seu saber? "Se alguem
afinnar que e de Atenas pelo fato de que ai nada se encontra alem de
monumentos celebrados pela Historia - escreve Pouilly, servindo-se
de Cicero -, pode-se dizer que e de Roma porque, neste caso, so
se percebem monumentos ilustrados por Fabulas". Sallier nao tem
outro recurso senao afirmar (reivindicando a autoridade de Cicero)
"a cadeia continua de uma tradi<;:ao confiavel e ininterrupta", desde
as proprias origens de Roma ate 0 autor de Antiquites. Se Pouilly,
acusado de ser "filosofo", e reduzido ao silencio, as questoes hao
de continuar a surgir.
Elas serao retomadas com vigor alguns anos mais tarde por Louis
de Beaufort em sua Dissertation sur ['incertitude des dnq premiers siecles
de ['histoire romaine, em que se encontra consumada a deprecia<;:ao
de Dionisio (BEAUFORT, 1866; sobre Beaufort, cf. RASKOLNIKOFF,
1992). Erudito protestante, instalado na Holanda, Beaufort pretende
passar pelo crivo de sua critic a os testemunhos dos his tori adores
antigos de mais credito e, de alguma maneira, volta-los contra eles
mesmos, para abalar os alicerces sobre os quais se estabeleceu a
historia dos primeiros seculos. Assim, ele nao tem dificuldade em
mostrar que nenhum deles chega a afirmar que-viu com os proprios
olhos os famosos Anais dos pontifices. Nem sequer Dionisio, a quem
e dedicado um capitulo inteiro que e, significativamente, intitulado:
"Du caractere de Denys d'Halicamasse et du fond qu' on peut faire
sur son histoire" [Acerca do carater de Dionisio de Halicamasso
e acerca da possibilidade de utilizar sua historia como referencia].
Pela primeira vez, de fato, a escolha de Dionisio e sua pessoa sao contestadas: 0 cariter da testemunho contra a obra, cuja
autoridade e den unci ada como equivocada. Antes de tudo, ela e
"ostenta<;:ao". Dionisio nao tem (e nao pode ter) as provas de suas
afirma<;:oes, mas procede como se tivesse a disposi<;:ao esse material;
ele finge a exatidao e a sinceridade. "Pelo fato de que ele exibe a
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EVID~NCIA DA HIST6RIA -
0
QUE
as HISTORIADORES VEEM
cntica e a erudi~ao em varias de suas investiga~oes e de suas discussoes, 0 leitor se deixa facilmente deslumbrar por uma aparencia
de exatidao e de boa fe que, no entanto, nada tern de real, desde
que elas sejam elucidadas com maior atenyao" (BEAUFORT, 1866, p.
138). Qual seria seu objetivo? "Fazer com que os gregos suportem
com maior paciencia 0 juga que uma nayao, considerada por eles
como barbara, lhes tinha imposto". A escolha de Roma, ate entao
valorizada como lucida e corajosa, e sobrecarregada de conotayoes
negativas. Dionisio nao passa de urn bajulador, que faz a corte aos
romanos (e urn traidor a Grecia). A essa altura, Beaufort introduz
uma aproximayao muito interessante com Flavio Josefo, que, por
sua vez, "sonhava muito mais em fazer a corte aos pagaos do que em
se conformar a exatidao da verdade" (Ibid., p. 129). A sua maneira,
Dionisio e tambem urn "judeu de corte". E ele fracassou, visto que
os romanos, cuja vaidade era bajulada por ele, continuaram a relatar
suas origens sem se preocuparem demais com suas demonstrayoes.
Tito Livio, em contrapartida, e reabilitado: nao que ele disponha de
mais informayoes sobre os prim6rdios de Roma, mas exatamente
porque confessa nada saber praticamente a esse respeito. Sua "sinceridade" acaba por salva-lo e contribui para que seja preferido a
Dionisio, que, por sua vez, e condenado como homem e como
historiador (Ibid., p. 135).
o
autor de Antiquites romaines estava submerso em urn longo
purgat6rio! A historiografia alema do seculo XIX, tendo seguido em
geral as criticas do reformado Beaufort, devota-lhe uma lastinr.ivel estima: trata-se de urn Graeculus, urn grego de segunda categoria. Ele era
literato demais para ter senti do profundamente 0 drama humano dos
gregos derrotados por Roma, alem de demasiado limitado, ignorante
demais, para apreender a realidade de Roma (0 Estado e 0 direito).
Preocupado unicamente em declamar os louvores de Roma como
verdadeira representante do helenismo, ele e incapaz de compreender
o real significado, para homens, tais como Cacio ou Varrao, do estudo
relativo a suas origens. Na verdade - conclui Eduard Schwartz -, ele nao
passa de "urn grego pedante de segunda categoria" (SCHWARTZ, 1905).
Enfim, uma ultima cntica tern seu ponto de partida em Dionisio
como cntico literario, para se voltar contra 0 Dionisio historiador.
130
VER A PARTIR DE ROIM: DIONisIO DE HALICARNASSO E AS ORIGENS GREGAS DE ROIM
Sua obra ret6rica, cuja importancia e reconhecida, acaba por desvalorizar ainda mais a obra hist6rica: esse e 0 veredito de M. Egger
no comeyo do seculo xx. No momento em que a hist6ria clama
seu horror pela literatura, proclamando-se como ciencia positiva e
organizando-se de forma consistente como disciplina no bastiao da
nova Sorbonne; no momento, portanto, em que Tucidides tende
a ser reconhecido como pai dessa hist6ria, Dionisio, 0 incorrigivel
ret6rico, sera energicamente denunciado e admoestado em nome
da necessaria separayao (de que ele nem sequer suspeitou) entre a
hist6ria e essa ret6rica em que Michelet - de acordo com a evoca~ao
de Egger - tinha reconhecido 0 prenuncio da "imbecilidade bizantina". A melhor prova dessa presunc;:osa ignorancia e fomecida pelas
criticas que Dionisio tinhajulgado pertinente dirigir contra Tucidides
pessoalmente: nao e que ele se tinha atrevido a corrigir e, ate mesmo,
a reescrever um bom numero de trechos de sua obra? "Perdoemo-lo
- conclui Egger, irenico, mas lucido - por se ter equivocado a respeito do genio de Tucidides"! (EGGER, 1902, p. 232). Uma vez mais,
ele nao passa de um professorzinho grego, um graeculus comparado
com seus grandes ancestrais, um ret6rico que banca 0 historiador,
mas bem incapaz de ver alem de sua ret6rica. A obra, Antiquites, e
um modelo - mas totalmente negativo -, "um modelo acabado do
que pode produzir a intrusao da ret6rica na hist6ria" (Ibid., p. 294).
o que restava entao a Dionisio? Inferior a Tito Livio, ele nao
dispoe, na qualidade de historiador, de capacidade para exercer sua
tarefa e, como homem, e inferior a ele mesmo. 0 que restava afinal
de Dionisio? No entanto, a curva de seu destino ia, de novo, to mar
outro rumo, passando por uma reviravolta e revaloriza~ao: como
e testemunhado pe10s trabalhos, em primeiro lugar, empreendidos
nos EUA par Glen Bowersock e, na Italia, por Emilio Gabba. 31
51
BOWERSOCK, 1965; GAllBA, 19R2, com as referencias, na bibliografia, dos numerosos artigos
que este pesquisador tern esc rita sobre Dionisio. Quando a obra, Antiquites, e tratada nao como
hist6ria, mas, de prefeflencia, C0l110 historiografia das origens, h, duas razoes, de acordo com
Gabba, para que 0 estudo de Dionisio se tome interessante: ele fomece urn testemunho sobre
a mentalidade de urn grego da epoca de Augusto; alem disso, por ser flel a suas fontes, ele nos
permite apreender algo da analistica romana dos seculos II e la.C., de seus metodos e desafios.
Assim, Gaba julga que a "Constitui,ao de R6mulo" do livro II e 0 eco de um panfleto politico
da epoca de Sila. Ver tambem SCHULTZE, 1986.
131
EVID~NCIA DA HIST6RIA -
0
QUE OS HISTORIADORES VEEM
Mas Dionisio nao se tornou, de repente, nem voltou a ser uma
autoridade sobre as origens de Roma: ele e, simplesmente, uma
testemunha que comer;ou a ser alvo de outras questoes. as pontos
de vista se deslocaram, e os questionarios tern sido modificados. Esse
e 0 Dionisio, evocado ha alguns instantes por mim, que desperta
o interesse atualmente. Na obra, Antiquites, le-se nao tanto uma
hist6ria das origens, mas uma hist6ria sabre as origens; trata-se de
uma hist6ria de segundo grau que ja se encontra na esfera da historiografia, suscitada e produzida por diferentes conjunturas, com
multiplos estratos. Alias, nesse texto, e dificil discernir os vestigios
dos diversos desafios aos quais os historiadores, tanto gregos quanto
romanos, se empenharam, por sua vez, a fornecer respostas.
A servir;o de Roma e compartilhando os valores da aristocracia
romana (0 que explica uma adesao irrepreensivel aordem romana e,
ao mesmo tempo, a presenr;a do tema da decadencia de uma Roma
que, precisamente, havia "esquecido" os valores de suas origens),
Dionisio, com outros autores e ja depois de outros, entende reelaborar urn passado, revisitar uma cultura, em suma, inventar uma
tradir;ao. au pelo menos arriscar-se a esse empreendimento com
os recursos e tambem com os limites de urn ret6rico do seculo I,
cujo discurso pretende nao dizer 0 verdadeiro, mas produzir 0 que
e "passivel de se crer". A operar;ao "arqueo16gica" consiste em eliminar 0 "mitico" e em aumentar a parte do verossimil, em avanr;ar
do menos mitico para 0 mais verossimil, a fim de tender em direr;ao
a narrativa "mais semelhante a verdade" que seja possivel es.crever.
Ramo, cidade modelo
Roma e uma cidade grega; desde sempre, os romanos conheceram uma "vida grega". Procedentes, inicialmente, dessa Grecia,
da Grecia que e a Arcadia, nao ha gregos - conclui Dionisio - mais
"genuinos" e "antigos", alem dos romanos (DIONISIO, 1,89,3). Mas
teria sido realmente necessario romper 0 binomio grego/barbaro,
aspecto que the valeu 0 elogio de Bellanger, pela introdur;ao de urn
terceiro termo? Seria possivel dar-lhe credito quando ele anuncia,
por exemplo, que vai provar ao leitor que Roma forneceu, desde
os prim6rdios, mais provas de excelencia (arete) do que qualquer
132
VER A PARTIR DE ROMA: DIONisIO DE HALICARNASSO E AS ORIGENS GREGAS DE ROMA
outra cidade "grega ou barbara"? (Ibid., 1, 5, 3). No entanto, essa
expressao, ha tanto tempo em uso, e simplesmente uma maneira
convencional de dizer "todo 0 mundo": sera que as palavras que a
comp6em podem ser ainda entendidas por quem as pronuncia ou as
recebe? Sera que elas sao capazes de designar 0 surgimento de uma
entidade que - se nao esta, com cetteza, do lado dos barbaros - nem
por isso se confunde com 0 outro termo do binomio?
Em outros momentos, sobretudo quando os imigrantes sucessivos tiveram de lutar contra "barbaros",52 ele parece simplesmente
reintroduzir seu uso, contentando-se em incluir ipso facto os futuros
romanos no conjunto grego. No entanto, a proposito dos rituais
sacrificatorios (pelos quais Dionisio se interessa de petto enquanto
testemunhas de uma identidade cultural), escapa-Ihe a formula "nos,
os gregos" (utilizamos a cevada), ao passo que "os romanos" (recorrem
aespelta). Esse "nos" em oposic,:ao a "eles" e fugaz, como um lapso.
Na logica dessa perspectiva, a historia de Roma e percebida
como a de uma "barbarizac,:ao" sob 0 efeito de uma "mistura" que
vem alterar uma genuina grecidade de origem; trata-se de outra
versao do tema da decadencia. Seria possivel ate "admirar-se pelo
fato de que ela nao tivesse sido barbarizada inteiramente por ter
acolhido os oscos, marsos, samnitas, tirrenios, brucianos e milhares
de umbrios, ligures, iberos e celtas, etc.". 0 exemplo de outras
cidades coloniais, instaladas em um ambiente barbaro, mostra
efetivamente que Roma, apesar de ter "desaprendido" alguns de
seus primeiros costumes, acabou oferecendo uma surpreendente
resistencia. "Um grande numero de outras cidades, com efeito,
tinham desaprendido em pouco tempo toda a sua grecidade ao
ponto de ter deixado de falar grego, de praticar os costumes gregos,
de reconhecer os mesmos de uses e as leis ponderadas dos gregos
(tudo 0 que, em primeiro lugar, marca a diferenp entre a natureza
[Phusis] grega e a natureza barbara), sem ter utilizado qualquer
outro sinal distintivo" (Ibid., 1,89,4). Os aqueus do Ponto, pelo
contrario, "esqueceram" completamente sua grecidade de origem
52
Par exemplo, as aborigines contra as barbaros (slculos; ibid., 1, 16, 1), au as aborigines associados
aos pelasgos sempre contra os mesmos slculos (ibid., I, 20, 1).
133
EVIDENCIA DA HIST6RIA -
0
QUE OS HISTORIADORES VEEM
para se tornarem "os mais selvagens dos barbaros". Por meio dessas
observa<;:oes sobre a acultura<;:ao, Dionisio nos ensina de repente
que ha, em seu entender, nao somente uma cultura (to Hellenikon),
mas tambem uma phusis grega, distinta da natureza dos barbaros.
Como se faz a articulayao entre uma e outra? Nao se sabe bern.
Os romanos, de qualquer modo, compartilhavam de ambas. Urn
testemunho, em particular, dessas misturas e a lingua latina, que
nao e completamente grega, nem verdadeiramente barbara, mas
urn condensado das duas, na qual predomina 0 dialeto e6lico
(DIONisIO, 1, 90, 1).53 Em consequencia disso, os romanos nao
conseguem "pronunciar corretamente todos os sons articulados"!
Mas e impossivel que Dionisio fa<;:a come<;:ar a mistura somente
a partir do dia em que a cidade se abre aos barbaros, seja eles oscos,
seja eles outros. Ora, toda a tradi<;:ao clama que, de saida, Roma
havia sido colocada sob 0 signa da mistura; seria possivel retorquir
que tal mistura se verificou, apenas, entre gregos. Ele, realmente, nao
chega a correr tal risco e deixa planar certa ambiguidade: ha a mistura
dos aborigines com os pelasgos, dos latinos com os recem-chegados
troianos (1, 60, 1; 89, 2); em rela<;:ao aos albanos, ele nos diz que
provem de uma mistura de gregos de diversas origens, mas tambem
de urn elemento barbaro local (2, 2, 2). Quanto ao bando de colonos que, certa manha, deixou Alba para fundar Roma, sublinha-se
simplesmente que Romulo e Remo acabaram por mistura-lo com
"os que estavam la", ou seja, com uma popular;ao local, mas nao se
sabe muito bern como justificar sua presen<;:a (1, 85, 4). No uso que
Dionisio faz da metafora da mistura, ela e expressiva e, ao mesmo
tempo, inconsistente, marcada de maneira positiva (crescimento)
ou negativa (barbariza<;:ao), de acordo com as circunstancias. Alias,
essa e uma indica<;:ao de que, para pensar a funda<;:ao, ele oscila
entre dois modelos gregos elencados: 0 da apoikia e 0 do sinecismo
(CASEVITZ, 1985, p. 128-130,202-205).
i1
Catao, OriRfllS, 1, 19 (Servius, Ad Vergilii Aeneidem, 5, 755): "De fato, nao esta provado que, nessa
epoca, Romulo ou os seus nao falassem grego, quero dizer, eolico. Eis 0 que e aflrmado por Catao, em sua arqueologia roman a, e pelo sapientissimo Varrao no preambulo de seus escritos sobre
Pompeu: Evandro e os outros arcadianos tinham vindo, outrora, para a ltalia e haviam espalhado
a lingua eolica entre os barbaros". Ver GABBA, 1963.
134
VER A PARTIR DE ROMA: DIONisIO DE HALICARNASSO E AS ORIGENS GREGAS DE ROMA
o primeiro modelo e0 da fundac;:ao de uma colonia, com remessa
e instalac;:ao de colonos: Roma e, entio, propriamente uma colonia
(apoikia). A marcha por etapas em direc;:ao aRoma pode ate mesmo
ser concebida como uma lenta apoikia, inaugurada com a primeira
rnigrac;:ao arcadiana para se encerrar unicamente com a Ultima partida
de Alba, descrita por Dionisio com uma profusao de detalhes. 0 avo
confiou aos doisjovens nao apenas urn bando de colonos (composto
de divers as categorias), mas fomeceu-lhes igualmente "dinheiro, annas,
trigo, escravos, animais de carga e tudo 0 que era indispensavel para a
construc;:ao de uma cidade". Nao falta absolutamente nada a essa futura
colonia! Dionisio usa e abusa desse modelo que esci perfeitamente de
acordo com a logica da propria tese: na medida em que for comprovado que Roma e, de fato, 0 resultado de uma apoikia, maior sera a
possibilidade de que ela seja plenamente grega.
Mas, nessa altura da historia, ele deve ainda livrar-se de Remo;
alias, de acordo com a regra, uma colonia nao pode ter dois arcagetas.
Sua maneira de pro ceder e interessante por recorrer tambem a noc;:6es ou referencias gregas que perrnitem respeitar a tradic;:ao (a morte
inevitavel de Remo) e, ao mesmo tempo, engendrar uma narrativa
que, de maneira verossimil, vai culminar nesse ato de violencia. Ao
sair de Alba, 0 bando de colonos, apesar de ser heterogeneo, esta
unido; de ainda pennanece assim depois de ter ocorrido a "rnistura"
com os restos da populac;:ao local, residente no Palatino e em tomo da
colina de Satumo. Mas a separac;:ao acontece logo, quando Romulo
e Remo decidem dividi-lo em dois grupos par~ suscitar, pensavam
des, a emulac;:ao (philotimia) e apressar, desse modo, 0 fim dos trabalhos de instalac;:ao. Infelizmente, a philotimia (positiva) se transfonna
em rivalidade (stasis totalmente negativa). Assim, antes mesmo que
tivesse sido verdadeiramente fundada, a cidade teria mergulhado,
com a introduc;:ao da philotimia-stasis, no universo bern conhecido
das lutas pdo poder no interior da cidade. Ainda nao e Roma e ela
ja se assemelha a cidade que, por exemplo, Plutarco vai descrever na
obra Preceitos pol£ticos. 0 mesmo vocabulario politico Ua) e utilizado
para descrever as disputas, as ambic;:6es e os artiflcios para ter acesso
ao poder que levam ao conti-onto dos personagens mais importantes
e suas facc;:6es (DIONisIO, 1, 85, 6). Ate a guerra civil e ao assassinato.
Tudo comec;:a, em suma, com a ambivalencia do tenno philotimia,
135
EVIDENCIA DA HIST6RIA -
0
QUE OS HISTORIADCIRES VEEM
do qual se pode "tirar" uma narrativa que confere inteligibilidade e
verossimilhanc;:a a acontecimentos que, sem esse estratagema, estariam
absolutamente desprovidos desses ingredientes; em resumo, nao e
surpreendente que as coisas tenham acontecido desse modo!
A esse registro de explicac;:ao de cunho completamente politico, sobrepoe-se outro, pre-politico, se preferirmos, para 0 qual 0
universo de referencia ja nao seria a cidade helenistica e suas lutas,
mas, de preferencia, as trabalhos e os dias de Hesiodo. Com a sua
celebre abertura sobre a boa e a rna Querela (Eris) dirigida ao irmao
Perses, contra quem ele est:! precisamente em litigio: a primeira, que
compele a rivalizar com outrem, e "boa para os mortais", ao passo
que a outra "favorece a guerra e as discordias funestas" (HESioDO,
Travaux, 11-16). Do mesmo modo, Eris vern se instalar abertamente
entre os dois irmaos, Romulo e Remo; mas, desde 0 instante da
divisao dos colonos em dois grupos, ela se toma a "rna querela"
(DIONisIO, 1, 87, 1-2). Efetua-se, facilmente, 0 cruzamento entre
os dois registros: passa-se de philotimia para eris ou de stasis para
eris. Ao escolher justamente a palavra eris, Dionisio confere outra
dimensao a seu texto, quase outra intriga da qual ele pode puxar 0
fio da propria narrativa. 0 desejo de assumir 0 poder (philarchia), na
Iuta pelo qual os dois irmaos estao envolvidos, e designado como
akoinonetos: 0 termo e interessante porque se aplica aos dois registros
evocados. Em primeiro lugar, 0 desejo deles em relac;:ao ao poder
nao tolera nenhuma partilha: cada urn quer tudo so para si. Estamos
no dominio da eris "pre-politica". Mas essa vontade traduz tambem
uma negac;:ao completa de qualquer forma de comunidade (koinonia):
ela impede ou destroi qualquer vinculo social. 54 Assim, 0 binomio
eris-stasis so pode culminar em uma camificina que, por sua vez,
leva a misturar os do is registros, ja que "irmaos" e "concidadaos"
se matam mutuamente. 55 Vitorioso, mas triste, Romulo - dai em
diante, fundador unico - pode instituir RomaY'
54
ii
50
Em compensa~ao, tendo sido superada essa erise em que, par urn triz, nao fraeassou a funda,io
de Roma, a cidade sera qualifieada por Dionisio como polis koinotate (1, 89, 1).
DIONISIO,
1,87,3: apo te ton adelphou kaipolitikes alleloktonias.
Para Dionisio, de fato, a narrativa mais eonvineente (pithanotatos) apresenta a morte de Remo antes
de ser inieiada a opera~ao da funda~ao propriamente dita. Ele e 0 unieo a exprimir tal opiniao.
136
VER A PARTIR DE ROMA: DIONisIO DE HALICARNASSO E AS ORIGENS GREGAS DE ROMA
Mas, do mesmo modo que Dionisio nao podia descartar completamente a mistura das origens de Roma, ele tambem nao pode
manter ate 0 fim 0 modelo unico da funda~ao colonial; tanto mais
que ele esta bern isolado e, nesse aspecto tambem, em contradi~ao
demasiado evidente com a tradi~ao. Com efeito, tal modelo nem e
mencionado, seja por Cicero, Tito Livio ou por Virgilio, tampouco
por Plutarco; se dermos credito a este ultimo autor, Roma seria
ate 0 contrario de uma funda~ao por envio de colonos, visto que
sao os cidadaos de Alba que, recusando-se a receber entre eles esse
bando de marginais, recrutados pelos do is irmaos, nao lhes deixam
outra escolha alem de se instalarem em outro lugar e por sua conta
(PWTARCO, Vie de Romulus, 9, 2).
o segundo modelo disponivel e, portanto, 0 do sinecismo, A
cidade nova nao procede da chegada de colonos oriundos de uma
metropole, mas da reuniao de popula~oes ja presentes nos proprios
lugares. Dionisio se serve alusivamente dessa versao, deixando
entender que Roma resulta de urn sinecismo, ou que existe algo
de sinecismo nessa historia, mas nunca se questiona sobre a compatibilidade ou a articula~ao dos dois modelos. Trata-se de uma
apoikia ou de urn sinecismo? Ou uma combina~ao desses dois
modelos? Evocar 0 sinecismo oferece uma vantagem suplementar,
na medida em que 0 mestre no assunto, a referencia grega por
excelencia, e Teseu.
Certamente, Dionisio nao chega a coloca,r em paralelo 0 surgimento de Atenas como cidade e a funda~ao de Roma, mas seu
Romulo deveria ter, para urn grego, algo de Teseu (sabe-se que,
em breve, Plutarco vai proceder equipara~ao entre os dois). 0
discurso extremamente longo que, em sua narrativa, e pronunciado
por Romulo, com seus surpreendentes questionamentos a respeito
do regime que convem estabelecer e, praticamente, com sua oferta
de renunciar ao poder, encontra urn precedente, por exemplo, no
comportamento do Teseu de Isocrates. Ao colocar disposi~ao
urn modelo de conduta (plausivel e conhecido), a figura de Teseu vern ajudar Dionisio a transpor em narrativa a funda~ao, assim
como a construir sua intriga (depois da supressao de Remo e tendo
sido satisfeitas as exigencias da tradi~ao); ela toma quase verossimil a
a
a
137
EVIDENCIA DA HIST6RIA -
0
QUE OS HISTORIADORES VEEM
indaga\=ao sobre a politeia. A semelhan\=a de T eseu, Romulo propoe
ao povo reunido a questao do regime a instaurar (ISOCRATES, Eloge
d'Helene, 36; Panathenai"que, 129).57 Mas e escusado dizer que - depois de Polibio, que a havia transformado no ponto nodal de sua
reflexao sobre 0 poderio romano - deixou de ser possivel pretender
falar de Roma sem enfatizar sua Constitui\=ao (politeia; ver supra, p.
112-115). Em troca desse pre\=o e que se obtem a credibilidade. A
"Constitui\=ao de Romulo" e a maneira como Dionisio satisfaz essa
exigencia e responde a essa expectativa. Sem evitar certa contradi\=ao:
com efeito, ele come\=a por estabelecer, na esteira de Polibio ou de
Cicero, que a Constitui\=ao romana nao tinha surgido completamente elaborada da cabe\=a de um legislador, por mais divino que
fosse, mas era, de preferencia, uma cria\=ao continuada e 0 produto
de numerosas experiencias; em seguida, ele nao hesita em apresentar
profusamente essa Constitui\=ao de Romulo, que aparece como um
segundo momento relevante da fundac,:ao, ate mesmo, quase uma
nova fundac,:ao (DIONisIO, 1, 9, 4).
Dessa Constituic,:ao incomum, deduz-se que Roma e realmente
uma cidade (polis). Ao mobilizar as categorias da filosofia politica
grega, Polibio, como vimos, ja havia amplamente comprovado tal
postura. Ao livro VI de Polibio, corresponde 0 livro II de Dionisio,
com esta diferenc,:a: enquanto 0 primeiro desenvolvia uma reflexao
do tipo estrutural sobre os regimes, 0 outro transpoe em narrativa
(Romulo procedeu ... , empreendeu ... , criou ... , resolveu ... , etc.) e
historiciza (tal institui\=ao, tal mecanismo e decalcado na Grecia ... ).
Alem disso, com as mudan\=as advindas no decorrer do tempo, a
enfase atribuida ao carater misto ou 0 equilibrio ja nao estao na ordem
do dia. Tendo deixado de ocupar a posi\=ao central na engrenagem do
poder, 0 Senado vai identificar-se, de preferencia, com 0 Conselho
dos Anciaos, que garante assistencia ao rei homerico; com efeito,
todos os reis "dispunham de um conselho constituido pela elite dos
cidadaos, como e testemunhado por Homero e pelos poetas mais
antigos. E, contrariamente ao que se passa na atualidade, 0 poder
regio arcaico nao era arbitrario, nem absoluto" (Ibid., 2, 12, 4). Eis
o que se pode dizer a respeito das nostalgias senatoriais.
i7
Sabre Teseu. ver CALAME. 1996.
138
VER A PARTIR DE ROMA: DIONisIO DE HALICARNASSO E AS ORIGENS GREGAS DE ROMA
Cidade desde sempre, Roma e, ademais, segundo Dionisio,
uma cidade perfeita, tendo obtido sucesso superior ao que havia sido
conseguido pelas mais reputadas das cidades gregas classicas: Esparta,
Atenas ou Tebas. Nao se contentando em tomar emprestado essa
ou aquela instituivao, os romanos souberam aperfeivoar, desde 0
tempo de Romulo, 0 modelo. Assim, conseguiram transformar a
patronagem, antiga pritica grega (mas, nessa epoca, mais semelhante
de fato aescravidao), em uma instituivao de referencia: entre 0 patdo
(patricio) eo cliente (plebeu), foi instaurada, de fato, uma gama de
obrigavoes reciprocas que, no decorrer do tempo, acabaram funcionando como verdadeiras relavoes de parentesco (Ibid., 2, 9-10).
Criador da concordia (homonoia), a patronagem transformou Roma
em uma cidade capaz de controlar suas lutas internas, sua stasis, essa
guerra pelo poder que as cidades gregas nunc a haviam reduzido de
forma duradoura. Apesar de ter sido fundada sob 0 signa da stasis
fratricida, a pior de todas, Roma conseguiu, em seguida, substituir
durante cento e trinta anos - ate Caio Graco -, sublinha Dionisio,
o assassinato pela persuasao (Ibid., 2, 11, 2). Esse e 0 termo de um
sucesso considerivel e constitui uma superioridade incontestavel de
Roma; com frequencia, a historiografia moderna, em particular, a
alema, vai retomar essa apreciavao.
Cidade que, durante muito tempo, permaneceu sem stasis, ela e
tambem uma cidade "aberta". De modo diferente das antigas cidades
gregas, ansiosas por preservar a "nobreza do seu sangue" e confinadas
em si mesmas ao ponto de atribuir apenas excepcionalmente seu
direito de cidadania, Roma mostrou-se sempre "generosa" nesse
aspecto. Eis como se introduz 0 tema, destinado a usufruir de um
futuro promissor nas comparavoes entre os gregos e os roman os,
da "generosidade" romana ante a "avareza" grega (DIONisIO, 2,
16-17). S8 Essa e, para Dionisio, outra superioridade manifesta de
Roma, que transformou essa atitude em uma politica e, para resumir,
uma poderosa mola propulsora de seu imperio. Mostrar que tal projeto
e
" A abertura da cidade - portanto, a mistura - apresentada, nesse contexto, como uma superioridade
indubitavel de Roma; ver GAUTHIER, 1974 e 1981. Assim, avalia Dionisio, 0 numero de cidadaos,
e nao a sinlpatia da Fortuna, e que pennitiu aRoma superar as l1lais graves crises: por exen1plo,
depois do desastre de Canas. Dionisio e, em contrapartida, muito mais reservado sobre a alforria dos
escravos (2, 16-17), que, na atualidade, leva a abusos injustificiveis.
139
EV1D~NCIA DA HIST6RIA -
0
QUE OS HISTORIADORES VEEM
nao tinha sentido nenhum para a cidade grega seria fkil, visto que
ela se define, de acordo com as palavras de Arist6teles, como uma
comunidade "perfeita e autossuficiente"; de saida, desde sua fundayao, ela se pensa como perfeita. Neste ponto, importa somente
o que Dionisio - e, em seguida, urn grande numero de historiadores - acre('itaram e propagaram em sua esteira. Roma encontrou
urn caminho que acabou sendo desdenhado pelas cidades gregas.
De novo, Roma se revela uma cidade mais perfeita: uma polis semelhante aquelas que existiam na Grecia, mas em sua perfeiyao.
Ela e, afirma Dionisio, a cidade "mais acolhedora e mais humana
de todas", aquela que conseguiu formar a comunidade com maior
autenticidade e profundidade (koinotate; Ibid., 1, 89, 1).
Com a obra Antiquites romaines, efetua-se, assim, urn interessante deslocamento. Roma, enquanto cidade, deixa de ser julgada
a partir da Grecia; em compensayao, as cidades gregas e que sao
avaliadas a partir de Roma, percebida dai em diante como a cidade
em sua plena realizayao. A cidade grega nao deixa de existir com
a batalha de Queroneia: Roma era 0 seu futuro! Se Dionisio, ao
demonstrar que os romanos sao gregos, e levado a helenizar Roma,
ele procede reciprocamente - ao "restituir" a Constituiyao de
Romulo - a uma "romaniza<;ao" da cidade grega. Compelindo ao
extrema a interven<;ao brutal polibiana, ele chega a defender, de
fato, que Roma e uma cidade cujo exito comprova a excelencia
da Constituiyao, uma cidade perfeita, sem deixar de manter ainda
o mesmo modelo da polis.
Tal e a tese e seus principais desafios. 0 assunto e atual. Em
urn momenta em que 0 Estado Romano, como escreve Tito Livio,
"cresceu ao ponto de estar vergado sob sua pr6pria grandeza", a
questao da identidade parece ser motivo de preocupayao para os
senhores do mundo. No esquadrinhamento das origens, diante
daqueles que, de acordo com Virgilio, proclamam que os romanos
nao sao gregos, nem etruscos, mas troianos, eis a replica de Dionisio:
evidentemente, voces nao sao etruscos porque sao gregos, filhos de
gregos; e, mesmo que fossem troianos, voces continuam sendo, ou
ja haviam sido, gregos.
140
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