Deus é maior que meus medos

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DEUS É MAIOR QUE O MEDO
Todo mundo sabe exatamente o que é sentir medo. Minha filha mais velha tem medo do escuro,
o mais novo tem medo de não nos ver por perto. Minha esposa simplesmente tem pavor de cães. Eu
tinha muito medo de pesadelo quando era criança. Na adolescência sofri com a ideia de não ter um
emprego. Durante a faculdade meu maior medo era em relação à residência médica. Hoje, tenho
medo que meus filhos se machuquem, de não ter como sustentá-los. Morro de medo de ter uma
doença degenerativa como demência ou Alzheimer e me tornar um estorvo para minha família.
Gosto de pensar que há pelo menos dois tipos de medo: (1) o primeiro pode ser chamado de
medo bom. É o que nos impede de dirigir a 150Km/h, consumir toneladas de gordura e outras coisas
idiotas e o (2) segundo é o medo ameaçador. Este é o medo que nos paralisa e nos priva de fazer
coisas que precisamos fazer.
- O medo do desconhecido; — onde irei trabalhar quando terminar a faculdade? o que farei se
perder o emprego? e se eu não conseguir parar de beber/fumar/jogar/pornografia? e se eu
ficar doente?
- O medo da insegurança; — se alguma doença ou acidente tirar minha capacidade
laborativa?
- O medo da rejeição/solidão; — se meu casamento desmoronar? e se eu me tornar um velho
ranzinza? se minha morte não for uma perda pra ninguém?
O medo faz parte da natureza humana
Poucas coisas podem tornar o homem tão consciente de sua humanidade que o medo. O poeta e
tradutor Haroldo de Campos diz que “o rosto triste faz o coração dilatado”. Em outras palavras, o
sofrimento gera solidariedade. Aquele que toma consciência da sua finitude, limitação e debilidade
consegue ser mais compreensivo, tolerante e inclusivo, isto é, tem o coração dilatado.
O Pregador diz: “Melhor é ir à casa onde há luto do
que ir a casa onde há banquete; porque naquela se vê o
fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu
coração.” (Eclesiastes 7:2) Desta forma ele traça um
paralelo da vida humana através de duas figuras: a casa
onde há luto (v.2) e a casa da alegria (v.4 “O coração
dos sábios está na casa do luto, mas o coração dos tolos
na casa da alegria”). Na primeira casa os vivos aplicam
seu coração... e como resultado tornam melhor o
coração. Na segunda casa o barulho gerado pela
alegria desenfreada (o crepitar de espinhos v.6 “Pois
qual o crepitar dos espinhos debaixo da panela, tal é o
riso do tolo; também isso é vaidade.”) anestesia nossa necessidade de reflexão e encoraja a
procrastinação.
O Salmo 30 nos mostra um caso bem instrutivo sobre o medo:
Salmo 30 (NVI) ///// Cântico para a dedicação do templo1 . Davídico.
1
Eu te exaltarei, SENHOR,
pois tu me reergueste
e não deixaste que os meus inimigos
se divertissem à minha custa.
2 SENHOR meu Deus, a ti clamei por socorro,
e tu me curaste.
3 SENHOR, tiraste-me da sepultura2 ;
prestes a descer à cova, devolveste-me à vida.
4
Cantem louvores ao SENHOR,
vocês, os seus fiéis;
louvem o seu santo nome.
5 Pois a sua ira só dura um instante,
mas o seu favor dura a vida toda;
o choro pode persistir uma noite,
mas de manhã irrompe a alegria.
6
Quando me senti seguro, disse:
“Jamais serei abalado!”
7 SENHOR, com o teu favor,
deste-me firmeza e estabilidade;3
mas, quando escondeste a tua face,
fiquei aterrorizado.
8
A ti, SENHOR, clamei,
ao Senhor pedi misericórdia:
1
2
3
T ítulo: Ou do palácio. Hebraico: casa.
Hebraico: Sheol. Essa palavra também pode ser traduzida por profundezas, pó ou morte.
Hebraico: firmaste a minha montanha.
“Se eu morrer4 , se eu descer à cova,
que vantagem haverá?
Acaso o pó te louvará?
Proclamará a tua fidelidade?
10 Ouve, SENHOR, e tem misericórdia de mim;
SENHOR, sê tu o meu auxílio”.
9
11
Mudaste o meu pranto em dança,
a minha veste de lamento em veste de alegria,
12 para que o meu coração
cante louvores a ti e não se cale.
SENHOR, meu Deus,
eu te darei graças para sempre.
O Salmo 30 na vida de um personagem bíblico
Para não tornar o estudo do Salmo 30 muito enfadonho,
decidi aplicá-lo à vida de um personagem bíblico: o rei
Ezequias. Ezequias, do hebraico ‫ּחִ זְקִ יָּהו‬, significa, em
português “YHVH Fortalece”.
O rei Ezequias foi o 13º Rei de Judá, e reinou por 29 anos
(726-697 a.C). Era Filho de Acaz e de Abi, filha de Zacarias (2
Reis 18:2) ou Abia (2 Cr 29:1). Ezequias Reinou
conjuntamente com seu pai de 729 a 715 a.C e, com a idade de
25 anos, tornou-se rei absoluto.
É considerado um dos maiores reis de Judá por causa da
sua confiança em Deus e sua dependência d'Ele. Ezequias, que seguiu o exemplo do seu brilhante
antepassado, o Rei Davi, teria começado a reinar com 25 anos de idade e governou por 29 anos, a
partir de 715 a.C.
No início do seu reinado, Ezequias reparou e purificou o
templo. Reintegrou os sacerdotes e levitas ao seu ministério, e
restaurou a celebração da Páscoa (2 Crônicas 29:3 e 30:5).
Além disso, combateu a idolatria em Judá proibindo o culto
aos deuses pagãos, determinando também que fosse destruída
a serpente de bronze construída na época de Moisés, pois o
povo estava adorando-a. E, devido à sua obediência, a Bíblia
relata que Deus trouxe paz ao seu reino enquanto cuidou do
templo providenciou a adoração adequada.
De acordo com a Bíblia, Ezequias, ao ser confrontado pelo
rei da Assíria, Senaqueribe, orou a Deus e foi salvo do cerco
de Jerusalém (por volta do ano 701 a.C. — 2Crônicas 32:123), em que um anjo teria exterminado cento e oitenta e cinco
mil soldados assírios
durante a noite.
Após a expulsão dos
assírios,
Ezequias
experimenta um novo
milagre também relatado
na
Bíblia.
Tendo
adoecido gravemente (à beira da morte, cf. Isaías 38:1-5),
recebeu do profeta Isaías a notícia que iria morrer (2Crônicas
32:24-26). Ao saber disso, Ezequias reconheceu seu orgulho,
4
Hebraico: No meu sangue.
se arrependeu e orou ao Senhor. O profeta retorna então com outra mensagem de Deus informando
que Deus decidira acrescentar mais 15 anos à sua vida.
O autor do Salmo 30 é uma pessoa perto da morte que no seu leito de morte faz uma promessa a
Deus: que se ele se recuperasse de sua doença dedicaria sua vida para cantar louvores a Deus e a
ensinar os outros o que sua experiência de cura o ensinou.
1 Eu te exaltarei, SENHOR,
pois tu me reergueste
e não deixaste que os meus inimigos
se divertissem à minha custa.
2 SENHOR meu Deus, a ti clamei por socorro,
e tu me curaste.
3 SENHOR, tiraste-me da sepultura5 ;
prestes a descer à cova, devolveste-me à vida.
A palavra hebraica para sepultura é a mesma usada
em outros lugares para inferno (sheol). Isto demonstra a
gravidade da situação vivida pelo salmista. Ele não nos
conta exatamente o que aconteceu — uma doença, uma
perda, a perda de um emprego ou a reputação manchada. Fato é que algo destruiu a ilusão de que
nada de ruim iria acontecer a ele e este acontecimento transformou sua vida num inferno — o tipo
de situação quando o mundo todo parece caótico e quando a presença de Deus parece não ajudar em
nada.
4 Cantem louvores ao SENHOR,
vocês, os seus fiéis;
louvem o seu santo nome.
5 Pois a sua ira só dura um instante,
mas o seu favor dura a vida toda;
o choro pode persistir uma noite,
mas de manhã irrompe a alegria.
Tendo experimentado a misericórdia divina ele
deseja ardentemente que outras pessoas possam
glorificar a Deus. —“A quem muito foi perdoado, muito
ama”6 Ao saber que Jesus estava comendo na casa do
fariseu, certa mulher daquela cidade, uma mulher que já vivia em inferno — condenada pelos seus
próprios pecados e também pelos que deveriam agir para salvá-la — trouxe um frasco com um
perfume caríssimo, e se colocou atrás de Jesus, a seus pés. Chorando, começou a molhar seus pés
com as suas lágrimas. Depois os enxugou com seus cabelos, beijou-os e os ungiu com o perfume.
Jesus vê aquele choro como um grito de socorro — uma súplica inaudível à religião — e dá àquela
mulher o que ela realmente precisa: perdão. É irônico: Jesus chama a atitude da mulher para com
ele de amor, em contraste com a refeição que estava recebendo na casa do fariseu7 .
Sua ira só dura um instante... O Apóstolo Paulo em 2 Coríntios 4:17 nos diz que “a nossa
leve e momentânea tribulação produz para nós um peso eterno de glória”. A ideia é: se temos um
relacionamento de intimidade com Deus, o medo será sempre um visitante temporário. A percepção
do medo e sofrimento é encoberta pela alegria.
Neste ponto de desespero e desilusão o salmista descobre que é possível prosseguir crendo e
adorando a Deus, apesar do que lhe aconteceu. Ele demonstra que sua fé não é mais uma fé infantil
— baseada no conceito que nada ruim poderia lhe acontecer — mas uma fé mais madura e realista.
Os desastres (ou inferno) pelo que passou o fizeram descobrir algo sobre si mesmo que não seria
possível antes: que é possível continuar amando e crendo em Deus mesmo que Ele não esteja me
abençoando com felicidade o tempo todo — Deus não se torna menos real nem menos "bom" pra
5
6
7
Hebraico: Sheol. Essa palavra também pode ser traduzida por profundezas, pó ou morte.
Lucas 7:43
1Pedro 4:8 Mas, sobretudo, tende ardente amor uns para com os outros; porque o amor cobrirá a multidão de pecados.
ele. Ainda mais: este relacionamento desperta nele um forte desejo de testemunhar isto a outras
pessoas.
6 Quando me senti seguro, disse:
“Jamais serei abalado!”
7 SENHOR, com o teu favor,
deste-me firmeza e estabilidade;8
mas, quando escondeste a tua face,
fiquei aterrorizado.
Quando me senti seguro? O salmista refere-se aqui
a um tempo passado quando tudo em sua vida parecia ir
de vento em popa. Família, amigos, saúde e
empreendimentos fartamente coroados com sucesso. E
não há qualquer engano: ele sabe que tudo que tem veio
de Deus: deste-me firmeza e estabilidade.
Quando escondeste a tua face? Face sugere honra, caráter, aceitação. Teologicamente, ver a
face de Deus é estar sob a sua bênção. Esconder a face, dar as costas, equivalia a desprezo e
indiferença. O salmista se encontra — sem oferecer qualquer explicação — privado das bênçãos de
Deus e isto o deixa aterrorizado. No caso de Ezequias o cronista nos informa que seu pecado está
ligado ao orgulho, mas nosso salmista deixa em branco qualquer explicação do por quê ficou
privado da bênção de Deus.
Após anos servindo a Deus é possível que passemos a acreditar que Deus nos deve alguma
coisa9 . E quando alguma coisa ruim nos amedronta questionamos a Deus por que isto está
acontecendo comigo?
Espero, sinceramente, que sua busca por Deus seja mais que uma negociação. Um
relacionamento maduro com Deus é o que encontra nEle a força para sobreviver e atravessar o
período de tragédia. Nossa fé não garante que nada ruim irá nos acontecer, mas — SIM — que não
teremos que vencer o medo sozinhos, porque tu estás comigo10 .
Há somente dois modos de chegar à esta fé madura: A primeira — e mais difícil — é
enfrentar os medos de frente, buscando em Deus a companhia necessária para não ser consumido
pelo desespero. A segunda — menos difícil, porém mais desprezada — é apoiar-se na experiência
de outras pessoas que sofreram e, ainda assim, continuaram a crer e, movidos pelo seu exemplo
encontrar forças para prosseguir.
8 A ti, SENHOR, clamei,
ao Senhor pedi misericórdia:
9 “Se eu morrer11 , se eu descer à cova,
que vantagem haverá?
Acaso o pó te louvará?
Proclamará a tua fidelidade?
10 Ouve, SENHOR, e tem misericórdia de mim;
SENHOR, sê tu o meu auxílio”.
Acaso o pó te louvará? Agora temos o cerne da
oração genuína: despido de todas as bênçãos de Deus o
salmista volta-se para o próprio Deus e isto faz toda a
diferença.
- Na escuridão do seu medo e desespero ele reconhece a misericórdia de Deus faz mais
diferença na sua vida que Suas bênçãos.
- Na escuridão do seu medo e desespero ele imagina um novo significado12 para a própria
vida: louvor e testemunho;
8
Hebraico: firmaste a minha montanha.
Lucas 15:29-30 - Lembre-se da queixa do filho mais velho do pai pródigo.
10
Salmos 23:4
11
Hebraico: No meu sangue.
12
Se eu morrer, que vantagem haverá?
9
Ezequias também chegou à esta conclusão em seu clamor por sua vida (cf. Isaías 38:18-19).
11 Mudaste o meu pranto em dança,
a minha veste de lamento em veste de alegria,
12 para que o meu coração
cante louvores a ti e não se cale.
SENHOR, meu Deus,
eu te darei graças para sempre.
O salmista conclui de maneira espetacular: Apesar
de ter passado por algo terrível, eu ainda sou capaz subir
ao templo para louvar o nome do Senhor13 , afirmar sua
bondade e amor leal. Minha religião não exige que Deus
mude o funcionamento do mundo a meu pedido; minha
religião adora o Deus que criou o mundo, e conhecer o
Criador me ajuda a entender as coisas que acontecem no mundo que Ele criou.
Minha fé não depende de Deus reverter as circunstâncias a meu favor. Meu clamor é para
conseguir perceber que Ele está aqui, que Ele é real, que Ele faz a diferença porque Ele está
comigo.
Nos tempos antigos, quando um israelita trazia uma
oferta ao templo, a oferta deveria ser perfeita: sem
nenhuma mancha. Qualquer hematoma, qualquer
cicatriz, qualquer ferida desabilitava o animal para servir
de oferta. Mas e quanto ao ofertante? O ofertante podia
— e deveria — comparecer ao templo com suas
cicatrizes, seus medos e temores e seria recebido no
templo. A oferta perfeita garantia o acesso.
O escritor aos Hebreus nos diz que este [JESUS] ,
havendo oferecido um único sacrifício pelos pecados,
assentou-se para sempre à direita de Deus (Hebreus
10:12). Jesus é perfeito. Jesus não tinha manchas
causadas pelo pecado. Através dEle alcançamos a presença de Deus.
Um último alerta: O paradoxo da alegria
Tendo se recuperado de sua doença mortal o que
aconteceu a Ezequias? Sob a promessa de Deus, o rei
ainda viveu por mais quinze anos. Ele havia prometido
louvar e testemunhar da misericórdia de Deus. Em 2
Reis 20.12-19, porém, somos informados que recebeu a
visita de espiões estrangeiros (disfarçados de
embaixadores). Ezequias mostrou tudo o que se
encontrava em seus tesouros: a prata, o ouro, as
especiarias, o óleo fino, todo o seu arsenal e as posições
estratégicas do seu exército. Não houve nada em seu
palácio ou em todo o seu reino que Ezequias não lhes
mostrasse. (Is 39:2). Ele preferiu testemunhar de sua
riqueza, suas conquistas e seu poder: preferiu falar de si mesmo e não de Deus. Ezequias não
encarou como uma missão os 15 anos a mais que Deus havia acrescentado à sua vida. Ezequias
se exaltou (2Cr 32:35). Novamente a palavra do Senhor veio pelo profeta anunciando o cativeiro
dos judeus — profecia que se cumpriu tempos depois, na invasão de Nabucodonosor, no reinado de
Zedequias.
13
Lembre-se que o título hebraico do salmo é: Cântico para a dedicação do templo
NOTAS:
Albert Barnes, Notes on the Bible, 1834
Dietrich Bonhoeffer, Overcoming Fear, a sermon.
Harold S. Kushner, Commanded to Live.
Tim Keller, The prodigal God
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