NEOPOSITIVISMO NA GEOGRAFIA BRASILEIRA: PARAFRASEANDO O PENSAMENTO DE SPERIDIÃO FAISSOL (1923-1995) Dante Flávio da Costa REIS JÚNIOR José Carlos Godoy CAMARGO A ciência alcança sua perfeição quando começa a utilizar a matemática. (Karl Marx) Introdução Está em curso nos círculos acadêmicos brasileiros a avaliação do impacto que algumas produções científicas tiveram/têm na confecção de um, por assim dizer, “Pensamento Geográfico Brasileiro”. Para isso, tem sido priorizada a releitura de documentos textuais, os quais colaborem para que seja divisada a relevância circunstancial de instituições e ou indivíduos. Trata-se, em verdade, de um procedimento sistemático circunspeto; pois que os pesquisadores necessitarão respeitar os limites de uma análise, sobretudo, de discursos – detalhe crucial que deles exige certos cuidados e ponderações. A atenção para com a cena histórica (eventos de caráter social e político), para com a biografia (em se tratando do exame da obra de autores) e, especialmente, para com o conteúdo discursivo mesmo (modos de reflexão contidos em publicações diversas) são os critérios fundamentais na empresa analítica. Em Dissertação de Mestrado, recentemente defendida junto ao Programa de Pósgraduação em Geografia da UNESP, campus de Rio Claro, é explorada parte da produção científica de um eminente geógrafo brasileiro. Speridião Faissol – o autor cuja obra recebeu tratamento – merece atenção especial por ter devotado boa parte dela ao que se costuma denominar, simplificadamente, de “Geografia Quantitativa”. Para sermos mais justos e precisos, precisaríamos perceber esta “nova” Geografia em sentido mais amplificado, mais implicante. A verdade é que nos anos sessenta consubstancia-se, em essência, uma Geografia claramente neopositivista; fato que subentende características adicionais (conforme veremos a seguir). Faissol, então, veio a ser um representante, no contexto doméstico, do movimento renovador da ciência geográfica. E é por ter assimilado, discutido e feito propagar seus pressupostos e efeitos, que ele se converte em autor de atuação merecedora de uma pesquisa mais detida. Não duvidamos que ele foi um dos principais consolidadores de uma Geografia Neopositivista Brasileira e esperamos que isso possa ser deduzido com certa facilidade pelos leitores deste capítulo. 224 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Neopositivismo e reflexos na Geografia Antes de explorarmos a produção científica de Speridião Faissol – e as implicações epistemológicas a ela atreladas – cabe-nos qualificar (ainda que brevemente) a escola quantitativa e “teorética” da Geografia, bem como sua matriz filosófica. O Neopositivismo é uma filosofia que (como a própria expressão sugere) vem oxigenar a genuína doutrina positivista. É claro que ele acaba por trazer caracteres completamente novos, destoando, de certa forma, de seu ancestral. Tratemos, então, de expor seu perfil característico. Podemos dizer, sem grandes riscos, que o Neopositivismo assenta-se sobre um, por assim dizer, “tripé” (REIS JÚNIOR, 2003, p. 22); isto é, compreende, simultaneamente, elementos antigos (herdados/mantidos da filosofia positivista), reformulados (resultantes de aprimoramento/adaptação) e novos (configurando sua peculiaridade). É mais ou menos consensual a idéia de que ele tenha se estruturado nas primeiras décadas do século passado; muito em função das reuniões do chamado Círculo de Viena. Este, composto por eminentes lógicos, matemáticos e filósofos da ciência (Hahn, Neurath, Carnap, Wittgenstein, entre outros), interessou-se em redefinir parâmetros para estabelecer a fronteira entre a ciência e a não-ciência. Aos seus membros parecia imprescindível livrar o conhecimento científico de todo e qualquer vestígio de metafísica; de toda sorte de vagas impressões, em outras palavras. Para isso, o acolhimento da linguagem matemática foi irresistível. Nada mais óbvio do que impregnar o discurso com sentenças logicamente erigidas e passíveis de análise formal (segundo os critérios da sintaxe simbólica, está claro) para torna-lo manipulável ou operacional. Eis, então, que já conseguimos destacar dois elementos daquele tripé: o antigo é o monismo metodológico que se configura a partir do momento em que uma aproximação da Matemática passa a ser amplamente preconizada (fato que termina por expressar, indiretamente, uma aproximação analógica entre as ciências naturais – mais afeitas à matematização – e as humanas), enquanto o reformulado (ou “antigo renovado”) no Neopositivismo é precisamente este monismo auxiliado, agora, pela análise lógica ou pela abstração intrínseca às Matemáticas. Mas, como mencionamos, há ingredientes novos acrescidos à mistura filosófica. Um deles – o qual terá traduções nas várias ciências – é o fato do Neopositivismo aceitar o paradigma apriorista. E o curioso é que o viés apriorista foi claramente rejeitado pelo positivismo clássico, quando este insistia em desdenhar a relevância dos juízos ou sentenças estipuladas, hipoteticamente, como pontos de partida para construções explicativas posteriores. Se o positivismo genuíno vira as costas para o a priori, o Neopositivismo salienta sua potencialidade explanatória. Assim, o procedimento científico neopositivista parte do enunciado protocolar (justamente o dado apriorístico) para que, mensurando suas propriedades e desdobrando-o em enunciados outros, possa vir a atestar a validade de uma explanação terminal confrontando-a com aquilo que se “mediu” primeiramente. A verdade é que essas três qualidades da doutrina dão margem a uma série de pressuposições que se estabelecem como sendo inerentes a ela (se bem que, como podemos deduzir, em alguns aspectos, igualmente circunscritos pelo positivismo genitor). Sciacca (1968, p. 292) nos informa sobre os valores que são caros ao Neopositivismo: Ambientes estudos de Geografia 225 • só descartando a metafísica alcançamos o conhecimento científico; • o empirismo deve ser estendido a todo o domínio do pensamento; • todas as ciências são matematizáveis; • experiência e linguagem completam-se reciprocamente; • só tem sentido o que é fisicamente verificável (pelo princípio do “fisicalismo” a Física entrona-se como ciência modelo); • proposições que não se prestem à verificação e à mensuração são destituídas de sentido; • a ciência não estuda leis objetivas da natureza, mas somente os dados da experiência mediada pelos sentidos ou por instrumentos. E o viés neopositivista vai replicar-se no domínio das disciplinas ainda órfãs de um norte conceitual e metodológico bem sedimentado. Previsivelmente, aquelas que devotavam atenção às questões humanas e sociais perceberam a vantagem que havia em se mirar no próspero exemplo da Física (o principal tesouro do Neopositivismo): resultados práticos nos quesitos estruturação e predição. Uma Geografia Neopositivista irá começar a se delinear nos anos cinqüenta do passado século, estando esta forja muito vinculada à disseminação dos valores cientificistas. O acúmulo de dados dizendo respeito a uma sociedade crescentemente complexa exigia arsenal técnico capaz de dar conta dos processos de coleção e tratamento das informações. Daí que os recursos analíticos disponibilizados pela Matemática viram-se incorporados também pela “nova” Geografia; esta, agora, interessada em transcender as monografias paisagísticas, revertendo o jogo a favor de uma ciência mais funcional, assentada no paradigma hipotéticodedutivo e sobre um objeto mais bem precisado: as organizações espaciais. O sentido de ordem imerso em tais organizações, justificava a explanação por meio das tão desejadas teorias (um primeiro vestígio neopositivista), pela via dos modelos (que são proposições a priori – um segundo vestígio neopositivista, portanto) e com o auxílio explanatório da análise sistêmica (que nada mais significou do que a formalização de um rigorismo lingüístico – arrematando, assim, uma terceira herança neopositivista). No Brasil, a manifestação da Geografia Neopositivista pode ser observada a partir do final da década de sessenta. E são dois os núcleos que mais detidamente procuraram exercitar os préstimos de uma ciência – desde havia uma década – comprometida com a especulação teórica e sua funcionalidade pragmática: a então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, São Paulo (na figura de um grupo de professores de seu Departamento de Geografia) e o IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (mais especificamente pelos trabalhos desenvolvidos por grupo de geógrafos lotados no Rio de Janeiro). Foi nesta última instituição que Speridião Faissol se revelou expoente dentro de uma, por assim dizer, Geografia Neopositivista Brasileira. Estimando a relevância de Speridião Faissol Speridião Faissol, nascido no ano de 1923 (em Ituiutaba, Minas Gerais), ingressa no IBGE logo no final da década de quarenta. Já formado geógrafo – na então Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro – começa a atuar no referido Instituto (por recru- 226 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) tamento) pela via do CNG (Conselho Nacional de Geografia), órgão muito vinculado às questões do planejamento territorial, criado e bastante ativo durante o 2o Governo de Getúlio Vargas (1951-1954). O planejamento – imerso nas discussões prioritárias do urbano e do regional – é justamente o tema que mais vai estar presente na produção científica de Faissol. Contamos algumas dezenas de artigos dedicados à reflexão sobre ele (em seus aspectos metodológicos e técnicos, sobretudo). E esse interesse que se mantém ao longo de sua carreira (dos anos cinqüenta aos noventa), apesar de, em parte, estar respondendo ao que do geógrafo era demandado institucionalmente, vê-se impulsionado pelas reformulações conceituais na Geografia. Basta que reconheçamos: a empresa quantitativa, matematizante, que caracterizou em grande parte a saliência de uma Geografia Neopositivista, tornava possível (ou pelo menos mais facilitado) o registro sistemático de informações diversas em natureza, dimensão e escala. A operacionalidade dos dados, desejada pela esfera da tomada de decisão (governos e seus órgãos de assessoria), aproximou, naturalmente, planejamento e tecnicismo. Faissol percebeu que as circunstâncias pediam a ultrapassagem da fase monográfica da Geografia; entendeu que o contexto requeria a formulação de teorias sobre processos espaciais (o que, digamos aqui, não significava, na sua opinião, o abandono dos estudos de caso). Acatou os ditames vindos de fora e inconformou-se com o determinismo e o possibilismo, que, segundo os críticos, apenas constatavam realidades, entronizando as observações de campo (uma herança positivista que se encontrou reduzida na Nova Geografia; mais afeita às estatísticas e teorizações e, neste sentido, tributária de um Positivismo “renovado”). Entendeu que auxílios poderiam muito bem ser buscados em campos alheios: da Economia poderiam ser absorvidas teorias locacionais e das ciências matemáticas, métodos analíticos confeririam objetividade aos dados. Faissol incorporou muito bem a revolução quantitativa, ao sustentar que a precisão e a especificação, trazidas por ela, eram propriedades necessárias a qualquer ramo científico. Na verdade, conforme salientamos há pouco, Speridião Faissol foi o representante do IBGE que mais destacadamente produziu trabalhos acerca da renovação metodológica. Sem essa sua atuação, no sentido de esclarecer, didaticamente, o histórico, o significado e as potencialidades da Nova Geografia, a propagação do ideário, digamos, pró-quantificação dificilmente prosperaria anos seguidos. Faissol interagiu com um grande número de pesquisadores estrangeiros (Brian Berry e Peter Cole, por exemplo). Geógrafos esses que estiveram muito engajados na disseminação pedagógica de uma Geografia assentada sobre o paradigma da análise espacial. Não há dúvida, portanto, que muito de seu próprio engajamento foi conseqüência do convívio com autores-ícone na cena internacional. Produziu artigos em parceria com alguns deles e por isso, conscientemente ou não, acabou fazendo as vezes de representante-mor, em nosso país, da Geografia Quantitativa. Mas devemos ter claro o fato do geógrafo – tal como se espera, aliás, que aconteça com qualquer autor circunscrito por circunstância social, histórica – apresentar interesses diversificados na linha do tempo. Isto é, a par de ser possível abstrair, de fato, elementos de verificação contínua (e entre estes, os de natureza neopositivista), também há, imerso no Ambientes estudos de Geografia 227 discurso do autor, elementos transitórios. Pelo que se deduz, os últimos articulam-se com as contingências próprias do processo de transição contextual no cenário político brasileiro. Convencionamos chamar a diversificação em Faissol de “nuances”, enquanto às continuidades verificadas nos referimos como “centralidades”. Comentemos algumas. Durante um longo período (do início da década de cinqüenta até meados dos anos sessenta, mais ou menos), Faissol empenhou-se nos estudos regionais, mais especificamente na questão da colonização de áreas do Centro-Oeste brasileiro. A ocupação dessas regiões, é bem verdade, esteve justificada por toda uma ideologia nacionalista associada à segunda gestão de Vargas (1951-1954). Assim, a idéia de interiorização, no sentido de promover a ocupação de sítios ainda relegados, terminou por mobilizar um grande corpo de profissionais subjugados pelo poder executivo (e o IBGE se inclui aqui). Os trabalhos técnicos converteram-se, pois, em projetos de assentamento racionalizado, compreendendo inúmeras excursões para reconhecimento dos locais. Faissol fez levantamentos circunspetos, dando pareceres acerca do andamento (prosperidade/fracasso) de colônias de imigrantes europeus, por exemplo. Mas é no período que se inicia na segunda metade da década de cinqüenta (justamente com o governo de Juscelino Kubitschek, 1956-1960) que o geógrafo vai começar a se aproximar de temáticas e técnicas que viriam a se mostrar como sua marca registrada. Um contexto de aceleração do desenvolvimento industrial, bem como de atração de capitais estrangeiros (características que denotaram a expansão capitalista sobre a América Latina e que vieram a se manifestar pela articulação governamental através de planos de ação), só fez favorecer a incorporação, por parte dos órgãos técnicos, de procedimentos metodológicos mais eficientes. Estamos falando de procedimentos estatísticos para o tratamento das informações. Num primeiro momento, previsivelmente precários; mas com a “solidariedade” de países avançados, aprimoraram-se. Eis, então, que Faissol vai estar se imbuindo da causa quantitativa gradativamente, até o momento em que (isto ocorre mais ao término da década de sessenta) se constitui num de seus principais divulgadores. A par da propagação metodológica com a qual colaborou decisivamente, também tratou de realizar trabalhos de aplicação das operações matematizantes em estudos de caso. Participou, portanto, de uma série de comissões de estudo (análises técnicas), vindo a ser grato aos ensinamentos/convivências com geógrafos já eminentes no trato teórico e quantitativo das áreas de interesse da Geografia. Admiravelmente, a partir dos anos oitenta, Faissol não deixará de abordar temas de cunho econômico (dívida externa), social (iniqüidade, pobreza) e política (regimes, doutrinas ideológicas). O geógrafo discutirá, com propriedade, programas econômicos estratégicos (seus efeitos espaciais) e – muito preocupado – os assuntos relacionados com o fenômeno da globalização, tais como a soberania das nações e as implicações territoriais de um rearranjo no sistema-mundo. Por isso, exatamente por ver-se imerso numa circunstância histórica movente e complexa, vai por reparo na situação brasileira, detectando obstáculos endógenos e analisando conjunturas em escalas superiores (explanação sobre a cena mundial e seus subsistemas). Em sua obra, uma preocupação dessa natureza adentra os anos noventa. Bem, a essa altura, estamos aptos a destacar, pela via da abstração, três elementos que constituiriam, pois, a transitoriedade ou as “nuances” em Faissol. São três momentos 228 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) sucessivos no tempo que se permitem verificar na forma de interesses circunstancias (como falamos, amarrados pelo cenário histórico); são eles: projetos de colonização; procedimentos matemático-estatísticos; e análise de conjunturas. Por outro lado – ou seja, a despeito dessas manifestações bem demarcáveis cronologicamente – também conseguimos perceber elementos, por assim dizer, “sedimentados” em sua produção científica. E o fato de haver a constância de alguns vieses caracterizadores seus, acaba fazendo-nos deduzir que as nuances, ainda assim, não evitaram que se consolidassem a partir delas certas peculiaridades mais extensas no tempo e, por conseguinte, presumivelmente sobrepostas (são as “centralidades”). A prática da quantificação começa a aparecer no conteúdo dos artigos de Speridião Faissol na última metade da década de sessenta e vai se estender nas seguintes três décadas. Trata-se do exercício de cálculos matriciais, da análise de fatores e da composição de “scores”. O interesse pela reflexão ponderada a propósito dos significados teóricos e pragmáticos advindos com a Nova Geografia e sua replicação no Brasil é uma característica igualmente manifesta no referido transcurso. Neste caso, Faissol tratava de explanar sobre o objeto da ciência geográfica, sobre a cautela nas operações de abstração (envolvidas na lida dos modelos matemáticos) e sobre as implicações filosóficas da quantificação (riscos explicativos; endossamento de uma ciência fisicista, refém de analogismos; etc.). Estas são, portanto, duas centralidades no geógrafo: a quantificação de dados e a discussão epistemológica/ metodológica. Mas há, todavia, outras duas. Faissol demonstrou tremenda familiaridade com o pensamento sistêmico. Não é estranho, assim, que o geógrafo tenha lançado mão das ferramentas conceituais que ele – em sua versão formalizada (entenda-se, travestido de Teoria dos Sistemas Gerais) – ofertou às ciências. Conceitos de “hierarquia”, “retroalimentação”, “estado estacionário”, “entropia”, os quais figuraram como redenção, como “assepsia” dos discursos científicos, estiveram invariavelmente presentes no discurso de Faissol, mesmo em se tratando de artigos em que discutiu globalização ou questões macroeconômicas, por exemplo. Um último elemento que nos chamou a atenção nas leituras – uma quarta centralidade – foi justamente o interesse pelo tema do planejamento; talvez, de todos, o elemento de maior longevidade. Desde os anos cinqüenta até os noventa, a temática da planificação pró-desenvolvimento foi recorrente. Faissol sempre fez questão de deixar clara sua preocupação com a fundamentação técnica dos projetos que visassem ao equacionamento das desigualdades regionais brasileiras. Essa fundamentação presumia, é claro, um papel decisivo a ser jogado pelos geógrafos e estes – preconizava – deveriam estar aptos a manejar instrumental de efeito organizacional: técnicas de coleta e análise de dados; métodos de correlação; ferramentas lingüísticas operacionais; etc. Sustentamos, por fim, que são quatro as centralidades em Faissol, quais sejam: a quantificação, a discussão metodológica (caracterizada pela recomendação da cautela), a linguagem sistêmica e o planejamento. Mas, para arrematar a presente seção, cabe-nos apontar qual(is) delas nos permite(m) vislumbrar o viés neopositivista no discurso do geógrafo. Vejamos. Comentamos, ainda que em linhas bem gerais, o fato da doutrina neopositivista ter elegido, como condição sine qua non, o recurso a um monismo fraseológico; isto é, a um Ambientes estudos de Geografia 229 molde lingüístico universal, pelo qual os enunciados e as sentenças pudessem alcançar o status de científicas. Bem, a linguagem sistêmica, tendo encontrado campo fértil primeiramente no campo da termodinâmica (ramo especializado da Física), estendeu-se, analogicamente, para o estudo dos organismos vivos; daí, não precisou saltar muitas fronteiras até atingir em cheio a Geografia dos anos sessenta (às voltas com uma formalização conceitual próspera). Não duvidamos, portanto, que um claro indício neopositivista em Faissol há de ser precisamente esse seu manejo consciente com a linguagem em sistemas. Mas uma tal aproximação das ciências naturais não se deu tão somente pelo usufruto do acervo conceitual empreendido inicialmente para elas (o modelo sistêmico). A prática da quantificação foi, em grande medida, uma conseqüência quase irresistível. Os recursos matemáticos de tratamento da informação (álgebra linear, geometrias espacial e analítica, métodos estatísticos variados, etc.) acabaram sendo incorporados como uma extensão natural do novo vínculo que a Geografia passou a cultivar com as ciências sistemáticas. Em outras palavras, a disciplina, uma vez comungando da linguagem científica, viu-se brindada por modernas técnicas operacionais de natureza matemática. Daí que a prática quantitativa é, sim, um indício neopositivista (dada a aproximação funcional das ciências que sugere e dada também a institucionalização do argumento lógico-simbólico no trato dos fenômenos). Este indício é, a exemplo do que acontece no caso do dialeto sistêmico, amplamente verificado na obra de Speridião Faissol e reflete, pois, um segundo vestígio neopositivista em seu discurso. Coleção de textualizações: uma panorâmica comentada Depois do sobrevôo rápido sobre o que entendemos ter sido a atuação científica de Speridião Faissol, resta-nos exemplificá-la por meio de textualizações abstraídas de alguns de seus artigos. Antes disso, permitam-nos destacar seis artigos em particular, os quais – nos parece – são os melhores veículos para que os leitores interessados possam perceber mais detidamente o pensamento geográfico de seu autor. Ademais, são excelentes provas do que acreditamos ser o principal predicado de Faissol: a fé ponderada numa Geografia que havia se remodelado. Todos foram publicados pela Revista Brasileira de Geografia (melhores identificações na seção de Referências Bibliográficas), clássico periódico do IBGE, no qual encontramos a maior parte da produção do autor. São eles: 1o) “As grandes cidades brasileiras: dimensões básicas de diferenciação e relações com o desenvolvimento econômico. Um estudo de análise fatorial”, de 1970 (onde podemos antever o duradouro interesse de Faissol em explanar sobre o tema urbano pela via da análise de fatores e demais técnicas quantificantes) ; o 2 ) “A revolução quantitativa na geografia e seus reflexos no Brasil”, também de 1970 (texto bastante didático e esclarecedor que escreveu junto com Marília V. Galvão, uma parceira freqüente) ; o 3 e 4o) “Teorização e quantificação na geografia”, de 1972 e 1978 (trata-se de dois artigos curiosamente homônimos que dão conta de discutir as implicações da renovação metodológica na Geografia, sendo que no segundo o autor vai 230 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) especificar técnicas matemáticas mais sofisticadas) ; e 5 e 6 ) “A geografia na década de 80; os velhos dilemas e as novas soluções”, de 1987 e “A geografia quantitativa no Brasil: como foi e o que foi?”, de 1989 (dois trabalhos nos quais Faissol esbanja coerência argumentativa e nos presenteia com sua apologia comedida da quantificação; na verdade, são uma prova de que o autor não deixou que suas convicções fossem maculadas pelo tempo). Comecemos, então, a exposição de textualizações, enquadrando-as em dois subgrupos específicos (o primeiro dizendo respeito às nuances e centralidades): o o Sendo a Amazônia muito grande para o volume de recursos que se pode mobilizar, a estratégia a seguir deverá ser a de formação ou expansão de pólos de crescimento, empresariais ou pólos de colonização; os primeiros de responsabilidade de empresas privadas devidamente assistidas e orientadas, e os segundos da responsabilidade também do poder público, como interessado na ocupação do território. (FAISSOL, 1967, p. 55, grifo nosso). Esta primeira textualização vem ilustrar bem um daqueles três elementos de transitoriedade (mais especificamente o inicial), exemplificando o contato que Faissol teve com o tema da colonização orientada (devidamente assistida por atores sociais diligentes). Reparemos na seguinte: Como esta economia mundial opera num sistema político que reitera e defende o modelo político de dominância econômica, somente uma revisão, em profundidade, dos conceitos e do consenso relativos a esta mesma economia mundial, seria capaz de alterar o quadro. Um quadro que precisa considerar a idéia de um mundo só, mas um mundo só de todos e não só dos países ricos. (FAISSOL, 1989a, p. 21, grifo nosso). Aqui, por sua vez, observamos a simpatia que teve, mais ao término de sua carreira, pela temática da globalização e suas contradições. Isso não significa – devemos frisar – que o geógrafo tenha exercitado um discurso político-ideológico combinado com a fraseologia tipicamente marxista. Ao contrário, Faissol apresenta certas reservas com relação ao pensamento geográfico questionador de estilo mais radical. Vejamos, agora, algo de centralidade: [cautela] se deve ter ao aplicar um modelo matemático abstrato a uma realidade empírica, na qual uma variada gama de fatores indeterminados pode perturbar a regularidade do modelo. (FAISSOL, 1973, p. 12, grifo nosso). Esta é uma breve amostra textual da consciência que Faissol cultivou das fragilidades inerentes às operações de abstração. No caso, o geógrafo comentava o fato da modelagem matemática não conseguir oferecer reproduções perfeitas e, indiferentes às contingências e à variável temporal, plenamente sintonizadas com a realidade da qual se extraem os elementos construtores do modelo. Ainda com respeito à centralidade do autor ligada às ponderações e cuidados meticulosos: [...] não é que não haja analogias entre processos físicos e humanos¤sociais como pretendem os positivistas¤newtonianos, mas sim que estas analogias Ambientes estudos de Geografia 231 não podem ser erigidas em modelos, sem discussão, [...] Na raiz de muitas críticas mais sérias à fase quantitativa da Geografia está esta questão. (FAISSOL, 1994, p. 33-34, grifo nosso). Já aqui Faissol lembra os riscos intrínsecos à empresa analógica. Aliás, não foram poucas as vezes em que ele sentenciou como perigosas as tentativas de adaptação de terminologias e ou métodos advindos das ciências naturais. Seria preciso sempre ponderar acerca da viabilidade lingüística dos conceitos imigrantes e, ao mesmo tempo, certificar-se da real relevância desses furtos metodológicos. Como sugerimos, duas centralidades bem evidentes na obra de geógrafo são o interesse pela prática (circunspeta) do planejamento e o amplo manuseio da linguagem sistêmica (verificado, sobretudo, pelo uso de conceitos associados à Teoria dos Sistemas Gerais); exemplifiquemos isso com as seguintes duas textualizações: Antes de se tomar a decisão final em torno do assunto [colonização dirigida em Goiás], é preciso que todos os pontos tenham sido focalizados; do contrário, será correr o risco de ver tão importante iniciativa periclitar ou mesmo malograr por falta de previsão e planejamento. (FAISSOL, 1949b, p. 758, grifo nosso). Analisado segundo as concepções de um sistema, o fluxo de migrantes de uma área para outra pode, não só ser entendido como um fluxo energético, como também os processos de perda e ganho que este fluxo acarreta podem ser vistos em termos de ajustamentos homeostáticos, [...] (FAISSOL, 1971, p. 163, grifo nosso). Com as seis citações acima esperamos ter ilustrado, minimamente, o subgrupo das nuances e centralidades. Passemos, então, ao segundo subgrupo, o qual dirá respeito mais exatamente ao procedimento quantitativo (suas vantagens e reflexos). Uma primeira textualização nos permite constatar que Faissol estava mesmo a par dos significados utilitários da Geografia Neopositivista: [...] um surto de teorização e quantificação na Geografia permitiu de um lado o esforço de aglutinação de todos os princípios gerais já estabelecidos na Geografia e a absorção de um conjunto de formulações comumente usadas nas ciências sistemáticas, tendendo a formar teorias geográficas. (FAISSOL, 1972a, p. 163, grifo nosso). Refletindo bem a adaptação lingüística (do meramente descritivo-verbal à estilização sistêmica) que tanto se esmerou em tornar factível, temos o próximo trecho extraído de artigo no qual abordou a questão da diferenciação regional do desenvolvimento econômico: “A utilização dos conceitos da teoria dos sistemas gerais pode iluminar bastante os raciocínios sobre o desenvolvimento dos dois processos – o regional e o nacional – mas sobretudo pode mostrar a profunda interdependência entre os dois, uma vez que o regional é um subsistema do sistema nacional. (FAISSOL, 1970, p. 121). Uma tendência notável em Faissol é, como já mencionado, a retidão que se preocupou em recomendar nas ocasiões em que, indiretamente, formava usuários em potencial. Falamos “indiretamente” porque seus artigos não tinham, em essência, o propósito estrito 232 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) de ensinar os interessados a manejar técnicas de tratamento estatístico (ainda que, pela via indireta, de fato, tenha terminado por promover explanações pedagógicas com estudos de caso). E no sentido dessa sua coerência, desse seu comedimento em não mitificar as benesses da quantificação, conseguimos visualizar passagens em que mescla convicção (fé na fecundidade dos métodos então recentes) e parcimônia (ciência de que há fatores limitantes invariavelmente envolvidos); um exemplo conexo: [...] embora a linguagem matemática não acrescente conteúdo à linguagem de qualquer ramo das ciências sociais ou biológicas, pois a sua própria essência é ser abstrata, ela contém no seu bojo o fundamento do argumento lógico. Ela obriga [...] a pensarmos logicamente. (FAISSOL, 1972b, p. 84-85, grifo nosso). Cabe-nos também chamar a atenção para o fato de Faissol ter discordado da impressão simplista, segundo a qual uma Geografia Quantitativa, aos moldes do Neopositivismo, apenas encontrou ambiente propício na cena brasileira em virtude de, nos anos sessenta e setenta, o país ter sido regido politicamente por governos defensores de práticas autoritárias. A idéia (simplória) imersa é a de que haveria uma sintonia natural e inexorável entre os regimes que mascaram desigualdades, contradições e injustiças sociais e as práticas técnicocientíficas baseadas em postulados abstratos de maximização de variáveis. Estas práticas remontariam à questão da eficiência – um conceito, de fato, muito ligado aos paradigmas de cunho capitalista. Bem, Faissol simplesmente não se deixou levar por essa muito vaga impressão, conforme nos deixam claro as seguintes duas textualizações: [...] podia-se constatar que o temário da Conferência [Conferência Regional da União Geográfica Internacional, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1982] e os temas dos expositores continham numerosos assuntos de inspiração social e mesmo marxista, sem que a isto tivesse qualquer observação nem dos organizadores, nem da direção do IBGE, que foi o principal patrocinador; o que foi até objeto de alguns comentários na crônica internacional a respeito, que ao ressaltar o alto nível profissional em que se realizou a Conferência, estranhava esta liberdade conceitual e mesmo ideológica, dado o fato de estar isto acontecendo num momento de governo militar autoritário e de direita. (FAISSOL, 1989b, p. 23-24, grifo nosso). A preocupação com relevância social foi, em muitos casos, interpretada como descartando métodos quantitativos de análise, pois muitos deles se constituíam em funções otimizadoras de eficiência, portanto contrários aos objetivos de eqüidade, o que apenas revelava um certo desconhecimento do que é uma função otimizadora, que poderia otimizar a distribuição de rendimentos, por exemplo. (FAISSOL, 1987, p. 9, grifo nosso). Para arrematar essa breve panorâmica, selecionamos um extrato no qual o autor deixa transparecer seu desacordo com um dos preceitos clássicos na doutrina positivista: o da extirpação dos enunciados (“pseudo-científicos”) contaminados pelas ideologias: [...] a teoria jamais poderia ser socialmente neutra, como às vezes se pretende, pois pensamento reflexivo implica nossa própria visão do mundo, o que deixa inaplicável a idéia positivista de value free no processo de Ambientes estudos de Geografia 233 conhecimento científico. (FAISSOL, 1987, p. 12, grifo nosso). Por outro lado, a negação desta “recomendação” positivista – desta conduta (ingênua) de livrar as sentenças dos juízos de valor – não impediu que se vissem imersos, no discurso de Faissol, alguns dos caracteres tipicamente neopositivistas. Não houve, portanto, a negação de um Positivismo, por assim dizer, “reconfigurado”. Considerações finais O exame dos artigos de Speridião Faissol presenteia seu leitor em dois aspectos. Em primeiro lugar, uma leitura sistemática (guiada por parâmetros pré-estabelecidos) tende a revelar todo um acervo de experiências com a prática científica. Para os desavisados – aqueles que, por ventura, nada saibam a respeito da atuação desse geógrafo na cena brasileira – até pode causar surpresa o grau de envolvimento que o profissional foi capaz de devotar às, digamos, “coisas da Geografia”. Coisas que, com sabemos, ainda não convergiram a fim de, finalmente, compor uma base epistemológica bem coesa e de consenso mínimo. Em verdade, sabedor dessa desordem intrínseca, Faissol desempenhou uma porção de atividades dentro do amplo espectro de interesses da disciplina, sondando, pacientemente, um norte teórico-metodológico que pudesse ser sua redenção. Veio a se deparar, nos fins da década de sessenta, com aquilo que – teve para si – parecia ser a saída providencial para um ajustamento definitivo da Geografia. O segundo regalo com que Faissol nos presenteia – a par, portanto, da própria riqueza informativa (em termos de história e contextos vividos) – diz respeito exatamente às profundas e pedagógicas reflexões que fez a propósito da Nova Geografia. Posto que elas são muito mais do que simples revisões bibliográficas ou exposições pobres em juízo pessoal, seu conteúdo obriga-nos a rever impressões que possivelmente ainda cultivemos; sobretudo aquelas que nos constrangem especulações de base fisicista ou organísmica (temidas ou ferozmente atacadas). Ler Faissol é educar-se. Ele nos ensina, mesmo sem saber, que algum anarquismo ainda é possível em ciência, mas o faz apontando-nos, paternalmente, todas as armadilhas. Referências FAISSOL, S. Problemas de colonização na Conferência de Goiânia. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 274-278, abr./jun. 1949a. 234 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) ______. O Mato Grosso de Goiás. Boletim Geográfico, Rio de Janeiro, v. 7, n. 79, p. 745750, out. 1949b. ______. Amazônia. In: FUNDAÇÃO IBGE. Curso de geografia para professores do ensino superior: geografia regional. Rio de Janeiro: IBGE, 1967. p. 31-58. ______. As grandes cidades brasileiras: dimensões básicas de diferenciação e relações com o desenvolvimento econômico. Um estudo de análise fatorial. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 32, n. 4, p. 87-130, out./dez. 1970. ______. Migrações internas – um subsistema no processo de desenvolvimento. 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