A ANTROPOLOGIA VISUAL COMO EXTENSÃO ATRAVÉS DO FILME SOCIAL Hilton P. Silva1 & Francisco Weyl2 Resumo A antropologia visual é uma área pouco conhecida na Amazônia e, na Universidade Federal do Pará, as experiências têm sido pontuais. Neste artigo apresentamos um conjunto de iniciativas de extensão iniciadas em 2009, visando a difusão da antropologia visual através da organização e curadoria de atividades com filmes sociais de produção local, nacional e internacional. Entre 2009 e 2011 foram realizados quatro festivais de filmes sociais, sendo três em Belém, Brasil, e um em Dacar, Senegal, apresentando produções brasileiras e de diversos países africanos, demonstrando a força da produção audiovisual voltada para as realidades locais e contribuindo para a troca de informações sobre questões sociais entre os mais diversos atores. Fica demonstrado que a extensão universitária pode ser um importante instrumento na divulgação da produção audiovisual de cunho social, ampliando sua inserção extramuros e contribuindo para um mundo mais democrático, dialógico e sustentável no futuro. Palavras-chave: Antropologia visual, Amazônia, África, audiovisual 1 Prof. Dr. Hilton P. Silva, Universidade Federal do Pará, Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo, R. Augusto Corrêa, 01 - Campus Universitário do Guamá, 66075-900, Belém, Pará, Fones: (91) 8867-8728, (91) 3201-7406, E-mail: [email protected] . 2 Francisco Weyl, Especialista em Semiótica pela Universidade Federal do Pará, poeta, pesquisador autoditada e realizador de cinema. E-mail: [email protected] VISUAL ANTHROPOLOGY AS EXTENSION THROUGH THE SOCIAL FILM Abstract Visual anthropology is an area still little known in Amazonia, and at the Universidade Federal do Pará there have been few experiences. In this article we present a group of extensionist initiatives started in 2009, aiming to contribute to the diffusion of visual anthropology through the organization of a series of events with social films of local, national and international production. Between 2009 and 2011 four festivals of social films were realized being three in Belém, Brazil and one in Dakar, Senegal, presenting productions from Brazil and several African countries, demonstrating the power of the audiovisual production reflecting the local realities, and contributing to the exchange of information about social issues among diverse social actors. It is demonstrated that university´s extension initiatives can be important instruments to the diffusion of audiovisual production involving social questions, amplifying university’s insertion outside its physical boundaries, contributing to a more democratic, dialogic and sustainable world in the future. Key-words: Visual anthropology, Amazon, Africa, audiovisual A ANTROPOLOGIA VISUAL COMO EXTENSÃO ATRAVÉS DO FILME SOCIAL A antropologia visual ainda é uma área pouco conhecida na Amazônia e, na Universidade Federal do Pará, as experiências têm sido pontuais. A antropologia visual, ou antropologia da imagem, surgiu junto com a grande área da antropologia, como forma de mostrar, através de imagens (fotografia, pintura, cinema, vídeo), o que os textos tentavam descrever sobre as populações nativas investigadas. Alguns dos primeiros etnólogos\antropólogos, como Spencer Poch, Robert Flaherty, Franz Boas, Margaret Mead e Gregory Bateson, que estavam sintonizados com os avanços tecnológicos do início do século XX, logo perceberam que o uso de imagens, primeiro fotográficas e depois, com a progressão das técnicas, filmagens, enriqueceriam as descrições e o rigor científico das suas investigações e as conduziriam a novos patamares (Ruby, 1996; Heider, 2006). Graças a eles, e muitos outros que os seguiram, hoje tem-se um riquíssimo acervo de fotografias, vídeos e filmes sobre centenas de grupos tradicionais de todo o mundo, inclusive de grupos há muito absorvidos pelas sociedades abrangentes e cujos descendentes, graças a esses registros, podem conhecer aspectos essenciais de seu cotidiano e de suas tradições religiosas passadas, com uma riqueza de detalhes não caberia em textos escritos. Embora ainda haja intenso debate entre os estudiosos sobre os significados de categorias como “filme social”, “filme etnográfico”, “documentário sociológico”, “cinema direto\verdade” e suas diferentes vertentes (Ruby, 1996; Teixeira, 2004; Ramos, 2008), há um razoável consenso de que o filme com caráter não ficcional teve sua origem com as primeiras imagens feitas pelos irmãos Lumiére do cotidiano dos trabalhadores na sua cidade natal. Aquelas cenas demonstraram que a recém-criada técnica da imagem em movimento poderia ter outros usos além do mero entretenimento através das comédias e dos filmes de ficção. Era possível retratar a realidade “das massas”, o dia-a-dia, a vida, se não como ela era, mas ao menos então como ela se fazia representar àqueles que usavam as novas ferramentas. Muitos foram os experimentos de criação e técnica entre o fim do Século XIX e início do Século XX, que tinham como base o cotidiano das cidades, das fábricas, das ruas, dos trabalhadores pobres, além das populações “exóticas” (indígenas) das então possessões européias, demonstrando diversos aspectos daquelas sociedades (Heider, 2006). Apesar dos elevados custos, de equipamentos grandes, difíceis de manusear e que usavam produtos químicos instáveis, a ciência imediatamente adotou a imagem como uma forma adicional, além da escrita, de demonstrar seus experimentos e resultados, e os antropólogos levavam a campo toda uma parafernália tecnológica para registrar as imagens dos povos e culturas que estavam estudando (Piault, 2000; Heider, 2006; Monte-Mór, 2004). Este foi o início do que se pode chamar de filme etnográfico, que no Brasil teve expressões importantes como o Major Luiz Thomaz Reis, Silvino Santos, Eduardo Galvão, Edgar Roquette-Pinto e Claude Levi-Strauss, em sua passagem pelo país, que estão entre os primeiros documentaristas das populações tradicionais brasileiras a utilizar a linguagem cinematográfica para mostrar a situação de vulnerabilidade desses grupos (Teixeira, 2004; Barbosa e Cunha, 2006; Monte-Mór, 2008). Atualmente, com o enorme avanço tecnológico e redução de custos, os equipamentos de fotografia e filmagem se tornaram muito mais compactos, fáceis de manusear, baratos e com resolutividade muito superior ao que se tinha há apenas algumas décadas, fazendo com que muito mais atores sociais tenham acesso aos filmes, como expectadores ou produtores de vídeos, multiplicando enormemente a produção e o acesso ao audiovisual, inclusive através dos meios digitais (Ramos, 2008; Barbosa et al., 2009). Há agora dezenas de festivais de filmes etnográficos pelo mundo, bem como festivais de curtas sobre temas do cotidiano, mostras de filmes feitos com telefones celulares e câmeras fotográficas, e sites na internet que disponibilizam uma enorme quantidade de material audiovisual autoral. Essa profusão de documentos visuais levou alguns autores a declarar o Século XX como saturado pelas imagens. Mas o fato é que, através da produção audiovisual contemporânea, é possível ter uma visão da diversidade sócio-cultural e econômica mundial muito mais ampla e acessível, verdadeiramente democrática. Algo que os Lumiére jamais poderiam imaginar, pois Luis entendia que o cinema não tinha futuro, por não ser lucrativo. Como parte das atividades do Laboratório de Estudos Bioantropológicos em saúde e Ambiente vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPA, ao longo do ano de 2009, iniciamos um trabalho de extensão voltado para a difusão da antropologia visual através da organização e curadoria de um conjunto de eventos com filmes sociais, de produção local, nacional e internacional. Durante o Fórum Social Mundial - FSM, que ocorreu em Belém, em janeiro, foi realizada uma experiência pioneira de antropologia visual através da organização da I Mostra África- Brasil de Cinema, uma atividade no campo da extensão universitária que levou aos milhares de participantes do FSM a oportunidade de conhecer uma parte da produção documental e experimental, nacional e internacional, voltada para temas sociais e culturais como a pobreza, o (des)emprego, o trabalho rural, o pós-guerras de independência, as danças e as lendas de povos africanos contemporâneos. Realizado no Cinema Olímpia e com acesso gratuito, o evento atraiu centenas de espectadores, muitos dos quais haviam apenas ouvido falar do FSM e tiveram, então, a oportunidade de participar desse evento histórico. Em setembro de 2009, por ocasião do lançamento da Cátedra Brasil-África de Cooperação Internacional da UFPA foi realizada a II Mostra de Filmes África-Brasil, no Auditório da Reitoria da Universidade, que expandiu a experiência da I Mostra África-Brasil de Cinema. Essa atividade extensionista buscou mostrar, principalmente à comunidade universitária, algumas produções clássicas africanas, acompanhadas de produções locais recentes sobre aquele continente, para incentivar a pesquisa e a produção conjunta de conhecimentos entre os países africanos e a Amazônia, local onde se concentra a maior população quilombola do Brasil. Na esteira da Lei 10639/03, que institui no currículo oficial de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Brasil, 2003), e nos termos das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Parecer CNE/CP 3/2004 e Resolução CNE/CP 1/2004), há enorme necessidade de que os atuais alunos universitários, futuros professores, (re)conheçam que há uma importante produção cultural e audiovisual africana e nacional que pode ser utilizada na sala de aula, contribuindo, assim, para a efetiva implementação da Lei e suas Diretrizes. Em novembro de 2009, realizou-se, também em Belém, no campus da UFPA, o Fórum Internacional da Sociedade Civil (FISC), uma das maiores reuniões mundiais da sociedade civil organizada, caracterizado como “...um espaço aberto de encontro para o aprofundamento da reflexão, o debate democrático de idéias, a formulação de propostas, a troca livre de experiências e a articulação para ações eficazes, de pessoas, entidades e movimentos da sociedade civil que através da Educação de Pessoas Jovens e Adultas (EPJA) propugnam pelo respeito aos Direitos Humanos, pela prática de uma democracia participativa, por relações igualitárias, solidárias e pacíficas entre pessoas, etnias, gêneros e povos, condenando todas as formas de dominação assim como a sujeição de um ser humano pelos outros”3. Como parte da programação oficial foi realizado o Festival Internacional de Cinema Social (FEST-FISC) (http://www.socialcine.blogspot.com/), no Centro de Convenções da Universidade Federal do Pará. A partir das experiências anteriores, esta atividade de extensão ampliou o escopo geográfico do projeto, porém, em função da grande demanda, incluiu apenas filmes e documentários de curta-metragem (até 25 minutos), e convidou os participantes dos mais de 100 países presentes ao FISC para enviarem suas produções, o que resultou em uma manhã inteira dedicada a mostrar diversos aspectos de sociedades de várias partes do globo, desde a Ilha do Marajó até a República Democrática do Congo, dando aos participantes do Fórum a oportunidade de não apenas ouvir sobre as experiências internacionais, mas as ver manifestas, realizadas pelos próprios atores sociais locais, demonstrando que é possível produzir material interessante e útil à sociedade, além da produção comercial, sem a necessidade de vultosos investimentos, mas apenas com o envolvimento comunitário, com criatividade e com vontade de democratizar o conhecimento e ampliar o alcance das lutas sociais. Todos os curtas exibidos no FESTFISC passaram a fazer parte do acervo de audiovisual do Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFPA ficando, assim, acessíveis a toda a comunidade universitária. Em 2010, os autores receberam um convite dos organizadores do Fórum Social Mundial (FSM) 2011, que foi realizado em Dacar, Senegal, para levar a experiência do FEST-FISC para a África. Segundo Silva (2011): “O II Festival Internacional do Filme Social (II FEST-FISC), iniciativa paraense de parceria entre a sociedade civil, a produção audiovisual independente e a academia, foi convidado pela coordenação do FSM no Senegal através do Prof. Bubacar Buuba Diop, Coordenador Local do Fórum, para fazer parte da programação cultural oficial ‘Espace Cinema, Films & Débats’” ... “o II FEST-FISC levou a África 18 filmes, que foram organizados em três Mostras (http://socialcine.blogspot.com/2011/02/fest-fisc-brasil-senegal.html). A programação em Dacar realizou-se com apoio da Plataforma Africana para Educação e Alfabetização de Adultos (PAALAE) e da organização local do FSM. A primeira exibição do II FEST-FISC ocorreu no dia 8/2 3 Forum Internacional da Sociedade Civil – FISC, na CONFINTEA VI, Documento de Princípios. na Maison Du Brésil e contou com os filmes selecionados dentre os recebidos de diversos Estados e Países, a segunda exibição ocorreu no Centro Cultural Blaise Senghor, no dia 9, com a apresentação dos “7 Filmes Capitais” e a terceira teve lugar na École Elementaire Samba Diery Diallo, no dia 10, como parte das atividades paralelas do FSM, na qual alunos e professores senegaleses tiveram a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre o Brasil e a Amazônia através do trabalho de jovens produtores marajoaras”. Os filmes participantes do II FEST-FISC foram selecionados através de uma ampla chamada nacional e internacional aos diversos segmentos do chamado “Terceiro Setor” (ONGs e demais organizações sociais), e centenas de espectadores dentre os cerca de 75 mil participantes dos 132 países presentes no FSM, e mais de 80 alunos e professores do ensino fundamental senegalês, puderam ter acesso, pela primeira vez, a produção audiovisual de caráter social brasileira e de diversos países africanos. Muitas das produções, feitas, por exemplo, por jovens Marajoaras treinados em oficinas apoiadas por programas governamentais, mostraram aos participantes partes pouco conhecidas da realidade e da cultura amazônica, e permitiram a eles estabelecer comparações e contrastes com as suas próprias vivências enquanto cidadãos e ativista africanos, asiáticos ou latinoamericanos. A antropologia visual surgiu na perspectiva de tentar mostrar o que os pesquisadores entendiam como a “realidade” dos povos estudados, como documentação complementar à etnografia. Ao longo dos anos, e dos avanços teóricos e práticos, ela tem se transformado, como a antropologia em geral, em uma área independente e aplicada do conhecimento, que não apenas mostra uma “realidade” sob a ótica do investigador, mas que permite aos que antes eram apenas observados e filmados, demonstrar suas perspectivas e visões de mundo, seu cotidiano, sua realidade, sua luta (Ruby, 1996). Infelizmente, a maioria absoluta dessas produções não é vista pelo grande público, e nem mesmo pelo público universitário, uma vez que os mercados são totalmente dominados pelas produções comerciais, principalmente as hollywoodianas. Conforme demonstrado através das experiências com os festivais de filmes sociais, a extensão universitária pode ser um importante auxiliar na divulgação do cinema de cunho social, em seus vários estilos e formatos, buscando trazer ao grande público um amplo leque de produções audiovisuais das mais diversas origens, inspirações e formatos, colaborando assim para que a Universidade amplie sua inserção social e contribua para um mundo mais democrático, dialógico e sustentável no futuro. Bibliografia Barbosa, A. & Cunha, E.T. 2006. Antropologia e Imagem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Barbosa, A., Cunha, E.T. & Hikiji, R.S.G. (Orgs.). 2009. Imagem-conhecimento: Antropologia, Cinema e Outros Diálogos. Campinas: Papirus. Brasil. 2003. Lei Federal nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm . Acessado em 20 de janeiro de 2009. Heider, K.G. 2006. Ethnographic Film, revised edition. Austin, TX: University of Texas Press. Monte-Mór, P. 2004. Tendências do Documentário Etnográfico. In: Documentário no Brasil: Tradição e Transformação, 2ª Ed. Teixeira, F.E. (Org.). São Paulo: Summus, p. 97-118. Piault, M.-H. 2000. Antropologie et Cinema. Paris: Nathan Cinéma. Ramos, F.P. 2008. Mas Afinal… O Que é Documentário? São Paulo: Senac. Ruby, J. 1996. Visual Anthropology. In: Encyclopedia of Cultural Anthropology. Levinson, D. and Ember, M. (eds.). New York: Henry Holt and Company, vol. 4:13451351. Silva, H.P. 2011. O Fórum Social Mundial no Ano Internacional dos Afrodescendentes e a Busca por um Mundo Melhor para Todos. Disponívell em: http://cinemaderua.blogspot.com/2011/02/o-fest-fisc-no-fsm-por-hilton-p-silva.html (acesso em 2/10/2011). Teixeira, F.E. 2004 (Org.). Documentário no Brasil: Tradição e Transformação, 2ª Ed. São Paulo: Summus.