Demolição de prédios históricos foi motivada por arquitetos

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Demolição
de
prédios
históricos foi motivada por
arquitetos modernistas
Lúcio Costa, o urbanista que projetou Brasília, defendia que
só dois estilos mereciam preservação no Brasil. Como
resultado, perdemos tesouros no Rio, em São Paulo e em outras
capitais.
“Bastardo”. O Palácio Monroe, no Rio, demolido em 1976.
Ele era um exemplo da arquitetura eclética, desprezada por
Lúcio Costa. (Foto: José dos Santos Affonso/Instituto
Moreira Salles )
Nos anos 1930, a Avenida Central no Rio de Janeiro, atual Rio
Branco, era uma versão tropical da parisiense Champs-Élysées,
tomada por prédios ecléticos de influência francesa. Havia
exemplares belíssimos, como o Hotel Avenida, com seus 220
quartos de luxo, e o imponente Palácio Monroe, primeiro
projeto brasileiro a ganhar um prêmio internacional de
arquitetura. Nessa mesma época, em São Paulo, ao longo da
Avenida Paulista, espalhavam-se palacetes construídos por
imigrantes europeus. Prósperos, reproduziam a linguagem
arquitetônica de seus países de origem. Em Salvador, bairros
como o Corredor da Vitória eram tomados por charmosos
edifícios neoclássicos. Tudo isso foi abaixo, e não apenas por
culpa da especulação imobiliária. A desfiguração dessas e de
outras capitais brasileiras aconteceu com a complacência e o
apoio de quem deveria preservá-las.
O Serviço do Patrimônio Histórico, atual Iphan, criado em
1937, tinha à frente um grupo de modernistas, influenciado
pelo arquiteto Lúcio Costa. O grupo detestava a arquitetura
eclética. Para eles, o verdadeiro estilo brasileiro era o
colonial, abundante nas cidades históricas mineiras e nas
igrejas barrocas do Rio e Salvador. Esse pensamento ajudou a
construir uma visão parcial do passado brasileiro, em que não
cabiam prédios ornamentados, de influência francesa. Para o
grupo, quanto menos desses prédios existisse, melhor. “Os
modernos viraram árbitros do que era bom ou ruim na
arquitetura. Resgatavam o passado e diziam como seria o
futuro. Para eles, a arquitetura eclética era um hiato na
linha evolutiva das construções no país”, diz o arquiteto e
antropólogo Lauro Cavalcanti. Ele é o autor de Dezoito graus –
livro que acaba de ser lançado e que, ao romancear a
construção do Palácio Capanema, narra o embate entre ideias
divergentes quanto à arquitetura nacional.
A concepção do Palácio Capanema, em 1935, marca o início
simbólico da caçada à arquitetura eclética. Naquele ano, o
Ministério da Educação e Saúde abriu um concurso de
arquitetura para a construção de uma sede no Rio. O vencedor,
escolhido por uma comissão independente, foi Archimedes
Memória, arquiteto renomado. Ele desenhou um edifício
neoclássico, elogiado por mesclar temas indígenas com
elementos do passado brasileiro. O então ministro, Gustavo
Capanema, considerou o projeto pavoroso. Pagou o prêmio, mas
não quis construí-lo. Com a aprovação do presidente Getúlio
Vargas, chamou o arquiteto Lúcio Costa para projetar algo
moderno. Nascia assim o Palácio Capanema. O prédio se tornou
um marco por motivos diversos, além da importância
arquitetônica. Ele deu início à parceria entre Costa e Oscar
Niemeyer (que posteriormente fariam Brasília e projetariam a
arquitetura brasileira no exterior). E abrigou o Serviço do
Patrimônio Histórico, sob o comando de Costa e seu grupo. Eles
passaram a decidir o que deveria ou não ser preservado.
Memória. A Avenida Rio Branco, no Rio. De 70 prédios,
sobraram dez. (Foto: reprodução Biblioteca Nacional/Ag.
Sincro)
A nova arquitetura deveria ser limpa e racional, como
professava o arquiteto franco-suíço Le Corbusier. As
construções do passado que mereciam preservação eram as de
estilo colonial. Costa via uma afinidade entre os dois
momentos da história, que formariam a linha evolutiva da
autêntica arquitetura brasileira. A herança deixada por Costa
e seu grupo na proteção do patrimônio é ambígua. Sua
contribuição foi de inegável importância naquele momento em
que a arquitetura colonial corria risco iminente. Antes da
criação do Serviço do Patrimônio, a Igreja da Sé, em Salvador,
primeira grande catedral do Brasil, foi colocada abaixo para a
construção de uma avenida. No entanto, a recusa sistemática da
arquitetura eclética que resplandecia nas grandes cidades
abriu espaço para que fossem cometidos crimes irreparáveis
contra o patrimônio histórico brasileiro.
A política oficial de proteção foi completamente direcionada.
Da fundação do Iphan até os anos 1970, foram tombados pouco
mais de 600 prédios. Destes, 529 eram do período colonial.
Lúcio e seu grupo também protegiam a arquitetura moderna,
produzida por eles próprios. O Palácio Capanema foi tombado em
1948, um ano após sua inauguração. A Igreja da Pampulha,
construída por Niemeyer, foi tombada um ano antes. Enquanto
isso, sem proteção, boa parte da arquitetura eclética
brasileira sucumbiu. Dos mais de 70 edifícios que havia ao
longo da Avenida Rio Branco, no Rio, restaram dez. Em São
Paulo, dos grandes casarões da Avenida Paulista, sobraram
quatro.
Memória. A Avenida Paulista. De dezenas de casarões,
sobraram quatro. (Foto: Museu da Energia)
No Rio, então capital federal, ocorreram as maiores
transformações. O Iphan resistiu a tombar prédios importantes
como o Theatro Municipal e a Biblioteca Nacional. Na década de
1970, o Clube de Engenharia e o Instituto dos Arquitetos do
Brasil começaram a pressionar pelo tombamento dos edifícios
ecléticos restantes na Avenida Rio Branco. A pressão começou
quando iam demolir os prédios do Jóquei Clube e do Derby, para
dar lugar a um arranha-céu. A proposta era que se tombassem
esses dois e outros sete, entre eles o Theatro, a Biblioteca
Nacional, o Palácio Monroe, o Tribunal de Justiça e o Clube
Naval, último conjunto eclético remanescente da avenida
original. Costa já estava aposentado, mas mesmo assim redigiu
um parecer que foi lido em reunião do Iphan, em 1972. Dizia
que o Serviço do Patrimônio se dispôs a excluir de sua alçada
os prédios de estilo eclético, por considerá-los fora da linha
legítima da evolução arquitetônica. Chamava o prédio do Clube
Naval de “medíocre” e o do Tribunal de “insignificante”.
Posicionava-se contra o tombamento da Biblioteca Nacional e se
referia ao “aviltado pavilhão Monroe cuja presença estorvante
já não se justifica”.
Depois do parecer, o Iphan desistiu do tombamento do conjunto.
Foram preservados, individualmente, apenas a Biblioteca
Nacional, o Theatro Municipal e o Museu de Belas-Artes. No
mesmo ano, os proprietários demoliram o prédio do Jóquei e do
Derby. Em 1976, foi abaixo o Palácio Monroe, apesar de várias
manifestações contrárias e da linha do metrô que passaria por
baixo dele ter sido modificada apenas para preservá-lo. O
arquiteto Ítalo Campofiorito, de 82 anos, que trabalhou com
Costa no Iphan, lembra da implicância dos modernistas com o
Monroe. “Le Corbusier tinha horror àquele prédio, achava que
tinha de ser retirado dali, porque segundo ele era um exemplo
do que não se deve fazer em arquitetura”, diz. Maria Elisa
Costa, filha de Lúcio, explica o pensamento do pai: “Ele fazia
uma distinção entre coisas acadêmicas de boa qualidade, ou
seja, merecedoras de respeito, e coisas ‘bastardas’ que ele
desprezava, como o Monroe”.
Memória. O arquiteto Lúcio
Costa. Ele protegeu apenas
dois estilos: o colonial e o
modernista. (Foto: Epitácio
Pessoa/Estadão Conteúdo )
A ira de Costa caiu sobre outros prédios. Um era a sede do
Ministério da Agricultura, construída na Praça XV para uma
exposição internacional, em 1922. Em parecer de 1972, ele
afirmava que a demolição daquela “almanjarra de concreto” lhe
“seria do maior agrado”. Em outro parecer, de 1978, que
sacramentou sua derrubada, dizia: “Por sua falta de estilo,
por sua desproporção, por sua feiura congênita, já nasceu
bastardo”. O edifício foi demolido no final dos anos 1970. A
política foi adotada nacionalmente. A cidade de São Paulo, que
cresceu com os imigrantes no século XIX, não era de grande
interesse para os modernistas, por guardar poucos exemplos da
arquitetura colonial. Luís Saia, chefe do Iphan em São Paulo e
responsável por todos os Estados do Sul, observou: “O gótico
da Catedral da Sé, o romântico do Mosteiro de São Bento, o
pretendido colonial da Igreja do Carmo são coisas
estilisticamente espúrias e infelizes”. Em 1937, Mário de
Andrade, que também trabalhava no Serviço do Patrimônio,
escreveu numa publicação oficial: “Vagar assim pelos mil
caminhos de São Paulo, em busca de grandezas passadas, é
trabalho de fome e de muita, muita amargura. Procura-se demais
e encontra-se quase nada”. Com essa perspectiva, não se via
valor em conjuntos arquitetônicos como o da Avenida Paulista.
Praticamente tudo foi abaixo. “O que aconteceu na Avenida
Paulista é uma tragédia nacional. São Paulo foi marginalizada,
por causa de uma leitura da identidade brasileira que excluía
o imigrante”, diz Paulo Garcez, professor de arquitetura da
Universidade de São Paulo (USP).
O bairro do Recife Antigo, na capital pernambucana, também
tinha uma feição eclética desde que foi reformulado, no início
do século passado. Por isso, só obteve o tombamento nos anos
1990. Nesse meio-tempo, prédios antigos foram demolidos ou
desconfigurados. Belo Horizonte, fundada no final do século
XIX e predominantemente eclética, tampouco contou com
proteção. Perdeu o Teatro Municipal e muito do casario antigo.
Em Salvador, só foram tombados o centro histórico colonial e
alguns exemplares de igrejas e conventos da mesma época. O
centro histórico de Porto Alegre horrorizava Costa, pela
predominância da cor ocre, característica da arquitetura
eclética alemã e italiana. O conjunto resistiu por sorte e só
foi tombado em 2003. Antes disso, foram abaixo prédios
históricos, como a antiga sede da Caixa Econômica Federal.
Nos anos 1980, a criação de órgãos de proteção estaduais e
municipais deu maior diversidade – e generosidade – ao olhar
responsável pelo zelo com o patrimônio. No Iphan, as novas
gerações de técnicos reconhecem a política enviesada do
passado. Ainda que o ponto de vista de Costa e dos modernistas
tenha ajudado a moldar as cidades brasileiras e influenciado a
maior parte da intelectualidade, não chegou a atingir, como
pretendia, o gosto da população. Mantém-se a preferência do
público pelos “bolos de noiva”, prédios com fachadas repletas
de detalhes decorativos e mistura de estilos. Hoje, o Palácio
Capanema, no centro do Rio, exemplar magnífico da arquitetura
moderna, recebe eventualmente a visita de um ou outro
estudioso. Um pouco adiante, os turistas se apinham na
Biblioteca Nacional, exemplo da arquitetura eclética.
Por Marcelo Bortoloti
Fonte original da notícia: Época
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