Uma visão epistemológica da circulação de idéias presente na

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Uma visão epistemológica da circulação de idéias presente na
comunicação científica ♦
Marco Alvettia [[email protected]]
Luiz Roberto Agea Cutolob [[email protected]]
a
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica - UFSC
b
Prof. Dr. do Programa de Mestrado em Saúde - UNIVALI
RESUMO
A disseminação da informação científica raramente é tratada na descrição do processo de
produção do conhecimento. Normalmente, os textos didáticos ou de divulgação científica sobre
a história da ciência, apenas dizem que as idéias de um cientista “repercutiram” ou
“influenciaram”,
mas
nunca
falam
“como”
isso
acontece.
Nesse trabalho, a discussão de alguns elementos da comunicação científica, o entendimento
de como os cientistas disseminam suas idéias num processo coletivo com influências sociais,
culturais e históricas, pode auxiliar ao professor de ciências a compreender outros aspectos
das discussões da epistemologia da ciência, e possivelmente, encontrar caminhos para a
renovação de sua prática docente e consequentemente dos conteúdos escolares.
Introdução
A disseminação da informação científica raramente é tratada na descrição do processo de
produção do conhecimento. Normalmente, os textos didáticos ou de divulgação científica sobre a
história da ciência, apenas dizem que as idéias de um cientista “repercutiram” ou “influenciaram”,
mas nunca falam “como” isso acontece,
Ciente desse fato, nesse trabalho pretende articular uma possível aproximação de uma
discussão centrada em dois pontos: o educativo e o epistemológico.
Portanto, a nossa articulação epistemológica pretende diferenciar-se pelo fato de que
utilizaremos categorias tais como estilo de pensamento e coletivo de pensamento, da teoria do
conhecimento de Ludwik Fleck, que recorre à sociologia do conhecimento para elaborar a sua
análise, considerando condicionantes sociais, culturais e históricos da produção do
conhecimento.Em particular, no tocante ao papel da circulação inter e intracoletiva de idéias no
coletivo de pensamento, idéias que se opõem ao empirismo lógico, a produção cumulativa do
conhecimento e a neutralidade do sujeito do conhecimento.
A comunicação científica
Para falar sobre a comunicação científica estaremos nos baseando no trabalho desenvolvido
por Hernandez-Cañadas (1987), ressaltando que existem muitas outros referenciais que podem
tratar do mesmo tema, como observado no artigo de Bueno ( 1989) que faz um levantamento da
vasta literatura existente sobre o jornalismo científico
A comunicação científica acontece em dois domínios: o formal e o informal, onde em cada
um estabelecem-se procedimentos diferenciados de produção, disseminação e uso da informação.
No domínio formal, a informação é dirigida para um público mais ampla, transmitida de acordo
com regras e padrões bem determinados, de fluxo livre e irrestrito. Os veículos utilizados nesse
domínio são os artigos de periódicos, livros, relatórios, monografias, pré-publicações (pre-prints ).
No domínio informal, o cientista comunica suas idéias aos seus pares de forma a receber críticas e
sugestões para subsidiar a sua pesquisa. Nesse caso, a informação é de circulação restrita, dirigida e
pequenos grupos, sem regras nem padrões, onde o seu fluxo é definido pelo próprio autor. Os canais
informais de comunicação podem ser conversas entre pares, cartas, comunicações, conferências,
dentre outros.
♦ APOIO: CAPES
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Uma outra questão importante de ser abordada refere a diferenças entre os termos difusão,
disseminação e divulgação científica.
A disseminação entre pares, ou seja, entre especialistas da mesma área do conhecimento ou
áreas afins, possuindo duas características:o público ao qual se dirige é especializado, com um
conteúdo específico e com um código fechado em relação à informação transferida.Revistas de
geologia, Física ou ortodontia são exemplos de veículos desse nível de disseminação.
A disseminação extrapares, ou seja, para especialistas fora da área de conhecimento do
objeto da disseminação.Diferencia-se do primeiro por seu código em que a informação é
transferida, embora fechado, tenha a possibilidade de tradução.Tem-se ainda, nesse caso, um
público especializado, embora não necessariamente naquele domínio específico.Uma revista de
economia política ou de ciências sociais poderia ser um exemplo, pois pode ser lida por diferentes
especialistas, e não obrigatoriamente por economistas, cientistas políticos ou sociólogos.
Aproximações entre comunicação científica e algumas categorias da teoria de conhecimento
de Ludwik Fleck
Ludwik Fleck ( 1896-1961), médico polonês, de família judia, foi clínico geral e trabalhou
em laboratórios de bacteriologia e imunologia, tendo desenvolvido pesquisas nas áreas da
microbiologia e bioquímica. Influenciado pelo clima científico interdisciplinar estabelecido pelo
Império Austro-Húngaro nas regiões de origem polonesa, e segundo Schäfer e Schnelle(1986), por
leituras sistemáticas de autores como Durkheim, Jerusalem, Levy-Bruhl e na teoria de Gestalt,
realiza incursões na epistemologia da ciência.
Opõe-se frontalmente ao modelo empirista-mecanicista, considerando a não-neutralidade
tanto do sujeito, quanto do objeto e do conhecimento, condizente com uma concepção construtivista
da verdade, onde o ato de conhecer é permeado por condicionantes sociais , históricos,
antropológicos e culturais.
Estabelece categorias tais como, coletivo de pensamento e estilo de pensamento. O primeiro
pode ser compreendido como “comunidade de indivíduos que compartilham práticas concepções,
tradições e normas”( Leite e outros, 2001), onde a maneira própria de ver o objeto do conhecimento
( o ver formativo) e de interagir com o mesmo, determina o estilo de pensamento.
Nesse ponto, podem-se encontrar as primeiras articulações com o processo da comunicação
científica, em particular, no processo de disseminação científica, sendo até a nomenclatura (
intrapares e extrapares) próxima da discussão acima, onde aqui nos referimos a coletivos de
pensamento especializados, constituídos pelos pesquisadores e seus pares.
Um dos vários elementos que diferenciam essa abordagem epistemológica estabelece-se na
relação entre o sujeito e o objeto, tradicionalmente interpretada de forma dicotômica, para Fleck, ao
contrário, coexistem o sujeito (coletivo e o individual), objeto, estilo e coletivo de pensamento,
intermediados pelas denominadas conexões ativas e passivas.
Um esquema que facilita a visualização dessas relações pode ser representado como a
1
seguir :
Conexões ativas
Estilo de Pensamento/Coletivo de Pensamento
Conexões
Passivas
S coletivo
S indivíduo
O
Nesse sentido, uma discussão bem interessante refere-se ao papel dos círculos
esotéricos e exotéricos, no relacionamento dos coletivos de pensamento.
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Esquema apresentado na disciplina Fundamentos Epistemológicos da Educação Científica e Tecnológica (Delizoicov,
2002)
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Como observado por Delizoicov e outros(2002), o estilo de pensamento é estabelecido
através de círculos esotéricos concêntricos, interagindo com círculos mais exotéricos, processo de
articulação e relacionamento entre os diferentes coletivos de pensamento.
A comunicação científica, dos periódicos especializados em particular, é considerado, nessa
perspectiva, como elemento importante da disseminação de diferentes estilos de pensamento entre
coletivos diferentes. Fleck, menciona os canais de comunicação como instrumentos de
disseminação científica.
“ A palavra impressa, o cinema e o rádio possibilitam, apesar da distância e do escasso contato
pessoal, o intercâmbio mútuo de pensamentos dentro da comunidade de pensamento e a relação
entre os círculos esotéricos e exotéricos”
(Fleck, 1986, p.154)
No caso da disseminação científica intrapares, temos a circulação de idéias nos círculos
esotéricos de especialistas, e na disseminação extrapares, por sua vez, a circulação nos diversos
círculos exotéricos de especialistas, como exemplificado pelas revistas de Física, Geologia ou
Ortodontia (intrapares/esotéricos) e de economia política e ciências sociais (extrapares/exotéricos).
Um exemplo bastante didático apresentado por Cutolo(2002) que explica a tradução do fato
científico entre círculos eso e exotéricos, menciona o papel da revista especializada e das
comunicações em Congressos,nesse processo:
“Como exemplo utilizarei um fato médico como a asma brônquica. Podemos imaginar uma
comunidade de pesquisadores que investigam uma nova droga no tratamento da crise aguda. Estes
pertencem a um círculo pequeno e seleto. Os trabalhos com seus resultados são disponibilizados em
um Congresso de Pneumologia Pediátrica e veiculados em uma revista que atende o mesmo
grupo.Estes especialistas formam um círculo um pouco maior e exotérico em relação aos
pesquisadores. Suponhamos que os pneumologistas pediátricos trabalhem num Hospital Pediátrico
de ensino e normalizem esta nova terapia para uso rotineiro. Os pediatras gerais que trabalham na
emergência passarão a utilizar a conduta em seus pacientes. Aos pais dos pacientes cabe saber que
existe um novo produto e como deve ser utilizado conforme a prescrição médica. Estes últimos
constituem o maior círculo, o mais exotérico, que legitima a necessidade de pesquisa daquele
pequenino e mais esotérico grupo, o dos pesquisadores. À medida que o fato passou os limites de
seu círculo, ele foi retraduzido e simplificado.” (Cutolo, 2002, p.37)
E importante ressaltar que os resultados de pesquisa disseminados nos periódicos
especializados hoje em dia caracterizam uma outra circulação de idéias entre os coletivos de
pensamento de cientistas, carregando um estilo de pensamento impregnado de interesses diferentes
daqueles existentes nos séculos passados.
Por trás dessa dinâmica, pode-se entender o condicionamento realizado pelo estilo de
pensamento sobre os saberes dos diferentes coletivos de pensamento, implicando num trabalho
cooperativo, de caráter essencialmente coletivo.
Considerações finais
A
Teoria de Conhecimento de Fleck pode dar subsídios para uma interpretação
epistemológica da comunicação científica como produção coletiva do conhecimento científico,
possibilitando um diálogo entre o quadro teórico do Jornalismo Científico e a Educação Formal,
aumentando o leque de opções disponíveis para a formação do professor tanto das Ciências
Naturais, quanto do ensino fundamental.
Essa articulação se faz necessária devido à crescente aproximação dos coletivos dos
Divulgadores da Informação Científica e Tecnológica e dos coletivos dos educadores , em
particular, da Educação Científica e Tecnológica e pode auxiliar ao professor de ciências
compreender outros aspectos das discussões da epistemologia da ciência, e possivelmente,
encontrar caminhos para a renovação de sua prática docente e conseqüentemente dos conteúdos
escolares..
A justificativa da utilização das idéias de Ludwik Fleck em detrimento de outros
epistemólogos,tornaria esse trabalho muito extenso, fugiria do foco da nossa discussão e poderia
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criar um outro artigo dentro desse2 . Por enquanto, é importante ressaltar que a especificidade das
discussões que esse autor realiza sobre as regras gerais do coletivo de pensamento, seus círculos eso
e exotéricos e a circulação de idéias intra e intercoletivamente, certamente diferencia a sua
discussão dentre outros epistemólogos se focada a disseminação da informação científica, como
aqui apresentada. Em artigo recente, publicado no CBEF, Delizoicov (2004) utilizando o referencial
de Ludwik Fleck , apoiado numa ampla revisão bibliográfica, apresenta uma profunda discussão
sobre a produção acadêmica do campo de Ensino de Ciências, demonstrando a potencialidade desse
referencial teórico para o amadurecimento de questões contemporâneas, pertinentes à área.
Os desdobramentos mais específicos da abordagem aqui desenvolvida para a educação
científica e tecnológica e a divulgação científica(e na relação entre ambas), determinam uma das
possíveis continuidades desse trabalho, proposto para servir de levantamento de outras discussões
entre os diversos coletivos de pensamento da comunidade acadêmica e seus respectivos círculos eso
e exotéricos.
Agradecimentos
Agradecemos as valiosas contribuições do Prof. Dr. Demétrio Delizoicov, apresentadas
detalhadamente na primeira versão desse trabalho.
Bibliografia
CUTOLO, L.R.A. Epistemologia Básica e suas aplicações em Saúde Pública.(trabalho apresentado
como parte de concurso público para prof.Adjunto).Florianópolis, 2002.
CUTOLO, R.A. Estilo de Pensamento em Educação Médica. Tese de Doutorado em Educação e
Ciência.Florianópolis, CED/UFSC,2001.
DA ROS,M.A. Estilo de Pensamento em Saúde Pública-Um Estudo da Produção da FSP-USP e
ENSP-FIOCRUZ entre 1948 e 1994, a partir da Epistemologia de Ludwik Fleck.Tese de Doutorado
em Educação e Ciência, Florianópolis, CED/UFSC,2000.
DELIZOICOV, D. e outros. Sociogênese do conhecimento e Pesquisa em Ensino: Contribuições a
partir do referencial Fleckiano.Em:Caderno Brasileiro de Ensino de Física.Florianópolis,
UFSC/DF,v.19, n.1, 2002.
DELIZOICOV, D .Notas de aula da disciplina: Fundamentos Epistemológicos da Educação
Científica e Tecnológica , Florianópolis, PPGECT-UFSC, 2002.
______ Pesquisa em Ensino de Ciências como Ciências Humanas Aplicadas.Em:Caderno Brasileiro
de Ensino de Física.Florianópolis, UFSC/DF,v.21, n.2, 2004.
DELIZOICOV, N. O professor de Ciências Naturais e o Livro Didático(No ensino de Programa de
Saúde).Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Educação, UFSC, 1995.
DELIZOICOV,N. . O movimento do sangue no corpo humano: história e ensino .Tese de
Doutorado. Programa de Pós-graduação em Educação, UFSC, 2002.
FLECK,L. La Génesis y el desarollo de um hecho científico. Madrid. Alianza Editorial S.A, 1986.
HERNANDEZ-CAÑADAS, P.L. Os periódicos Ciência Hoje e Ciência e Cultura e a divulgação da
ciência no Brasil.Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro, IBICT/ECO/UFRJ, 1987.
LEITE, R.C.M e outros. A História das Leis de Mendel na perspectiva Fleckiana.Em: Revista
Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, 1(2)97-108, 2001.
SCHÄFER,L e Schnelle, T. Los Fundamentos de la visión sociológica de Ludwik Fleck de la teoria
de la Ciência.Em:Fleck, L.: La Génesis y el desarollo de um hecho científico. Madrid. Alianza
Editorial S.A, 1986.
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Para um aprofundamento da utilização desse referencial em teses publicadas aqui no Brasil, ver :CUTOLO (2001),
DA ROS (2000) e DELIZOICOV (2002)
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