encontros teológicos 56

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Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC
ISSN 1415-4471
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FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARA
INSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA
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Encontros Teológicos. Revista do Instituto Teológico de Santa Catarina –
ITESC, n. 56, Florianópolis, 2010.
Quadrimestral ISSN 1415-4471
I. Instituto Teológico de Santa Catarina
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ENCONTROS TEOLÓGICOS
Revista quadrimestral fundada em 1986
Diretor: Elias Wolff
Editor: Vitor Galdino Feller
Redator: Ney Brasil Pereira
Conselho Editorial:
Celso Loraschi – ITESC – Florianópolis, SC
Domingos Nandi – ITESC – Florianópolis, SC
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Elias Wolff – ITESC – Florianópolis, SC
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Lilian Blanck de Oliveira – FURB – Blumenau, SC
Luiz Carlos Susin – PUC-RS e ESTEF – Porto Alegre, RS
Márcio Fabri dos Anjos – Pontifícia Faculdade N. Sra. da Assunção – São Paulo, SP
Maria Clara Bingemmer – PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ
Maria de Lourdes Pereira Dias – UFSC – Florianópolis, SC
Marlene Bertoldi – ITESC – Florianópolis, SC
Ney Brasil Pereira – ITESC – Florianópolis, SC
Rudolf von Sinner – EST – São Leopoldo, RS
Valter Maurício Goedert – ITESC – Florianópolis, SC
Vilmar Adelino Vicente – ITESC – Florianópolis, SC
Vitor Galdino Feller – ITESC – Florianópolis, SC
CoNSELHO CONSULTIVO:
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Armando Lisboa – UFSC – Florianópolis, SC
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Érico Hammes – PUC-RS – Porto Alegre, RS 
Evaristo Debiasi – ITESC – Florianópolis, SC
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Gabriele Cipriani – CONIC – Brasília, DF
Gertrude Marques IDP – ITESC – Florianópolis, SC
Joaquim Cavalcante – Universidade Estadual de Goiás – Itumbiara, GO
Luís Dietrich – ITESC – Florianópolis, SC
Luís Inácio Stadelmann SJ – ITESC – Florianópolis, SC
Márcio Bolda da Silva – ITESC – Florianópolis, SC
Mari Hammes – ITESC – Florianópolis, SC
Marta Magda Antunes Machado – ITESC – Florianópolis, SC
Paulo Cezar da Costa – PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJ
Roberto Iunskovski – UNISUL – Florianópolis, SC
Sérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PR
Siro Manoel de Oliveira – ITESC – Florianópolis, SC
Vilson Groh – ITESC – Florianópolis, SC
Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa.
Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisadores e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o
objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de
informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais.
Sumário
Editorial ....................................................................................................... Separação entre o Povo Eleito e o Estado de Israel
Luis I. Stadelmann, SJ............................................................................................... A propósito do Ano Sacerdotal
Vilmar Adelino Vicente . ........................................................................................... Igreja e mobilidade humana (exigências, desafios, dimensão do ser
e agir eclesial)
Sidnei Marco Dornelas CS ...................................................................................... Vida política e Igreja: O direito-dever do eleitor-cidadão
Thierry Linard de Guertechin S.J. ..........................................................................
A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados
Márcio Bolda da Silva ............................................................................................. Igreja e Cultura
Aroldo Braga ........................................................................................................... Igreja e sociedade: entre profecia e legitimação
Luiz José Dietrich ................................................................................................... Acordo Brasil – Santa Sé: Relações tuteladas pelo direito
David Bruno Goedert .............................................................................................. 7
11
27
43
57
75
101
119
133
Comunicações:
Invocação de Deus na Liturgia
Ney Brasil Pereira...............................................................................................
“Costela” ou “lado” de Adão em Gn 2,21
167
Ney Brasil Pereira...............................................................................................
171
Recensões...................................................................................................... 177
Crônicas........................................................................................................ 187
Editorial
A Igreja se constrói institucionalmente no processo histórico de
relação com a sociedade, assimilando elementos sócio-culturais que
crê condizentes com sua natureza e missão. Isso manifesta-se em suas
estruturas, sua teologia, sua liturgia, sua prática evangelizadora. Essa
assimilação, não sem riscos, acontece por necessidades pastorais e
também por outros fatores, como a decisão de pessoas e/ou grupos
conforme as circunstâncias.
Contudo, a relação Igreja-sociedade não é isenta de tensões,
como a história o demonstra. O fato de a Igreja incorporar determinadas características do contexto social na sua própria configuração
institucional e em sua prática evangelizadora não significa que automaticamente ela dialogue com esse contexto. Na Idade Moderna, por
exemplo, o Syllabus do Papa Pio IX (1864) fez oposição aos movimentos
que propunham os direitos comunitários, a corresponsabilidade de todos os cidadãos na tomada de decisões, a liberdade e a igualdade entre
as pessoas. O tema dos “direitos humanos” não entrou facilmente na
Igreja. O concílio Vaticano I combateu os ideais da Revolução Francesa, sobretudo o reconhecimento da “vontade do povo”. Entendia-se
que essa vontade precisa estar submetida “às ordens da hierarquia
eclesiástica e aos preceitos do direito natural”. A razão teológica é que
o agir salvífico de Deus tem mediação exclusiva na estrutura eclesial
e não nos sistemas sociais. Gregório XVI, em sua encíclica Mirare vos
(1831) afirmou ser uma “alucinação” o fato “de que o homem possui
liberdade de consciência e deve exigi-la”. Condenou as liberdades
modernas e a separação entre Igreja e Estado.
A consequência disso é a concepção de uma teologia, uma espiritualidade e uma ação pastoral, distanciadas do contexto social. Daqui
os fundamentalismos religiosos, a compreensão literal das Escrituras
Sagradas, o pietismo, o dualismo espiritual, a fuga de si e de todos.
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Editorial
Os tempos mudam e mudam as realidades que vivem no tempo.
No final do século XIX, a Igreja ensaia uma nova postura frente à sociedade. Busca superar a visão dualista e de oposição Igreja – Sociedade.
E busca também superar a intenção de expandir a ação eclesial de
modo a reduzir a autonomia da sociedade. O que se pretende agora é
um jeito de estar na sociedade que se caracterize pelo diálogo e parceria na solução dos problemas sociais. Leão XIII em Immortale Dei
(1885), afirma que a Igreja não pode “ser acusada de ser inimiga de
uma sadia e legítima liberdade”, sejam cívicas ou religiosas. O mesmo
papa inicia uma “doutrina social” com a encíclica Rerum novarum
(Leão XIII, 1891).
Mas é com o Vaticano II (1962-1965) que se atingiu melhor
equilíbrio na relação Igreja-Sociedade. O espírito de renovação e
abertura para o social se manifestam fortemente nas encíclicas de João
XXIII, Mater et magistra (1961) e Pacem in terris (1963), na encíclica
Populorum progressio (1967) de Paulo VI, e em documentos conciliares
como Gaudium et spes e Dignitatis humanae. O programa do Vaticano
II inclui, de fato, uma compreensão de liberdade, de convivência social,
de autonomia dos povos, de esforços para a superação dos problemas,
que sintoniza com as exigências sociais da época. Não é uma simples
adaptação da Igreja ao novo tempo. É a própria Igreja que se renovava ao compreender a necessidade de mudanças “na cabeça e nos
membros”, sobretudo com a eclesiologia do povo de Deus.
Isso tem efeitos positivos na relação da Igreja com a sociedade.
Princípios que há séculos eram reivindicados por grupos, da sociedade e da Igreja, passam agora a constituir a nova consciência da
Igreja em sua natureza e ação (autonomia do mundo e da sociedade
em áreas como a economia, a política, a cultura, a ciência, a técnica;
a liberdade de consciência, a liberdade religiosa, a tolerância e os
direitos humanos, o diálogo ecumênico e interreligioso, a afirmação da
salvação universal, entre outros). Em nossos dias, os direitos sociais
são ampliados aos “direitos da criação”, abrangendo questões do
meio-ambiente, da ecologia, do aquecimento global, da água, etc.
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Encontros Teológicos nº 56
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Editorial
Na América Latina, a recepção criativa dos ensinamentos conciliares e das encíclicas sociais possibilitou à Igreja real engajamento
nas questões sociais, integrando a promoção humana no projeto de
evangelização. Aqui, questões relativas à pobreza, ao desemprego, à
fome e à miséria, à opressão em todas as suas formas, são combatidas
com a mesma força com que se prega o Evangelho, por entender que
o próprio Evangelho é que exige a superação de todos os problemas
sociais que não permitem a “vida em abundância” dos filhos e filhas
de Deus. O principal instrumento criado para isso são as “pastorais
sociais”, que atuam em ambientes onde emergem os maiores problemas que atingem a sociedade e a consciência eclesial, como o mundo
operário, a mobilidade humana, a vida dos agricultores, os moradores
de rua, as prisões, a educação, a saúde, etc.
A Igreja entende agora que possui duas principais tarefas na
relação com a sociedade: 1) interpretar os contextos sócio-culturais,
revelando-lhes o possível significado religioso. Esses contextos têm
uma estrutura narrativa, com múltiplas perspectivas de sentido, revelam um significado de si e de algo que está além, no horizonte da fé.
2) Assegurar a fé e a esperança das pessoas nas experiências sociais
de constante desalento. Nesse contexto, a Igreja revela a face do Deus
no qual ela crê: libertador e salvador do mundo. Trata-se de uma
Igreja referida ao mundo, à sociedade. Sem essa referência ao mundo, à história, à sociedade, a Igreja não entende nem a si mesma em
sua natureza e missão, nem o mundo, nem a Deus. Só é possível falar
eclesialmente de Deus inserido no processo histórico da sociedade. No
acontecer mundano da ação divina é que acontece a fé eclesial. Assim,
a Igreja vive da fé em Deus que atua no mundo. Ali O reconhece, ali
O celebra, ali O testemunha.
A presente edição da revista Encontros Teológicos quer dar a
sua contribuição para a compreensão da relação Igreja-Sociedade
em nossos dias e em nosso contexto. Luís I. Stadelmann, SJ trata da
Separação entre o Povo Eleito e o Estado de Israel, no contexto do
Antigo Testamento. Ainda a propósito do Ano Sacerdotal, Vilmar A.
Vicente trata do presbítero, sua formação, identidade e ministério.
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Editorial
Sidnei Marcos Dornelas trata da relação Igreja e Mobilidade Humana
– Exigências, desafios, dimensão do ser e agir eclesial; Thierry Linard
de Guertechin S.J, escreve sobre Vida Política e Igreja – O direitodever do eleitor-cidadão; Márcio Bolda da Silva reflete sobre A práxis
moral de Jesus e os diferentes estigmatizados; o tema Igreja e Cultura,
é abordado por Aroldo Braga; Luiz José Dietrich, a partir do estudo
de textos de Amós e Jeremias, reflete sobre Igreja e Sociedade: entre
profecia e legitimação; Davi Bruno Goedert faz uma pertinente análise sobre o Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito.
Temos, enfim, comunicações, recensão e crônicas.
Elias Wolff
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Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Resumo: O relato da separação entre o Povo Eleito e o Estado de Israel consta
nos livros da Bíblia, que narram, de primeira mão, os acontecimentos históricos e
citam a Deus como testemunha de quem os causou. Os líderes de Israel instituíram
uma liturgia em memória da catástrofe nacional, para reparação da culpa pelas
transgressões, e para reconciliação dos remanescentes com Deus, valendo-se da
nova Aliança apregoada pelo profeta Jeremias, e instituída por Deus com os sobreviventes do Povo Eleito. A insigne tarefa que lhes foi incumbida era a de constituírem
uma comunidade de fé, que fosse emancipada do Estado teocrático de Israel, sem
o respaldo de qualquer instituição estatal. Era o paradigma da religião revelada, a
ser implantada entre todos os povos para a salvação da humanidade.
Abstract: The separation between the Chosen People and the State of Israel is
narrated in the account of the destruction of Jerusalem and the deportation of its
citizens, extant in the Bible, which attributes the cause to external aggression with
no connection with a political or social turmoil from within the nation. The leaders
of Israel instituted a memorial liturgy to be held in memory of the national disaster,
in order to make reparation of the transgressions and to reconcile with God all the
inhabitants, by means of the new Covenant sealed by the prophet Jeremiah and
ratified by God on behalf of the survivors of the Chosen People. The immense
task imposed on them was to establish a faith community framed in a new social
and political setting, free from the framework of the theocratic State of Israel and
emancipated from the tutelage of any kind of Jewish national institution so that the
biblical religion to be implanted from now on was to be presented to all peoples
and nations as the only paradigm for the salvation of humankind.
Separação entre o Povo Eleito
e o Estado de Israel
Luis I. Stadelmann, SJ*
*
O autor, Doutor em Língua e Literatura Semítica, Cincinnati, e Mestre em Ciências
Bíblicas, Roma, é Professor no ITESC.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010, p. 11-26.
Separação entre o Povo Eleito e o Estado de Israel
Introdução
A destruição de Jerusalém e o Exílio de seus habitantes, no começo do século VI r, tiveram um grande impacto sobre o Povo Eleito não
somente na área política e na vida social, mas também, no âmbito litúrgico. Doravante se divide a história do povo de Israel em dois períodos:
o pré-exílico e o pós-exílico. Além disso, surgiu uma preocupação dos
israelitas de todos os tempos, instigando-os para saber, se houve uma
ruptura irreparável entre os dois períodos ou uma continuidade histórica.
Surgiu também um questionamento sobre as formas institucionais da
religião de Israel após a destruição de Jerusalém, do templo, da realeza
e do Estado teocrático. O impacto da catástrofe nacional se concentrava
no fato de terem sido destruídas as instituições mais sagradas de Israel,
representando os quatro sinais da Eleição divina do Povo Eleito. Enquanto essas instituições estavam de pé, bastava aos fieis contextualizar
aí sua vivência da fé em comum, sua frequência assídua na liturgia e
a participação nos grupos de formação religiosa, comprovando que
estavam vivendo sob a Eleição divina. Na verdade, o destino de Deus
na história estava vinculado ao destino do povo de Israel. Além disso,
estava ligado a um princípio que transcende a categoria gnosiológica,
pois lembrava aos fiéis que estavam unidos a Ele não por servidão a um
Deus tutelar, mas pelos laços de amizade ratificada pela Aliança sagrada.
Em outras palavras, a presença de Deus não era um assunto da categoria
da universalidade da verdade e dos valores absolutos e autônomos, mas
da revelação divina sobre a mediação do Povo Eleito como instrumento
de realização do desígnio salvífico de Deus na história.
Liturgia em memória da destruição de Jerusalém
A celebração do culto religioso pela comunidade dos fiéis evoca
simbolicamente não apenas o ciclo da vida e das experiências sazonais da
natureza, mas partilha principalmente a recordação dos eventos da esfera
pública na sociedade civil. Reflete também, precipuamente, as situações
marcantes que afetam o rumo da História da Salvação. Ora, os eventos
trágicos que o Povo Eleito sofreu com o colapso total do Reino do Norte,
de Israel, um século e meio antes, quando aconteceu a invasão do exército
do Império Assírio (em 721 a.C.), causando a redução das doze tribos
até restarem apenas duas. E, por acúmulo da desgraça, chegou a vez do
Reino do Sul, de Judá, cujas duas tribos restantes tiveram que aturar a
12
Encontros Teológicos nº 56
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Luis I. Stadelmann, SJ
destruição de sua pátria pelo Império Babilônio (em 587 a.C.). Não se
tratava apenas da extinção da nação e da escravização dos habitantes que
sumiram do mapa desde tempos antigos, e ao longo de vários séculos,
mas abriu-se uma lacuna na História da Salvação, deixando à mercê de
um futuro incerto os remanescentes do povo de Israel.
Entretanto, a extinção da estrutura tribal do povo israelita não
suprimiu as comunidades de fé. Por isso, os líderes do povo, enquanto
guardiões da tradição religiosa, estavam ansiosos por salvar do esquecimento a herança do patrimônio espiritual do povo de Israel. Instituíram,
pois, um memorial litúrgico para relembrar aos fiéis, na presença de Deus,
o impacto dessa catástrofe nacional. A intenção da celebração litúrgica
não era reavivar uma nostalgia ou saudosismo do passado, mas visava
apelar a Deus para criar uma nova obra salvífica a fim de compensar as
perdas sofridas. Se fosse apenas uma recordação dos acontecimentos
trágicos, seria mero memorial da lembrança coletiva do povo, sem servir
como fator de coesão dos remanescentes, reunidos em oração litúrgica
para pedir a intervenção de Deus na história. Embora constituíssem
apenas uma minoria, cercados por uma maioria de seguidores de outras
religiões, eram, todavia, membros do Povo Eleito, destinados a integrar
o resto dos israelitas do Norte e, também, dos judeus do Sul. É que não
havia começado em Israel a obra missionária em grande escala para
converter os prosélitos ao Povo de Deus. Sem o incremento de novos
membros, as comunidades de fé diminuíam intensivamente cada vez
mais, com grave risco de desaparecerem pouco a pouco. Se viessem a
faltar os fiéis na “Terra Prometida”, Deus não teria colaboradores a seu
dispor para realizar o desígnio salvífico entre os povos.
O luto nacional durante setenta anos (586-520 a.C.)
O motivo da instituição da liturgia em memória da catástrofe
nacional surgia da convicção, entre as lideranças religiosas de Israel, de
que a fé em Deus corria o risco de diluir-se em vagas reminiscências de
sentimentos saudosistas do seu patrimônio cultural e religioso, caso não
houvesse uma religião, com suas práticas e grupos de oração, que garantisse a vivência da fé em comunidade. Lembranças religiosas do passado
costumam restringir-se a meras ideias que dificilmente influenciam mentalidades de gerações futuras e, muito menos, se enraízam em vivências
que empolgam os fiéis, cujas atitudes influenciam o próximo. Em poucas
palavras: fé em Deus, sem religião, está com os dias contados.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
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Separação entre o Povo Eleito e o Estado de Israel
Por isso, após a destruição de Jerusalém (em 587 a.C.), os líderes
religiosos instituíram o dia de luto nacional e de jejum, no quarto mês,
em memória da queda de Jerusalém; no quinto mês, em memória do
incêndio do Templo; no sétimo mês, em memória do assassinato do governador Godolias (Jr 41,1-2); no décimo mês, em memória da extinção
do Estado de Judá por ordem de Nebuzaradan, comandante do exército
babilônio, e ministro de Nabucodonosor, rei da Babilônia (2Rs 25,8-9).
O Reino de Judá caiu em poder do inimigo estrangeiro como vítima da
política expansionista do Império da Babilônia, que se estendia desde a
Mesopotâmia até a Palestina.
A espiritualidade dos fiéis, nas reuniões cultuais durante o rito
penitencial, por ocasião do dia de luto nacional, estava transida de lástima
pelas instituições que não existiam mais. Mas, no fundo, tratava-se de
uma queixa amarga pela ausência de Deus, e precisamente no momento,
quando sua presença atuante junto aos fiéis fazia tanta falta. Foram redigidas cinco elegias1, inseridas no Livro das Lamentações sobre “Jerusalém
desolada” (1ª elegia); “O dia da ira do Senhor” (2ª elegia); “Esperança
em meio à aflição” (3ª elegia); “A dimensão do Juízo divino” (4ª elegia);
“Súplica de clemência e restauração” (5ª elegia).
Elegia à nação destruída
A segunda elegia do livro das Lamentações (Lm 2,1-22) estilizou
em versos os pungentes lamentos pela ação de Deus como causa principal da destruição de Jerusalém e das instituições sagradas, ao passo que
os inimigos são meramente causa instrumental. Entre os escombros da
devastação geral são mencionados os seguintes resíduos: as muralhas de
Sião (2,1.4.8), a Arca da Aliança (2,1)2, os emblemas da realeza (2,2.6),
o lábaro do Estado de Israel totalmente extinto (2,5), os ornamentos do
14
1
As cinco elegias contêm 22 estrofes; as quatro primeiras são compostas em acrósticos alfabéticos, ao passo que a quinta não tem o formato poético do acróstico, pois
consiste numa lamentação coletiva. As letras com nomes hebraicos correspondem,
em ordem ascendente, à escrita do alfabeto com letras semíticas.
2
A “Arca da Aliança” é designada simbolicamente como “o esplendor da santidade” (Sl
96,9) ou “escabelo dos pés de Deus” (Sl 99,5; Lm 2,1).
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Luis I. Stadelmann, SJ
templo (2,7), as pedras do altar (2,7), os símbolos dos sacerdotes (2,20)
e dos profetas (2,20), e as casas dos habitantes do país (2,20-22)3.
I. Alef
Como ofuscou, indignado,
o Senhor, a filha de Sião4.
Precipitou do céu à terra
o esplendor de Israel;
não se lembrou do escabelo de seus pés,
no dia de sua cólera.
1
II. Bet
Senhor destruiu sem piedade
todas as Campinas de Jacó;
demoliu em seu furor
as fortalezas da filha de Judá;
lançou por terra e execrou
a realeza e seus príncipes.
2
III. Guimel
Despedaçou no ardor de sua cólera
todo o poder de Israel;
recolheu sua destra
ante o inimigo;
inflamou-se dentro de Jacó como fogo crepitante
que devora tudo em redor.
3
IV. Dalet
Como inimigo retesou seu arco,
alçou a mão direita
e, como adversário, trucidou
tudo que alegrava os olhos;
sobre a tenda da filha de Sião
alastrou como fogo a sua ira.
4
3
Cf. John Skinner, Jeremias, Profecia e Religião, (Trd. de Rubem Alves), ASTE, São
Paulo, 1966, esp. 257s.
4
O nome de “Sião” encontra-se na Bíblia (2Sm 5,7), como nome da fortaleza situada no
monte Ofel, ao sudeste do Templo. O mesmo nome é dado também, alhures, à colina
ao norte, onde se situa o Templo e, por extensão, a toda a Cidade Santa. Existiam,
portanto, duas instituições no “Monte Sião”: o Templo, no lado norte, e o palácio real, no
lado sul, ambos guarnecidos por muralhas. Desde então se usavam como sinônimos
as expressões “fortaleza de Sião” e “cidade de Davi” (1Cr 11,5) para indicar a cidade
de Jerusalém. A designação da capital do país com o nome de Sião visava ressaltar
a importância de Jerusalém como centro político e religioso de Israel.
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Ano 25 / número 2 / 2010
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Separação entre o Povo Eleito e o Estado de Israel
V. He
5
O Senhor portou-se como inimigo
e abateu Israel5;
abateu-lhe todos os palácios
e arrasou suas fortalezas;
multiplicou na filha de Judá
lamentação e pranto.
VI. Waw
6
Devastou sua cabana bem como o jardim,
e arrasou seu lugar de reunião.
O Senhor fez esquecer em Sião
solenidade e sábado;
rechaçou no furor de sua ira
o rei e o sacerdote6.
VII. Zain
7
O Senhor repudiou seu altar7
e execrou o santuário8;
entregou em mãos dos inimigos
os muros de seus palácios;
e eles levantaram a voz no templo do Senhor
como em dia de assembleia.
VIII. Het
8
O Senhor resolveu arrasar
a muralha da filha de Sião;
estendeu o cordel e não retirou
sua mão antes de abatê-la;
fez gemer baluarte e muralha
e juntos desmoronaram...
XVII. Ain
17
Realizou o Senhor quanto havia decretado,
16
5
A extinção do Estado teocrático de Israel acarretou a eliminação das estruturas estatais
que tinham dado respaldo e proteção às equipes do ensino religioso.
6
O rei de Judá era Sedecias que foi aprisionado e deportado para Babilônia, onde
faleceu (Jr 39,4-7). Com a morte violenta dos sacerdotes acabaram os ministros do
culto que residiam em Jerusalém, sem incluir os sacerdotes da redondeza e de outros
povoados que ficaram poupados do morticínio.
7
A referência ao altar consta do rol de objetos destruídos e não da profanação. Por
isso, o altar dos holocaustos pôde ser reconstruído, porque consistia numa pilha
de pedras encimada por uma lápide para as oferendas. Esse altar reconstruído foi
utilizado novamente para o incenso e a oblação de oferendas (Jr 41,5).
8
O “santuário” mencionado aqui é sinônimo do Templo de Jerusalém.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Luis I. Stadelmann, SJ
cumpriu sua palavra
que pronunciara desde os tempos antigos;
arrasou sem compaixão,
fez regozijar-se de ti o inimigo
e exaltou o poder de teus adversários...
XX. Resh
20
Vê, Senhor, e considera
a quem assim trataste!
Deviam as mulheres comer seu fruto,
as crianças de seu carinho?
Deviam ser trucidados no templo do Senhor
sacerdotes e profetas?9
XXI. Shin
21
Jazem por terra nas ruas
meninos e velhos;
minhas virgens e meus jovens
caíram sob a espada.
Mataste no dia de tua ira10,
massacraste sem piedade;
XXII. Taw
22
convocaste, como para uma festa,
os terrores que me cercam.
No dia da ira do Senhor não houve
quem se salvasse e fosse poupado.
Aos que criei e eduquei,
meu inimigo os exterminou (Lm 2,1-8.17.20-22).
Diante das ruínas fumegantes de Jerusalém e das cidades arrasadas no território da Judeia, os refugiados da população remanescente
identificam os vestígios que restaram da civilização israelita. À luz da
localização dos objetos, e a partir dos resquícios dos antigos moradores,
os sábios, atuando como homens de Deus e autores da “Literatura Sapiencial”, compuseram as Lamentações, para ficarem consignados por
escrito, não apenas o elenco dos restos que foram encontrados no monte
Sião e alhures, na região da Palestina, mas o que serviu de indício para
recordar o lamento pela perda de vidas humanas e pela extinção do Estado
“Os sacerdotes e profetas” são mencionados na referência aos ministros do culto e
líderes religiosos que foram trucidados na destruição do Reino do Norte e do Reino
do Sul.
10
“Dia da ira de Javé” é expressão idiomática da Bíblia, referindo-se à punição divina
aos malfeitores; prefiguração do juízo final.
9
Encontros Teológicos nº 56
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17
Separação entre o Povo Eleito e o Estado de Israel
judaico. Havia, porém, uma testemunha ocular, o profeta Jeremias, que
presenciou não só a catástrofe nacional, mas também os antecedentes
históricos desde a queda do Império Assírio (em 627 a.C.), até o apogeu
do Império Babilônio (em 604 a.C.), e a queda de Jerusalém (em 587
a.C.)11.Foi ele que viu também a má sorte dos israelitas que se refugiaram
no Egito, mas lamentavelmente, sofreram um fim inglório que ele próprio
prenunciara aos fugitivos na terra estrangeira.
O profeta Jeremias como vítima da catástrofe nacional
Fonte de novo alento para os fiéis reunidos nas reuniões de culto
eram as mensagens de encorajamento do profeta Jeremias. Era preciso
que um profeta, como homem de Deus e mensageiro da palavra divina,
pregasse nova esperança ao povo, e motivasse a todos para se engajarem
na promoção da coesão social, quando os partidos políticos não puderam
dar a sustentação às estruturas do Estado diante da ameaça de desestabilização da ordem pública, por ocasião da expansão do imperialismo babilônico. Jeremias era reconhecido como homem de influência e autoridade
em Israel, tanto pelos conquistadores como pelos cidadãos e, sobretudo,
era tido como portador da mensagem de salvação para os habitantes do
país. Era o profeta Jeremias incumbido por Deus para indicar o rumo
ao resto do Povo Eleito e seu papel na história em meio à crise social e
política. Oráculos proféticos eram, ao mesmo tempo, respostas a perguntas concretas. Mas a interpretação do rumo da História da Salvação,
como também, a intuição sobre o papel dos seus protagonistas, ficava ao
encargo do profeta12. Se Deus lhe revelar um oráculo sobre os desígnios
salvíficos, será, contudo, da alçada do profeta suscitar medidas concretas
para selecionar os efetivos que pusessem em prática a obra da salvação.
Diante da diminuição desses efetivos, Jeremias buscava alternativas.
Ora, a população autóctone de Judá estava lutando para sobreviver, e
mal podia endossar um plano de fornecer reforços à reconstituição do
tecido social. Um grupo de judeus da elite migrou para o Egito, arrastando Jeremias para o exílio, embora mal pudessem manter-se no país
estrangeiro, sucumbindo todos (Jr 42,18-22). O próprio profeta Jeremias
morreu no Egito, sem ter chance de comprovar o acerto de suas profecias
11
J. Luís Sicre, Profetismo em Israel, (Trd. de J.L. Baraúna), Petrópolis, Vozes, 2008;
Joel Rosenberg, “Jeremias”, em R. Alter e F. Kermode, Guia literário da Bíblia, (Trd.
de R. Fiker), Ed. UNESP, São Paulo, 1997, esp. p. 199-221.
12
18
Cf. A. Josef Scharbert, Die Propheten Israels um 600 v.Chr. Bachem, Köln 1967.
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e ver concretizar-se o surgimento do “povo restaurado no futuro”, como
se expressa o autor de um Salmo pós-exílico (Sl 102,19).
O legado profético de Jeremias tornou-se um incentivo para os
esforços da restauração do Povo Eleito13. Antes de tudo, era preciso aumentar o número dos seus membros. Por isso, ele contou com o retorno
dos exilados do Reino do Norte de Israel, que tinham sido deportados
pelos assírios para a Mesopotâmia, um século antes (em 721 a.C.). Além
disso, era de prever o problema que haveria de surgir com o retorno dos
exilados à pátria, e o desafio da integração com os habitantes do país.
Da solução a eventuais confrontos entre grupos humanos de diversa
procedência, por ocasião da repatriação dos membros do Povo Eleito,
dependerá o êxito da restauração da população. O salmista condiciona
a integração, em nível religioso, à mútua aceitação dos remanescentes
dos israelitas do Norte e dos judeus do Sul. Esses é que são mencionados
como “irmãos na fé” (Sl 50,20). Este salmo litúrgico foi composto para
a celebração da renovação da aliança entre Deus e o Povo Eleito e data
do período pós-exílico.
O tema da coesão social entre judeus repatriados e habitantes autóctones de Judá tornou-se atual no fim do Exílio da Babilônia. Quando
foi promulgado o edito do rei Ciro da Pérsia, os judeus da Babilônia
receberam a permissão de retornarem à pátria. As primeiras levas de
exilados puseram-se a caminho rumo à Palestina com o aval do império
persa (em 538 a.C.)14. O incentivo do profeta Jeremias ao movimento
de integração dos israelitas do Norte e dos judeus do Sul era muito mais
do que um movimento de imigração, porque se visava estreitar os laços
entre a tradição religiosa dos judeus e, não propriamente, o lugar de reassentamento dos imigrantes. Aliás, os territórios dos antigos reinos de
Judá e de Israel já estavam habitados, sem espaço para sediar migrantes.
13
Cf. A. Gelin, “Jérémie (le livre de)”, Dictionnaire de La Bible, Supplément IV, Letouzey
& Ané, Paris, 1949, col. 857-889.
14
O tema da coesão social entre judeus repatriados e habitantes autóctones de Judá é
desenvolvido no livro do Cântico dos Cânticos, cuja característica literária se baseia
na técnica de apresentar, mediante um texto cifrado, a temática que permite decifrar
a mensagem do autor da literatura sapiencial da Bíblia. O motivo que o levou a velar o
sentido sob a roupagem de cantigas de amor não foi o enlevo do poeta face ao inefável
ou a tentativa de enveredar pelas esferas da alegoria, mas a prudência política para
cobrir aos olhos das autoridades persas a promoção do nacionalismo judaico, pois
poderia suspeitar um movimento de insurreição contra a dominação estrangeira. Cf.
L. Stadelmann, Cântico dos Cânticos, Ed. Loyola, São Paulo, 2. ed. 1998.
Encontros Teológicos nº 56
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19
Separação entre o Povo Eleito e o Estado de Israel
Bastava, portanto, que se iniciassem as peregrinações para a Terra Prometida, por ocasião das solenidades, para que os romeiros participassem
da celebração litúrgica do Povo Eleito, de sorte que sua volta à terra de
origem significava a convergência ao centro religioso e a irradiação da
fé entre familiares e conhecidos.
A instituição da nova Aliança (Jr 31,31-34)
A “Aliança” sagrada é uma das duas colunas da religião de Israel,
e tem sua origem por revelação divina ao Povo Eleito no monte Sinai.
Sua característica é fundamentar a relação entre Deus e seu povo pelos
laços de amizade e, não por servidão, como entre os povos pagãos em sua
veneração do deus tutelar. A finalidade da Aliança sagrada é de mediação
da salvação divina dentro de dois âmbitos: na comunidade de fé e na
comunidade ética. Sua vigência é perene para os fiéis do AT e do NT,
mas admite uma atualização quanto ao uso dos meios, dos mediadores
e das mediações na história da salvação. Em outras palavras, não basta
ter fé em Deus, é importante, também, acolher os meios do encontro
d’Ele conosco.
É de notar que a Aliança do Sinai estava associada a uma religião
ligada ao nacionalismo judaico. Entretanto, não é o direito de cidadania
que garante aos fiéis o benefício da Aliança sagrada, pois essa não se
adquire por nascimento, nem por herança, nem por osmose, mas por um
ato de adesão pessoal a Deus. Aliás, o Templo, a cidade de Jerusalém,
o sacerdócio e o culto religioso tinham função assessória para canalizar
as bênçãos divinas às respectivas áreas de seu alcance. Além disso, é
bom lembrar que a Aliança sagrada não se reduz a uma ideia nem é mero
conteúdo conceitual, cuja relevância deixaria de ser virtual, desde que a
mente humana começasse a pensar nisso. Pois a eficácia dessa Aliança
se torna atual, toda vez que for ratificada pelo sacrifício oferecido na
liturgia da comunidade de fé15.
Em pauta está a novidade dessa Aliança. O próprio profeta Jeremias apresenta a inovação e o conteúdo essencial:
15
20
Veja-se o rito de ratificação da nova e eterna Aliança de Cristo no NT, celebrada em
cada S. Missa.
Encontros Teológicos nº 56
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Dias virão – oráculo do Senhor –, quando hei de fazer uma nova
Aliança com a casa de Israel e a casa de Judá. 32 Porém, será diferente
da que concluí com seus pais em que os tomei pela mão para fazê-los sair
do Egito. Essa Aliança eles violaram, por isso os rejeitei, mas continuei
senhor deles – oráculo do Senhor. 33 Esta é a Aliança que farei com a
casa de Israel a partir daquele dia – oráculo do Senhor: colocarei a
minha lei no seu coração, vou gravá-la em seu coração; serei o Deus
deles, e eles, o meu povo. 34 Ninguém mais precisará ensinar seu irmão,
dizendo: “Procura conhecer o Senhor!” Do menor ao maior, todos me
conhecerão – oráculo do Senhor. Já terei perdoado suas culpas; de seu
pecado nunca mais me lembrarei.
31
A novidade da Aliança está no valor perene e no objetivo de
substituir a antiga Aliança do Sinai. É que a antiga se tornou ineficaz
e, por isso, uma nova Aliança precisava ser estabelecida para vincular
a comunidade de fé com Deus, após o desaparecimento das estruturas
do Estado (Reino do Norte e do Sul), do governo monárquico de Davi,
da nação (de Israel), do Templo (o santuário nacional) e da cidade de
Jerusalém (a sede do governo central). Doravante haveria referência a
Sião, lugar litúrgico e local do altar dos holocaustos (Jr 31,6.12), onde
os sacerdotes oficiariam a liturgia sagrada, ratificando a Aliança (Jr
31,14). Esses é que são os elementos de uma religião viva (cultivada na
comunidade de fé), e não uma fé em Deus sem religião.
A substituição da antiga por uma nova Aliança é da iniciativa
divina . No futuro, Javé agirá diretamente sobre o coração do ser humano (v.33); a Lei divina não será mais gravada em tábuas de pedra,
mas no coração, sem que se tenha de ensinar (v.32-34). O conhecimento
de Deus estará baseado na experiência do perdão dos pecados17 e na
expressão do louvor divino e, por isso, não se precisa de outros meios
externos, como, p. ex., o ensino dos “preâmbulos da fé” ou de uma “teologia apologética” com argumentos sobre a existência de Deus (v.34).
Permanecendo, todavia completamente nacional, a religião será, pois,
personalizada. Vale dizer, que os fiéis estarão sob a moção do Espírito
de Deus que mora no seu coração. Entretanto, não se dispensa o papel
16
16
Cf. N. Flüglister, “Jeremias”, em J. Schreiner, Palavra e Mensagem do Antigo Testamento, (Trd. de B. Lemos), Ed. Teológica, Ed. Paulus, São Paulo, 2. ed., 2004, 239-258.
17
Com base na experiência da reconciliação com Deus foi instituída a “liturgia penitencial”, com seus nove elementos constitutivos, dando origem aos Salmos penitenciais,
(Sl 6; 32; 38; 51; 102; 130; 143), cf. L. Stadelmann, Os Salmos: Comentário e Oração,
Ed. Vozes, Petrópolis, 2001, p. 44-46.
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Separação entre o Povo Eleito e o Estado de Israel
da comunidade de ensinar o conhecimento de Deus à luz da revelação,
como se fosse possível substituí-la por uma espécie de intuição humana
ou ideias inatas surgindo espontaneamente do subconsciente. Na verdade,
Deus tem muitas maneiras de manifestar-se à nossa alma, nunca, porém,
por meio de veleidades da psique ou impulsos do capricho, ou ainda,
por tendências sublimadas da natureza humana. A inspiração divina age
sobre nossas faculdades superiores, do intelecto e da vontade, pois fomos
criados à imagem e semelhança de Deus18.
Entretanto, “personalizar” não significa imprimir-lhe uma dimensão intimista, mas visa realçar a experiência da presença de Deus
através da voz da consciência no coração do indivíduo (prevenindo,
encorajando, inculpando ou felicitando), e através da expressão do
louvor de Deus (pelas obras da criação e providência divina na História
da Salvação). Essa presença divina não é difusa e vaga, como intuição
a partir da doutrina da onipresença de Deus, mas resulta da vivência da
fé na celebração litúrgica19.
A nova Aliança dá acesso a uma nova forma de presença de Deus:
sem Templo, sem monte Sião, sem Jerusalém, sem o respaldo das estruturas de um Estado. Mas o que realmente importa é que deve haver
uma religião com práticas específicas de adoração de Deus, sem imiscuir
ritos de civismo judaico. Entretanto, essa nova Aliança precisava ser
ratificada por um sacrifício oferecido num rito religioso. Por isso, em
qualquer conjuntura política, social ou cultural, nunca deveria faltar a
liturgia da oferta do sacrifício a Deus, em reconhecimento pela Aliança
sagrada. Apesar da destruição do Templo pelos babilônios (em 587 a.C.),
continuava a oferta de sacrifício, como revela a romaria de um grupo de
fiéis, sobreviventes de Israel e Judá, vindos de Siquém, Silo e Samaria
para a oblação de oferendas no altar em Jerusalém (Jr 41,5).
22
18
Essa hendíadis, associa duas dimensões de auto-transcendência do homem: “imagem”
(hebr.: selem), de ordem natural, i.e. inteligência, e “semelhança” (hebr.: demut), de
ordem sobrenatural, i.e. graça santificante.
19
Em virtude da nova Aliança, revelada por Jeremias, foi instituída a liturgia de “renovação da Aliança” (Sl 50; 81; 95), após o Exílio; cf. L. Stadelmann, op. cit., p. 38.
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Luis I. Stadelmann, SJ
Separação entre comunidade de fé e sociedade civil
Jeremias viu que a religião, para durar, deveria ser emancipada
das instituições nacionais do Estado de Israel, que não lhe dariam mais
respaldo e sustentação, de sorte que o aparato externo, revestindo a
revelação de Javé ao Povo Eleito, teria que ser removido da fé bíblica20.
O pressuposto dessa emancipação é que a iniciativa não poderia ser de
ninguém mais senão o próprio Deus, porque só Ele seria capaz de fazer
um expurgo de todos os acréscimos à religião do povo de Israel. É que
muitas dessas instituições tiveram sua origem em tradições muito antigas,
cuja longevidade comprovaria o fato de estarem sob a égide de Deus.
Esses acréscimos foram destruídos pelo exército babilônio, sem dó
nem piedade, para erradicar qualquer resquício de insurreição em defesa
dos símbolos da religião dos vencidos. Foram arrasados: Jerusalém, a “Cidade Santa”, o Templo (incluído o “Santo dos Santos”, a Arca da Aliança,
os átrios, a esplanada, o altar de incenso e o altar dos holocaustos), o
palácio real e as casas da população urbana; os sacerdotes residindo em
Jerusalém sucumbiram à espada. Os habitantes da capital de Judá foram
exilados para Babilônia e o Estado de Israel foi extinto.
A destruição do Templo acabou com uma instituição espúria no
setor da arquitetura em Israel. Pois a configuração do Templo provinha
da Mesopotâmia e não se adaptou plenamente às funções litúrgicas em
Israel nem nas cidades do interior, como, p. ex., no santuário de Betel, de
Silo, de Samaria e alhures na Palestina. A razão está na diferença fundamental quanto à função da divindade. Ora, na Mesopotâmia se cultuava
no Templo o deus tutelar do Estado, ao passo que, em Israel, Javé não se
localizava no santuário porque era transcendente21. O Templo era mero
símbolo para o Povo Eleito sob especial proteção de Deus. Em todos
os povos antigos do Próximo Oriente existia o culto ao respectivo deus
tutelar: Marduc dos babilônios, Assur dos assírios, Telepino dos hititas,
Amon-Ra dos egípcios, Baal dos cananeus. Mas Javé não se deixava
confinar dentro de fronteiras geográficas e políticas da Palestina. Seu
20
A percepção mais lúcida das causas da destruição de Israel e de Judá, pelo Império
Babilônio, juntamente com o exílio dos habitantes desses países para Mesopotâmia, é
sem dúvida da autoria de D.J.E.M. Terra, Os Profetas, (Revista de Cultura Bíblica) Ed.
Loyola, São Paulo, 2006, edição de estudos monográficos sobre os Profetas do AT.
21
Sabatino Moscati, The Face of the Ancient Orient, Anchor Book, Doubleday, Garden
City, New York, 1962, p. 148).
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Separação entre o Povo Eleito e o Estado de Israel
domínio estendia-se pelo território das doze tribos israelitas, a Terra
Prometida (Nm 34,3-12).
O centro cultual em Israel era o altar dos holocaustos, localizado
na esplanada do Templo. O altar consistia numa pilha de pedras erguidas,
encimada por uma laje (Esd 3,2,6). Hoje, encontra-se aí o local onde
foram instaladas cinco arcadas com bicas para ablução dos muçulmanos,
antes do início das orações na mesquita Al Aqsa22. Quanto à localização
do altar de incenso, vejam-se os indícios no recinto do debir, o “Santo
dos Santos” do Templo de Salomão, de Zorobabel e de Herodes.
Devido ao Exílio dos israelitas e judeus para Babilônia, originou-se
a ideia do universalismo do domínio de Deus sobre o mundo, e os profetas
pavimentavam o caminho para o universalismo religioso, quando os estrangeiros serão admitidos ao culto divino (Is 56,3ª.6-7; 60,3-14; 66,18-19).
A causa da conflagração nacional é mencionada nos livros
históricos, proféticos, sapienciais (Lm) e nos Salmos (Sl 44; 80; 89).
Um dos motivos da destruição de Jerusalém e do Templo foi atribuído por Jeremias à injustiça social23, por ser uma infração da Aliança
sagrada que exigia solidariedade para com os carentes e oprimidos.
Entretanto, o que os profetas querem ressaltar é a importância da
comunidade ética na sociedade e não tanto a punição divina pelas
infrações, pelo descalabro moral e pela violência dos governantes
contra as classes oprimidas. O motivo da insistência na “justiça”
é que os membros da comunidade ética devem conscientizar-se da
prioridade de sua adesão a Deus; juntamente com os membros da
comunidade de fé que são advertidos com os apelos para exercer a
“justiça” no sentido de corrigir-se dos graves defeitos na prática da
24
22
A localização do antigo altar dos holocaustos está comprovada pela arqueologia,
recentemente, em 2008. Nas escavações de uma galeria subterrânea desde o “Muro
das Lamentações” em torno do antigo lugar dos holocaustos, os escavadores tiveram
todo o cuidado para não atingirem o local do altar em linha perpendicular de baixo para
cima. Se atingissem esse lugar, o rito dos sacrifícios teria que ser re-instaurado no
judaísmo. Mas um rito de sacrifício cruento não seria viável, hoje em dia. O judaísmo
teria que adotar um tipo de sacrifício incruento como no cristianismo.
23
G. Dondici Vieira, A Grande Ruína: Teologia e Pedagogia do Castigo Divino em Jr
1,11-6,30. Juiz de Fora, 2008. “Deus fez que uma guerra catastrófica se abatesse
sobre Jerusalém” (p.350). Retrospecto sobre o “Crime e Castigo”: Lição com sentido
de correção, purificação e oportunidade para a regeneração ético-cultural de todo o
povo (Conclusão p. 286-289).
Encontros Teológicos nº 56
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Luis I. Stadelmann, SJ
religião, p. ex., o formalismo (sem o amor ao próximo) e o legalismo
(sem adesão pessoal a Deus).
Porém, o motivo que tornou inevitável a ruptura da fé revelada com
os parâmetros nacionalistas do judaísmo é, sem dúvida, a emancipação
da religião das estruturas do Estado, que davam respaldo ao exclusivismo
judaico e à discriminação entre judeus e os pagãos24. A religião a serviço
da honra de Deus e do aprimoramento dos seus fiéis visava sua expansão
pelo mundo inteiro e, portanto, tinha que estar livre das amarras de uma
coligação estatal que lhe impunha certas configurações de caráter oficioso: seja do respectivo sistema político, seja da função representativa dos
ministros do culto nas cerimônias da corte, ou também, das procissões
da Arca da Aliança para o campo de batalha. Assim, a separação entre
a religião e o Estado desvinculava a religião como fonte legitimadora e
sacralizadora de costumes e praxes estatais, que determinados grupos
étnicos sempre impunham à coletividade.
Conclusão
A separação entre o Povo Eleito e o Estado teocrático de Israel foi
obra do próprio Deus como causa principal, ao passo que a destruição de
Jerusalém, com o Exílio da população israelita, é atribuída aos inimigos
estrangeiros, como causa instrumental. O motivo da iniciativa de Deus
é desvincular a religião revelada das amarras do nacionalismo e do estatismo nacionalista. A religião bíblica deve ser de âmbito mundial, por
isso tinha que livrar-se da discriminação entre judeus e pagãos, como
também do exclusivismo entre elites religiosas e maiorias relegadas às
trevas do paganismo e ao obscurantismo da sociedade secularizada. Ora,
as tensões de fundamentalismo judaico surgiram como reação às políticas
expansionistas dos países dominantes, com a finalidade de salvaguardar
a identidade da minoria religiosa em meio à maioria de outras crenças.
Entretanto, essas maiorias tinham o respaldo do estatismo nacionalista do
Império dominador (Assírio, Babilônio, Persa, Helenista, Romano). Mas, a
24
É importante notar, que a separação entre comunidade de fé e sociedade civil não deve
abolir a função da religião na vida pública, pois a religião é um fenômeno universal,
assim como a arte e o direito. É que a religião tem uma dimensão fundamental na vida
humana e na história humana; cf. M. Bolda da Silva, Parâmetros de Fundamentação
Moral, Ed. Vozes, Petrópolis, 2005, p. 130.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
25
Separação entre o Povo Eleito e o Estado de Israel
religião bíblica não devia assumir a tutela de nenhuma nação hegemônica,
primitiva ou moderna, servindo, porém, como princípio de base para as
respectivas constituições da nação. No desígnio de Deus Salvador, todos os
seres humanos são chamados à salvação e recebem os dons salvíficos pela
comunidade de fé e pela comunidade ética sob o patrocínio de Deus.
O efeito dessa separação entre a religião bíblica e o Estado de
Israel é a atuação das lideranças judaicas em favor das minorias das
comunidades de fé israelita espalhadas pelo país, e alhures na Palestina
e no estrangeiro. Haja vista a atividade pastoral dos profetas Jeremias,
Ezequiel e Dêutero-Isaías, exercendo um papel importante na identidade
religiosa e na solidariedade integrativa entre os israelitas exilados na
Babilônia. Após o Exílio, foram retomadas as iniciativas que se mostraram beneméritas junto aos fiéis fora da pátria. Surgiu um novo carisma
exercido pelos autores sapienciais, cuja atividade pastoral foi consignada
por escrito em livros inspirados de insuperável esmero literário e verve
artística, empolgando, até hoje, os poetas da literatura mundial. Nesses
livros da Literatura Sapiencial da Bíblia encontramos reflexões teológicas influenciadas por uma espiritualidade visando viabilizar a religião
como apoio às minorias. Manifesta-se aí uma mentalidade universalista,
transcendendo os parâmetros do humanismo judaico e uma valorização
de temas em voga nos diálogos à luz da espiritualidade bíblica. Nisso
aparece a intenção de incentivar a prática da religião de Israel entre os
judeus da diáspora, visto que os “Livros Sapienciais” eram compostos
para os fiéis fora da região da Palestina. Seu fruto era tão extraordinário
que os líderes judeus de Israel acharam por bem incluí-los na própria
Bíblia. Para atender à finalidade própria no conjunto das Sagradas Escrituras, fizeram uma nítida distinção entre os livros da seção dos “Escritos”
(ketûbîm) da Bíblia. Pois se distinguem pelo respectivo enfoque, quer
como reflexão teológico-pastoral (nos Livros Sapienciais), quer com
finalidade litúrgica (nos Salmos).
Endereço do Autor:
Colégio Catarinense
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Cx. Postal 135
CEP 88015-130 Florianópolis, SC
E-mail: [email protected]
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Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Resumo: O Ano Sacerdotal passou, mas seus objetivos continuam. É isso o
que o presente artigo quer mostrar, formulando sugestões e fazendo questionamentos. O autor começa por lembrar os objetivos do “Ano”, bem como seus
“destinatários privilegiados”. Apresenta uma fundamentação fenomenológica do
específico do sacerdócio presbiteral e trata, a seguir, da importância da missão
sacerdotal. Examina, ainda, a identidade do Presbítero no Documento de Aparecida, e desenvolve as características da sua espiritualidade. Na conclusão,
o autor reúne uma série de sugestões e desafios práticos.
Abstract: The year dedicated to the priesthood has already passed but its
objectives are still continuing today. This is the aim currently developed in the
article, offering suggestions and raising questions. The author begins by calling
to mind the objectives of the “Year” and the “privileged addressees”. It presents
a phenomenological foundation of the specific characteristics of the priestly
ministry and deals with important mission of the priesthood. It also investigates
the identity of the priest according to the “Document of Aparecida”, and develops
the characteristic aspects of its spirituality. In the conclusion the author gathers
a large number of further suggestions and practical challenges as the aftermath
of Aparecida still lingers on.
A propósito do Ano Sacerdotal
Vilmar Adelino Vicente*
*
O Autor, presbítero da arquidiocese de Florianópolis, é Doutor em Serviço Social,
Mestre em Administração Pública e Bacharel em Teologia, professor no ITESC e reitor
do Seminário Teológico de Joinville em Florianópolis.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010, p. 27-42.
A propósito do Ano Sacerdotal
1 Preâmbulo
O Ano Sacerdotal nasceu da inspiração de Bento XVI de celebrar
os 150 anos da morte de São João Maria Vianney, ocorrida em 04 de
agosto de 1859.
A promulgação do Ano Sacerdotal foi realizada em 19 de junho
de 2009 – Solenidade do Sagrado Coração de Jesus – tradicionalmente
dedicada ao Dia Mundial da Oração pela Santificação dos Sacerdotes, e
se estendeu até a mesma solenidade, 11 de junho de 2010.
O tema do Ano Sacerdotal vem da palavra de Deus: “Dar-vos-ei
pastores segundo o meu coração” (Jr 3, 15). O lema, “Fidelidade de
Cristo – Fidelidade do Sacerdote”, foi interpretado pelo Cardeal Claudio
Hummes, da Pontifícia Congregação do Clero, numa frase: “O nome do
amor no tempo é fidelidade”. Ou seja, o tempo de vida que nos é dado
será um kairós, se a fidelidade for a tônica constante.
A teologia espiritual que norteia o Ano Sacerdotal reforça a centralidade de Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote, que pelo mistério
pascal (encarnação, paixão e morte, ressurreição), sustenta a missão da
Igreja, na qual o ministério sacerdotal é fundamental, prolongando o
sacerdócio de Jesus Cristo na história da humanidade.
Afinal, em nosso modelo eclesiológico atual, sem o sacerdócio,
não haveria Eucaristia e Sacramentos, a proclamação consistente da
Palavra de Deus estaria comprometida, e a expansão missionária e a
sobrevivência da própria Igreja entraria em crise!
Objetivos do Ano Sacerdotal, definidos pela Congregação do
Clero, foram os seguintes:
• favorecer aos sacerdotes a tensão de santidade em vista de sua
perfeição espiritual;
• compreender mais e melhor a importância do papel e da missão
sacerdotal na Igreja e na sociedade;
• recuperar com urgência a consciência que impele os sacerdotes
a estarem presentes e serem reconhecidos, pela fé e ciência,
nos âmbitos da cultura e da caridade;
• aprofundar a mística e a espiritualidade sacerdotal como dom
e mistério à serviço da Igreja e do mundo;
• irradiar na sociedade contemporânea a beleza do sacerdócio,
capaz de seduzir a juventude para o ministério sacerdotal;
28
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Vilmar Adelino Vicente
• refletir sobre os valores das raízes bíblico-teológicas da vida
ministerial em favor do povo sacerdotal;
• contribuir para a renovação da identidade e da fraternidade
do presbitério.
Esses objetivos, por si só, constituem um vasto programa de santificação da vida e do ministério dos presbíteros, não só no Ano Sacerdotal,
mas ao longo das próximas décadas.
Destinatários privilegiados do Ano Sacerdotal:
1. os bispos, que devem dedicar as melhores energias eclesiais à
formação dos candidatos ao sacerdócio e à solicitude com os
presbíteros, máxime com aqueles que mais necessitam;
2. os presbíteros, que constituem a base da evangelização da Igreja
a serviço do mundo;
3. os meios de comunicação social, para que irradiem a beleza
do sacerdócio e favoreçam os valores do evangelho;
4. o povo de Deus, para que, conscientes de seu caráter sacerdotal,
cresçam na dinâmica do Reino de Deus e no empenho pela
transformação do mundo em cooperação com os presbíteros!
A logomarca do Ano Sacerdotal traduz o espírito e a espiritualidade deste ano celebrativo:
1. a cor dominante é o vermelho, que evoca o sangue de Jesus
derramado pela salvação da humanidade. Essa missão é prolongada pela doação da vida dos sacerdotes, a seus irmãos e
irmãs;
2. a cruz refere-se a Jesus oferente ao Pai na sua imolação radical,
modelo da consagração sacerdotal;
3. a Eucaristia aparece como fonte, cume e ápice da Igreja;
4. fidelidade é o desafio da vida sacerdotal, em permanente tensão
de santidade;
5. 2009 / 2010 – é o tempo, o kairós, em que nos foi dado viver
profundamente o mistério do sacerdócio!
As reflexões aqui propostas não têm um caráter bíblico-teológico,
mas constituem observações de ordem praxiológica e reflexões espirituais e pastorais de quem há alguns anos se dedica à formação de
presbíteros.
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Ano 25 / número 2 / 2010
29
A propósito do Ano Sacerdotal
2 Fundamentação
São João Maria Vianney já disse, no seu tempo, que “o sacerdócio é o amor do Coração de Jesus”. De fato, Jesus demonstrou muito
carinho pelos seus doze apóstolos:
• passou uma noite inteira em oração, preparando a sua escolha
(Lc 6, 12);
• escolheu os que Ele quis (Mc 3,13);
• criou com eles um forte vínculo de amizade e discipulado (Jo
15,15);
• educou-os e corrigiu-os na ótica do evangelho (Mc 9, 33);
• ensinou-lhes passo a passo os segredos da evangelização (Mt
10, 5-15);
• despediu-se deles com a Oração Sacerdotal (Jo 17).
• finalmente, Jesus pediu a todos para que suplicassem ao Senhor
da messe, que envie mais operários para a colheita do Reino
de Deus (Lc 10, 2).
O magistério da Igreja ensina que o sacerdote age “in persona Christi” (na pessoa de Cristo), em nome da Igreja e em favor do Povo de Deus.
Como Jesus, o Padre é ponte humana (pontífice), é escada singular (scala),
é rota concreta (via) entre Deus e o Povo de Deus. O padre é mediador no
único e suficiente mediador sacerdotal – Jesus Cristo! (cf carta aos Hebreus,
cc. 5-10).
O sacerdote consagra toda a sua humanidade, frágil e pecadora,
para que, ungido pelo Espírito Santo, esteja a serviço da nova humanidade em Cristo.
Toda vocação tem sua raiz na missionariedade do Filho, que nos
chama, embora sejamos “vasos de argila”, carregando o tesouro da graça
(2Cor 4, 7). O Padre não é anjo nem demônio, é apenas um homem que
crê no amor de Deus e no qual Deus apostou uma missão extraordinária!
E essa escolha de Deus não pode ser traída levianamente!
O Padre é consagrado para gerar um mundo novo, na verdade e na
justiça. O Padre é ordenado para ordenar o mundo na ótica do evangelho.
Eis que faço novas, todas as coisas! É pelas mãos ungidas do presbítero,
e pelo batismo do povo sacerdotal, que se criam os novos céus e a nova
terra (cf Ap 21, 1-5).
30
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Vilmar Adelino Vicente
“O Padre é um médico ferido”, diz o maior teólogo moralista do
século XX (Bernard Häring). Nascido para curar a humanidade do pecado,
o próprio sacerdote é marcado pela doença dos pecados do seu tempo. A
história de um Padre é uma história de dor e amor, de pecado e salvação.
Não há uma vocação que não seja provada pela vida! Mas, também, não
há nenhuma vocação que não foi profundamente amada por Deus! “Com
amor eterno eu te amei, e tenho por ti, imensa ternura” (Jr 31, 3).
Mas, lembremos também que esse exagero de amor de Deus pelos
seus sacerdotes, se destina ao Povo de Deus, à família do sacerdote, aos seus
amigos e companheiros de jornada na vida, às comunidades próximas e às
pessoas mais distantes da face da terra. Tudo o que se diz do Padre é em beneficio do povo sacerdotal, da raça escolhida, da nação santa (1Pd 2, 9).
O Padre, por isso tudo, tem a obrigação de ser um homem de Deus.
Do farmacêutico queremos remédio, do açougueiro queremos carne,
do padeiro queremos pão, do cientista queremos ciência, do educador
queremos educação, mas do Padre queremos Deus! O Padre não tem o
direito de ser um homem mundano, medíocre, superficial!
O Padre é um especialista em humanidade e um perito nas coisas
divinas. O Padre é a visibilidade do amor de Deus, o administrador dos
mistérios de Deus. O Padre é o mestre da Palavra de Deus e o médico
dos remédios sagrados dos sacramentos. Diante disso tudo, só podemos
concluir que o sacerdócio é um mistério insondável do amor divino. Por
que justamente eu sou sacerdote, nunca o saberei! É mistério e graça!
Só posso ter uma certeza na palavra de Jesus: “Não fostes vós que
me escolhestes! Eu vos escolhi e vos constitui para que vades e produzais
fruto e o vosso fruto permaneça” (Jo 15, 9).
A respeito do sacerdócio, São Francisco de Assis dizia: “Quero
temer, honrar e amar os sacerdotes como meus senhores, pois neles está
o Filho de Deus. Não levo em consideração os seus pecados, porque
reconheço neles a presença de Jesus”! Lembremos que São Francisco de
Assis vivia numa época de profunda decadência clerical. São Francisco
acreditava que só o amor e a misericórdia de Deus podem erguer um
sacerdote ferido e decaído.
Igualmente, São João Maria Vianney afirma que “morreríamos de
amor” se conseguíssemos compreender o sacerdócio na terra. Só no céu
compreenderemos o significado e o valor do sacerdote.
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A propósito do Ano Sacerdotal
Por sua vez, de Santa Teresinha do Menino Jesus são estas afirmações: “Vim para o Carmelo para rezar pelos sacerdotes”; “Deus não chamou os que são dignos da graça sacerdotal, mas chamou os que Ele quis”!
“Movido pela sua misericórdia é que Ele chama os seus sacerdotes”!
3 A importância da Missão Sacerdotal
O Padre não precisa de bajulação e mordomia do povo, mas de
compreensão e colaboração, de carinho e perdão, de caridade e oração.
O povo deseja sempre um bom médico, um bom advogado, um
bom engenheiro e, forçosamente, deseja um bom padre. A bondade do
coração de um sacerdote e sua santidade de vida é tão importante quanto
sua competência intelectual e pastoral.
Um povo sem o sacerdote decai em desumanidade e se torna prisioneiro dos próprios pecados. Ninguém como o padre tem o poder de
anular, destruir e vencer o mal na vida das pessoas e lhes conceder a graça
da vitória! Só o padre pode dizer: “Eu te absolvo de todos os pecados da
tua vida passada e presente! Vai em paz”! Só o padre pode dizer: “Isto é
o meu corpo! Isto é o meu sangue”! E assim acontece o grande milagre
da Eucaristia: Deus entre nós! Jesus se torna contemporâneo nosso, pelo
mistério do pão e do vinho consagrado pelo sacerdote!
A Igreja necessita e depende do trabalho dos presbíteros e, sobretudo,
de sua santidade de vida. Ministros de Deus, os presbíteros são os colaboradores mais diretos dos Bispos, os promotores dos leigos e leigas e os
protagonistas privilegiados da transformação da Igreja e da sociedade.
Na sua missão, os presbíteros experimentam sacrifício e alegria,
frustração e realização, dom e entrega de si mesmos! A gratuidade é a
principal característica do sacerdote; a ovelha não produz lã para si mesma
e a abelha também não fabrica o mel para sua exclusividade! Assim, o
Padre não existe para si! Ele é de Deus e para os irmãos; o padre existe
para a glória de Deus e a salvação do mundo.
A felicidade do sacerdócio é reflexo da felicidade pessoal; um
padre humano, alegre e feliz, é o melhor áudio visual de Deus para as
vocações, para a Igreja e para o mundo.
O Padre é um presente do coração de Deus para o coração do
mundo! Dar-vos-ei pastores segundo o meu coração (Jr 3,15). Padre
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Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
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quer dizer pai; pai de muitos filhos; pai da comunidade. Sem o sentido
de paternidade, o sacerdócio é estéril!
O padre diocesano, ou “secular”, é como um pai:
•
•
•
•
•
•
Um Pai que vive no século – no mundo!
Um Pai que é sacer – sagrado pela unção do Espírito.
Um Pai que é dote – presente para a Igreja e o mundo.
Um Pai como Abraão – chamado a formar um povo.
Um Pai como Moisés – chamado a liderar um povo no deserto.
Um Pai como Profeta – chamado para corrigir e consolar.
O padre autêntico vive o que anuncia e anuncia o que crê. O
padre não pode viver uma heresia vital: dizer uma coisa e viver outra.
Lembremos do conselho de Paulo a Timóteo: “Tu homem de Deus, foge
dos vícios” (1Tm 6,11).
Homo sum et nihil humanum a me alienum puto (sou humano e
nada do que é humano me é alheio). Essa humanidade foi escolhida por
Deus, que nos amou com amor eterno. Afinal, sou um pecador que Deus
amou! (Pe. Paulo Bratti – ITESC, 1982). Só na encarnação do Verbo,
encontramos respostas para o mistério da nossa vocação. Não há molde
sacerdotal: nosso modelo nós o criamos a partir de Jesus e das circunstâncias históricas de nossa existência!
Não há dúvida de que o padre é semelhante a outros homens, mas
é um homem diferente:
• Di (duo = dois): carrega em si duas dimensões: a humana e
pecadora; e a sobrenatural, configurada pelo Espírito Santo;
• Ferrens = Levar / transportar: carrega o fardo do povo santo
e pecador. Por isso, o Pe. Chevrier dizia: “Le prêtre c’est um
homme mangé” – “O Padre é um homem devorado”!
A nossa vocação vem do grito do povo de Deus. Todavia, ao responder a esse grito, vivemos um equívoco ministerial: ou somos muito racionais ou muito emocionais. O padre é chamado a compreender a realidade
humana do povo e libertá-lo, pela força do espírito! Nem racionalismo, nem
emocionalismo deve orientar a nossa práxis, mas a liberdade no Espírito
deve guiar nosso ministério (Gálatas 5, 13-25)! Só a realidade quebra as
fantasias (emocionais e racionais) e revela o Espírito Santo, com os seus
sete dons (Is 11, 2-3) e os seus frutos (Gl 5, 22-23)!
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A propósito do Ano Sacerdotal
4 Identidade e Missão do Presbítero
no Documento de Aparecida
O Concílio Vaticano II, no Documento Presbyterorum Ordinis,
estabelece o sacerdócio ministerial a serviço do sacerdócio comum dos
fiéis, e cada um à sua maneira participa do único sacerdócio de Cristo.
Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote, nos redimiu e nos permitiu
participar de sua vida divina. N’Ele, somos todos filhos do mesmo Pai e irmãos
entre nós! O Documento de Aparecida apresenta alguns desafios essenciais ao
exercicio do ministério presbiteral, sob a luz da doutrina conciliar:
a. O presbítero, antes que Padre, é um irmão para cada irmão. Esta dimensão fraterna deve transparecer no exercício
pastoral e superar a tentação do autoritarismo e o centralismo
que isola o presbítero da comunidade e da colaboração com
os demais membros da Igreja. O presbitero não pode, menos
ainda, cair na tentação de se considerar somente um delegado
ou representante da comunidade. O padre é um dom para a
comunidade eclesial pela unção do Espírito Santo, na sua
ordenação. É também vínculo especial da união com Cristo,
Cabeça do Corpo Místico que é a Igreja.
b. O ministério do presbítero deve estar inserido na cultura
atual. O presbítero é chamado a conhecê-la para semear nela a
semente do Evangelho, ou seja, para que a mensagem de Jesus
chegue a ser uma interpelação válida, compreensível, cheia
de esperança e relevante para a vida do homem e da mulher
de hoje, especialmente para a juventude. Esse desafio inclui a
necessidade de potencializar adequadamente a formação inicial e permanente dos presbíteros, em suas cinco dimensões;
humana, espiritual, intelectual, pastoral e comunitária.
c. Os aspectos existenciais e afetivos, supõem uma vida espiritual intensa . Fundado na experiência de Deus, mas também
no cultivo de relações fraternas com os demais presbíteros, o
padre mantém saudável relacionamento com o bispo e com os
leigos (as). Para que o ministério do presbítero seja coerente
e testemunhal, ele deve amar e realizar sua tarefa pastoral em
comunhão com o bispo e as prioridades e orientações pastorais
de sua diocese, interagindo com os irmãos no presbitério. O
ministério sacerdotal que brota da Ordem Sagrada tem uma
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Encontros Teológicos nº 56
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Vilmar Adelino Vicente
“radical forma comunitária, e só pode ser desenvolvido como
uma “tarefa coletiva” (Presbyterorum Ordinis).
d. Em particular, o presbítero é convidado a valorizar o celibato.
Como um dom de Deus, o celibato lhe possibilita uma especial
configuração com o estilo de vida do próprio Cristo, e o faz
sinal de sua caridade pastoral na entrega a Deus e aos irmãos
com o coração pleno e indivisível. Na verdade, esta opção do
sacerdote é uma expressão singular da entrega que o configura
com Cristo e da entrega de si mesmo pelo Reino de Deus. O
celibato implica assumir com maturidade a própria afetividade
e sexualidade, vivendo-as com serenidade e alegria em favor do
Povo de Deus e da construção do Reino de Jesus.
e. O Povo de Deus sente a necessidade de presbíteros-discípulos. Isso exige que os presbiteros tenham uma profunda
experiência de Deus, configurados com o coração do Bom
Pastor, dóceis às orientações do Espírito Santo, que se nutram
da Palavra de Deus, da Eucaristia e da oração pessoal! O Povo
de Deus necessita de presbíteros-missionários: movidos pela
caridade pastoral, que os leve a cuidar do rebanho a eles confiado e a procurar os mais distanciados, sempre em profunda
comunhão com seu Bispo, os presbíteros, diáconos, religiosos,
religiosas, leigas e leigos. O Povo de Deus precisa de presbíteros-servos da vida: que estejam atentos às necessidades dos
mais pobres, comprometidos na defesa dos direitos dos mais
fracos e promotores da cultura da solidariedade. Finalmente,
o Povo de Deus clama por presbíteros cheios de misericórdia,
disponíveis para administrar o sacramento da penitência e que,
ministros da reconciliação nos conflitos na Igreja e na sociedade, se revelem artesãos da paz do Cristo Ressuscitado.
Em suma, pode-se afirmar que a Ordenação não é o Sacramento
mais importante no conjunto da sacramentologia, mas é o que gera a presença sacramental de Jesus, o Bom Pastor! Um sacramento que brota da
última Ceia de Jesus, e cuja relação intima com a Eucaristia lhe confere
um conjunto de conseqüências praxiológicas e espirituais.
O padre lato e stricto sensu é chamado a ser um homem eucarístico, isto é, um alimento saudável para o povo de Deus em todo o seu
ministério! Como homem eucarístico, o padre é chamado a exercer o
espírito de diaconia, seja pelo ministério da palavra, da liturgia e de
todo o serviço pastoral.
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A propósito do Ano Sacerdotal
Acresce que, num mundo marcado por tantas contradições, o presbítero,
pela índole de sua vocação, é desafiado a exercer a Profecia, pelo anúncio da
boa notícia do reino, quer agrade quer desagrade, corrigindo ou consolando o
povo de Deus. Mas ainda, como homem eucarístico, o padre é chamado a ser
sinal e instrumento de comunhão na verdadeira koinonía, a serviço do evangelho. Finalmente, como homem eucarístico o padre é chamado à martyría,
pela integral doação de sua vida à causa do Reino de Deus.
Numa síntese, podemos apresentar o Decálogo do Presbítero:
1. O Padre seja autêntico discípulo de Jesus Cristo, porque só um sacerdote apaixonado pelo Senhor pode renovar uma paróquia;
2. O Padre seja ardoroso missionário, que vive o constante desejo de buscar os afastados e não se contenta com a simples
administração e a pastoral de manutenção;
3. O Padre seja promotor e animador da diversidade missionária, e
dedique tempo generosamente ao sacramento da reconciliação;
4. O Padre edifique uma paróquia que multiplica as pessoas que
realizam serviços e acrescenta os dons com imaginação, para
encontrar respostas aos muitos e sempre mutáveis desafios que
a realidade coloca, exigindo novos serviços e ministérios;
5. O Padre seja empenhado na edificação da comunidade de discípulos missionários, com organização e dinâmicas pastorais para
chegar a todos, buscando recursos humanos e materiais, para que
a missão avance e se faça realidade em todos os ambientes;
6. O Padre seja promotor e sustente uma espiritualidade de comunhão missionária, sem o que os instrumentos externos de
comunhão não serviriam de nada e se tornariam meios sem
alma, máscaras de comunhão;
7. O Padre promova e edifique a família cristã como a primeira e mais
básica comunidade eclesial, fazendo dos pais discípulos missionários, transmissores dos valores fundamentais da vida cristã;
8. O Padre seja, à imagem de Cristo Bom Pastor, homem de misericórdia e compaixão, próximo ao seu povo e servidor de todos,
particularmente dos que sofrem grandes necessidades, com caridade pastoral, consciente de suas limitações, comprometido com
a pastoral orgânica e inserido, com gosto, no seu presbitério;
9. O Padre seja presbítero discípulo, por uma profunda experiência
de Deus, dócil ás orientações do Espirito Santo, nutrido pela
Palavra de Deus e pela Eucaristia diária, fonte de sua oração
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Encontros Teológicos nº 56
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pessoal e da sua profunda comunhão com o seu bispo, o presbitério e os leigos (as);
10.O Padre seja conhecedor da cultura atual, para nela semear as
sementes do evangelho, como discípulo missionário e servidor
da vida, com especial atenção aos pobres, comprometido na
defesa dos direitos dos mais fracos e promotor da cultura da
solidariedade.
(Documento de Aparecida, nn. 192 a 204)
5 Espiritualidade do Presbítero contemporâneo
Decorrendo da identidade presbiteral em suas raízes bíblico-teológicas, a importância da espiritualidade do presbítero pode ser demarcada
pelas seguintes balizas práxicas:
• O povo nas paróquias e comunidades gosta de ver o Padre rezando! A oração sacerdotal, na qual transparece sua fé pessoal
em Deus vivo e em Jesus Cristo, edifica a fé do povo de Deus!
A oração testemunhal do presbítero edifica a comunidade.
• O Padre é dispenseiro da mensagem salvífica e libertadora do
Evangelho, na realidade de uma porção da Igreja Particular.
O Padre tem como missão primeira, na linha pessoal, uma
postura de oração e testemunho, anúncio e serviço, profecia
e diaconia, mantendo um relacionamento íntimo com Deus e
comunhão com os irmãos.
• O presbitero é chamado a manifestar Deus ao coração dos
fiéis, transmitindo fé nas horas dificeis da vida e com muita
vontade de evangelizar os pobres! Como Pastor é chamado a
ser manso, misericordioso e fiel à sua missão sacerdotal, sempre em busca da face de Deus e demonstrando sua presença
no meio de todos.
• O autêntico presbitero é vocacionado a ser um homem despojado, renunciando a tudo, sobretudo às mordomias, e assim
buscando a santificação pessoal e de todo povo de Deus. A
simplicidade e santidade da vida do padre, sua prudência e
fortaleza, seu compromisso com a justiça e a verdade, e sua
temperança e humildade como servo de Deus, é a melhor
evangelização.
• Levar Cristo ao mundo, através de palavras e ações e, sobretudo, através da renúncia e testemunho evangélico de
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A propósito do Ano Sacerdotal
•
•
•
•
•
•
•
sua própria vida, eis o grande desafio do padre neste mundo
secularizado.
A fidelidade a Deus, como homem de fé, amante da Palavra,
e uma grande capacidade de amar os mais pobres, é essencial
na vida do padre!
O padre precisa de uma vida de oração intensa para se encharcar
de Deus, como uma esponja enxarcada de água, transformandose em homem de Deus e sendo para a comunidade a própria
presença de Deus.
Mediador entre Deus e os homens, o padre deve ser íntimo
de Jesus Cristo como Ele é do Pai. Somos mediadores no
grande Mediador Sacerdotal, que é Jesus Cristo (cf carta aos
Hebreus).
Transmitir e testemunhar Jesus, ter santidade de vida e estar
cheio dos frutos do Espírito Santo: paciência, bondade, benevolência, fé, doçura e equilibrio, amor, paz e alegria – eis a
beleza do sacerdócio!
O padre deverá buscar a fidelidade à doutrina da Igreja e, na
espiritualidade bíblica, encontrar a segurança do ministério
presbiteral.
Que o padre seja profundamente centrado na sua vocação, e
totalmente preocupado e dedicado à evangelização do mundo
contemporâneo.
O essencial na missão do padre, hoje, é ele conseguir anunciar
a pessoa de Jesus Cristo, a partir de sua experiência pessoal.
Destaco ainda uma excelente reflexão para a compreensão da
espiritualidade do ministério sacerdotal na contemporaneidade, o contributo do Papa João Paulo II na celebração do seu jubileu áureo
sacerdotal1:
• Não há dúvida de que o sacerdote, com toda a Igreja, caminha
com o próprio tempo, fazendo-se um auscultador atencioso e
compreensivo mas, ao mesmo tempo, crítico e vigilante daquilo
que amadurece na história.2
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1
JOÃO PAULO II. Dom e Mistério. São Paulo: Paulinas, 1995.
2
Ibidem, página 97.
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Vilmar Adelino Vicente
• Estou convencido de que o sacerdote não deve ter qualquer
receio de estar “fora do tempo”, porque o “hoje” humano de
cada sacerdote está inserido no “hoje” de Cristo redentor.3
A partir dessa convicção de que o sacerdote é chamado a ser fiel
à Palavra de Deus e à Tradição, porquanto “Jesus Cristo é o mesmo,
ontem, hoje e sempre” (Hb 13, 8), o papa João Paulo II delineia alguns
traços do perfil sacerdotal na contemporaneidade:
1. O sacerdote deve responder as profundas expectativas do homem
contemporâneo, que tem sede de Cristo. Como administrador
do maior bem da redenção (a Palavra e o Corpo de Cristo), o
sacerdote oferece aos homens o Redentor em pessoa.
2. O sacerdote é constituído ministro da misericórdia, enquanto,
no sacramento da reconciliação, realiza de modo cabal a sua
paternidade espiritual, tornando-se testemunha da ação invisível da graça divina.
3. O sacerdote é vocacionado a um contato intímo com Deus,
buscando a santidade de vida diante daquele que é Santo. O
sacerdote vive a experiência de
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Isaías (Is 6,1-8), experimentando a santidade de Deus que vem ao nosso encontro!
4. O sacerdote é chamado ao ideal da santidade. A radicalidade
do Evangelho empenha a vida sacerdotal na vivência dos
conselhos evangélicos (pobreza, castidade e obediência), alimentados pela profunda oração. “A oração cria o sacerdote, e o
sacerdote cria-se através da oração4”! O mundo secularizado
reclama a presença de sacerdotes santos, que sejam testemunhas
transparentes de Cristo.
5. O sacerdote é como médico de almas. O fundamento do sucesso
pastoral de um presbítero decorre da sua santidade de vida, e
não tanto de obras, projetos e meios extraordinários. Hoje, uma
indiscutível prioridade é a atenção preferencial pelos pobres,
marginalizados e migrantes, para os quais o padre deve ser
um verdadeiro pai! O milagre da evangelização decorre mais
do ardor missionário e do espírito de sacrifício, do que das
tecnologias modernas!
3
Ibidem, página 97.
4
Ibidem, página 103.
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A propósito do Ano Sacerdotal
6. O sacerdote é por excelência o homem da Palavra: como verdadeiro administrador dos mistérios de Deus, ele privilegia
a Palavra Divina como principal meio de evangelização, em
todos os cantos e recantos de seu ministério! O padre é um
perito no anúncio da Palavra, mas, acima de tudo é um pioneiro
na vivência dos ensinamentos do Senhor. Decorre daí seu esforço intelectual por conhecer profundamente a Palavra, para
anunciá-la eficazmente sob o impulso do Espírito Santo com
os seus sete dons!
7. O sacerdote é desafiado pelos apelos científicos, para compreender a racionalidade do mundo secularizado. O presbítero
deverá estar solidamente embasado nos estudos de filosofia
e teologia, para dialogar eticamente com as realidades da
sociedade secularizada. Ao lado do pensamento aristotélicotomista que inspira nossa teologia, precisamos do contributo da
fenomenologia e do personalismo filosófico, além do de outras
expressões humanísticas, para consolidar nosso ministério no
encontro com as pessoas e as multidões.
8. O sacerdote é chamado a ser homem do diálogo. Os diversos
ramos do saber concorrem para a elucidação da Verdade,
cujo esplendor deve iluminar a vida das pessoas pela troca de
reflexões interdisciplinares. É no diálogo com o pensamento
contemporâneo que o presbítero se revela homem de ciência,
que, além de depositário de verdades doutrinais, dá mostras
de experiência pessoal e viva dos mistérios divinos.
6 Conclusão
A vida sacerdotal é uma consagração de amor: portanto, acabando o
amor, acaba a missão sacerdotal. Porque padres de países ricos não querem
mais os desafios da missão? Porque trocaram a gratuidade pela gratificação!
Onde estão as levas de missionários que buscavam as terras mais distantes
para evangelizar, em condições por vezes muito difíceis?
O mesmo se diga do clero brasileiro do centro-sul, que assume
muito timidamente os desafios da missão na Amazônia, no Nordeste,
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Encontros Teológicos nº 56
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Vilmar Adelino Vicente
nas periferias das grandes metrópoles! E qual será a aceitação da missão
continental, proposta pelo Documento de Aparecida?
O ato mais libertador e misericordioso de Jesus foi: esvaziar-se
de si mesmo, sair da vida trinitária, encarnar-se no ventre de uma pobre
moça, nascer no esterco de Belém. Assim, quanto mais o Padre desce
ao encontro do povo pobre, mais Deus se enaltece e o reino acontece! É
verdade que a elite e a classe média precisam ser evangelizadas também,
porém os pobres são a maioria esmagadora em nossos países latinoamericanos e africanos!
O sacerdócio é uma experiência Kenótica de (esvaziamento) da
nossa condição cultural, social e das nossas carências afetivas. Isso requer
controle dos mecanismos de compensação e projeção infantis!
O Padre é um débil servidor de Deus! Aliás, Jesus nos ensina
a reconhecer que “somos servos inúteis” (Lc 17,10). Mesmo assim, o
Senhor quer contar com os seus presbíteros.
A missão sacerdotal, todavia, não é um ato isolado, mas se concretiza na comunhão com a Igreja, o Povo de Deus:
• Comunhão que se funda na Eucaristia, na oração pessoal e na
Lectio Divina;
• Comunhão que gera milagres nos relacionamentos e conversão
pessoal;
• Comunhão que se concretiza na sintonia com os Bispos e com
as orientações da Igreja e da Diocese.
• Comunhão afetiva com os irmãos mais próximos, o que exige:
saber ouvir, acolher as críticas e não condenar. Nossa geração
sacerdotal deverá ser sempre melhor que a anterior!
No documento Presbyterorum Ordinis, o Concilio Vaticano II
ressalta seis qualidades humanas do sacerdote:
• Bondade de Coração no atendimento dos pobres e sofredores;
• Sinceridade e transparência no relacionamento;
• Coragem profética diante das injustiças e clamores do povo;
• Constância e perseverança nas situações difíceis do ministério;
• Senso de Justiça na administração dos bens da Igreja;
• Delicadeza no acolhimento dos pecadores e afastados da fé.
Este é o desafio! Que os Padres cultivem essas virtudes humanas no
seu ministério, buscando no seu coração sacerdotal revelar as insondáveis
riquezas de Jesus Cristo. A propósito, em contraste, na Conferência de
Encontros Teológicos nº 56
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A propósito do Ano Sacerdotal
Aparecida, um pronunciamento revelou que as atitudes mais dissonantes
do clero são:
• Agressividade e dominação, na relação com o povo;
• Complexo de inferioridade, vivendo refém da mediocridade
pessoal e pastoral;
• Medo da missão, acomodando-se preguiçosamente na pastoral
de manutenção;
• Exibicionismo e narcisismo escandaloso nas manifestações
públicas;
• Dependência afetiva de algumas pessoas e relação preferencial
com os ricos;
• Gratificação sexual mantendo uma vida dupla e vivendo uma
heresia vital.
Ainda o desafio! Que os Padres evitem e superem essas dissonâncias no exercício do seu ministério presbiteral.
Finalmente, Chiara Lubich propõe, como perfil do sacerdócio, o
ícone mariano, cuja fonte de espiritualidade e bússola seriam estes sete
princípios de ouro:
1º.Amar a todos: a universalidade do amor presbiteral.
2º.Amar por primeiro: a iniciativa do amor sacerdotal.
3º.Amar como a si mesmo: a intensidade do amor ministerial.
4º.Amar na unidade: a comunhão como singularidade do amor
do padre.
5º.Amar Jesus no próximo: a identificação de Jesus na alteridade
do relacionamento presbiteral.
6º.Amar o inimigo: o perdão como heroísmo sacerdotal.
7º.Amar na reciprocidade: amor com amor se retribui na missão
do presbítero.
Eis um caminho excelente de construção da santidade presbiteral
em nossos dias, o que requer, acima de tudo, que o sacerdote seja tecelão
da espiritualidade de comunhão, como a preconizou João Paulo II na Novo
Millennio Ineunte (nn. 42-50). A explicitação desses sete princípios de
ouro, na ótica do perfil mariano da Igreja, supõe, todavia, a elaboração
de outro texto.
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Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Resumo: Este texto procura esboçar em linhas gerais o modo como a Igreja
Católica vem organizando sua ação pastoral no sentido de responder aos desafios cada vez mais complexos apresentados pelo fenômeno da mobilidade
humana. Na sua primeira parte, a partir de um breve levantamento histórico,
apresenta o modo como o cuidado pastoral pelas pessoas em mobilidade vem
se estruturando, tendo um olhar particular para a realidade da Igreja no Brasil.
Num segundo momento, procura-se levantar alguns pontos de reflexão sobre
suas implicações para o modo de ser e agir da Igreja, reunidos nestes tópicos: a
ação política, a questão da inculturação e da flexibilidade dos modelos eclesiais,
a atual dimensão da catolicidade da Igreja.
Palavras chaves: mobilidade humana; pastoral do migrante; migração.
Abstract: This paper want to outline the general traces of the way that the
Catholic Church has organized his pastoral action for responding the complex
challenges presented by the phenomenon of the human mobility. In the first
section, starting by a brief historic, it is presented how the pastoral work for
the persons in mobility has been structured in the Church, with a special view
about the reality of the Brazilian Church. In the second section, the paper want
to discuss some points to consider about the implications to the way of being or
acting of the Church. These are the themes: the policy action; the inculturation
issue and the flexibility of ecclesial models; the actual dimension of the Church’s
catholicity.
Key-words: human mobility; pastoral of migrants. Migration.
Igreja e mobilidade humana
(exigências, desafios, dimensão do ser
e agir eclesial)
Sidnei Marco Dornelas CS*
*
Pe. Sidnei Marco Dornelas CS, é assessor do Setor Pastorais da Mobilidade Humana
e da Missão Continental, na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010, p. 43-56.
Igreja e mobilidade humana
Introdução
Correntemente ouvimos dizer que a mobilidade humana faz parte
da história do homem desde os seus primórdios. De fato, nas origens do
povo de Israel, por exemplo, como narrado nos livros do Pentateuco,
vemos como um povo nômade conquista a sua terra, ao longo dos séculos,
e vai alcançando com grandes dificuldades uma estabilidade que nunca
será definitiva. É a história de um povo em permanente deslocamento,
como o demonstram também a fase do exílio babilônico e a diáspora das
comunidades judaicas por todo o mundo greco-romano. Da mesma forma,
a memória de tantos outros povos, e mesmo a história posterior da Europa
e de sua expansão colonizatória em outros continentes, está toda marcada
por processos de deslocamento e desenraizamento. No entanto, foi apenas
com o surgimento da modernidade, que a mobilidade humana ganhou os
contornos de verdadeira problemática social. Com efeito, é significativo
que a emergência das migrações no mundo capitalista coincida com o
surgimento da questão operária. Na verdade, na gênese do operariado do
século XIX, assim como das grandes migrações para as Américas, está a
revolução industrial e a expansão do capitalismo. Não menos significativo é o fato de que as primeiras obras de evangelização dos migrantes
pela Igreja na Europa e no então Novo Mundo sejam contemporâneas
da Rerum Novarum (1891) e das primeiras formulações da Doutrina
Social da Igreja. A partir dessa época toma forma toda uma tradição de
pensamento e ação pastoral voltada para as pessoas e grupos atingidos
ou envolvidos pela mobilidade humana. Nela sempre se buscou dar uma
resposta atual aos desafios que a mobilidade dos povos tem colocado à
Igreja num mundo em constante transformação. Nossa intenção neste
texto é esboçar em linhas gerais o modo como se organiza atualmente a
ação pastoral na Igreja, na tentativa de responder aos desafios cada vez
mais complexos apresentados pelo fenômeno da mobilidade humana,
tendo um olhar particular para a realidade da Igreja no Brasil. Num segundo momento, procuraremos levantar alguns pontos de reflexão sobre
suas implicações para o modo de ser e agir da Igreja.1
1
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A reflexão aqui contida traz elementos antes trabalhados em DORNELAS (2006; 2008).
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Mobilidade humana e a estruturação da ação pastoral
Uma das características do desenvolvimento capitalista atual é a
busca de flexibilizar a circulação de bens, serviços e capitais. O termo
“globalização” é veiculado para designar esse movimento contínuo e
crescente, facilitado pelos avanços tecnológicos na área dos transportes
e da informática. Idealiza-se um mundo em que as fronteiras são relativizadas, assim como o poder do Estado, das instituições e das ideologias,
de maneira que tudo seja abarcado por um “mercado” livre de restrições.
Nele, cada pessoa poderia escolher, não importa em que lugar do planeta,
os bens que deseja adquirir, os serviços e espetáculos que queira desfrutar,
e ter os meios para se relacionar com pessoas e ideias de qualquer parte.
E, evidentemente, poderia ter acesso a trabalho e emprego sem restrições
de origem ou nacionalidade. Infelizmente, não é bem esse o quadro real
da mobilidade humana no mundo idealizado pela flexibilização do capital.
O documento “Erga Migrantes Caritas Christi” (2004), do Pontifício
Conselho da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes, constata os vários
tipos de movimentos de população atuais e os dramas que compõem a
vida de milhões de seres humanos:
… por um lado ou por outro, se confrontam hoje com o irromper do
fenômeno das migrações na vida social, econômica, política e religiosa, um fenômeno que, cada vez mais, vai assumindo uma configuração
permanente e estrutural. Determinado, muitas vezes, pela livre decisão
das pessoas e motivado, com frequência, também por objetivos culturais,
técnicos e científicos, além daqueles econômicos, esse é na maioria dos
casos sinal eloquente dos desequilíbrios sociais, econômicos e demográficos, tanto a nível regional como mundial, que impulsionam a emigrar.
Este fenômeno se enraíza também no nacionalismo exasperado, e em
muitos países até mesmo no ódio ou na marginalização sistemática
ou violenta das populações minoritárias ou dos fiéis de religiões não
majoritárias, nos conflitos civis, políticos, étnicos e até religiosos que
ensanguentam todos os continentes. Estas situações críticas alimentam
fluxos crescentes também de refugiados e de prófugos, frequentemente
misturados com aqueles migratórios, envolvendo sociedades onde, no
seu interno, etnias, povos, línguas e culturas se encontram, porém com
o risco de contraposição e de choques. (par. 1)
Nesse parágrafo, vê-se como confluem no mesmo cenário várias
problemáticas referentes a pessoas em situação de mobilidade. São
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migrantes, legalizados ou não, que se deslocam sob o impulso da nova
ordem econômica mundial; outros, que são levados por situações de
catástrofe natural, por perseguição política, religiosa ou étnica; outros,
cooptados pelas várias filiais do tráfico internacional de seres humanos;
outros, porque trabalham e vivem do fluxo internacional de serviços
e mercadorias, na expansão do turismo ou das rotas de transporte internacional. O fenômeno da mobilidade humana vai “assumindo uma
configuração permanente e estrutural”, apresentando-se como uma face
eloquente da civilização atual e de suas relações humanas. A Igreja,
desde o final do século XIX, vem procurando reagir de várias formas,
assumindo muitas vezes a vanguarda no acompanhamento social e pastoral dos migrantes.
O esforço da Igreja em dar respostas adequadas a essa nova configuração do mundo atual encontrou seu grande impulso por ocasião
do Concílio Vaticano II.2 De tal maneira que o Papa Paulo VI, no Motu
proprio “Pastoralis Migratorum Cura”, em 1969, formulou o que seria
um conceito pastoral de migrante, como chave jurídico-teológica para
legitimar todo um arco de instituições e iniciativas pastorais voltadas
para pessoas envolvidas em situações de mobilidade:
A Igreja se preocupa, com materna solicitude, de prestar-lhes uma oportuna assistência pastoral. É precisamente deste ponto de vista pastoral
que se trata agora, que no conceito de migrantes estão compreendidos
todos aqueles que, por qualquer motivo, vivem fora da pátria ou da
própria comunidade étnica, e necessitam verdadeiramente de uma
assistência particular.3
46
2
Desde o final do século XIX, através de figuras como o Beato João Batista Scalabrini
e Santa Francisca Cabrini, de um conjunto de obras voltadas para os migrantes, além
de organismos e normativas de todos os tipos criados em vários países e em nível de
Santa Sé, foi se formando um corpo de referências pastorais, canônicas e doutrinais
que veio dar sustentação a uma Pastoral da Mobilidade Humana. O primeiro documento da Santa Sé a sistematizar essa experiência, foi a Exsul família (1953) de Pio
XII, mas foi o clima de abertura pastoral para o mundo moderno criado pelo Concílio
Vaticano II que criou as condições para uma verdadeira expansão e sistematização
do cuidado pastoral junto às pessoas em situação de mobilidade.
3
Paulo VI, Motu próprio “Pastoralis Migratorum Cura”. A assistência pastoral dos emigrantes, 1969. In Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Pastoral das Migrações,
1983, p. 13-14.
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A Igreja se mostrava assim sensível a todo aquele que se encontrava em situação de deslocamento, em relação à sua pátria e etnia, e
logo, em relação ao modo convencional de acompanhamento pastoral
pela Igreja. A partir de então, ao lado de um enorme crescimento do
fenômeno da mobilidade humana em todo mundo, multiplicaram-se os
grupos, instituições, iniciativas pastorais, que buscavam dar resposta aos
desafios apresentados por essa nova realidade. Nesse sentido, houve uma
estruturação de serviços em nível de dioceses e conferencias episcopais,
que encontraram sua principal referência em nível de Santa Sé no Pontifício Conselho da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes, instituído em
1988. Atualmente, o Pontifício Conselho organiza-se em oito setores:
Migrantes; Refugiados e Deslocados Internos; Estudantes Internacionais;
Turismo, Peregrinações, Santuários; Gente do Mar; Aviação Civil; Nômades; Circenses; Apostolado da Estrada.4 Em cada país e diocese, prevê-se
que haja comissões e grupos organizados para encaminhar esse tipo de
atendimento conforme a realidade local, sendo que a especificidade de
certas etnias (nômades) ou categorias profissionais (gente do mar), ou
ainda situações de precariedade humana (refugiados ou tráfico de seres
humanos), demandam a ação de estruturas e entidades preparadas especialmente para acompanhá-las. Desdobra-se assim uma problemática de
múltiplas faces, a pedir novas respostas, com todas as complexas questões
sócio-políticas que emergem da alteridade dos migrantes e refugiados,
seja no plano político do Estado-Nação, seja no religioso e sacramental,
haja vista que, apesar de toda a caminhada eclesial feita, muitas estruturas
diocesanas ainda não sabem ou não estão sensibilizadas em relação ao
drama do deslocamento vivido por essas populações.
No Brasil, o atendimento pastoral aos migrantes teve sua primeira
grande experiência no final do século XIX e primórdios do século XX,
com a implantação de missões voltadas para o atendimento sacramental
e a organização comunitária de imigrantes.5 Nos anos 1960, à época de
4
Pode-se consultar sobre a atuação do Pontifício Conselho através da sua página
hospedada no site da Santa Sé, no seguinte endereço: <http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/migrants/index_po.htm>.
5
Cite-se aqui, a título de exemplo, a obra missionária dos Missionários e Missionárias
de São Carlos (Scalabrinianos), que se destacaram, até meados do século XX, no
acompanhamento dos imigrantes italianos em regiões como São Paulo, Paraná e Rio
Grande do Sul.
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realização do Concílio Vaticano II, não havia qualquer indício de que
novas levas de imigrantes estivessem chegando ao país, e nesse sentido não se fez nenhum avanço significativo em termos de atendimento
pastoral aos imigrantes. Havia, porém, um incômodo crescente com a
constatação da existência de uma enorme transformação social advinda
das grandes levas de migração interna que atravessavam o país, em particular em direção aos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio
de Janeiro, por um lado, e para a fronteira agrícola que se expandia na
Amazônia. Nesse período, a questão social levantada pelos migrantes
internos começou a ser associada a outros graves problemas nacionais,
como a questão agrária, a urbanização selvagem, a questão da moradia,
da exploração dos trabalhadores no campo e na cidade, entre outros.
No contexto da renovação da Igreja latino-americana no sentido da
opção pelos pobres, houve um despertar para a realidade vivida pelo
povo brasileiro, com a emergência das CEBs, das Pastorais Populares
e da Teologia da Libertação, em sintonia com o que ocorria no restante
continente, e que se refletiu no Brasil também numa forma original de se
entender e praticar a pastoral dos migrantes. A situação de deslocamento
e desenraizamento vivida pelos pobres e migrantes nos centros urbanos
e na nova realidade rural do país, foi percebida como uma dimensão a
mais na missão evangelizadora da Igreja, que buscava resgatar o protagonismo das classes populares na Igreja e na sociedade. O surgimento
do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM), entidade ligada às Pastorais
Sociais da CNBB, em 1985, é o acontecimento mais significativo dessa
modalidade de trabalho pastoral voltada para os migrantes.
Pode-se dizer que essa experiência marcou de maneira decisiva
a ação pastoral dos migrantes, tal como se organiza e se desenvolve no
Brasil, com repercussões no acompanhamento dos migrantes internos
nas cidades, dos migrantes temporários rurais, dos imigrantes hispanoamericanos e em muitas CEBs e movimentos populares difundidos pelo
país. Essa repercussão é perceptível em outras pastorais que se reportam à
mobilidade humana, mas possuem autonomia em relação ao SPM, como
os nômades e pescadores. No entanto, a ampliação e a diversificação do
fenômeno da mobilidade humana têm pedido também uma resposta mais
diversificada: a grande emigração de brasileiros para os Estados Unidos,
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o Japão e a Europa; a realidade crescente dos marítimos nas cidades
portuárias do país; o acompanhamento de categorias específicas como os
caminhoneiros, circenses e parquistas; a questão do trabalho escravo e do
tráfico de seres humanos; toda a questão do acompanhamento religioso
de outras comunidades nacionais e étnicas em território brasileiro. Na última Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, em Aparecida
(2007), a Igreja demonstrou de maneira inequívoca sua sensibilidade em
relação a esta nova configuração da mobilidade humana, seja pela sua
relevância para os povos do continente, seja pelo seu significado para a
ação evangelizadora nos próximos anos.6 Na medida em que o Brasil se
insere neste novo ordenamento mundial do capitalismo, sob a égide da
globalização, em que se diversificam os fluxos de pessoas e ganham em
complexidade suas formas de relação social e cultural, a sociedade como
um todo é chamada a repensar seus padrões de relação social e política.
Inevitavelmente, a Igreja, imersa nesta realidade, é impactada por esse
fenômeno como todas as outras instituições sociais. Ela é chamada a
tomar consciência sobre suas implicações em sua tarefa evangelizadora
e em suas formas de organização eclesial.
Implicações sobre o modo de ser Igreja e seu agir pastoral
Tentaremos aqui levantar alguns pontos de reflexão sobre como
se desdobram na ação pastoral e na vivência eclesial as implicações de
uma nova configuração social produzida pela realidade multifacetada
da mobilidade humana. Não só a Igreja como instituição e como comunidade de fé é interpelada por esta realidade em mutação, marcada por
injustiças, preconceitos e perplexidades de toda ordem, mas também
existe uma percepção crescente de que no seu plano interno igualmente
acontecem transformações significativas. A Igreja testemunha uma incorporação crescente de pessoas e grupos marcados pela mobilidade atual,
submetidos a uma infinidade de intercâmbios sociais, trazendo uma série
de novos condicionamentos de valores culturais. Num mundo e numa
Igreja em que convivem, no mesmo espaço, ambientes heterogêneos,
associados a assimetrias sociais e culturais de diversas ordens, somos
6
Cf. Documento de Aparecida, par. 411 a 416. Porém, ao longo de todo o texto, inúmeras
vezes a questão da mobilidade é mencionada.
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chamados a refazer uma agenda que contribua a viabilizar diferentes e
alternativos modos de diálogo, e possam convergir na ação pastoral, para
a convivência em uma mesma Igreja.
1 Ação Política
Sabendo que todas as sociedades possuem suas relações sociais
mais triviais reguladas sob a égide do Estado-Nação, em que a instituição
da “nacionalidade” orienta quem tem e como devem ser outorgados todos
os direitos, e mais do que isso, coloca em questão a própria identidade
social dos indivíduos, ao reportar-se sempre a uma nação de origem –
com esse pressuposto, não há como não considerar a mobilidade como
uma questão intrinsecamente política. De fato, toda pessoa submetida à
mobilidade humana, o migrante em geral7, desvela para a sociedade em
que se insere, a contingência e a arbitrariedade das instituições que emanam do Estado-Nação: a territorialidade, a língua, os símbolos pátrios,
o arcabouço de leis, o poder policial e militar, as fronteiras etc. Não é
por menos que em todos os movimentos sociais que lutam pelos direitos
fundamentais dos migrantes, seja muito corrente, quando se denunciam
as perseguições e a repressão aos migrantes, a argumentação de que ele
está sendo criminalizado unicamente por que se deslocou territorialmente,
atravessou fronteiras, em busca de trabalho. Todo migrante vive então
numa condição de deslocamento, de contraste com a sociedade nacional,
quer tenha consciência disso ou não, sendo percebido sempre como um
problema social e político.
Assim, a primeira problemática com que se defrontam as instituições sociais que defendem ou incorporam os migrantes (e a Igreja, não
menos do que qualquer outra) é a defesa de seus direitos e a conscientização sobre sua cidadania. Tanto mais que, estando deslocados e, por
princípio “sem direito a ter direitos”, a não ser aqueles outorgados pelo
Estado, essas pessoas vivem constantemente numa situação de clandestinidade e invisibilidade social. Como “estrangeiros”, eles mesmos se
excluem, porque eles também trazem uma consciência aguda de que estão
fora de seu lugar, de seu país, e de que sua identidade social e cultural
7
50
Visando unicamente facilitar o desenvolvimento da argumentação, chamaremos todos
os casos de pessoas submetidas à mobilidade humana de “migrantes”.
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é estranha ao ambiente em que trabalham e vivem. Esse estranhamento
vivido cotidianamente os leva a uma expectativa permanente de retorno
ao seu lugar de origem, que possibilite eliminar essa experiência de deslocamento. Vivendo, portanto, numa desconfiança constante diante de todas
as instituições nacionais, acabam criando um frágil laço de confiança com
entidades que, como aquelas ligadas à Igreja, se propõem a acolhê-los
antes como seres humanos do que como estrangeiros provindos de outra
nação. De tal forma que, invariavelmente, uma das primeiras tarefas que
uma pastoral do migrante se vê obrigada a adotar, é o apoio na busca de
sua legalização ou na defesa de seus direitos sociais.
Podemos então dizer que uma dimensão inescapável de toda pastoral que se interesse pelos migrantes é uma ação política nos seus termos
mais elementares: a defesa dos direitos fundamentais de qualquer pessoa
humana. Porém, para além desse serviço, no abrigo das dependências
das Igrejas, os migrantes buscam espaços em que já possam exercer
experiências de cidadania verdadeira, no seu sentido mais genuíno. Nos
diversos grupos de convivência e de resgate de suas expressões culturais,
todos os migrantes buscam, além da oportunidade de uma organização
associativa autônoma, o espaço que possa restituir a expressão de seus
valores culturais e religiosos. Na medida em que essas organizações e
comunidades se firmam e tomam corpo, saindo desses espaços, ganhando
visibilidade, elas se tornam também verdadeiros atores sociais. É uma
função pastoral que a Igreja também é chamada a exercer: ser a porta
de entrada dos migrantes no espaço público nacional. A questão que
fica, porém, é o modo como se dá a relação entre tais organizações de
cunho cultural e político, e a formação da comunidade de fé. Em que
medida tais associações podem reverter numa verdadeira experiência
de formação de Igreja? Como se dão as mediações entre a prática da fé,
as devoções populares da origem dos migrantes e sua inserção social e
política? Como poderia dar-se a inserção na comunidade de fé sob essas
condições de deslocamento na migração, e de instabilidade de seus referenciais culturais e religiosos? São todas questões que complexificam
o tema da inculturação.
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2 Inculturação da Fé
O reconhecimento social buscado pelos migrantes passa geralmente pela organização de associações culturais e por suas práticas religiosas.
Temos aí, em germe, uma prática de cidadania, como prática de afirmação
social e cultural, de busca de respeito e reconhecimento pela sociedade
em que se inserem, de consciência e exercício de direitos. Assim, as
práticas culturais e religiosas dos migrantes, sendo mescla de elementos
de várias origens, deslocadas como são seus próprios referenciais sociais,
são o meio pelo qual reformulam sua própria identidade social, cultural e
religiosa. A linguagem da fé da Igreja deve aprender a compreender por
dentro o modo como os migrantes reconstroem sua identidade, a partir
de sua condição social, se ela visa entrar em diálogo com o íntimo da
experiência de vida dos migrantes. Na verdade, tal diálogo acontece na
“brecha” da vivência de pessoas que de alguma forma já perderam sua
experiência de origem, sem estar (e muitas vezes não desejam estar)
completamente assimiladas à comunidade em que se inserem. Tal tarefa se torna muito mais complexa, quando consideramos que pessoas e
grupos em constante mobilidade, passando e vivendo por vários locais
e situações, alternando a participação em ambientes os mais díspares,
reconstroem permanentemente o conjunto de seus referenciais culturais
e religiosos. Como inculturar a fé em grupos e situações em permanente
mobilidade, vivendo na provisoriedade e tendo a imprevisibilidade por
futuro? Como exercer uma ação de mediação entre a fé da Igreja, na
sua estabilidade canônica, e o mundo de vida de pessoas e grupos em
constante mobilidade social e cultural?
O exercício da mediação entre a fé da Igreja e o mundo dos migrantes traz à baila de modo completamente novo a questão da inculturação e
da missão da Igreja na sociedade multicultural, oriunda da globalização
do capital. Se as fronteiras entre os Estados-Nação se relativizam, se o
avanço do capital internacional não deixou nenhum recanto do globo terrestre indevassado, também a missão da Igreja é chamada a repensar seus
referenciais nesse novo contexto. Hoje, numa sociedade em mobilidade
e de fronteiras territoriais flexíveis, surgem outras fronteiras de ordem
institucional e cultural mais complexa de discernir, em que se cruzam
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e se interpõem valores, grupos e espaços de diversificada conotação
cultural, desafiando a ação pastoral da Igreja e sua identidade. É nesse
sentido que se aponta para a necessidade de uma missão “inter gentes”,
na medida em que os destinatários e os interlocutores da missão, não se
encontram mais além fronteiras (na medida em que todas as fronteiras
foram vencidas pelo progresso da informática e dos transportes), mas
ao nosso lado, e no entanto, distanciados por outras barreiras de ordem
social e cultural. Na medida em que, não só na sociedade em geral, mas
também na Igreja e, sobretudo, no seu espaço interno, existe uma multiplicidade cultural e social, que se expressa também numa pluralidade
de expressões e formas de formular sua identidade católica, a questão
das “fronteiras” da pastoral se coloca da maneira mais urgente. Mais
do que nunca é na questão das formas de mediação, que permitam uma
linguagem comum num contexto tão diversificado, que o fenômeno da
mobilidade interpela a Igreja, no que diz respeito às suas estruturas e
seus agentes de pastoral.
3 As estruturas eclesiais e a catolicidade
Os dilemas atualmente colocados pelo fenômeno da mobilidade
humana para a estruturação da pastoral da Igreja foram expressos de
maneira transparente pela “Erga Migrantes Caritas Christi”. Em sua
quarta parte, tratando das “Estruturas da Pastoral Missionária”, em dois
parágrafos dedicados a expor o que o documento denomina, de maneira
sugestiva, como “problemática: unidade na diversidade”, esses dilemas
estão explicitos da seguinte forma:
O caráter planetário que atualmente tem o fenômeno da mobilidade
humana comporta certamente a superação, a longo prazo, de uma pastoral geralmente mono-étnica que até agora tem caracterizado tanto as
Capelanias/Missões estrangeiras, como as paróquias territoriais dos
países de acolhida, e isso em vista de uma pastoral realizada sobre o
diálogo e sobre uma constante e mútua colaboração (…) Hoje, porém,
esta solução não deveria mais constituir a fórmula quase exclusiva de
intervenção pastoral para a coletividade imigrante, que se encontra
em diferentes níveis de integração no País de acolhida. Isto significa
que é necessário pensar em novas estruturas que, de uma parte, resultem mais “estáveis”, com uma configuração jurídica consequente nas
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Igrejas particulares e, de outra, permaneçam flexíveis e abertas a uma
imigração móvel ou temporária. Não é coisa fácil, mas parece ser este
o desafio do futuro. (90)
Um documento da Santa Sé, tão cioso da estabilidade de todas
as instituições eclesiais, reconhece a grande problemática de se fazer
uma pastoral a partir de referenciais canônicos, claros e estáveis, no
respeito da Tradição eclesial, e em diálogo com uma realidade marcada
pela mobilidade, pela precariedade de todos os referenciais culturais, e
pela provisoriedade das condições de vida dos migrantes. O que “não
é coisa fácil” é buscar, ao mesmo tempo, uma maior estabilidade dos
referenciais normativos da pastoral, e a flexibilidade necessária para estar
disponível e em diálogo com a vida desgarrada de pessoas submetidas
à imprevisibilidade de um mundo em permanente deslocamento. Na
estruturação do Pontifício Conselho já se percebe a tentativa de buscar
essa flexibilidade, ao mesmo tempo em que seus documentos insistem
numa “pastoral de comunhão” como caminho para evitar uma possível
dispersão das pastorais da mobilidade humana. No Brasil, no âmbito da
CNBB, percebe-se a diversidade dessas pastorais no próprio modo como
elas se distribuem no organograma da instituição. Existem pastorais que
se organizam como organismos e outras como estruturas flexíveis de
articulação; umas se colocam na dimensão missionária (Brasileiros no
Exterior), outras nas pastorais sociais (SPM); certos grupos são acompanhados pela Cáritas (refugiados), outros possuem uma institucionalização
completamente autônoma (marítimos). Trata-se de um grande potencial
de mobilização, mas também representa um desafio poder assegurar a
unidade de ação referindo-se a uma mesma Igreja. Que formas de mediação seriam necessárias para conciliar a estabilidade e canonicidade da
Igreja com a necessária flexibilidade da pastoral? Ou garantir a unidade,
no respeito à necessária autonomia de entidades, grupos e iniciativas que
exercem o “pastoreio” junto aos migrantes?
Existe, portanto, a exigência de uma real “transversalidade”
entre todas as pastorais, que passa pelo exercício de formas diversas
de mediação, relativizando os limites que toda estrutura institucional
impõe, a fim de garantir a permeabilidade necessária para frequentar
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e permitir o diálogo entre vários atores eclesiais conjunta e simultaneamente. Desse modo vemos que, mais do que as próprias estruturas
da Igreja, e de seus vários organismos, entidades, grupos e pastorais,
o que se precisa é de “agentes de pastorais” flexíveis, que relativizem
as suas muitas formas de afiliação identitária, sejam elas quais forem,
a fim de se garantir um âmbito comum de diálogo. A tarefa para a
Igreja, na busca de construir novas formas de mediação, alargando e
diversificando o espaço da comunhão, seria proporcionar uma nova
mentalidade que possa repensar a própria catolicidade da Igreja. Pois,
se no princípio da catolicidade, se entende que em cada comunidade
local se realiza toda a Igreja de Cristo, na medida mesma em que se
reconhece unida e constituída por todas as comunidades eclesiais numa
mesma “comunhão eclesial”, então em cada pequeno grupo de migrantes pode existir a presença e a ação de toda a Igreja, na medida que em
que uma rede de mediações lhe dê sustentação, atravessando e sendo
atravessada por agentes, nos mais diferentes âmbitos, da mesma Igreja
Católica. Esta mentalidade, que ainda resta a ser formada, despojada
e compassiva, pode ser a base para estruturas estáveis, mas flexíveis,
que a Igreja espera alcançar.
Considerações finais
O fenômeno da mobilidade humana, que atravessa o globo terrestre, e o novo perfil de ser humano que dele emerge, são alguns dos traços
mais característicos da nova época que se desenha à ação evangelizadora
da Igreja. Nela, a Igreja não é só chamada a colocar em prática “novos
métodos e um novo ardor missionário”, mas também a repensar o modo
como se constitui por meio desta prática, em meio aos dilemas vividos na
organização de suas estruturas e na formação de seus agentes, sejam eles
leigos, religiosos ou ministros ordenados. Na relação com a alteridade
representada pelo migrante, face mais visível da humanidade cambiante
em que vivemos, diante da qual cada agente de pastoral e cada grupo
organizado estão chamados a prestar solidariedade e acolher na comunidade de fé, pode estar em jogo a própria identidade da ação pastoral
da Igreja. Sob a ação do Espírito, assumindo os discípulos de Cristo a
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coragem de levar “nossos navios mar adentro” (DAp 551), esse encontro
pode se tornar realmente um novo tempo de graça para a Igreja.
Referências
CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documento de
Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado
Latino-Americano e do Caribe. Brasília: Edições CNBB; São Paulo:
Paulinas/Paulus, 2008.
DORNELAS, S. M. Questões teológico-pastorais sobre a Hospitalidade
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Também pode ser obtida em: <http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/migrants/documents/rc_pc_migrants_doc_20040514_erga-migrantes-caritas-christi_po.html>.
Endereço do Autor:
Paróquia Bom Jesus dos Migrantes
Quadra 04 – Área Especial 02
Caixa Postal 7552
CEP 73001-970 Sobradinho, DF
56
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Resumo: No contexto do período pré-eleitoral, o artigo propõe uma reflexão
sobre as incidências da vida política na Igreja e vice-versa. Partindo da prontidão da Igreja para o diálogo, segundo a Gaudium et Spes, o autor introduz
uma “análise conjuntural e estrutural”, pela qual constata uma polaridade, um
voltar-se da Igreja sobre si mesma. Comenta uma “Nota” da Congregação
para a Doutrina da Fé, de 2002, que discorda de “um pluralismo em chave de
relativismo moral”. Reflete sobre o direito natural na dialética da secularização,
sobre a autonomia respectiva da comunidade política e da Igreja, discute o
conceito de “laicidade”, comenta o Programa Nacional dos Direitos Humanos,
o PNDH 3, e analisa o caso dos católicos na vida política dos Estados Unidos.
A seguir, fala da “relevância política da fé para uma reforma política” e, ainda,
da superação da corrupção, como exigência ética e política.
Abstract: In the context of the forthcoming general elections in Brazil the article
offers thoughts for reflection on the issues dealing with politics and the Church
and vice versa. Beginning with the Church’s readiness to engage in dialogue, in
the light of the II Vat. Council document Gaudium et Spes, the author presents
an analysis of an overall view and structural elements which show forth a polarity of the Church concentrating its focus on itself. A comment is inserted on the
“Note” of the Congregation of Doctrine and Faith of 2002 which disagrees with
the statement about “pluralism as a key to moral relativism”. It deals with the
right of nature in dialectics of secularization and draws attention to the autonomy
in respect to the political community and the Church. The concept of “laity” is
being analyzed, following a comment on the National Program of Human rights
(PNDH 3) and an analysis of the issue concerning Catholics engaged in political
life in the USA. Mention is made of “the political relevance of faith in regard to
a political reform” and finally the need to overcome corruption as required on
ethical and political basis.
Vida política e Igreja
O direito-dever do eleitor-cidadão
Thierry Linard de Guertechin S.J.*
*
O autor, jesuíta, é Diretor do IBRADES, Instituto Brasileiro de Desenvolvimento,
vinculado à CNBB.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010, p. 57-74.
Vida política e Igreja
Introdução
O concílio Vaticano II sublinha a importância de se ter “uma
concepção exata das relações entre a comunidade política e a Igreja...
e que se distingam claramente as atividades que os fieis, isoladamente
ou em grupo, desempenham em próprio nome como cidadãos guiados
pela sua consciência de cristãos, e aqueles que as exercitam em nome
da Igreja e em união com seus pastores”1. Todos os cidadãos, cristãos
ou não cristãos, têm o dever de participar na gestão da coisa pública. “A
comunidade política existe, evidentemente, em vista do bem comum”2.
Por meio do voto e de outras modalidades, definem-se orientações
políticas e opções legislativas que melhor promovam o bem comum.
“Os fieis leigos não podem de maneira nenhuma abdicar de participar
na ‘política’.... destinada a promover de forma orgânica e institucional
o bem comum”3. Na Constituição Gaudium et Spes, a Igreja instaurou
com o mundo um diálogo, colocando-se em atitude de serviço. Diálogo
significa ponte com via dupla, ou seja, relação mútua entre a Igreja e o
mundo. Trata-se tanto do auxílio que a Igreja se esforça por prestar à
sociedade humana, quanto do auxílio que a Igreja recebe do mundo.
Análise conjuntural e estrutural
Hoje em dia, nota-se uma tendência nítida de Igrejas e comunidades eclesiais e paróquias voltarem sobre si. O engajamento social do
cristão fica produto derivado ou secundário da evangelização. O combate
pela justiça e a participação na transformação do mundo, valorizados
pelo Sínodo dos Bispos em 1971, aparecem menos como dimensão
constitutiva da pregação do Evangelho. De fato, números significativos
de cristãos não se sentem como fazendo parte do mundo. Para esses, a
Igreja se coloca em face do mundo, como realidade à parte, e que não faz
parte do mundo, como se os cristãos não fossem homens e mulheres com
58
1
2
Gaudium et Spes, 76.
Ibidem, 74.
3
Christifideles Laici, 42.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Thierry Linard de Guertechin S.J.
os outros, partilhando um mesmo destino na terra4. Daí, por parte desses
cristãos, certa desvalorização do engajamento social cristão e cobrança
crítica dos cristãos engajados na vida social e política. O Reino de Deus
não parece ser, nem horizonte da vida cristã, nem realidade já presente
Entretanto, a Igreja é reconhecida socialmente por seus serviços
junto aos mais empobrecidos, no seu empenho de promoção humana
nos campos da saúde, da economia solidária, da educação, do trabalho,
do acesso à terra, da cultura, da habitação e da assistência (DA, 98)5.
Mas pode-se perguntar em que medida esses trabalhos apostólicos são
vistos pela maioria do povo cristão e da hierarquia, como consequência
e exigência da fé. Por outro lado, muitos fiéis, como batizados e crismados, se dedicam, várias horas por semana, ao trabalho pastoral ou à
evangelização, na renovação das paróquias, comunidades e movimentos
(DGAE, 44)6. Na grande retomada missionária, a meta consiste e insiste
em fortalecer a identidade do ser cristão e dar a todos os católicos o alcance desta pertença. Trata-se de afirmar a fé e sua identidade católica
face à reivindicação da autonomia da razão moderna.
Face à evolução das mentalidades que põem em evidência a autonomia do indivíduo, a Igreja reage dobrando-se sobre si mesma. Por
outro lado, a modernidade, eximida de toda referência transcendental,
fracassa na tomada em consideração dos seus limites e na organização
de uma sociedade de maneira decente. Uma mudança necessária faltou.
Pois assistimos, por parte de movimentos eclesiais, a vontade de manter
ou voltar ao papel benéfico exercido no passado pela Igreja num mundo em regime de cristandade e encarado como cenário do movimento
de descida a partir de Deus e de volta rumo a Ele. A Igreja sofre deste
grande equívoco que consiste em querer manter esse modelo, quando
as estruturas de uma sociedade cristã estão se desagregando. O mundo
moderno mudou, sem que essa mudança seja suficientemente percebida
4
Ver FAUX Jean-Marie, Au coeur du monde – L’engagement du chrétien dans la société,
Éditions Lumen Vitae, Bruxelles, 2009, p.86.
5
Documento de Aparecida – Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado
Latino-Americano e do Caribe, 13-31 de maio de 2007.
6
CNBB, Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2008-2010,
Documento 4.
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Vida política e Igreja
por grande número de católicos, bispos, padres e fieis. Tornar a Igreja
mais presente aos homens, e os homens menos apaixonados por sua
autonomia exagerada, fica um desafio permanente. Essa mudança de
paradigma não aconteceu e, pelo contrário, formou-se uma oposição feroz
entre a Igreja e a modernidade. A uma Igreja cada vez mais fortaleza,
opõe-se uma modernidade cada vez mais anárquica.7
A crise da sociedade ou da civilização, como alguns comentaristas
falam, aponta tanto o fim da era de Constantino para a Igreja, como o
fim da modernidade para o mundo. Será que estamos vivendo uma mudança de época, mas que mudança? A oposição ou tensão entre a Igreja
e a modernidade não se desarmou. Está presente nas diversas práticas
políticas dos movimentos sociais e eclesiais. Hoje, um dos campos de
batalha é a questão da democracia, quando a Igreja pretende promover a
compreensão e reconhecimento dos Direitos Humanos, pois “se verifica
uma tendência para a afirmação exasperada dos direitos individuais e
subjetivos. Essa busca é pragmática e imediatista, sem preocupação com
critérios éticos. A afirmação dos direitos individuais e subjetivos, sem
esforço semelhante para garantir os direitos sociais, culturais e solidários,
resulta em prejuízo da dignidade de todos, especialmente daqueles que
são mais pobres e vulneráveis” (DA, 47).
Volta às considerações principais
Nas sociedades democráticas, marcadas por um pluralismo prático,
as concepções do bem comum apresentam valores diversos, o que não significa necessariamente que todas as concepções de vida tenham o mesmo
valor. Por isso mesmo, a liberdade da Igreja em pregar a fé, ensinar a sua
doutrina acerca da sociedade e pronunciar juízos morais mesmo acerca
das realidades políticas, deve ser-lhe garantida sempre que os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exijam, utilizando meios
conformes com o Evangelho e que são para o bem de todos8.
60
7
Ver TIHON, Paul, Pour libérer l’Évangile, Paris, Éditions du Cerf, 2009, citando LAFFONT, Ghislain, Imaginer l’Église catholique, Paris, Editions du Cerf, 1995.
8
Ver Gaudium et Spes, 76.
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Thierry Linard de Guertechin S.J.
Contudo, a Congregação para a Doutrina da Fé9 discorda “de um
pluralismo em chave de relativismo moral”(3). E critica, parafraseando
João Paulo II, certo relativismo cultural por teorizar e defender um pluralismo ético que se apresenta como condição para a democracia. Se não
fica reconhecida nenhuma verdade última para guiar e orientar a ação
política, a democracia corre o risco de ser instrumentalizada para fins de
poder. Segundo a Nota da referida Congregação, prescindir dos princípios
da ética natural leva a atribuir o mesmo valor a todas as concepções possíveis de vida. A Nota limita e rejeita o valor da tolerância, por entender
que essa significa renúncia, por parte dos católicos, em contribuir para
a vida social e política segundo o conceito justo e verdadeiro da pessoa
e do bem comum (2). Essa tolerância errada leva a uma concepção relativista do pluralismo. Este não toma em conta a verdade, a norma moral
radicada na própria natureza do ser humano, à qual toda concepção do
homem, do bem comum e do Estado, deve submeter-se. (3) Em outras
palavras, parafraseando e radicalizando a Constituição Pastoral Gaudium
et Spes (25), “a via da democracia /.../ só é possível na medida em que
exista, na sua base, uma reta concepção da pessoa”.(3)
Interlúdio: o direito natural na dialética da
secularização (razão e religião)10
O diálogo entre o filósofo Habermas e o teólogo Ratzinger tratou dos
“fundamentos morais pré-políticos de um Estado liberal”. Na formulação
de Habermas, trata-se dos “fundamentos pré-políticos para um Estado de
direito numa sociedade secular, pós-metafísica.” Para Habermas, o direito e
a lei democráticos não podem apoiar-se sobre fundamentos transcendentais e intangíveis. Mas isso não significa que as sociedades modernas não
devam integrar nas suas deliberações a contribuição ética. Para o teólogo
Ratzinger, só um fundamento transcendente pode assegurar às sociedades
democráticas uma vida comum seguindo princípios sólidos. Contudo, não
pretende que as religiões ou a Igreja tenham na mão a solução, nem também
Nota Doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos
católicos na vida política, 24 de novembro de 2002, Paulinas, 2003.
10
HABERMAS, Jürgen e RATZINGER, Joseph, Raison et religion – La dialectique de
la sécularisation, Paris, Éditions Salvador, 2010.
9
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61
Vida política e Igreja
que a Igreja possua sozinha a verdade. Se existe nos dois intelectuais uma
afinidade nos diagnósticos e conclusões, ficam diferenças notáveis sobre
os fundamentos dos comportamentos éticos.
Depois do encontro, Habermas manteve e afinou sua proposta
aos Estados secularizados e laicos para que escutem mais a mensagem
das religiões. Ratzinger, agora papa Bento XVI reafirmou a ideia de
natureza como referência ética, denunciando sem cessar o relativismo.
Em reação, Habermas criticou abertamente a inflexão antimoderna do
discurso de Regensburg, mas mantendo a necessidade de abrir espaço
às religiões na reflexão pública sobre o presente e o futuro. Trata-se de
superar reducionismos mútuos seguintes: a fé não tem mais pertinência
para o homem moderno por supostamente se opor ao seu ideal humanista de razão e liberdade; a neutralidade do poder do Estado desemboca
necessariamente numa universalização política da visão de um mundo
secularizado.
Ainda a Nota
A Nota, retomando o número 76 de Gaudium et Spes com cunho
mais radical e doutrinal, afirma: “Não cabe à Igreja formular soluções
concretas/.../, embora seja seu direito e dever pronunciar juízos morais
sobre realidades temporais, quando a fé ou a lei moral o exijam” (3). A
Nota insiste em princípios não negociáveis e no empenho dos católicos
de não descer a qualquer compromisso. Entretanto, depois de lembrar a
“clara obrigação de se opor” a qualquer lei que represente um atentado
à vida humana, a Nota, citando João Paulo II, não impede que se “possa
licitamente dar o próprio apoio a propostas tendentes a limitar os danos
de tal lei e a diminuir os seus efeitos negativos no plano da cultura e da
moralidade pública”.11 A Nota oscila entre um “tudo ou nada” quando
invoca exigências éticas fundamentais e irrenunciáveis e, por outra parte,
recusa-se a isolar um só dos conteúdos da fé em detrimento da totalidade
da doutrina católica. “Não basta o empenho político em favor de um
11
62
Evangelium Vitae, 73.
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aspecto isolado da doutrina social da Igreja, para esgotar a responsabilidade pelo bem comum” (4).
Vale a pena notar aqui a diferença de acento entre a Gaudium et
Spes e a Nota: de uma atitude concreta e pastoral, aberta ao real e ao
diálogo, a afirmações dogmáticas e morais que podem levar à intransigência, ao tudo ou nada, no que toca à “res publica”. Daí, de um lado, a
luta concreta pelo respeito dos direitos humanos e da democracia apesar
de suas limitações e, de outro lado, a exigência prévia de reconhecimento, pelo conjunto da sociedade, para ser democrática, da lei natural
à qual deve submeter-se toda concepção do homem, do bem comum e
do Estado (2). O divisor de águas parece ser uma postura diferencial
acerca da relação Igreja-sociedade: cristandade da pré-modernidade
ou Igreja a serviço do mundo.
O Concílio Vaticano II quis operar a reconciliação entre o catolicismo e a modernidade, recusando estabelecer um laço direto entre
modernidade e ateísmo. O Concílio ajudava os cristãos a viverem no
seio da modernidade e nela encontrarem Deus. Para João Paulo II, a
maneira de considerar o ateísmo é simbólica da aceitação ou recusa da
modernidade. Não há como dialogar com o ateísmo. Seguindo a indagação do papa João XXIII, será que ainda fica possível e aberto um diálogo
com os ateus? O propósito de João Paulo II não consiste em ajudar os
cristãos a viver na modernidade. Procura enraizar de novo o povo cristão
no período pré-moderno, no qual a Igreja, sociedade perfeita, tem, pela
imposição dos seus valores e suas verdades, o dever de investir contra o
mundo. Essa postura tem reflexos na própria vida da Igreja. Depois do
Concílio, a Igreja, tomando distância das manifestações mais modernas
da consciência e de suas aspirações, fala uma linguagem autoritária,
insistindo sobre obrigações e interditos.
Comunidade política e Igreja. Independentes
e autônomas (GS, 76)
O empenho político dos católicos é frequentemente posto em
relação com a “laicidade”, ou seja, a distinção entre a esfera política
Encontros Teológicos nº 56
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Vida política e Igreja
e a religiosa. Tal distinção ”é um valor adquirido e reconhecido pela
Igreja, e faz parte do patrimônio de civilização já conseguido” (Nota,
6). É bom observar que se trata de definir um laço novo entre as duas
esferas, que supere a confusão ainda persistente na cabeça de alguns e
que, por outro lado, não degenera em separação promovida por outros.
Mas a Nota exclui claramente a perspectiva de uma laicidade concebida como autonomia da lei moral. Quem tem o depósito da lei moral,
se não a autoridade eclesiástica? Pois a verdade é uma só. Mas aqui
há uma confusão entre a verdade em si e o conhecimento que temos
dessa mesma verdade. Sempre haverá uma tensão entre uma ontologia
direta e indireta, segundo a formulação filosófico-teológica de Paul
Ricoeur, entre a imposição de verdade dogmática no paradigma da prémodernidade e a mediação de conhecimentos diversos rumo à afirmação
da verdade no paradigma da modernidade. Essas mediações diversas,
epistemológicas e sociais, abrem espaço para uma ação política, que
não seja reduzida a imposições de uma ideologia de qualquer aparelho
institucional12, mas que corresponda à lei fundamental da realidade e
economia cristã, numa palavra, à caridade cristã13.
Essas observações preliminares são importantes para pacificar os
conflitos, tanto entre católicos, como entre cristãos e humanistas. Ficar na
afirmação dos princípios da Doutrina Social da Igreja pode dar satisfação
aos detentores da verdade, mas revela uma intransigência que, concretamente, impede e desautoriza a procura do bem comum no contexto de
uma sociedade plural. O Concílio, na sua sabedoria, lembrava que “a
ninguém é permitido, em tais casos, invocar exclusivamente em favor
da própria opinião a autoridade da Igreja” (GS, 43).
Do bom uso da Laicidade14
O termo “laicidade” tem duas concepções diferentes. Por um lado,
expressa uma independência entre a organização política do Estado e
64
12
Ver Octogesima Adveniens, 25.
13
Ver Gaudium et Spes, 41.
14
Ver JACQUEMIN Marc e ROSA-ROSSO, Nadine, Du bom usage de la laïcité, Bruxelles,
Ed. Aden, 2008.
Encontros Teológicos nº 56
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Thierry Linard de Guertechin S.J.
qualquer opção religiosa ou filosófica particular. Um Estado é laico
quando não reconhece algum privilégio a uma religião ou a uma opção
filosófica, e prevê a livre co-habitação de cultos no seio da sociedade,
no respeito do direito comum. Mas o termo “laico” significa outra realidade mais problemática: adesão a uma opção filosófica, marcada pela
recusa de qualquer referência à realidade sobrenatural. Assim, temos
duas concepções da laicidade: uma laicidade política e uma laicidade
filosófica. Pode-se ser laico no sentido político, mas não no sentido filosófico. Inversamente, pode-se ser laico no sentido filosófico e não no
sentido político. É o caso de uma laicidade filosófica querendo dominar
institucionalmente o espaço público, quer dizer instaurar um Estado filosoficamente laico (o caso típico do anticlericalismo), que não distingue
as esferas religiosa e política, separando-as radicalmente e privilegiando
a laicidade filosófica.
Nas tensões políticas ao redor do aborto e de outros assuntos
problemáticos, está se expressando uma laicidade de combate, que funciona sob o registro do proselitismo anti-religioso: promove um estado
laico no sentido filosófico, contra um estado religioso, em resposta a
um proselitismo ou imposição clerical. Entretanto, a laicidade política é
primeira, pois constitui uma concepção fundamental para qualificar um
Estado de direito plenamente democrático. A concepção laica, como a
concepção religiosa, não pode ter privilégios no espaço público. A laicidade política proclama a neutralidade do Estado quando considera as
convicções religiosas e filosóficas. A laicidade política protege contra
toda forma de integrismo religioso ou laico.
Promoção dos Direitos Humanos e da Democracia
“Com sua voz, (a Igreja) unida à de outras instituições nacionais e
mundiais, tem ajudado a dar orientações prudentes e a promover a justiça,
os direitos humanos e a reconciliação dos povos” (DA, 98). No entanto
fica emblemático de uma tensão eclesial o caso, com a sua ressonância,
do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3). Fruto de um
exercício de democracia, o Plano pretende colaborar na construção de
um projeto de sociedade onde o respeito aos direitos humanos ocupe a
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Vida política e Igreja
centralidade em sua formulação e efetivação. É uma agenda para pensar o
Brasil que queremos. Não sendo auto-aplicável, a sua efetivação depende
de ampla mobilização social para aprimorar o Estado democrático de
Direito. Notável é o Direito à Memória e à Verdade para que o conjunto
da sociedade brasileira possa se reconciliar com seu passado e prevenir
daqui para frente violações da dignidade da pessoa humana, segundo o
espírito da atuação da Igreja católica no “Brasil, Nunca Mais”.
Um dos eixos do 3° PNDH afirma a igualdade na diversidade,
tocando em temas como combate ao preconceito e à discriminação,
respeito à identidade dos idosos, das pessoas deficientes, da livre orientação sexual e identidade do gênero, e à diversidade de crenças e cultos,
num Estado laico. Este eixo apresenta e retoma direitos afirmados pela
Igreja nas Campanhas da Fraternidade: idoso, menor, terra, trabalho,
educação, saúde, portadores de deficiência, mutirão de combate à fome,
ao trabalho escravo e à corrupção eleitoral. Mas estão também presentes,
neste documento-programa, “direitos” outorgados por subjetividades,
não reconhecidos pela Igreja e que se opõem à sua Doutrina Social:
descriminalização do aborto, união civil entre pessoas do mesmo sexo e
direito de adoção de crianças por casais homoafetivos. Também ressurgiu
a questão dos símbolos religiosos nos espaços públicos.
Sem aprofundar o debate da laicidade do Estado, há que lembrar
a existência de duas concepções da laicidade, uma, política que, em
nome de uma neutralidade positiva e respeitosa, protege os direitos das
crenças e práticas religiosas, e uma outra, mais filosófica ou militante,
que pretende impor uma neutralidade excludente que elimina qualquer
dimensão pública da fé e de suas expressões simbólicas. Diante dessa
situação, a Igreja reage, oscilando entre duas posições que perpassam
as pastorais. A primeira, tomando cada vez mais força, se assemelha
ao catolicismo intransigente do século passado. Movimentos diversos
investem, com convicção, contra os contra-valores da sociedade. Quem
não está em favor desses grupos católicos, é considerado estar contra
eles. Há um processo de absolutização no tratamento de questões morais,
como é o caso, hoje, do aborto (e da eutanásia). Movimentos e um grupo
de trabalho, que se apresenta como Comissão de Bioética da CNBB,
66
Encontros Teológicos nº 56
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Thierry Linard de Guertechin S.J.
desqualificam o PNDH 3, porque este retoma uma reivindicação do
movimento feminista: descriminalização do aborto, levando em conta a
autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos.
Não é o lugar de criticar essa antropologia marcada por um
dualismo destruidor da unidade da pessoa humana, e que na verdade
funciona segundo a lógica do direito de propriedade sobre as coisas e
escravos, como direito absoluto de usar e abusar. Por outro lado, não se
pode confundir e colocar no mesmo patamar Direitos Humanos universais, indivisíveis e interdependentes, com políticas compensatórias e de
inclusão social como está fazendo um catolicismo intransigente para
recusar o conjunto da implementação dos Direitos Humanos proposta
pelo PNDH. Outra postura, em vez de condenar globalmente o Plano,
invocando o argumento da contaminação, o que se assemelha a um processo de intenção, é manter uma postura de diálogo crítico. Pois o que
está em jogo, é a aceitação e construção da democracia e de um Estado
de Direito. O PNDH em sua grande parte dialoga com as demandas historicamente apresentadas pela CNBB, em consonância com a Doutrina
Social da Igreja. Sobre os pontos no PNDH que não coadunam com a
doutrina moral humana e cristã, há espaço e dever de dialogar com o
governo e com os diferentes setores da sociedade, superando uma política ou pastoral do “tudo ou nada”, prejudicial ao ordenamento do bem
comum e à construção de uma cultura de Paz..
Além do PNDH, estamos nos preparando para as próximas eleições, onde vai aparecer, como já apareceu no passado, a mesma bipolaridade: intransigência doutrinal e pastoral do tudo ou nada, versus diálogo
pastoral crítico. A absolutização do aborto como “o” critério para (des)
qualificar candidatos e instrumentalizar o voto dos católicos é abusivo,
pois negligencia e relativiza a implementação do Bem comum. Diante
da generosidade de homens e mulheres que, com zelo, lutam pela manutenção ou reforma integral de uma lei particular, é bom lembrar que a
progressão é lei de toda vida, e que as instituições humanas podem ser
melhoradas na medida em que se atue sobre elas do interior e de modo
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Vida política e Igreja
progressivo. Todos os homens e mulheres de boa vontade são chamados
a estabelecer as relações da vida em sociedade sobre as bases da verdade,
da justiça, da caridade e da liberdade, sem violência e paixão, desembocando na verdadeira paz.15
Os católicos e a vida política, nos Estados Unidos:
análise de um caso16
A Conferência Episcopal dos Estados Unidos, em 2004, elaborou
um documento para responder à questão sobre a pertinência de recusar
a comunhão a responsáveis políticos favoráveis ao aborto. Seria o caso
do candidato católico, bem que pessoalmente oposto, que sustenta o
direito constitucional vigente ao aborto, seguindo o programa eleitoral do seu partido. Os bispos se sentiram na obrigação de comunicar
publicamente aos responsáveis políticos que o apoio firme ao aborto
os torna culpados de cooperação com o mal. Por isso, a comunidade
católica não deveria honrar aqueles que desafiavam os princípios morais
fundamentais, nem mesmo dialogar com eles para não dar a impressão
de sustentar sua causa.
Os bispos lembram que eles têm o dever de opinar e formar a
consciência dos fieis sobre a vida e a dignidade humana, o matrimônio
e a família, a guerra e a paz, as necessidades dos mais desprovidos e as
aspirações à justiça. Assim justificam a sua Declaração, mas sem tomar
uma posição geral sobre a recusa da comunhão, considerando a complexidade das circunstâncias e, parece, o desvio ou instrumentalização
possível, em período eleitoral, do ensinamento católico e da prática
sacramental em vista de um aproveitamento político e eleitoral. Em
conclusão, a recusa da comunhão aos políticos favoráveis á interrupção
da gravidez relevaria da decisão de cada bispo, o que explica opiniões
diversas de bispos sobre essa mesma decisão.
Por um lado, um bispo lembra que a Nota do Vaticano não fala
nem de sanções, nem de ação disciplinar, contra as pessoas públicas que
68
15
Ver Pacem in Terris, 162-163.
16
Ver La Documentation Catholique, 2322, 17 outubro de 2004.
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Thierry Linard de Guertechin S.J.
não acatam a obrigação de se opor a toda lei que represente atentado
contra a vida humana. Acrescenta que a tradição da Igreja é de não emitir
juízos públicos sobre o estado daqueles que se aproximam da Comunhão.
Finaliza, escrevendo que nenhum ser humano pode julgar a relação que
outro tem com Deus. Seria um desastre pastoral que, para proteger a
integridade da Eucaristia, o sacramento de amor entre o Cristo e sua
Igreja se tornasse sacramento de desunião.
Por outro lado, outro bispo lembra que todo católico que votasse
por um candidato favorável ao aborto, ao casamento homossexual ou à
pesquisa sobre as células-tronco, está se excluindo da comunhão da Igreja
e compromete sua salvação. Num breve documento endereçado aos bispos
norte-americanos, o cardeal Ratzinger cita Evangelium Vitae: no caso de
uma lei intrinsecamente injusta como aquela que admite o aborto ou a eutanásia, nunca fica lícito conformar-se com ela, “nem participar em campanha
de opinião em favor de tal lei, nem de dar a ela o seu sufrágio”.17
Mas é preciso notar bem, segundo o mesmo Cardeal, em sintonia com a doutrinal tradicional da Igreja: “um católico seria culpado
de cooperação formal com o mal, e seria então indigno de receber a
santa comunhão no caso de votar deliberadamente por um candidato
precisamente em razão da postura permissiva dele sobre o aborto e/ou a
eutanásia. Quando um católico não partilha a posição de um candidato
em favor do aborto e/ou da eutanásia, mas vota por esse candidato por
outras razões, considera-se este ato como cooperação material longínqua,
permitida em virtude de razões proporcionais”.
O princípio da laicidade, no sentido de separação da Igreja e do
Estado, não pode dispensar tomadas de posição e manifestações públicas
de opinião, por parte da Igreja e em particular seus responsáveis, sobre
questões de sociedade. Numa democracia pluralista, a palavra pública, o
ensinamento, as tomadas de posição, quaisquer que sejam, se apresentam
como contribuições à busca do bem comum, e não têm outra autoridade
senão a qualidade e a força intrínseca de seu conteúdo. “A verdade não
17
Evangelium Vitae, 73.
Encontros Teológicos nº 56
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69
Vida política e Igreja
se impõe de outro modo senão pela sua própria força, que penetra nos
espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte”.18
Afinal de contas, a maneira como conceber a fé cristã no seio da
sociedade é a questão pastoral que merece mais atenção, pois significa
uma mudança de época. Situar a fé cristã no meio do mundo como
hóspede, e não mais como proprietária ou detentora de poder, é deixar
espaço, por princípio, à diferença e ao pluralismo das convicções. Na
posição de hóspede, a referência cristã não se atrela ao poder. De fato,
ela pode ser reconhecida como “autoridade” que faz crescer, sabendo
que a autoridade nunca é tomada pela força, mas é sempre livremente
reconhecida e atribuída pelo outro que experimenta sua pertinência, sua
beneficência, seu poder de humanização. Nesse sentido, a fé cristã é
capaz de fazer crescer intelectualmente, e humanamente, tanto no nível
pessoal como no social.
Relevância política da Fé para uma Reforma Política
Há um processo de desvalorização e deslegitimação da classe
política, responsável em tese pelo bem comum. As pesquisas de opinião evidenciam a baixa confiança nas instituições democráticas, por
carecerem de credibilidade. A mídia reforça essa imagem negativa das
instituições políticas, sugerindo que a representação democrática é
coisa inútil e desnecessária. Para muita gente, as instituições públicas
são espaços de corporativismo de todo tipo, que funcionam em favor
dos poderosos continuando a se enriquecer à custa do voto popular.
Até o processo eleitoral sofre de credibilidade e interesse popular, por
causa da desonestidade dos políticos. Participar no processo eleitoral
é visto como insumo à permanência e reprodução de uma verdadeira
máfia ou quadrilha no poder.
Falta vontade política de uma reforma política ampla e generalizada, em todas as instâncias dos poderes constituídos. Por isso, o
debate sobre a reforma do Estado brasileiro esbarra na insatisfação e
descrença geral em relação ao atual sistema político. Este continua
funcionando na base do nepotismo, clientelismo, políticas de favores
e outras formas patológicas do exercício do poder, que se aparentam
18
70
Dignitatis Humanae, 1.
Encontros Teológicos nº 56
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Thierry Linard de Guertechin S.J.
aos processos de corrupção. O triste caso do Distrito Federal é emblemático dessa perversão da vida pública no país. Mas, na cultura política do Brasil, a reprovação ética manifesta pela sociedade e opinião
pública fica circunscrita a uma questão de moral individual ou privada.
O político que bota a mão no dinheiro público está reprimido por se
assemelhar a um ladrão. A focalização excessiva sobre a moralidade
privada resulta no desaparecimento da vida pública, na banalização
da política Houve reação salutar de setores organizados da sociedade
civil, com o apoio significativo da CNBB, para a coleta de votos, no
caso da “ficha limpa”, afim de impedir o acesso de candidatos pouco
idôneos ao pleito eleitoral.
A crise da ética na política resulta em boa parte da crise do político.
Por falta de visão política em termos de bem comum e de construção
de uma verdadeira democracia, tudo se tornou negociável. A lógica da
barganha e de outras negociatas domina o cenário do Congresso e de
outras instâncias do poder. A disputa por cargos públicos é a característica
dominante desse sistema amoral, sem ética alguma.
O projeto de lei de iniciativa popular para regulamentar o artigo
14 da Constituição Federal permitiria enfrentar melhor a imoralidade na
própria ação política, nas organizações políticas e institucionais. Mas,
uma ética imperativa interpelando as vontades individuais faz com que
o “debate político” fique limitado à moral privada. O bem comum some
nessa configuração, e se esvazia a função do político. Em outras palavras,
a despolitização vigente submete a esfera política à moral individualista e
ao direito privado. Nesse quadro, o debate ético sobre a conduta virtuosa
dissimula os resultados das escolhas coletivas e o conteúdo conflitual
das relações sociais. Em outras palavras, a sociedade não está dando a
devida consideração à organização política e institucional. Aqui, há um
déficit: tanto da esfera do político, como da ética social. Trata-se, para
superar o vazio ético e político, de restaurar uma vida pública autêntica,
juntando ética e política como dimensões inseparáveis.
Superação da corrupção política como exigência
ética e política
A sociedade brasileira convive com a corrupção. Esta nem é
considerada como problema dos mais importantes dos países. Ficha
técnica do “latinobarômetro” mostra que a corrupção é o problema mais
importante do país só para 10 % da população, enquanto o desemprego,
Encontros Teológicos nº 56
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Vida política e Igreja
baixos salários e pobreza, são considerados problemas mais importantes.
Pois a sociedade, no seu conjunto, aceita a corrupção como algo natural
e normal no exercício do serviço público e no funcionamento das várias
instâncias do Estado e governo. Nas críticas às formas de corrupção,
omitem-se as práticas de corrupção ativa de inúmeros atores econômicos
e financeiros, protegidos pelos direitos da privacidade.
A corrupção corrói o tecido social, destruindo o senso do bem
comum na sociedade e desmoralizando a vida pública até o ponto de
marginalizar e eliminar os que denunciam suas maldades. “Na vida
econômica, vai forjando-se uma consciência distorcida para a qual tudo
é válido, desde que favoreça o lucro, sob o signo da eficácia tecnocrata
e do utilitarismo econômico”19. Pode perguntar-se, em que medida,
uma consciência moral que se restringe à esfera individual, não esteja
contribuindo, de fato, para as práticas desabonadoras para o Estado e
a sociedade. A separação entre ética e religião, de um lado, política e
economia, do outro, pesa sobre a sociedade e explica em parte o fato
de que o Brasil, um dos maiores países católicos, está entre os que sofrem mais malefícios da corrupção e impunidade20. Escapam, de fato,
ao juízo ético as decisões no campo econômico e político, pois estas
obedecem à lógica do lucro e do poder.
A sociedade brasileira está marcada pela desigualdade geradora
de um dualismo ético. A elite dominante explora o trabalho, usa de
violência, ostenta luxo, despreza as culturas populares. As raízes da
sociedade escravista deixaram, “como herança, um ‘ethos’ da Casa
Grande, com sua ‘arrogância do poder’. Esse ‘ethos’ atribui, aos
poderosos, privilégios e mordomias. Ignora o princípio moderno da
‘igualdade perante a lei’. Como fala o povo, ‘quem pode, pode’. É
a constatação resignada ou complacente do povo. ’Quem pode’ no
plano econômico ou político, ‘pode’ também no plano moral”.21 Na
perspectiva cristã, não há separação entre conversão individual e
reforma das estruturas sociais e políticas, entre moralidade pessoal e
ética social22. Uma ética pública diz respeito à “res publica”, ou seja
à responsabilidade da cidadania pelo bem comum que se traduz em
proposta ética e projeto político. “Só assim a sociedade terá condições
72
19
CNBB, Exigências éticas da ordem democrática, 42, Documento 42.
20
Ver CNBB, ibidem, 98.
21
CNBB, Ética, Pessoa e Sociedade, 41, Documentos 50.
22
Catecismo da Igreja Católica, nn. 1887-88 e 1916.
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de lutar contra os seus males mais evidentes, tais como a violência...
a corrupção e a sonegação, o desvio do dinheiro e a malversação
dos bens públicos, o abuso de poder econômico e político, o poder
discricionário dos meios de comunicação social”23.
Observa-se incongruência amplamente difundida entre uma cultura
da ilegalidade e o intento de uma democracia re-instaurada. A alternativa
consiste na autêntica república e na verdadeira democracia, colocando
o bem comum do povo acima dos interesses particulares, de famílias,
partidos, igrejas, corporações. Mais complicada fica a transparência
nos processos mais estritamente políticos. Falta objetividade por causa
de efeitos inconvenientes no que toca a máquina política, sobretudo no
contexto eleitoral. Vai haver mais ética no tratamento da coisa pública,
só quando houver uma vontade política suficiente e necessária.
Será que a classe política vai ter a sabedoria de se colocar na escuta da queixa generalizada de amplos setores da sociedade civil? Pois a
desconsideração das reivindicações dos movimentos sociais nas suas propostas políticas, pode provocar radicalizações, ou, como falam as classes
favorecidas, uma bipolarização da sociedade, discurso típico das classes
dominantes e hegemônicas que não estão querendo mudar coisa alguma.
No contexto da globalização financeira, há que reconhecer que
existe, ao lado do poder político conquistado pelo voto popular, um
poder de fato que se impõe como único que vale de verdade: o poder
econômico. No campo hegemônico da economia, não existe outro modelo
imaginável senão aquele que coloca a economia no centro de toda ação e
decisão. O governo Lula foi forçado a escolher o caminho da negociação
com as forças do mercado nacional e mundial. Isto significou um custo
econômico, social e político, pago pelas classes subalternas em favor das
classes mais favorecidas. Neste contexto de dominação da globalização
financeira, a articulação entre os partidos políticos e os movimentos
sociais foi pensada em termos de cooptação.
Em razão dessa hegemonia econômica e financeira, o Estado parece não ter capacidade, enquanto soberania, de fazer frente aos poderes
paralelos, tanto internamente, como externamente, com o poder das corporações transnacionais. O Estado fica a reboque das grandes empresas
nacionais e estrangeiras. O Estado brasileiro nasceu privado, resultando
de uma empreitada comercial. A proposta do PAC, com a articulação do
23
CNBB, Doc. cit., 130.
Encontros Teológicos nº 56
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Vida política e Igreja
governo e empresas privadas, consiste em uma atualização da relação
complexa e “incestuosa” entre o público e o privado. A coisa pública
no Brasil não consegue autonomia e independência. Na verdade, é a
consagração da soberania do privado sobre o interesse geral. Por isso, os
setores dominantes nunca se preocuparam em forjar um projeto nacional,
um projeto que levasse em conta o conjunto da sociedade brasileira, o
bem comum de todos os brasileiros.
Conclusão
Para animar e responsabilizar os cristãos a assumir sua vida em
sociedade, a Gaudium et Spes continua a ajudar na compreensão da
identidade que existe entre o ser cristão e o interesse pela vida humana,
pessoal e social, para tornar visível, nas grandes estruturas humanas, a
presença de Deus no mundo. Essa identidade tem reflexo na concepção
de ser comunidade dos crentes e Povo de Deus. A citada Constituição
pastoral “traça o rosto de uma Igreja verdadeiramente solidária com o
gênero humano e com a sua história, que caminha juntamente com a
humanidade inteira e experimenta com mundo a mesma sorte terrena,
mas que ao mesmo tempo é como que o fermento e a alma da sociedade humana”24.
Este tempo de campanha eleitoral, é um momento favorável para
viver a dimensão social e política da fé, que impele a dar testemunho da
verdade e do amor de Cristo, que veio não para julgar, mas para salvar,
não para ser servido,mas para servir25.
Endereço do Autor:
E-mail: [email protected]
74
24
Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 96, citando GS, 1 e 40.
25
Gaudium et Spes, 3.
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Resumo: O artigo parte do fato de que, hoje, ressoa forte a reivindicação que assegura o
direito à diferença como o mais sagrado dos direitos. Nessa linha, a valorização das pessoas
com deficiência (cf Campanha da Fraternidade 2006), a afirmação da causa homossexual,
a consolidação do movimento feminista, o emergir do pluralismo religioso etc. Nesse contexto é que aparece o problema moral: por que o apelo de respeito à diferença nasce como
reivindicação e necessita ser reconhecido como direito e valor ético? Por que a intolerância
costuma tornar-se agressiva, opressora, e pode chegar a ser assassina? A propósito, que
dizer da prática e do discurso da ética cristã em relação aos “diferentes estigmatizados”?
Concretamente, como foi a práxis moral de Jesus nesse aspecto? Partindo do que sabemos
sobre o Jesus histórico, constata-se que ele próprio foi “um diferente estigmatizado”: um “judeu
marginal” no seu tempo, marginalização levada ao extremo pela morte na cruz. Jesus viveu
em um mundo de “diferentes estigmatizados”, em relação aos quais a sua atitude ética foi a
da proximidade. Assim, a sua atitude para com as mulheres, os pecadores e publicanos, os
samaritanos, os personagens excluídos (“impuros”), as crianças, as prostitutas, os pobres etc.
Na conclusão, o autor formula o desafio, do qual Jesus dá concreto testemunho: viver a ética
como “proximidade responsável”, num sentido conscientemente humanizador.
Abstract: The article deals with the fact of great repercussion today laying claim to a right to
assert one’s difference as one of the most sacred rights. In this perspective are mentioned the
recognition deserved by persons with some kind of deficiency (cf. Campanha da Fraternidade
2006), the reassertion of the issue of homosexuality, the reappraisal of the feminist movement,
the resurgence of religious pluralism, etc. In this context a moral problem emerges: why is it
that here comes to the fore the issue concerning a specific difference making a demand as
one’s due recognition by right and ethical value? Why is it that intolerance turns into aggressiveness, oppression, and degenerates into homicide? By the way, what is to be said about
the dealing and the ethical discourse as regards “different stigmatized” individuals? As a point
in question, what was the moral attitude of Jesus in this regard? Starting from the common
knowledge about Jesus in his lifetime it is known that he himself was branded as different: a
Jew at the margin of society during his time, whose rejection led to the extreme at the death
on the cross. Jesus lived in a world of “different stigmatized” individuals and he showed forth
his ethical attitude of a close relationship. Thus, his attitude towards women, sinners, despised
government employees, Samaritans, individuals excluded from social life (“ritually impure”),
children, courtesans, the poor people, etc. In the conclusion, the author presents a challenge
on the basis of Jesus’ concrete example: to endorse ethical demands in one’s life in terms of
a responsible “proximity” in the sense of a real humanitarian principle.
A práxis moral de Jesus e os diferentes
estigmatizados
Márcio Bolda da Silva*
* O autor, presbítero da arquidiocese de Florianópolis, Doutor em Teologia Moral e em
Filosofia, é professor de filosofia na FEB e de Teologia Moral no ITESC.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010, p. 75-100.
A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados
1 A problemática
A problemática em questão parte de uma constatação: aflora
no contexto atual um apelo forte em defesa do respeito às diferenças.
Sabemos que, no horizonte da vida cotidiana, atinge-nos de perto uma
necessidade real: a convivência no mesmo espaço social com os diferentes. Hoje, ressoa forte a reivindicação que assegura o direito à diferença
como o mais sagrado dos direitos.
Da complexidade dos problemas, da multiplicidade dos fatos que
caracteriza o momento epocal contemporâneo, essa exigência moral cada
vez mais ganha força. Nunca como antes, o mundo atual se dá conta de
que estamos situados em contexto de pluralidades. O fato do pluralismo,
por si, se impõe como apelo ético de aceitação e de acolhida das pessoas,
dos grupos que se apresentam diferentes e divergentes pelo modo como
assumem sua visão de mundo, seu posicionamento moral, sua opção
religiosa, sua identidade sexual, sua etnia, seus padrões culturais...
É certo que a existência da pluralidade não é um fato absolutamente
novo. O mundo humano e sociocultural em sua natureza constitutiva
sempre foi plural, marcado pela diversidade e variedade. Atualmente,
se podemos falar de novidade, ela está intimamente relacionada com a
questão da consciência, da sensibilidade ética. É no mundo atual que
ecoa com muito mais intensidade o apelo à consciência ética do respeito
à diferença alheia, como valor inviolável.
Vivemos da experiência concreta de que o mundo de hoje tornou-se
um espaço globalizado e compartilhado pela pluralidade dos diferentes,
que exigem ser valorizados a partir de sua alteridade. É bom acentuar
que essa constatação é fato real e não mera racionalização. O respeito à
diferença se impõe como desafio de prática moral e não simplesmente
como especulação ético-valorativa.
E o mais provocante ainda é o fato de que tal apelo moral está
profundamente enraizado no horizonte da vida cotidiana. No espaço que
nos situa na convivência do dia-a-dia, muitas das reivindicações que
reclamam pelo respeito à diferença já fazem parte de nossos posicionamentos, de nossas conversas, de nossos problemas de relação. Isso acontece porque é no âmbito da convivência social que vários movimentos
e organizações ostentam a bandeira do direito à diferença. Só a título de
exemplo, poderíamos citar alguns dos mais atuantes.
76
Encontros Teológicos nº 56
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Márcio Bolda da Silva
Na Campanha da Fraternidade de 2006, ecoou vigoroso o apelo
em vista da valorização das
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pessoas com deficiência. A própria Campanha, ao chamar a atenção para a realidade, muitas vezes marcada pela
discriminação, das pessoas com deficiência, reconhece que a discriminação no fundo é fruto da nossa falta de abertura para a convivência
com o diferente1. Também é em nome e em defesa da diferença, que a
sociedade presencia a afirmação e a emancipação da causa homossexual.
No contexto atual, principalmente no mundo ocidental, “ensaia-se uma
política nova em relação aos homossexuais, devido à alta qualidade de
sua presença em vários níveis da realidade social, política, cultural e
religiosa”2.
Outro movimento que soa conhecido de longas datas, pois suas
raízes históricas já estão consolidadas, é o movimento feminista. Graças
à militância e mobilização feminina, principalmente nas décadas de 70
e 80, hoje se pode afirmar que muitas das questões da mulher estão “na
pauta das discussões oficiais, dentro do processo geral de ocupação de
espaços públicos, cada vez mais amplos, pelas mulheres. Continua em
curso o aumento progressivo da participação da mulher no mercado de
trabalho, ainda que permaneça a discriminação em relação à força de
trabalho masculina; e acontecem mudanças significativas no âmbito
familiar, sobretudo pela redefinição da questão da autoridade – tanto na
relação entre homem e mulher quanto entre pais e filhos – em face da
renda dupla e da educação das crianças que tem passado, desde cedo,
para a esfera pública, pela expansão das creches, privadas e públicas”3.
Cumpre ainda mencionar a existência de vários movimentos ou
grupos, configurados como minorias de perfil racial, étnico-cultural, os
quais, apoiados na baliza da diferença, da mesma forma reivindicam
seu espaço de autonomia e respeito incondicional. Não podemos esquecer que a questão da diferença também está vinculada à realidade do
pluralismo religioso. Atualmente, se é unânime no reconhecimento de
que a convivência inter-religiosa, por muitos séculos, esteve bloqueada
pela dificuldade de aceitação do diferente. Muito mais transparente se
delineia a certeza de que o confessionalismo exclusivista, na prática,
1
Cf. CNBB. Manual Fraternidade e Pessoas com deficiência. São Paulo: Editora Salesiana, 2005, p.28.
2
MATTOS, L.A. Apresentação. In: LEERS, B.; TRASFERETTI, J. Homossexuais e ética
cristã. Campinas (SP): Editora Átomo, 2002.
3
SARTI, C. A. A sedução da igualdade: trabalho, gênero e classe. In: SCHPUN, M. R.
(org.) Gênero sem fronteiras. Florianópolis, Editora Mulheres, 1997, p.154.
Encontros Teológicos nº 56
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A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados
sempre foi causa de violência, de divisões... O caminho mais curto para
a intolerância religiosa.
E se circularmos pelo panorama filosófico atual de discussão dos
problemas éticos, a questão do diferente aí também tem repercussão.
Existe uma tendência no debate ético-filosófico contemporâneo que
a ela reserva um espaço significativo. Essa tendência é conhecida e
identificada com a denominação de ética da alteridade. Dentro dessa
perspectiva, vale a pena ressaltar o nome de E. Lévinas, devido ao seu
propósito decidido de repensar e refundar a ética a partir da interpelação
do outro como absolutamente outro. Ou, em expressão mais simples, isso
quer dizer que o intento levinasiano está concentrado na defesa radical
da diferença e exterioridade do outro que, em hipótese alguma, pode ser
objetificado, manipulado, instrumentalizado, discriminado...
2 O problema moral
Como vimos, a problemática trata de uma evidência irrecusável.
No contexto do mundo atual a questão da diferença é um fato concreto,
real; não há como acobertá-la; muito menos, o apelo de respeito incondicional que dela brota.
Mas, há um ponto que precisa ser polemizado. Até agora partimos
apenas de uma constatação, e ainda não perguntamos pelo elemento que
dá origem à própria problemática. Por que, particularmente, no âmbito
da convivência diária, o apelo de respeito à diferença nasce como reivindicação e necessita ser reconhecido como direito e valor ético? À
primeira vista, parece que a problemática esconde um problema moral
de fundo.
Certamente, aí está o pivô da questão. O problema moral da convivência com os diferentes, na vida do dia-a-dia, na história, tanto no
passado como no presente, dependendo das circunstâncias e dos interlocutores, em linhas gerais, podemos dizer que foi e é a convivência tecida
no drama da discriminação, do preconceito, da rejeição, da intolerância...
Se do rosto do diferente nasce a interpelação ética como necessidade de
direito e de respeito, é porque à prática moral ele se revela historicamente
como presença estigmatizada.
Para dar contorno real a essa verdade histórica, achamos conveniente reproduzir a constatação dramática que Lise Noël registra em seu
livro “L’Intolérance – une problematique genérale”. Os fatos falam por si,
78
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pois a denúncia da intolerância como atitude humana injustificável leva
Lise Noël a compilar “uma boa quantidade de dados sobre os diversos
grupos e categorias sociais que são objeto de discriminação da história:
crianças, velhos, homossexuais, contra os quais a intolerância impôs uma
quantidade de maus-tratos e, com frequência, massacres impiedosos. Por
exemplo, a caça às feiticeiras esvaziou aldeias inteiras de sua população
feminina na Idade Média. Os homossexuais eram condenados à morte até
o fim do século XVIII na França e meados do século XIX na Inglaterra.
Entre os séculos XIX e XX, milhares de negros foram vítimas de execuções sumárias nos Estados Unidos: primeiro eram enforcados e depois
queimados publicamente. Quanto aos índios, cuja população chegava
a 80 milhões por ocasião da descoberta, foram reduzidos a 10 milhões
já na metade do século XVI, e o massacre continuou nas Américas. O
século XX foi marcado pelos genocídios: o massacre de 1,5 milhão de
armênios pelos turcos em 1915; a Primeira Guerra Mundial vitimou,
só na França, 10 milhões de jovens e deixou 7 milhões de inválidos; o
extermínio de aproximadamente 400 mil homossexuais em campos de
concentração nazistas; 70 mil pessoas sacrificadas pelos nazistas como
doentes mentais. O infanticídio, praticado largamente na Antiguidade – sobretudo contra meninas – continuou até o século XIX (então
voltado contra filhos ilegítimos). A Revolução Industrial começou com
uma tremenda mortandade de crianças, obrigadas desde os nove anos
a trabalhar 72 horas por semana e sofrendo castigos corporais e abusos
sexuais. Entre 1972 e 1978, só nos Estados Unidos e Canadá, seis milhões
de crianças (é o número do famoso holocausto judeu) foram negligenciadas ou maltratadas. Crueldades contra crianças, sobretudo menores
de três anos, são frequentes, e os castigos cruéis, que eram instrumento
da pedagogia antiga, continuam sendo aplicados às crianças. Os velhos
também são maltratados, sobretudo depois dos 80 anos; alguns povos
os sacrificavam quando os julgavam inúteis. A mulher é vítima de maus
tratos em todo o mundo (...).
São alguns dados que concretizam melhor esta ideia: a intolerância
não é apenas questão de não tolerar as opiniões divergentes; ela é agressiva e com frequência assassina, no seu ódio à diversidade alheia. E não
se dirige apenas aos que discordam de sua visão do mundo, aos que têm
ideologias, religiões, culturas diferentes. Volta-se contra qualquer tipo
de diferença, de sexo, de idade, de raça, tudo que possa dar lugar a uma
discriminação e a produzir um oprimido. O diferente, diz Lise Noël é
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A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados
“estigmatizado”: sua diferença é um labéu, uma marca vergonhosa que
o expõe ao desprezo, à opressão e até mesmo à eliminação”4.
Sem dúvida, a presença dos diferentes na história, na convivência,
nas relações sociais, sempre apareceu como um fato moral desconcertante. Tem razão Lise Noël em intuir que o desconcerto que vem pela
marca da diferença, da diversidade alheia, da divergência, caso estigmatizada, inevitavelmente leva à intolerância discriminatória, opressiva
e assassina.
3 Jesus e o desafio da convivência com os
diferentes estigmatizados
À luz das considerações anteriores, os fatos apresentados só vêm
corroborar a dimensão abrangente e grave do problema moral. Talvez,
agora, compreendemos com mais lucidez por que, de fato, a presença do
diferente estigmatizado nas nossas relações, na história, é um problema
moral. E, certamente, agora também conseguimos perceber com mais
evidência que é nas situações históricas de desumanização que a importância da moral emerge como ponto crítico e indispensável.
Como não reconhecer que em si a racionalidade ética já é crítica,
uma vez que sempre se vê desafiada a fundar e comprovar a retidão e a
bondade da conduta moral. E é ainda sob a luz dessa racionalidade que
não podemos fugir do reclame pelo qual todos somos atingidos, direta
ou indiretamente. No contexto do mundo atual, é quase impossível se
colocar indiferente diante dos rostos concretos que reivindicam o respeito à diferença, como o caminho mais seguro de superação das formas
opressivas e preconceituosas, as que estigmatizam e assim impossibilitam
ver e aceitar o outro como outro.
Aqui está o desafio ético que questiona nossas falsas racionalizações ou desculpas esfarrapadas. Tudo depõe a favor da verdade ética
de que o outro, simplesmente porque é outro, precisa ser acolhido a
partir de sua alteridade. É em nome dessa verdade, devido à sua lucidez
e necessidade, que, na convivência do dia-a-dia, não se poderia romper
o face-a-face, bloquear a proximidade com o outro, só porque é outro,
diferente, estranho no seu modo de pensar, de fazer sua opção religiosa,
4
80
MENEZES, P. Tolerância e religiões. In: TEIXEIRA, F. (org.). O diálogo inter-religioso
como afirmação da vida. São Paulo: Paulinas, 1997, p.45-47.
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de assumir sua identidade sexual, de ser pessoa com deficiência, de pertencer a uma etnia, a uma cultura específica... Como diz Lévinas, o laço
com o outro “só se aperta como responsabilidade, quer esta seja, aliás,
aceite ou rejeitada, se saiba ou não como assumi-la, possamos ou não
fazer qualquer coisa de concreto por outrem. Dizer: eis-me aqui. Fazer
alguma coisa por outrem. Dar. Ser espírito humano é isso”5.
Se tal desafio ético compromete a todos, ou nele nossa responsabilidade está amarrada, como afirma Lévinas, é oportuno que questionemos
como a prática e o discurso da ética cristã se situam nessa perspectiva.
A referência histórica à prática cristã em relação aos diferentes denuncia
que, em diversas circunstâncias, as igrejas cristãs foram coniventes como
também promoveram práticas de estigmatização. No quadro da Igreja
Católica, atualmente, algumas das tensões mais delicadas e polêmicas
têm a ver com os que reivindicam a necessidade de acolhida e integração
total a partir da própria diferença e particularidade da situação em que
estão inseridos, como por exemplo, os divorciados em segunda união,
os homossexuais, os sacerdotes que deixaram o ministério, a situação
da mulher na esfera do sacerdócio...
No âmbito cristão, o ponto de referência para buscar luz sobre
como orientar a questão ética acerca dos diferentes estigmatizados só
pode ser a práxis moral de Jesus. Pela própria evidência simples de que
a ética cristã deita suas raízes no comportamento, nas ações, no testemunho, no agir, na postura evangélica, na práxis de Jesus. Indo direto
ao ponto, só falta agora colocar no centro da questão a práxis moral de
Jesus de Nazaré e indagar como, na práxis histórica de Jesus, o desafio
moral da convivência com a alteridade, com o diferente, particularmente
estigmatizado, é vivenciado e enfrentado.
Devemos, de antemão, partir de uma constatação histórica: Jesus
de Nazaré sentiu na própria pele a experiência dura de ser um diferente
estigmatizado. Não é preciso conhecimento aprofundado para intuir que
Jesus, a partir de seu contexto histórico-religioso-social, foi considerado
sob determinados aspectos um personagem estranho e, por causa disso,
pivô de discriminações, de “pré-conceitos” verdadeiramente estigmatizadores. Mesmo uma simples leitura dos Evangelhos não impede de se
captar o arrazoado de que Jesus foi estigmatizado de forma preconceituosa e agressiva.
5
LÉVINAS, E. Ética e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988, p.89.
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A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados
Para não permanecer à superfície de considerações tão comprometedoras, torna-se necessário traçar um perfil do Jesus histórico, isto é,
resgatar Jesus dentro do horizonte histórico em que ele viveu. Certamente,
para entender por que Jesus de Nazaré foi um diferente estigmatizado,
é de suma importância situá-lo dentro do conflitivo contexto histórico
da Palestina do século I. Sob o viés da contextualização, alguns fatos se
apresentam notórios.
a. Jesus, um judeu marginal
Há de se registrar, por primeiro, o fato de que Jesus foi um judeu
marginal. Aqui o significado de “marginal”, em linhas gerais, se mantém
em consonância com o sentido que John Meier dá à expressão. Segundo
a reflexão de Meier, Jesus era um judeu marginal, à frente de um movimento marginal, numa província marginal do vasto Império Romano.
Isso, de imediato, permite concluir que há vários aspectos implicados
na compreensão da marginalidade de Jesus.
Pela ótica da contextualização, fica explícito que, na vida de
Jesus, sobressaem certos episódios pelos quais é possível reconhecer a
dura realidade de que Jesus foi marginalizado e, por outro lado, também
a situação de que ele próprio se colocou à margem. Tendo presente o
contexto histórico em que Jesus projeta suas decisões e opções, aparecem
relevantes três focos, como indicadores de marginalidade.
O primeiro foco tem a ver com os ensinamentos e a práxis de
Jesus. Nesse particular, dois fatos são críticos. A originalidade de Jesus
atinente ao estilo de ensinar e de viver “desagradou a muitos judeus, que
se afastaram dele e, com isso, o repeliram para a margem do judaísmo
palestino”6. Depois, o que é mais crítico e contundente são seus posicionamentos a respeito da proibição total do divórcio, da rejeição ao jejum
voluntário, suas advertências simbólicas sobre a destruição do templo,
sua opção pelo celibato. Posturas assim inusitadas eram “marginais no
sentido de não estarem de acordo com os pontos de vista e práticas dos
maiores grupos religiosos judeus do seu tempo”7.
O segundo foco remete à situação de que na vida de Jesus existem
algumas facetas que inevitavelmente o colocam à margem. Por exemplo,
82
6
MEIER, J. P. Um judeu marginal. Repensando o Jesus histórico, volume um: as raízes
do problema e da pessoa. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p.19.
7
Ibid., p.19.
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“perto dos trinta anos, Jesus era um carpinteiro comum, numa cidade
montanhosa comum da Baixa Galileia, contando com um mínimo de recursos econômicos e respeitabilidade social para levar uma vida decente.
Por um motivo qualquer, abandonou seu meio de vida e sua cidade natal,
tornou-se um “desempregado” e andarilho, a fim de assumir um ministério
profético e, como era de esperar, deparou-se com a descrença e a rejeição
quando voltou à sua cidade para ensinar na sinagoga. Em lugar da “honra”
que antes desfrutava, viu-se exposto à “vergonha” numa sociedade regida
por esses dois sentimentos, e onde a opinião dos outros tinha muito mais
influência sobre a vida de alguém do que hoje em dia. Contando basicamente com a boa vontade, o apoio e as doações de seus seguidores, Jesus
voluntariamente se tornou marginal aos olhos dos trabalhadores judeus da
Palestina, embora ele próprio continuasse a ser um judeu palestino”8.
O terceiro foco aponta para a marginalização que representa a forma
definitiva e a mais degradante da exclusão social, a morte infame que vem
pela crucificação9. “Qualquer um que tenha sido declarado criminoso pela
maior autoridade de sua sociedade e, em consequência, condenado à morte
em execução pública, da maneira mais brutal e degradante, obviamente foi
atirado às margens da sociedade. O derradeiro despojamento, a derradeira
margem é a morte, especialmente a morte por tortura, como punição imposta
pelo Estado aos grandes crimes. Aos olhos dos romanos, Jesus teve a horrível
morte dos escravos e rebeldes; para os judeus, caiu sob a condenação do
Deuteronômio 21:23: “O que for pendurado [na árvore] é maldito de Deus”.
Para ambos, o julgamento e a execução de Jesus fizeram dele um marginal
num sentido terrível e revoltante. Jesus era um judeu que vivia numa Palestina
judia, direta ou indiretamente controlada pelos romanos. Num sentido, ele
pertencia aos dois mundos; no final, foi expulso de ambos”10.
b. Uma identidade marcada pela diferença
Se, pela via da contextualização, chegamos à comprovação inegável da situação de marginalidade a que foi lançado Jesus, acreditamos
8
Ibid., p.18.
9
Veja em Warren Carter a descrição da crucificação como o meio cruel de execução, utilizada por Roma e reservada aos marginais sociopolíticos tais como estrangeiros rebeldes,
ladrões e criminosos violentos. (CARTER, W. O evangelho de São Mateus. Comentário
sociopolítico e religioso a partir das margens. São Paulo: Paulus, 2002, p.318; 434).
10
MEIER, J.P. Um judeu marginal. Repensando o Jesus histórico, volume um: as raízes
do problema e da pessoa, p.18.
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A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados
que é também por este mesmo caminho que se abre o acesso para fazer
a conexão com a ideia-força que impulsiona nossa investigação. Até o
presente momento, estamos percebendo que o foco de nossa abordagem
se conduz centrado em uma das questões que intriga a prática moral no
contexto atual: como corresponder eticamente ao apelo do outro que vem
ao nosso encontro como o estranho, o diferente...
É nesse sentido que precisamos buscar os pontos de conexão. E o
primeiro que aparece incontrastável é a confirmação de que a experiência
de vida e de relacionamento de Jesus está fortemente marcada pelo traço
de ser estranho para a maioria de seus conterrâneos, de parecer incomum
em seu estilo de viver, de ser diferente pela originalidade de posicionarse ante as questões religiosas, de ser interpretado como excêntrico em
relação à vida normal... E o mais questionante, como confirmamos no
tópico anterior, é constatar que, em Jesus, a identidade construída na diferença culmina na sentença reservada a qualquer diferente estigmatizado:
a dura realidade de ser colocado à margem. Ainda, em Jesus, o veredicto
da sentença é mais impiedoso e cruel, pois, dentro do processo gradual
de ser estigmatizado e colocado à margem, a sentença final endossa a
condenação à morte vergonhosa, a crucifixão.
Por certo, acabamos de fazer alusão a outra conexão. Associamos
ao projeto de vida de Jesus a característica de uma identidade construída
na diferença. E fomos mais longe ainda... Colocamos em conexão a
importância desse fato com o contexto da marginalização que termina
com a morte na cruz. Se, sob nossa ótica, tem peso esta associação, é
conveniente que sua compreensão seja um pouco mais alargada. Assim,
tomamos a iniciativa de ir à busca das razões que confirmam Jesus, em
seu contexto, como um diferente ou estranho também estigmatizado.
Estamos impondo à nossa investigação uma tarefa um tanto complicada. Por isso, escolhemos como critério de análise deter nossa atenção
nos aspectos que revelariam Jesus parecer estranho, diferente, incomum,
excêntrico para o contexto de sua época. Levemos em consideração, de
início, os aspectos relacionados à pessoa de Jesus. Do modo como Jesus
projetava sua vida, alguns traços pareciam ser incomuns aos olhos de
seus coetâneos, a saber: apresentar-se como líder religioso11 e não ter as
11
84
Cf. MEIER, J.P. Um judeu marginal. Repensando o Jesus histórico, volume três, livro
dois: competidores. Rio de Janeiro: Imago, 2004, p.341-342.
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credenciais necessárias para o ofício (a autorização oficial para ensinar12
e o estudo formal da Torá); o fato de ser solteiro13; a sua adesão ao movimento de João Batista e por este deixar-se batizar14.
Além disso, Jesus também era diferente em relação aos aspectos
que o colocaram em rota de colisão com os que dominavam o cenário
político-religioso da época: “ele era um galileu sem importância em
conflito com a aristocracia de Jerusalém; ele era (com relação a seus
oponentes) um camponês pobre em conflito com os ricos moradores da
cidade; ele era um milagreiro carismático em conflito com sacerdotes
muito mais preocupados em preservar as instituições centrais de sua
religião e seu funcionamento tranquilo; ele era um profeta escatológico
que prometia o advento do reino de Deus, em conflito com os políticos
saduceus que tinham interesse na manutenção do status quo. Mas por
baixo de muitos desses conflitos existia um outro: ele era um leigo ligado
à religião que parecia ameaçar o poder ao qual se agarrava o grupo de
sacerdotes”15.
Em suma, “Jesus é um homem do povo; não pertence a nenhum
núcleo de seletos ou privilegiados do ponto de vista econômico, político
ou religioso. Nem sequer pertence ao grupo popular melhor situado, o
dos habitantes de Jerusalém. É da Galileia, região marginalizada, impura,
e foco de resistência à dominação romana”16.
Se agora focalizarmos Jesus a partir de seus relacionamentos,
existem outros aspectos que o fizeram destacar-se como estranho. É
claro que “o fenômeno de um profeta celibatário itinerante que chamava
outros homens para abandonarem suas famílias e segui-lo, e permitia que
mulheres sozinhas se juntassem ao grupo que o acompanhava em suas
jornadas, teria feito levantar mais do que uns poucos sobrolhos devotos
– tanto mais que Jesus não se apresentava como um severo profeta do dia
do julgamento final, do tipo de Jeremias ou João Batista, mas sim como
um “glutão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores” (Mt 11,19 par.).
12
Jesus “não tem nenhuma autorização oficial para ensinar, nem especialização em teologia ou Escritura; não é nem escriba nem rabino” (GALLARDO, C.B. Jesus, homem
em conflito: o relato de Marcos na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1997, p.302).
13
Cf. MEIER, J. P. Um judeu marginal. Repensando o Jesus histórico, volume três, livro
dois: competidores, p.342.
14
Cf. ibid., p.343.
15
MEIER, J. P. Um judeu marginal. Repensando o Jesus histórico, volume um: as raízes
do problema e da pessoa, p.344.
16
GALLARDO, C. B. Jesus, homem em conflito, p.325.
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A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados
Embora lembrasse de muitas formas o modelo de Elias (e, por vezes, de
Eliseu) em particular e os profetas orais de Israel em geral, o celibatário
porém sociável Jesus, acompanhado por suas adeptas, assim como por
homens que haviam deixado suas famílias, inevitavelmente pareceria
estranho ou escandaloso aos judeus observantes. Apesar de sua aparência
profética tradicional, nesse ponto pelo menos ele não tinha precedente
claro na história sagrada de Israel”17.
Oportuna também é a observação de W. Carter sobre o fato de Jesus
deixar Nazaré e fixar “sua casa em Cafarnaum, à beira-mar, um povoado
agrícola e pesqueiro pequeno (população em torno de mil) na margem
noroeste do mar da Galileia. Ele não muda para cidades maiores, Tiberíades (construída e nomeada em honra do imperador Tibério) ou Séforis,
os centros do poder político, econômico, social e cultural imperiais na
Galileia, que mantêm os interesses da elite e o controle sobre os povos
circunvizinhos por meio da tributação. Como judeu num território controlado por Roma, Jesus se coloca ele mesmo entre o marginal, com o pobre,
não com o rico, com os camponeses rurais, não com a elite urbana, com
os governados, não com os governantes, com os impotentes e explorados,
não com os poderosos, com aqueles que resistem às exigências imperiais,
não com os que as implementam. Ele continua a preferência do evangelho
pelo aparentemente pequeno e lugares e gente insignificantes que, não
obstante, são centrais para os propósitos de Deus”18.
c. Jesus, em um mundo de diferentes estigmatizados
Tendo em vista a perspectiva aberta pelo parágrafo anterior, surge
a oportunidade de darmos um passo a mais na direção de compreender
a originalidade da práxis moral de Jesus em relação ao interlocutor que
interpela a partir da situação de ser colocado à margem. A afirmação de
que Jesus se coloca ele mesmo entre o marginal, entre a gente insignificante, permite nossa investigação chegar a duas inferências. O horizonte
histórico-social em que Jesus transita é um mundo marcado pela presença
de muitos diferentes estigmatizados19. Em relação a eles, a atitude ética
de Jesus é a da proximidade.
86
17
MEIER, J.P. Um judeu marginal. Repensando o Jesus histórico, volume três, livro
dois: competidores, p.342-343.
18
CARTER, W. O evangelho de São Mateus, p.156.
19
É evidente que muitas narrativas dos Evangelhos mostram Jesus oferecendo “ajuda
a leprosos (Mc 1,40-45 par.; Lc 17, 11-19), endemoninhados (Mc 5,120 par.; 9,14-29
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Aqui é que se encontra a provocação ética do modo de Jesus
relacionar-se. Ele se situa entre o marginal, não como alguém que convive
de forma conivente, passiva, indiferente, omissa... O seu jeito de fazer-se
presente se define e se caracteriza pela atitude ética de fazer-se próximo.
Justamente é a proximidade a mediação que favorece a responsabilidade
moral, cujo significado nesse contexto específico designa a atitude suprema de preocupar-se com o outro, de fazer alguma coisa de concreto pelo
outro. E a responsabilidade adquire um tom bem mais comprometedor
e de testemunho realizado na gratuidade, quando, pela proximidade, se
está diante do outro cuja exposição não encoberta a situação injusta da
negação, da exclusão, da discriminação, da estigmatização...
A esse tocante é espetacular o modo como Jesus se faz próximo.
Talvez seja o aspecto mais autêntico e marcante de sua práxis moral. Ele
vivencia a proximidade na responsabilidade de forma total, radical. O compromisso com o outro fica atado ao sentido de responsabilidade projetado
na dimensão do infinito. Pois, para Jesus, a responsabilidade é infinita,
uma vez que o ato de “responder pelo outro”, de fazer algo de concreto
pelo outro se reconhece e se comprova na ação encarnada na gratuidade,
no desinteresse total, no desprendimento de nada esperar em troca...
De fato, na prática moral de Jesus, a responsabilidade é elevada à
esfera do amor sem medida, sem limite. A partir daí torna-se fácil compreender por que a responsabilidade é infinita, pois pode existir maior
amor do aquele que doa a vida por seus irmãos!?
Não cabe aqui apenas teorizar... Temos de voltar à inserção de
Jesus no horizonte histórico-social de seu tempo, e assim dali conseguir
captar como Jesus se faz próximo dos que, situados à margem, interpelam
à responsabilidade ética. A ela já fizemos referência e é dessa premissa
que precisamos partir: o mundo em que Jesus viveu era um mundo marcado pela presença de muita gente excluída da esfera social e religiosa.
O problema que agora enfrentamos é a questão da metodologia que
indaga pelo modo como vamos nos aproximar desse universo de rostos
anônimos, de “gente insignificante”.
Achamos que o caminho mais apropriado e seguro é simplesmente
seguir os passos de Jesus. Vamos observar e retratar de quem Jesus vai
par.), mendigos cegos (Mc 10, 46-52 par.; Jo 9,1-41) e muitos outros pobres e aflitos, empurrados para as margens da sociedade” (MEIER, J.P. Um judeu marginal.
Repensando o Jesus histórico, volume três, livro um: companheiros. Rio de Janeiro:
Imago, 2003, p.41).
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A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados
ao encontro para se fazer próximo, e como a proximidade desencadeia
a responsabilidade que assume o outro a partir de sua dor, de seu grito
e clamor, de sua situação de não ser reconhecido, mas discriminado,
estigmatizado... Faremos isso, colocando em destaque os rostos das pessoas, dos grupos com quem Jesus viveu concretamente a proximidade.
Iniciando, vamos, por primeiro, abrir espaço ao rosto das mulheres.
As mulheres
Num mundo culturalmente dominado pela rígida estrutura doméstica patriarcal , em que se reservava à mulher apenas o espaço da casa,
não é difícil de imaginar a atitude inusitada e ao mesmo tempo escandalosa de um número incomum de mulheres, tanto da classe alta como
da baixa, que seguia a Jesus. O fato realmente é surpreendente, pois “a
visão de um grupo de mulheres – aparentemente, pelo menos em alguns
casos, sem a proteção de maridos a acompanhá-las – viajando através da
região rural da Galileia com um homem solteiro que exorcizava, curava
e lhes ensinava da mesma forma como o fazia a seus discípulos homens,
não podia deixar de fazer olhos pios se arregalarem e de provocar comentários ímpios”20.
E o fato, tão inusitado, surpreende ainda muito mais, se tivermos
presente as seguintes informações: 1) “Parece pouco provável que mulheres judias da Palestina pudessem ter tomado a incomum, para não dizer
escandalosa, atitude de seguir Jesus e seus discípulos através da Galileia
por um longo tempo, sem seu convite prévio ou, pelo menos, sua clara
aquiescência após o fato”21; 2) Seguramente, “com ou sem escândalo,
Jesus lhes permitia segui-lo e servi-lo. Quaisquer que sejam os problemas de vocabulário, a conclusão mais provável é que ele considerava e
tratava essas mulheres como discípulas”22; 3) Algumas dessas devotadas
seguidoras ajudavam, com seu próprio dinheiro, patrimônio ou alimentos,
a sustentar Jesus e o seu grupo23; 4) O fato de uma comitiva de seguidoras
88
20
MEIER, J.P. Um judeu marginal. Repensando o Jesus histórico, volume três, livro um:
companheiros, p.96.
21
Ibid., p.94.
22
Ibid., p.96.
23
“O quadro de Lucas em 8,1-3 mostrando mulheres desacompanhadas partilhando
as jornadas de pregação de um mestre celibatário é descontínuo com o judaísmo
daquele tempo e também com que o evangelista apresenta – e com que o que nós
sabemos – da primeira geração da missão cristã. Parece que Lucas, quaisquer que
fossem seus propósitos, preserva uma valiosa memória histórica em 8,1-3: algumas
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acompanhar a Jesus, em si, já é escandaloso, provavelmente perturbaria
mais ainda a notícia de que, dentro do grupo das partidárias, algumas
eram antigas endemoninhadas, como também existia quem não ostentava
boa reputação social, notadamente o caso de Maria Madalena24.
Os pecadores e publicanos
Acabamos de conferir o fato surpreendente a respeito do séquito
de mulheres que com Jesus viajava. Se esse acontecimento já escandalizava os rigorosamente pios, imagine agora como deveria perturbá-los
a intimidade de Jesus com os publicanos e pecadores. Esta é outra faceta surpreendente do ministério de Jesus, o fato de incluir o convívio
amistoso com excluídos (párias) sociais e religiosos como os publicanos
(coletores de impostos) e os pecadores25. É bom lembrar que Jesus era
“estigmatizado por seus críticos como um bon vivant, glutão e beberrão,
amigo de publicanos e pecadores (Mt 11,19 par.)”26.
No âmbito da convivência social, “a expressão “coletores de
impostos”, ou “publicanos”, indicava pessoas que colaboravam com os
opressores imperiais locais e/ou operavam com excessivo rigor, suborno
e corrupção. As duas expressões juntas, “publicanos e pecadores”, denotavam pessoas moral e ocupacionalmente perversas, irremediavelmente
más”27. Para compreender a força discriminatória da expressão, basta ter
presente: São Mateus, por exemplo, “quando queria designar alguém
da comunidade a ser evitado, dizia, ‘trata-o como gentio ou publicano’
(18,17). Essas pessoas deveriam ser evitadas a qualquer custo e não deveriam ser visitadas nem contadas como amigas. Tampouco se deveria
procurar convertê-las”28.
Com isso se confirma que, embora pudessem ter algum poder
político-econômico, os coletores de impostos tinham pouco status soseguidoras devotadas acompanhavam Jesus em suas viagens pela Galileia e por fim
o acompanharam até Jerusalém, e na verdade sustentavam-no e a seu grupo com
seu próprio dinheiro, patrimônio ou alimentos” (ibid., p.93). Cf. também ibid., p.96.
24
Cf. ibid., p.96, 262.
25
Ibid., p. 12.
26
Ibid., p.96.
27
CROSSAN, J.D.; REED, J.L. Em busca de Jesus. Debaixo das pedras, atrás dos
textos. São Paulo: Paulinas, 2007, p.154.
28
Ibid., p.154.
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89
A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados
cial29. Na realidade, equiparados aos pecadores públicos, eram pessoas
separadas da comunidade, colocadas à margem, devido ao “ofício impuro” que exerciam30.
Na pesquisa de Meier, encontramos um confronto muito ilustrativo. De um lado, Simão, o Zelote, um dos doze escolhidos por Jesus;
do outro, Levi, o publicano. A título de esclarecimento, é importante
saber que um zelote se caracteriza pelo zelo profundo na prática da lei
mosaica, atitude que leva a insistir com os outros judeus a observarem
a Lei estritamente, como forma de separar Israel dos gentios imorais e
idólatras e, ainda, a radicalidade de tal zelo poderia, em alguns casos,
empregar hostilidade, violência ou mesmo assassinato com o intuito de
afastar os correligionários dos gentios e de seu estilo de vida31. Do outro
lado, se encontra a pessoa do publicano, de cujas credenciais já temos
conhecimento.
Agora é que entra a atitude ética inovadora, à medida que provoca a
ruptura com as fronteiras sócio-religiosas. O que interessa, pois, priorizar
é que “Jesus chamou este Simão para uma vida comunal que envolvia a
associação (na verdade, até para comer e beber em refeições festivas) com
“publicanos e pecadores [ou seja, judeus que não observavam a Lei]” e
para um grupo de discípulos entre os quais se incluía Levi, o publicano.
As pessoas com as quais Simão deveria conviver como discípulo de Jesus, são um claro indicativo de que ele teria de dizer adeus à sua anterior
maneira de pensar e de agir com relação aos outros israelitas”32.
Os samaritanos
A alusão aos samaritanos simplesmente visa colocar em realce o
fato de que este grupo, no âmbito dos relacionamentos de Jesus, também
atraía sobre si o olhar condenatório da difamação, da discriminação.
A atitude de hostilidade, por parte dos judeus, estava apoiada em dois
fatores predominantes, a situação geográfica dos samaritanos e a sua
divergência religiosa.
90
29
Cf. CARTER, W. O evangelho de São Mateus, p.287-288.
30
Cf. GALLARDO, C.B. Jesus, homem em conflito, p.105.
31
Cf. MEIER, J.P. Um judeu marginal. Repensando o Jesus histórico, volume três, livro
dois: competidores, p.292.
32
Cf. ibid., p.292.
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A separação geográfica33 “caracterizava os samaritanos que, além
disso, merecem, pelo menos de alguns estudiosos, a estranha classificação de israelitas, porém não judeus”34. A isso se acrescenta a posição
religiosa que divergia da principal corrente judaica. Os samaritanos se
consideravam semitas adoradores do Deus Iahweh e veneradores do
monte Garizim, próximo a Siquém, como o único lugar válido para a
construção de um altar ou templo para o culto público de Iahweh. Posição esta que diferia frontalmente da crença judaica de o monte Sião, em
Jerusalém, ser o verdadeiro local de adoração a Iahweh35.
Aqui, todavia, cabe salientar que “Jesus tinha uma visão benigna
dos muitas vezes difamados samaritanos e em algumas ocasiões teve
encontros rápidos e positivos com alguns deles”36. A mais famosa referência aos samaritanos se encontra na parábola do bom samaritano, em
Lucas 10,30-37.
É óbvio que o objetivo da parábola não está em discutir as relações entre judeus e samaritanos. O seu foco principal se centraliza
na necessidade de definir quem é o nosso próximo37. Mas, no âmbito
da proximidade, o que também está em jogo é o modo como fazerse próximo. A respeito disso, a postura do samaritano, na parábola, é
exemplar. O sacerdote judeu e o levita (ambos ministros do templo de
Jerusalém), diante do homem pobre e ferido, se destacam pela atitude
de indiferença e omissão. É o desprezado samaritano que vai dar o testemunho da proximidade como algo que se faz pelo outro, sem esperar
nada em troca. É ele que, através dos gestos de compromisso, vai ensinar
33
“Em termos geográficos, os samaritanos poderiam ser definidos predominantemente
como os habitantes da região denominada Samaria, que na Palestina do século I se
localizava ao norte da Judeia e ao sul da Galileia, na margem ocidental do rio Jordão.
Sua capital também se chamava originalmente Samaria, mas Herodes, o Grande, a
reconstruiu no século I A.C. e lhe deu o novo nome de Sebastia, em honra de Augusto
César (Sebastos é o equivalente grego para Augustus) (ibid., p. 256).
34
Ibid., p.293.
35
Cf. ibid., p.257. Leve-se também em consideração que os samaritanos “sustentavam
ser sua linhagem de sacerdotes levíticos atuando no monte Garizim os legítimos
sacerdotes da prescrição mosaica, em oposição aos sacerdotes do templo de Jerusalém”, assim como “aceitavam somente os cinco livros de Moisés (o Pentateuco)
como escrituras autorizadas, excluindo até o ainda fluido corpo dos Profetas e dos
Escritos que se desenvolvia lado a lado com o Pentateuco na corrente principal do
judaísmo” (ibid., p.257).
36
Ibid., p.293.
37
Cf. ibid., p.271.
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91
A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados
que a misericórdia para com o outro tem a dimensão da gratuidade, da
responsabilidade ilimitada.
Mesmo sabendo que a parábola não comporta explicitamente o
objetivo de debater as relações entre judeus e samaritanos, ela deixa
brechas para a compreensão de que o apelo à misericórdia e à compaixão
se dirige a todos os membros da comunidade humana, projetando-se
para além das barreiras religiosas ou étnicas38. Também não seria de
todo inapropriado cogitar que a parábola subentende a sugestão de que
“Jesus deplora as relações hostis entre os samaritanos e judeus de seu
tempo (ideia corroborada pelo episódio de Lc 9,52-56)”39.
A mulher cananeia
Continuando na rota dos passos de Jesus, vamos perceber em
outro episódio, o da mulher cananeia (Mt 15,21-28), que a ruptura com
as barreiras vai bem mais longe... A direção da ruptura agora se endereça
ao espaço das relações com os pagãos. Este é outro campo minado de
preconceitos estigmatizadores.
Vamos à cena. O encontro de Jesus com a mulher cananeia acontece em um lugar não especificado, na região limítrofe entre a Galileia
e Tiro-Sidônia, propriamente a interface do território judeu e pagão. O
lugar onde se situam é um local de tensão e ressentimentos, um mundo
de barreiras étnicas, culturais, religiosas e políticas40.
A mulher cananeia, como pagã, se localiza geograficamente nas
margens de Israel. Para a cosmovisão de Israel, ela é uma figura simplesmente marginal. “Como cananeia, membro de um povo amaldiçoado,
destinado a ser dominado como escravos (Gn 9,25), ela pertence a um
povo desapropriado pela ocupação e posse da terra de Israel. Esta vitória
israelita era vista como presente de Deus, era compreendida como uma
expressão da condição de eleito de Israel, e era celebrada nas tradições
de Israel. Mas, embora submissa, ela desafia esta ideologia excludente.
A sua demanda por inclusão constitui a sua fé, o meio pelo qual ela
encontra a bênção do Deus de Israel”41.
92
38
Cf. ibid., p.271.
39
Ibid., p.271.
40
Cf. CARTER, W. O evangelho de São Mateus, p.408.
41
Ibid., p.407.
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Como pagã, ainda mais em sua situação de desespero, ela cruza
audaciosamente o limite étnico para buscar ajuda, para interceder por
misericórdia. A barreira se rompe, pois o pedido de socorro é dirigido a
um judeu. “A sua petição desafia a mesma identidade e missão de Jesus.
Confronta a ideologia imperialista de Israel. Ela exige que Jesus torne
disponível para ela o que está disponível para Israel”42.
Há um momento da cena em que Jesus não responde, permanece
em silêncio (Mt 15,23). Por ser ela uma mulher pagã, parece que o silêncio deixa a entrever que há muitas razões para Jesus não a levar em
consideração. Tudo favorece ao gesto de ignorá-la, os fatores étnicos,
culturais, religiosos, políticos, de gênero, já que eles se encontram em
uma zona limítrofe, impregnada de muitos preconceitos.
Mas ela torna a insistir. E a resposta que tem de ouvir não é nada
agradável: “Não é justo tirar a comida dos filhos e atirá-la aos cachorros”
(Mt 15,26). O confronto entre os dois mundos se materializa explícito:
os filhos (de Israel) versus os cachorros (os oponentes, a mesma coisa
que pagãos). Referir-se a ela como um cachorro é algo ofensivo e insultante43, e dentro do contexto significa que continuam vigorando as regras
do jogo de convenções históricas e culturais firmemente alicerçadas na
discriminação, na hostilidade.
“Jesus parece ser pego com sua compaixão ao mais baixo
grau”44.
Não obstante, ela não se intimida... E a sua resposta é comovente:
“Sim, Senhor, contudo até mesmo os cachorros comem os miolos de pão
que caem da mesa de seus donos” (Mt 15,27). Diante da resposta engenhosa,
Jesus reage positivamente: “Mulher, grande é a tua fé” (Mt 15,28). O seu
pedido é atendido. Ao executar o milagre, Jesus dá a prova concreta de superação das barreiras étnicas, religiosas, culturais, políticas e de gênero45.
Os personagens excluídos (impuros)
A prática de proximidade de Jesus se torna muito mais desconcertante, à medida que Jesus se aproxima de um elenco de personagens
42
43
Ibid., p.409.
Cf. ibid., p.411.
44
Ibid., p.411.
45
Cf. ibid., p.412.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
93
A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados
excluídos, isolados do convívio social, seguramente porque ostentam o
labéu vergonhoso e repugnante de serem impuros. Nesse rol, os rostos
se diversificam: leprosos, cegos, paralíticos, endemoninhados... Todos,
porém, compartilham da mesma situação social deplorável – a exclusão,
a solidão, o opróbrio, a rejeição, o estigma...
O contato com eles é negado, uma vez que poderiam contaminar
a comunidade. Tidos como impuros, são uma ameaça para a vida das
pessoas. Segundo a Lei, a impureza é causa de morte (Lv 15,31). Diante
de uma consequência assim desastrosa, a comunidade precisa proteger-se
da “contaminação” do homem impuro. E o faz, relegando-o à situação
de abandono, de rechaço, de isolamento social... É nessa situação de
exclusão que Jesus encontra:
– Os leprosos. A eles se impõe a exigência de viverem fora da
cidade ou em casa separada46. Seguindo a prescrição de Lv 13,45, quando
se aproximassem de alguém, para evitarem o contato, deveriam gritar
“impuro”! Se isso não bastasse, o sofrimento físico e a dor do isolamento
social47, ainda existia o trauma de viverem sob a acusação de a lepra ser
um castigo divino48.
– Os cegos. Também sob esta mesma acusação viviam marginalizados. As enfermidades e deformidades físicas eram interpretadas como
castigo pelo pecado e infidelidade à aliança. A exclusão religiosa dos
cegos encontrava sua legitimação na própria determinação de Lv 21,18:
“nenhum homem com defeito poderá aproximar-se para ministrar”. A
exclusão, entretanto, não se restringia à proibição religiosa: economicamente os cegos são “vulneráveis, dependendo do sustento familiar ou
sustentando-se eles mesmos com mendicância vergonhosa”49.
– Os coxos, os mudos, os aleijados, os paralíticos, igualmente
são tantos outros marginalizados. Nada mais do que gente desgraçada,
desamparada, gente insignificante, impura, contaminadora de sua enfermidade e, por causa disso, impedida de “aproximar-se para oferecer o
alimento de seu Deus” (Lv 21, 16).
– Os endemoninhados. Da mesma forma, eles estão situados no
campo da impureza e da morte. O que é mais deprimente ainda é que recai
94
46
Cf. ibid., p.264.
47
Cf. GALLARDO, C.B. Jesus, homem em conflito, p.96.
48
Cf. CARTER, W. O evangelho de São Mateus, p.264.
49
Ibid., p.299.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Márcio Bolda da Silva
sobre eles o estigma repugnante de serem o símbolo do homem dominado
e escravizado50. Na cena dos dois endemoninhados, em Mt 8,28-34, “eles
vivem nas tumbas, fora da área urbana, mas perto das estradas principais,
de maneira que os vivos podiam honrar e importar-se com os mortos
proporcionando alimento e participando em refeições sacramentais para
assisti-los na outra vida. Os dois homens vivem fisicamente nas margens,
longe dos núcleos familiares, que definiam os papéis sociais e de gênero,
e os engajamentos políticos e econômicos”51. De modo geral, a realidade
de quem se descobria endemoninhado, além de desoladora, indicava
que ele pertencia ao mundo dos descartáveis, isto é, o nível mais baixo,
completamente inferior, da sociedade52.
Do ponto de vista ético, é sumamente importante que se coloque
em realce o fato de que Jesus volta sua atenção, se detém e se envolve
com pessoas cuja referência social é sinônimo de exclusão, de vidas
alienadas e subjugadas ao “mundo dos descartáveis”. Do contexto em
que as cenas de proximidade acontecem, não se pode perder de vista a
perspectiva de realidade que não ilude a respeito das condições difíceis
de quem vivia sob a acusação e condenação de ser foco disseminador
de impureza, desgraça e morte.
Que a dureza da realidade não impeça de compreender que a
própria palavra que designa o estado de doença, deformidade ou deficiência, é a mesma que retrata a situação de “miséria pessoal, social e
econômica, para cada vítima”53. Em tal contexto, o sofrimento não se
prende somente à realidade da doença. Ultrapassa a fronteira da dor física para estirar-se em aflição, tormento, desespero; a dor típica de quem
intercepta seu mundo de relações circunscrito ao estigma do isolamento
e da discriminação social.
Só mesmo quem é movido de compaixão é capaz de romper com
fronteiras assim construídas sobre alicerces ostensivamente excludentes.
Talvez seja por causa disso que os evangelhos insistem em priorizar
que a proximidade de Jesus sempre se convertia em compaixão como
experiência de sentir e compartilhar a dor do outro e iniciativa de fazer
alguma coisa, comprometendo-se!
50
Cf. GALLARDO, C.B. Jesus, homem em conflito, p.138.
51
CARTER, W. O evangelho de São Mateus, p.281.
52
Cf. ibid., p.280.
53
Ibid., p.172.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
95
A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados
As identidades marginais
O próximo passo, que precisamos dar, segue pelo mesmo percurso.
Simplesmente estamos acompanhando os passos de Jesus com um único
objetivo: é importante saber e identificar de quem Jesus se aproxima... Até
o presente momento, nossa caminhada junto com Jesus se mantém surpreendida pelo fato inédito de Jesus viver a proximidade inserida no limite
extremo das situações marginais. O que, porém, mais surpreende é o seu
aguçado sentido de responsabilidade ética. É próprio da prática moral de Jesus
comprometer-se com a causa do outro na perspectiva do testemunho vivido
como misericórdia e compaixão. Como vimos acima, em seu testemunho de
proximidade, Jesus atesta que só responde pelo outro quem se deixa interpelar
eticamente pela sua situação de dor, abandono, rejeição, descaso...
Se continuarmos atentos aos passos de Jesus, eles permanecem
surpreendendo... A surpresa agora vem de outro desconcerto. Jesus choca, quando trata de identidades marginais como imagens portadoras de
sentido iluminador e crítico acerca da compreensão do Reino de Deus,
da autenticidade do seguimento, da opção vivida no despojamento...
À primeira vista, tais imagens só podem escandalizar, pois retratam
identidades reais, mas completamente marginais, totalmente desconsideradas, subestimadas nas estruturas socialmente dominantes. Se, de fato,
são marginais, não deixam de ser identidades que entram em oposição
aos padrões culturalmente prevalecentes. Isso só vamos conferir, ao
darmos rosto às identidades marginais.
– As crianças: “Em verdade vos digo, se não vos converterdes e não
vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 18,3).
No seio da sociedade patriarcal, as crianças eram vistas como
fracas, desprovidas de razão, ignorantes, imprevisíveis, vulneráveis,
de pequeno valor presente, mas significante para o futuro. Dentro da
estrutura familiar rigidamente hierarquizada, as crianças se encontram
dependentes, submissas e obedientes a seus pais. Deveriam ser treinadas para a aprendizagem de seus papéis futuros: cívicos (homem)
e doméstico (mulher). Elas não têm nenhum direito e seu lugar está
ambientado nas margens do mundo adulto, centrado exclusivamente na
figura masculina54.
54
96
Cf. ibid., p.116-117, 334, 456-457, 483-486; GALLARDO, C.B. Jesus, homem em
conflito, p.200-201.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Márcio Bolda da Silva
– Os escravos: “Entre vós não deve ser assim. Quem quiser ser o
maior entre vós seja aquele que vos serve, e quem quiser ser o primeiro
entre vós seja o escravo de todos” (Mc 10,43-44).
A imagem do escravo situa os discípulos com os marginais e
menosprezados55. A comunidade é configurada com a experiência das
margens sociais e não com os privilégios de quem desfruta segurança e
estabilidade nos centros do poder e ainda, se não em esfera tão elevada,
pelo menos, reconhecimento de sua posição na pirâmide social. Convém
ter presente esta observação, pois os escravos ocupavam o ponto mais
baixo da hierarquia social. Vinham depois da categoria que incluía os
trabalhadores diaristas, lavradores que trabalhavam em terra alheia, e
os mendigos56.
– As prostitutas: “Em verdade vos digo que os publicanos e as
prostitutas vos precedem no Reino de Deus” (Mt 21, 31).
Sobre a imagem da prostituta, não é necessário se deter com
comentários mais amplos. A razão muito bem o sabemos: até os dias de
hoje, esta é uma imagem que reflete a mesma conotação, a de ser uma
identidade marginal.
– Os eunucos: “De fato, existem eunucos que nasceram assim do
ventre materno; outros foram feitos eunucos por mão humana; outros
ainda, tornaram-se eunucos por causa do Reino dos Céus” (Mt 19,12).
Os “eunucos eram estranhos permanentes, figuras marginais desonradas, frequentemente menosprezados e socialmente alienados”57.
Com uma identidade distinta, não havia nenhum lugar para eles “em
famílias patriarcais com seus papéis cuidadosamente definidos e separados para homem e mulher, marido e esposa, pais e filhos. O eunuco
não participava em nenhuma dessas relações. Os eunucos violavam essa
ordem, ameaçavam a ordem e o futuro da família e a sobrevivência da
raça, porque não podiam gerar filhos. Sem crianças ou família, sexualmente ambivalentes, desprezados e abusados, os eunucos não tinham seu
lugar próprio”58. Experimentavam asperamente a alienação das famílias
55
Cf. CARTER, W. O evangelho de São Mateus, p.567, 598.
56
Cf. MEIER, J.P. Um judeu margina.l Repensando o Jesus histórico, volume três, livro
dois: competidores, p.341.
57
CARTER, W. O evangelho de São Mateus, p.481.
58 Ibid., p.481-482.
Encontros Teológicos nº 56
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97
A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados
e dos grupos familiares, dado que tinham uma identidade e viviam uma
existência marginal.
– Os pobres: “Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de
Deus!” (Lc 6,20).
Aqui surge a compreensão e a exigência de que “os pobres não devem ser espiritualizados, seja suavizando o referente (“pobre voluntário”),
seja fazendo-o metafórico (“covarde”, “humilde”). Eles são os pobres
literais, físicos, os despossuídos, aqueles que vivem na dificuldade social
e econômica, carecendo de recursos adequados, explorados e oprimidos
pelos poderosos e desprezados pela elite. Eles incluem o estrangeiro, o
órfão, a viúva, o necessitado, os aleijados fisicamente (cego, coxo) e os
impotentes”59.
4 Eis o desafio!
Não poderíamos concluir a abordagem, sem reconhecer que a
práxis moral de Jesus, em sua radicalidade, sempre vem à luz como
um parâmetro que enfeixa desafios insuperáveis. O estilo desafiador de
como Jesus encarna a prática moral coloca inevitavelmente em situação
de questionamento crítico, e redimensionamento inovador, qualquer
formulação ética que se aproprie do qualificativo de ser cristã. Isso se
subentende em sintonia com a verdade de que, no âmbito cristão, o critério
condicionante para fundar a autenticidade do discurso ético-teológico é
indiscutivelmente a práxis de Jesus.
Do trajeto que acabamos de percorrer para acompanhar os passos
de Jesus, parece que a sensação mais emergente é a de que se está diante
de um grande desafio. Eis o desafio do qual Jesus dá testemunho: viver a
ética como proximidade responsável. A responsabilidade cuja atitude de
fazer-se próximo responde pelo outro. Mas, só responde e corresponde
concretamente às interpelações do próximo quem o “des-cobre” inserido
dentro do contexto sócio-estrutural e, sobretudo, o “des-cobre” como
expressão de intensa resistência ética, quando, no contexto, tornam-se
explícitas as barreiras sociais, étnicas, religiosas, econômicas, políticas
etc., que o colocam à margem.
Não é esse o modo ético de estar diante do outro que qualifica
e caracteriza o testemunho de Jesus!? Jamais conseguiríamos captar a
59
98
Ibid., p.179.
Encontros Teológicos nº 56
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Márcio Bolda da Silva
contundência moral das ações de Jesus em relação aos diferentes estigmatizados, descritos anteriormente, se não fizéssemos referência direta
ao contexto real e estrutural dentro do qual os fatos de proximidade
acontecem. Pelos passos de Jesus, o horizonte de compreensão se abre
para a importância da contextualização como critério decisivo para o
compromisso ético humanizador, o compromisso que se projeta convicto
da necessidade de humanizar. Mas, para que isso se efetue, é imprescindível romper e superar as barreiras edificadas para estigmatizar, excluir,
discriminar, marginalizar...
Surpreendem, como vimos acima, a capacidade e a flexibilidade de
Jesus situar-se em contexto. Podemos comprovar, através dos episódios
relatados, que é em contexto que Jesus exercita a sensibilidade ética.
Na práxis de Jesus, o sentimento de compaixão e misericórdia não se
enquadra no esquema de categorias teorizadas. É somente em inserção
contextual que esses sentimentos se provam eticamente, ou seja, respondem ou não às interpelações do próximo.
Graças ao testemunho de Jesus, conseguimos compreender que
este é o grau mais elevado a que pode chegar a sensibilidade ética humana.
A capacidade de sentir com-paixão! Eticamente falando, nada ultrapassa
tal sensibilidade: estar junto (próximo) ao outro e assim sentir e compartilhar sua dor. A respeito disso, o testemunho de Jesus é exemplar. É
provando sua capacidade de compaixão e misericórdia que Jesus abre
a perspectiva ética para o sentido profundamente humanizador: o que
se faz pelo outro só tem em vista a sua humanização, a sua construção
como ser humano e filho(a) de Deus.
Dessa verdade se faz fautora a prática moral de Jesus. Mais acima,
tivemos a oportunidade de acompanhar de perto os seus passos na direção
do interlocutor que interpela situado à margem. No movimento de proximidade que Jesus realiza, presenciamos o fato surpreendente: quantas
barreiras caem por terra! Da multidão massificada ou do anonimato quando o rosto se ergue, Jesus se aproxima trazendo à luz o indivíduo, mas
não só ele, junto com ele vem também o mundo das estruturas desumanas
e injustas que o excluem, que o tornam um estranho estigmatizado... E
podemos constatar que, à medida que Jesus se aproxima dos pecadores
e publicanos, das mulheres que o seguiam, dos samaritanos, da mulher
cananeia, dos cegos, leprosos, coxos, paralíticos, endemoninhados, das
identidades marginais (crianças, escravos, eunucos, prostitutas, pobres),
são fronteiras e barreiras seja de gênero, sociais, políticas, econômicas,
Encontros Teológicos nº 56
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A práxis moral de Jesus e os diferentes estigmatizados
religiosas, étnicas, culturais, que vão se rompendo e se relativizando...
Caem por terra, e precisam cair por terra, para certamente corroborar que
o que vem em primeiro plano é sempre o ser humano e sua dignidade.
Aí está a marca da originalidade de Jesus entender e encarnar a
prática moral. Originalidade esta que encontra na radicalidade do compromisso com a causa do outro a força motriz de seu dinamismo e de
seu estilo provocador, transgressor. Diante de evidências tão tangíveis,
não se pode negar o sentido de radicalidade presente no modo como
Jesus colocava em prática a razão suprema para agir com eticidade. A
originalidade de tal estilo simplesmente vem confirmar que a prática
moral está intimada a prestar contas ante os desafios e as exigências
que a legitimam como autêntica a partir de seu sentido mais originário
e supremo: a valorização construtiva da realidade humana.
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Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Resumo: Desenvolvida desde suas primeiras comunidades a partir do encontro
e do diálogo com as diversas culturas, a Igreja teve no Concílio Vaticano II,
particularmente na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, um de seus marcos
históricos, pela forma como definiu sua compreensão sobre a Cultura, abrindo
novos caminhos para a ação evangelizadora. A recepção desse documento,
assim como de todo o conteúdo do Concílio, ainda está por se completar. Nesse
processo, torna-se evidente a necessidade de envolvimento de teólogos nacionais, que com ciência e método busquem aprofundar o conhecimento da fé
“no invólucro de sua própria cultura”. Destaca-se no esforço de concretização
dos indicativos do documento o papel de Paulo VI e, particularmente, de João
Paulo II, que dotou a Cúria de um dicastério específico para a articulação do
diálogo da Igreja com o mundo da cultura, Por fim, ainda que de forma sintética,
observa-se como essa questão foi tratada pela Igreja da América Latina, em
suas cinco Conferências Gerais.
Abstract: Developed since the earliest communities based on the meeting and
the dialogue between different cultures, the Church had in Vatican Council II,
especially in Gaudium et Spes Pastoral Constitution, one of its historical landmarks, by the way it defined its understanding on culture, opening new paths
for evangelizing action. The receiving of this document as well as all the Council
content are completing this process, and the necessity of the involvement of
national theologians with their own culture becomes evident. The Pope Paul
VI´s role stands out and, especially, Pope John Paul II, who improved the curia
of an especific department for the articulation between the Church and the world
of culture. In conclusion, it was observed how this question is discussed by the
Latin American Church and its five General Conferences.
Igreja e Cultura
Aroldo Braga*
* O autor é Assessor Nacional da CNBB/Pastoral da Cultura, Membro
da Comissão de Coordenação dos Centros Culturais Católicos do
Cone Sul (Pontifício Conselho da Cultura) e do Conselho de Redação
da Revista Cidade Nova (São Paulo). Advogado.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010, p. 101-118.
Igreja e Cultura
1 Introdução
A ação evangelizadora da Igreja sempre se desenvolveu a partir
de sua relação com a cultura. Ainda que a adesão à Boa Nova anunciada seja sempre um ato pessoal, quem a pratica está inserido num
contexto cultural próprio e localizado, que tanto influi no processo da
evangelização, quanto é por ele influenciado a partir da adesão dos que
ali se encontram. Neste artigo pretendemos abordar essa relação, tendo
como suporte o modo como ela foi entendida pelo Concílio Vaticano II
e observando como essa compreensão foi recebida pela Igreja, tanto na
Santa Sé quanto na América Latina.
2 Conceito e amplitude
Pretendendo analisar essa relação a partir do ponto de vista da
Igreja, em sua história e na compreensão de seu Magistério, podemos
começar pelo conceito de Cultura consagrado pelo Concílio Vaticano
II, reconhecendo que são múltiplos outros modos de compreendê-la,
conforme as disciplinas e interesses que orientem a reflexão. Acolhendo esse conceito, indicamos também que ele servirá de guia para
toda a reflexão, assim como a própria Missão da Igreja serve de guia
para a sua relação com as variadas expressões da Cultura, neste e
nos passados tempos.
Para o Concílio Vaticano II, essa palavra, “cultura”,
indica, em geral, todas as coisas por meio da qual o homem apura e
desenvolve as múltiplas capacidades do seu espírito e do seu corpo;
se esforça por dominar, pelo estudo e pelo trabalho, o próprio mundo;
torna mais humana, com o progresso dos costumes e das instituições, a
vida social, quer na família quer na comunidade civil; e, finalmente, no
decorrer do tempo, exprime, comunica aos outros e conserva nas suas
obras, para que sejam de proveito a muitos e até à inteira humanidade,
as suas grandes experiências espirituais e aspirações.1
Na amplitude dessa compreensão do termo, o Concílio ressalta
a necessidade que o homem tem da cultura, da qual é sempre o sujeito,
bem como a íntima ligação entre natureza e cultura, afirmando que
1
102
Cf. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, 53.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Aroldo Braga
a cultura humana implica necessariamente um aspecto histórico e social
e que o termo “cultura” assume frequentemente um sentido sociológico e
etnológico. É nesse sentido que se fala de pluralidade das culturas. Com
efeito, diferentes modos de usar as coisas, de trabalhar e se exprimir, de
praticar a religião e de formar os costumes, de estabelecer leis e instituições jurídicas, de desenvolver as ciências e as artes e de cultivar a beleza,
dão origem a diferentes estilos de vida e diversas escalas de valores. E
assim, a partir dos usos tradicionais, se constitui o patrimônio de cada
comunidade humana. Define-se também por esse modo o meio histórico
determinado no qual se integra o homem de qualquer raça ou época, e
do qual tira os bens necessários para a promoção da civilização.2
Esse modo de ver a cultura deve sempre pautar a relação da Igreja
com todos, crentes ou não, mas não é seguro afirmar-se que em todos os
tempos foi assim que aconteceu. Ainda nos primeiros tempos do cristianismo já se verificavam tensões, pela dificuldade em se separar o modo
novo de ver o homem, proposto por Jesus Cristo, do empenho de seus
seguidores em conduzir todos à conversão, muitas vezes pretendendo
a renúncia dos recém-convertidos a expressões de sua cultura que no
fundo não eram incompatíveis com a fé, diferentemente do que tantos
entendiam. Esse é um ponto crítico constante ao longo da história da
ação evangelizadora, até os nossos dias, onde nem sempre o equilíbrio
prevalece.
Eximindo-nos de um apanhado histórico, que fugiria dos objetivos
desta reflexão, procuraremos limitar-nos ao tempo pós-Concílio, certos
de que a Constituição Pastoral Gaudium et Spes é o marco mais importante da história da Igreja em sua relação com a Cultura.
3 Gaudium et Spes: A solidariedade da Igreja
com a Família Humana
Essa Constituição, inspirada em memorável discurso do Cardeal
Suenens3 em 4 de dezembro de 1962, no final da primeira sessão conciliar, teve sua promulgação ordenada por Paulo VI em 7 de dezembro de
1965, depois de longa tramitação que se concluiu com o voto negativo de
apenas 75 dos 2.391 padres conciliares presentes. Esse resultado mostra
2
Ibid.
3
Cardeal Leon Joseph Suenens, Arcebispo de Malines-Bruxelas, Bélgica, de grande
influência no pontificado de Paulo VI e no próprio Concílio Ecumênico Vaticano II.
Encontros Teológicos nº 56
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103
Igreja e Cultura
a importância que o tema assumiu no Concílio, realçada ainda em sua
introdução quando os padres conciliares reafirmaram que “as alegrias e
as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje”, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também dos discípulos de
Cristo. Esse encontro da Igreja com o mundo atual – também com sua
cultura – foi celebrado de forma vibrante por Paulo VI naqueles dias,
quando afirmou que a Gaudium et Spes constituía sua mensagem de Natal
daquele ano, considerando que ela marcava o ponto de encontro entre
Cristo e o homem moderno: “O encontro da Igreja com o mundo atual
foi descrito em páginas admiráveis da última Constituição do Concílio.
Toda pessoa inteligente, toda alma bondosa deve conhecer essas páginas.
Elas levam, sim, de novo a Igreja ao meio da vida contemporânea, mas
não para dominar a sociedade, nem para dificultar o autônomo e honesto
desenvolvimento de sua atividade, e sim para iluminá-la, sustentá-la e
consolá-la.”
Paulo VI, com esse gesto significativo de assumir a publicação
da Gaudium et Spes como a sua própria mensagem de Natal, exprimia
o sentimento que invadia a Igreja de que, a partir dali, se inaugurava
um novo tempo, que aproximava a Igreja, na complexidade do tempo
atual, do espírito das primeiras comunidades cristãs. Era como se Paulo
tivesse outra vez a oportunidade de falar ao mundo, agora em seus novos
areópagos.
Para assim falar com o homem dos novos tempos, a Igreja deveria assumir um empenho muito exigente e indispensável. Deveria ir ao
encontro desse homem, despida de suas certezas quanto a ele e a seu
mundo. Um desafio que se renova e se agrava nos tempos atuais, quando
parece que não se andou tanto quanto se esperava:
... a Igreja, a todo momento, tem o dever de perscrutar os sinais dos
tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas
sobre o significado da vida presente e futura e de suas relações mútuas.
É necessário, por conseguinte, conhecer e entender o mundo no qual
vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole frequentemente
dramática4.
Em seguida a essa exortação, a Gaudium et Spes faz uma análise do mundo moderno, como era visto pelos padres conciliares, cujo
4
104
Ibid. 4
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Aroldo Braga
conteúdo poderia ser retomado como estudo ainda hoje por todos os
que se empenham na ação evangelizadora. Mais que análise de uma
conjuntura daquele tempo, trata-se de uma visão antecipada dos dramas
que marcaram este meio século que nos separa do Concílio, com um
olhar amoroso pelo homem e suas vicissitudes a partir da certeza de
que Cristo, “morto e ressuscitado por todos, pode oferecer ao homem,
por seu Espírito, a luz e as forças que lhe permitirão corresponder à sua
vocação suprema” (GS, 10).
Toda a longa reflexão que segue, cuidando do homem, de sua
dignidade e da função da Igreja, conduz ao capítulo onde se trata especificamente da promoção da cultura. Como introdução ao conceito já
mencionado na abertura desta reflexão, os padres conciliares afirmam que
“é próprio da pessoa humana não atingir a humanidade verdadeira e plena
senão pela cultura, isto é, cultivando os bens e os valores da natureza.
Em todo lugar, portanto, quando se trata de vida humana, a natureza e a
cultura se entrelaçam de um modo muito íntimo” (GS, 53).
É importante que relacionemos essa afirmação com o significado
do homem para a fé cristã, para assim entendermos o valor que a compreensão da cultura e o diálogo com suas expressões têm para a ação
evangelizadora. A humanidade verdadeira e plena, que se completa com
a fé, é dependente da cultura. Daí que não se pode pretender evangelizar
sem conhecer, respeitar e dialogar com a cultura onde estão inseridos
aqueles a quem se pretende fazer o Anúncio.
A análise da conjuntura – com o viés de visão antecipada do meio
século que se seguiria, a que nos referimos – a partir desse ponto cuida
das condições culturais do mundo atual, suas dificuldades e tarefas,
destacando a consciência nova dos homens e mulheres de serem “os
criadores e autores da cultura de sua comunidade”, testemunhando um
novo humanismo, “no qual o homem se define, em primeiro lugar, por
sua responsabilidade perante os irmãos e a história”.
Nesse ponto deve ser sempre motivo de atenção o elenco das
dificuldades e tarefas, seguramente não exaustivo, mas de grande
abrangência, onde os padres conciliares apontam a responsabilidade do
homem e das instituições no progresso da cultura, assinalando os riscos
das inúmeras antinomias que devem ser resolvidas, concluindo com a
afirmação de que “no meio dessas antinomias é necessário que a cultura
humana se desenvolva de tal modo, que aperfeiçoe de maneira equilibrada
a pessoa humana integral e ajude os homens a desempenhar as funções a
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
105
Igreja e Cultura
que são chamados, sobretudo os cristãos, unidos fraternalmente na única
família humana” (GS, 53).
Ao tratar especificamente da questão “fé e cultura”, que muitas
vezes é entendida como conflitante, a Constituição Pastoral ressalta a
importância da “missão que os cristãos têm de desempenhar, juntamente com todos os homens, na construção de um mundo mais humano”.
Encontramos ali um importante discurso onde é exaltada a ação do homem, com o trabalho de suas mãos ou por meio da técnica – a cultura,
conforme o conceito refinado da própria Constituição –, chegando-se ao
ponto tido por muitos, de forma errônea, como a cultura propriamente
dita, onde se acentua o risco de incompreensões. Ali os padres conciliares
afirmam que:
... quando se aplica às múltiplas disciplinas da filosofia, da história, das
ciências matemáticas e naturais e se ocupa das artes, o homem pode
contribuir em alta medida para que a família humana se eleve às noções
mais nobres do verdadeiro, do bom e do belo e a um juízo de valor do
universo, e seja mais claramente iluminado pela Sabedoria admirável
que estava junto de Deus desde toda a eternidade. (...) Por essa razão
o espírito do homem, mais desprendido da servidão das coisas, pode
elevar-se mais expeditamente ao próprio culto e à contemplação do
Criador5.
Essa visão tão positiva e cheia de esperança não afastou os
padres conciliares da compreensão dos riscos que o empenho e a
confiança demasiada nas descobertas atuais podem trazer ao homem,
levando-o a se descuidar dos valores mais altos, favorecendo certo
fenomenismo e agnosticismo. Esses riscos, entretanto, não obscurecem o valor positivo do progresso, cuja não admissão é tida como
uma tentação. Assim o documento enumera, ainda em seu número
57, esses valores:
“o estudo das ciências e fidelidade rigorosa à verdade nas pesquisas
científicas, a necessidade de trabalhar em equipe com outros nos grupos
técnicos, o senso da solidariedade internacional, a consciência cada
dia mais viva da responsabilidade dos cientistas na ajuda e na proteção
a ser dispensada aos homens, a vontade de tornar mais favoráveis as
condições de vida para todos, sobretudo para aqueles que são privados
de responsabilidade ou sofrem de indigência cultural. Tudo isso con5
106
Ibidem, 57
Encontros Teológicos nº 56
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segue trazer alguma preparação para que se receba a mensagem do
Evangelho, que pode ser informada pela caridade divina por Aquele
que veio salvar o mundo”.
O final dessa afirmação demonstra a altíssima compreensão que
o Concílio teve da cultura, abrindo espaço para uma exposição sobre os
vínculos entre a mensagem da salvação e a cultura humana, recordando
que Deus enviou o seu Filho e através dele se revelou, falando de acordo
com a cultura própria de diversas épocas, assim como realçou o uso pela
Igreja dos recursos da cultura para sua pregação a todos os povos com
o objetivo de explicar e difundir a mensagem de Cristo.
Tratando das relações harmônicas nas várias formas de cultura,
a Igreja
lembra a todos que a cultura deve estar subordinada à perfeição integral
da vida humana, ao bem da comunidade e da humanidade inteira. Por
isso é necessário cultivar o espírito, de tal modo que se desenvolva a
capacidade de admirar, de penetrar o íntimo das coisas, de contemplar,
de formar um juízo pessoal e de aperfeiçoar o senso religioso, moral
e social.
Defendendo que a cultura “precisa sem cessar de justa liberdade
para desenvolver-se e de legítima autonomia de ação”, livre da sujeição
aos poderes políticos e econômicos, a Gaudium et Spes enfrenta a questão
da fé e da razão, consagrando os limites da própria Igreja:
O Sagrado Concílio (...) declara que há “‘duas ordens de conhecimento” distintas, a saber: a da fé e a da razão. Portanto a Igreja não pode
absolutamente impedir que “as artes e as disciplinas humanas usem
de princípios e métodos próprios, cada uma em seu campo”. Por isso,
“reconhecendo a própria liberdade”, afirma a legítima autonomia da
cultura humana e particularmente das ciências. (GS, 59)
Esses pontos que quisemos destacar no grande conjunto da Constituição Gaudium et Spes parecem-nos suficientes para justificar o entusiasmo de Paulo VI com a publicação desse documento afirmando, como
vimos, que o mesmo deveria ser conhecido por toda pessoa inteligente,
por toda alma bondosa. A Gaudium et Spes não cuida apenas da cultura,
mas deixa bem claro a transversalidade do diálogo e da compreensão da
cultura em toda ação evangelizadora que se pretenda desenvolver. Como
é apenas esse o aspecto de que tratamos nesta reflexão, passemos então
Encontros Teológicos nº 56
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Igreja e Cultura
ao modo como foi recebida pela Igreja a questão da cultura assim como
vista pelo Concílio Vaticano II.
4 Depois do Concílio
O Concílio Vaticano II representou para a Igreja um tempo
de primavera, sendo acolhido com entusiasmo e esperança em todo
o mundo, mesmo se ocorreram importantes focos de oposição a
seus textos na própria hierarquia, dos quais não trataremos aqui.
Apesar desse entusiasmo e dessa esperança, o processo de recepção
do Concílio poderia ser tido como não completado, mas ainda em
andamento, quando já se cuida da celebração dos cinquenta anos de
sua realização.
O Papa Paulo VI tinha consciência da demora desse processo, e
duas mensagens suas a respeito foram recolhidas por Frei Boaventura
Kloppenburg, na substanciosa introdução geral à publicação dos documentos conciliares da Editora Vozes (Petrópolis, 1969). Na Carta ao
Congresso de Teologia pós-Conciliar, de 21.9.66, o Papa afirmou:
A tarefa do Concílio Ecumênico não está completamente terminada com
a promulgação de seus documentos. (...) É preciso ainda que toda a
vida da Igreja seja impregnada e renovada pelo vigor e pelo espírito do
Concílio, é preciso que as sementes de vida lançadas pelo Concílio no
campo que é a Igreja cheguem à plena maturidade. Ora, tudo isso não
poderá chegar a termo antes que o riquíssimo patrimônio legado pelo
Concílio à Igreja tenha sido aprofundado cuidadosa e diligentemente
pelo povo cristão, antes que este o reconheça e realmente possua.
Antes disso, dirigindo-se aos bispos da Itália, em 6.12.65, Paulo
VI falava das mudanças que deveriam ocorrer, a partir também de uma
tomada de consciência sobre o modo de considerar a Igreja:
Findo o Concílio, volta tudo ao que era antes? As aparências e
os hábitos responderão que sim; o espírito do Concílio responderá que
não. Alguma coisa, e não pequena, deverá ser, também para nós – antes,
sobretudo para nós – nova. As mudanças de tantas coisas interiores?
Sim, mas não é a essas que ora aludimos. Aludimos ao modo de considerar a Igreja, modo que o Concílio cumulou tanto de pensamentos,
de temas teológicos, espirituais e práticos, de deveres e de confortos, a
ponto de exigir de nós um novo fervor, um novo amor, como que um
novo espírito.
108
Encontros Teológicos nº 56
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Aroldo Braga
Esse processo exigia uma mudança interior de cada cristão no
modo de ver a Igreja, o que por si demandaria certo tempo, que também deveria ser alongado por força do volume de documentos a serem
conhecidos, estudados e absorvidos pelas igrejas particulares. Não há
uma hierarquia de valor e importância entre os documentos no que diz
respeito à sua recepção pelo povo e pelas igrejas particulares, e cada lugar foi-se inserindo no processo a partir de suas próprias possibilidades,
necessidades, disponibilidades e sensibilidades.
Assim considerando, voltemo-nos outra vez especificamente para
a Gaudium et Spes e, nela, para a questão da cultura, buscando conhecer
como esse documento foi recebido.
Na Cúria Romana, o processo de recepção se desenvolveu de
forma lenta, mesmo pela falta de um ente que o assumisse como um
empenho próprio. Quem buscou manter viva a mensagem da Gaudium
et Spes relativa à cultura foi o próprio Papa Paulo VI, tratando dela,
de forma explícita ou implícita, em seus pronunciamentos a bispos,
a autoridades civis de diversas nações, a instituições universitárias e
de pesquisa. De forma vigorosa tratou desse tema na Carta Encíclica
“Populorum Progressio”, em 1967, e principalmente na Exortação
Apostólica “Evangelii Nuntiandi”, de 1975, onde recolheu os frutos
do anterior Sínodo dos Bispos6.
A necessidade desse ente encarregado dos assuntos da cultura foi
assumida por João Paulo II, que desde o início de seu pontificado teve
a atenção voltada para o diálogo com a cultura. De fato, em outubro de
1979, por ocasião do primeiro aniversário de seu pontificado, João Paulo
II iniciou o processo de consulta ao Colégio dos Cardeais a respeito do
assunto, estendendo mais tarde essa consulta aos dicastérios, culminando
o processo em 20 de maio de 1982 com a carta de fundação do Pontifício
Conselho da Cultura, dirigida ao Secretário de Estado, Cardeal Casaroli.
Nessa carta, o Papa reafirmava o compromisso assumido em discurso à
UNESCO, em 2 de junho de 1980:
... em virtude de minha missão apostólica, eu sinto a responsabilidade
que me incumbe, no coração da colegialidade da Igreja universal, e em
contato e de acordo com as Igrejas locais, de intensificar as relações da
Santa Sé com todas as realizações da cultura, assegurando também um
6
Cf. Fede e Cultura – Antologia di testi del Magistero Pontifício da Leone XIII a Giovanni
Paolo II, Libreria Editrice Vaticana (2003).
Encontros Teológicos nº 56
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Igreja e Cultura
relacionamento original em uma fecunda colaboração internacional,
no seio da família das nações, ou seja das grandes ‘comunidades dos
homens unidos por vínculos diversos, mas sobretudo, essencialmente
pela cultura.7
Completando em breve três décadas de sua instituição, o Conselho Pontifício da Cultura vem nesse tempo se constituindo num
dicastério típico de articulação, assumindo como missão envolver a
Igreja na resposta às questões prementes que lhe foram postas por
João Paulo II:
Deveis ajudar a Igreja a responder a estas questões fundamentais para
as culturas atuais: como é que a mensagem da Igreja é acessível às
novas culturas, às formas atuais da inteligência e da sensibilidade?
Como é que a Igreja pode fazer-se compreender pelo espírito moderno,
tão orgulhoso com as suas realizações e ao mesmo tempo tão inquieto
com o futuro da família humana?8
Nesse esforço, o Pontifício Conselho da Cultura tem promovido
encontros, congressos e seminários em todos os continentes, e buscado
consultoria nos diversos países. Em 23 de maio de 1999 publicou o documento Para uma Pastoral da Cultura, que resume com propriedade a
complexidade desse aspecto da ação evangelizadora, ficando claro que
o diálogo com a cultura, fundado em conceitos universais e inspirado na
única fonte comum que é o Evangelho, é uma ação típica da Igreja local,
que terá de dialogar com uma realidade própria de cada lugar, irrepetível
em qualquer outro. As dificuldades e as vantagens desse diálogo estão
ali expostas, avançando para propostas concretas que podem inspirar a
ação das Igrejas locais.
Ressaltando o significado da missão de “evangelizar, não de
maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas
de maneira vital, em profundidade e isto até suas raízes, a civilização
e as culturas do homem”, o documento afirma que “O Evangelho
e consequentemente a evangelização, não se identificam por certo
com a cultura, e são independentes em relação a todas as culturas”,
acentuando que o “Evangelho e a evangelização, independentes em
relação às culturas, não são necessariamente incompatíveis com elas,
mas suscetíveis de impregná-las a todas sem se escravizar a nenhuma
110
7
João Paulo II, Dircorso all’UNESCO, 2 giugno 1980: “Insegnamenti” III (1980) 1636 ss.
8
João Paulo II, Discurso ao Conselho Pontifício da Cultura, 15 de janeiro de 1985.
Encontros Teológicos nº 56
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Aroldo Braga
delas”9. Em seguida, introduz a delicada questão da inculturação,
afirmando que cultura e fé “marcham num mesmo passo, num processo de mútuo intercâmbio, que exige o exercício permanente de
um rigoroso discernimento à luz do Evangelho...” e acrescentando
que a Igreja “tem em conta este dado essencial: o encontro entre a fé
e as culturas se opera entre duas realidades que não são da mesma
ordem”.10
Esse difícil e importante jogo de palavras encerra o drama que é a
combinação livre dessas realidades, que não são da mesma ordem. Aqui
entra o papel da teologia, cuja importância nesse tema foi acentuada nos
próprios documentos do Concílio.
Essa questão foi tratada por Dom Frei Valfredo Tepe11 em primoroso artigo na Revista Eclesiástica Brasileira, do qual nos socorremos para
entender a importância do teólogo, do teólogo autóctone, no processo de
encontro e diálogo entre a evangelização e a cultura.
5 Cultura e Teologia no olhar de Dom Valfredo Tepe
Valfredo Tepe, teólogo e pastor, expõe com maestria a importância
da reflexão teológica na evangelização das culturas, apontando para a
localidade indispensável dessa reflexão, a quem denomina de teologia
contextual. Este seu artigo12, inspirado nas discussões que antecederam
o documento de Puebla, nos parece indispensável para a compreensão da
questão da cultura na ação evangelizadora. Além da leitura profunda do
pensamento da Igreja sobre esse tema, a partir do Concílio e de Puebla,
é marcante no texto o trânsito que ali se faz, do recolhimento da história e da especulação teológica para a ação missionária, em ato a que a
Igreja e todos os seus membros são chamados. É com esse espírito que
queremos caminhar ao longo do artigo, estimulando os interessados no
assunto a buscarem sua leitura completa.
9
Para uma Pastoral da Cultura, 4.
10
11
Ibidem, 5.
Dom Valfredo Tepe, franciscano, teólogo, já falecido, foi bispo auxiliar da Arquidiocese
de São Salvador da Bahia e bispo de Ilhéus, no mesmo Estado. Teve grande número
de livros publicados nas áreas de teologia, antropologia e psicologia.
12
Cultura e Teologia, Revista Eclesiástica Brasileira, Vol. XLVI, pp. 739/759, Editora
Vozes, Petrópolis (RJ), 1986.
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111
Igreja e Cultura
Na introdução, o autor recorda as discussões havidas na preparação de Puebla a respeito do enfoque do documento a ser elaborado,
se deveria ter como centro o aspecto cultural ou a mudança social.
“Com a distância de alguns anos – afirma Tepe – já se vê que não
havia motivo de confronto. Há muito mais uma interpenetração dos
dois aspectos. A necessidade de evangelizar as culturas leva à necessidade de diversificar as reflexões teológicas, no sentido das teologias
contextuais. A Teologia da Libertação pode se considerar um tipo de
teologia contextual”.
Recordando João Paulo II, em sua carta de fundação do Pontifício
Conselho da Cultura, já aqui mencionada, quando afirmou que “a síntese
entre cultura e fé não é somente uma exigência da cultura mas também
da fé; quer dizer, uma fé que não se faz cultura, é uma fé que não foi
plenamente recebida, não inteiramente pensada, não fielmente vivida”,
o autor introduz a reflexão sobre o papel da teologia nesse processo e
sua especialização em cada contexto cultural:
Pensar inteiramente a fé – eis a missão sobretudo da teologia. Pensá-la
a partir dos contextos culturais – eis a tarefa de teologias contextuais.
A teologia contextual é um serviço à Igreja na sua busca de orientação
pastoral em direção dos contextos culturais diversificados.
Ao discorrer sobre o conceito de cultura, sempre a partir da
Constituição Pastoral Gaudium et Spes e do Documento de Puebla,
Tepe reafirma a condição essencialmente social de cada homem, como
pessoa, vendo a cultura como “a mediação .para realizar a convivência
grupal e social ampla. A cultura – destaca – ocupa um espaço-chave na
realização do homem e da humanidade. É mediação indispensável, tanto
para a realização pessoal como para a vivência grupal humanamente
socializada”.
Essa importância da cultura na realização do homem demonstra
que nenhum esforço evangelizador pode ignorá-la. Assim, inspirando-se
na Gaudium et Spes e seguramente também em sua condição e com sua
experiência de bispo, Tepe afirma:
A Igreja convida os teólogos a colaborar na tarefa nada fácil de ‘realizar
a harmonia entre a cultura e o cristianismo’. As dificuldades que aparecem ‘exigem dos teólogos novas investigações. Além disso, os teólogos,
observados os métodos próprios e as exigências da ciência teológica,
112
Encontros Teológicos nº 56
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são convidados, sem cessar, a descobrir a maneira mais adaptada de
comunicar a doutrina aos homens de seu tempo’ (G.S., 62 b.).
Em seguida, valendo-se principalmente de Puebla, que tratou
desse aspecto de forma mais explícita que o documento conciliar, o
autor trata da abordagem da cultura pela ação evangelizadora – no
contexto próprio daquela – alertando para a delicadeza desse encontro e expondo de forma implícita e com veemência a importância do
respeito à realidade da cultura local. Vale aqui a transcrição integral
dessa análise-exortação:
A abordagem da cultura pela ação evangelizadora deve ser, basicamente, positiva e não desconfiada. As culturas não são um terreno
vazio, carente de autênticos valores. A evangelização da Igreja não é
um processo de destruição, mas de consolidação e fortalecimento desses valores; uma contribuição ao crescimento dos “germes do Verbo”,
presentes nas culturas”13. Só secundariamente a Evangelização visa também à ‘transformação’ e à ‘conversão’ das culturas enquanto acolheram
desvalores em seu conjunto14.
A Evangelização dirige-se ao homem todo. Ora, o homem todo
não é a personalidade individual auto-suficiente. É a pessoa inserida e
amadurecida num determinado ambiente cultural. Certo, a conversão é
sempre intrinsecamente pessoal. Fé é adesão pessoal a Cristo. Mas essa
conversão é de algum modo marcada pela cultura que formou a pessoa.
Por isso “a Igreja procura alcançar, por meio da ação evangelizadora,
não só o indivíduo, senão também a cultura do povo”15. O indivíduo
não deve ser erradicado de seu solo cultural. Não basta a conversão
de indivíduos. É preciso que formem parte de comunidades eclesiais.
Estas, por sua vez, não devem ser um enclave dentro do povo, um
quisto estrangeiro dentro de uma cultura. Não basta que indivíduos e
comunidades se saibam membros da Igreja universal. O normal ideal
é a formação de Igrejas locais, plenamente inseridas no ambiente,
‘deitando profundas raízes no povo’16, acolhedoras e enriquecedoras
da cultura do respectivo povo.
13
Puebla, n. 401.
14
Ibidem, n. 395.
15
Ibidem, n. 394.
16
Ad Gentes, 15 c.
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Igreja e Cultura
Tudo isso acontece, segundo Valfredo Tepe, em meio a dificuldades, tanto para o indivíduo como para a cultura, o que exige do agente
evangelizador uma compreensão perfeita do ambiente e de seu próprio
papel. E é na busca dessa compreensão que se revela a importância do
teólogo e, principalmente de teólogos nativos:
Se é verdade que a cultura condiciona a evangelização; se é verdade que
a síntese entre cultura e fé é também exigência da fé; se é verdade que
uma fé que não se faz cultura é uma fé que não foi plenamente pensada – torna-se evidente a necessidade do esforço teológico a serviço da
assim chamada “encarnação” ou “inculturação” ou “indigenização”
da fé. O último Sínodo fala da “encarnação do cristianismo nas várias
culturas humanas”, fala do “princípio teológico para o problema da
inculturação”. Só quando há teólogos nativos que tentam a síntese, ou
melhor, a simbiose, entre sua cultura e a fé cristã, é que chegamos a uma
verdadeira inculturação da mensagem cristã. Pensar a fé na sua relação com a cultura é papel principalmente de teólogos autóctones. Esse
serviço ainda está geralmente ligado ao quadro sacerdotal e, por isso,
também a ele se refere a afirmação do Vaticano II: “A Igreja fixa raízes
mais firmes em qualquer sociedade quando as grandes comunidades
de fiéis têm dentro de seus membros os próprios ministros da salvação,
na ordem dos bispos, presbíteros e diáconos, servindo aos irmãos” (Ad
Gentes, 16 c). Sob esse aspecto, foi de consequências nefastas para toda
a Igreja na América Latina a proibição, no período colonial, do acesso
ao sacerdócio para negros, índios e mestiços. “Atrasou-se ou mutilou-se
o processo de inculturação da fé”.
A essa altura Tepe chama a atenção para a importância do esforço
das teologias contextuais, a partir da afirmação de que o legítimo pluralismo teológico é condição de uma verdadeira inculturação da fé. E
volta a defender a contextualização, que não é luxo ou algo periférico,
mas “tem o seu lugar no coração do esforço teológico”.
Estende-se de forma detalhada na descrição dos três elementos
que “devem estar presentes em todos os modelos de teologia contextual
e cuja acentuação diversa explica a diferença dos próprios modelos: a
Palavra de Deus (Revelação normativa); a cultura de uma nação ou grupo
étnico; a mudança social.
A reflexão sobre esses três elementos se constitui uma riqueza
à parte nesse texto. Deixamos de descrevê-la com mais detalhes, na
esperança de que os que se interessarem poderão buscar o próprio
texto de Valfredo Tepe. Seguramente ele servirá como um valioso
114
Encontros Teológicos nº 56
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instrumento de trabalho para a Igreja no Brasil, quando ela vier a
assumir com determinação a busca por um diálogo mais consistente
com a cultura, com as culturas, como parte indispensável de sua ação
evangelizadora.
O autor dedica um capítulo de seu trabalho à questão da missiologia
e inculturação tendo como suporte o Decreto Ad Gentes, afirmando que “o
destaque que hoje se dá à evangelização da cultura e das culturas coloca
em nova luz a tarefa missionária da Igreja”. Para ele, a inculturação é um
processo que leva tempo, consumindo ao menos três gerações.
Há uma primeira etapa, a do missionário que leva a fé assimilada
em seu lugar de origem, de cuja cultura deve se desapegar para “assimilar a nova cultura, e aí implantar a Palavra que pode vingar em todas as
culturas”. Há uma segunda etapa, que será assumida pelos autóctones
convertidos, que “ao menos mentalmente terão que fazer um êxodo, ao
procurar assimilar a fé em profundidade, como ela é proposta no invólucro
de outras culturas”. E por fim, a terceira, nascida desse “êxodo”, quando
em “institutos teológicos nacionais vai crescendo uma nova geração
que já recebe e aprofunda a fé dentro do invólucro da cultura própria”.
É nesse ponto que Tepe destaca a importância da atividade teológica no
processo de evangelização da cultura.
Diante das condições humanas não aceitáveis em que vive grande parte da população e do processo de mudança que se verifica, não
apenas no sentido de libertar essa enorme parcela do povo na América
Latina que assim vive, mas também em virtude da mudança global na
sociedade, que na América Latina também e de forma grave se manifesta, Tepe mostra a exigência de um conhecimento sério, por parte da
Igreja, dos “dados sociais, políticos e econômicos que possibilitam ou
dificultam a ação evangelizadora na linha de uma teologia práxica, ou
seja, de uma sadia teologia da libertação, sem radicalizações contrárias
à própria mensagem ou conteúdo evangélico. A teologia da libertação
faria parte da cadeira missiológica. Ao lado dela deveria figurar a antropologia cultural”.
Esse entendimento de Valfredo Tepe demonstra a importância do
envolvimento da pesquisa teológica no sentido de propiciar à Igreja o
“contato com o próprio tempo” e assim “apresentar de modo mais adaptado a doutrina sobre Deus, o homem e o mundo aos contemporâneos,
Encontros Teológicos nº 56
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que por sua vez acolherão mais prazerosamente a Palavra de Deus”17,
no espírito do Concílio Vaticano II.
6 A questão da cultura na Igreja da América
Latina e no Brasil
Chegada às terras do Novo Mundo com os primeiros navegadores
que aqui aportaram, mais com o ânimo de lhes assegurar a assistência
religiosa em sua aventura, a fé católica esteve presente em toda a história
da colonização, de tal forma que os jovens países nascidos das lutas da
independência já surgiram como católicos. Até que isso acontecesse,
uma longa história carregada de sombras e também com algumas luzes
se escreveu. Seguindo a linha que vimos desenvolvendo, avancemos
então para o último meio século e ali verifiquemos como se desenvolveu
o encontro da Igreja e da Cultura nesses últimos tempos.
A questão da cultura nas igrejas da América Latina, no sentido
que foi dado pelo Concílio, foi tratada já com alguma firmeza na II
Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (Medellin – 1968),
a primeira pós-Vaticano II, mesmo se ali ainda se restringe a visão de
cultura, limitando-a à ideia de instrução e tarefa educativa. Nesse sentido
Medellin vê a educação e a instrução como elementos indutores do desenvolvimento dos povos, no respeito aos valores próprios de sua cultura.
Por outro lado, reconhece a necessidade da presença da Igreja na defesa
da autonomia cultural do Continente, e a urgência de uma pastoral das
elites dominantes no plano da cultura.
A III Conferência, em Pueba (1979), marcada mais profundamente
pela Gaudium et Spes e pela exortação “Evangelii Nuntiandi”, de Paulo
VI, foi, entre as cinco conferências, a que mais decididamente enfrentou a questão da cultura, propondo enfaticamente a evangelização da
cultura.18 Como já afirmamos, Puebla cuidou da questão da cultura de
forma madura, inspirada nos documentos mencionados, oferecendo pistas
valiosas para a evangelização da cultura no Continente, indispensáveis
a qualquer ação nesse sentido.
116
17
Guadium et Spes, 62 f.
18
Cf. Conferencia Episcopal Argentina: Aportes para la evangelización de la cultura em
Argentina. Oficina del Libro (2005). P. Hector Eduardo Lugo Garcia, OF, p. 9 e ss.
Encontros Teológicos nº 56
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A IV Conferência, em Santo Domingo (1992), continuou nesse
caminho, acrescendo como novidade o empenho em evangelizar os
ambientes marcados pela cultura urbana, e inculturar o Evangelho nas
novas formas de cultura adveniente. Esses são dois pontos-chave para a
ação evangelizadora no tempo atual, quando a Igreja deve se dirigir ao
homem e a seu contexto cultural despida de suas certezas quanto a ele e
a seu mundo, buscando compreendê-lo e com ele partilhar suas dores e
alegrias, seu modo de ver o mundo e a natureza, para assim se habilitar
ao Anúncio que é a sua missão.
A V Conferência, em Aparecida (2007), enfrentou a perplexidade
vivida pela Igreja diante do contexto social e cultural dos países da América Latina e do Caribe, não muito diferente daquele que envolve todo
o mundo globalizado. A grande riqueza de Aparecida está na reflexão
sobre essa realidade e as indicações pastorais dela decorrentes. Em tudo,
ora de forma implícita, ora de forma claramente expressa, são indicadas
pistas para o diálogo com a complexa cultura deste tempo, formada por
múltiplas culturas que se sobrepõem nos mesmos espaços das grandes
metrópoles e seus arredores.
Mais que antes, essas realidades pedem o envolvimento dos teólogos que, com sua ciência e seus métodos, ajudarão a Igreja a compreendêlas. Mesmo se podemos encontrar exemplos de esforços na busca desse
diálogo, que alimentam grande esperança, falta à Igreja no Continente,
incluindo o Brasil, a sistematização das pesquisas e estudos que mais a
aproximem da complexa realidade cultural onde está inserida.
Bibliografia
Conferencia Episcopal Argentina. Aportes para la evangelización de la cultura en la Argentina. Oficina del Libro, Buenos Aires
(2005).
Conselho Episcopal Latino-Americano. Documento de
Aparecida. Edições CNBB, Brasília (2008).
Conselho Pontifício da Cultura. Para uma pastoral da
cultura. Libreria Editrice Vaticana, Vaticano (1999).
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Igreja e Cultura
Pontifício Consiglio della Cultura. Fede e Cultura – Antologia di testi del Magistero Pontificio da Leone XIII a Giovanni Paulo
II. Libreria Editrice Vaticana, Vaticano (2003).
Compêndio do Vaticano II – Constituições, decretos, declarações. Introdução e índice analítico de Frei Boaventura Kloppenburg, OFM. 12ª
Edição. Editora Vozes, Petrópolis (1978).
Tepe, OFM, Dom Frei Valfredo. Cultura e Teologia, Revista Eclesiástica Brasileira, Volume XLVI, p. 740/759. Editora Vozes, Petrópolis
(1986).
Endereço do Autor:
Avenida Conselheiro Rodrigues Alves, 984 Aptº 72
04014-002 Vila Mariana, São Paulo
118
Encontros Teológicos nº 56
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Resumo: O artigo quer contribuir para a reflexão sobre a relação Igreja e Sociedade, partindo de uma leitura de textos de Amós e de Jeremias. A profecia tem
sido fundamental para definir o caráter da religião, que não encontra sua validade
somente nas doutrinas e rituais, mas na incidência na vida concreta das pessoas,
quer dizer, em sua relação com a sociedade em que ela se encontra. Essa relação
entre religião e sociedade está na origem do processo que deu à luz muitos textos
da Bíblia. Ora, é exatamente do encontro ou confronto entre as dimensões da realidade e a memória da fé que nasce a profecia, como a de Amós, ou de Jeremias.
No caso de Amós, é iluminador o texto do capítulo 2,6-16, no qual se comprova
que, sem conhecimento e envolvimento com a realidade, não há profecia. Também
não há profecia sem memória da experiência do Deus libertador. Por outro lado,
havendo resistência, há profecia, projeto e esperança. Também no caso de Jeremias, a “palavra de YHWH” não lhe vem das nuvens ou de elucubrações, mas da
vida do seu povo, da sensibilidade do profeta para com a justiça e a injustiça, da
sua capacidade de avaliar e julgar a sua realidade e sociedade.
Abstract: The article intends to present food for thought about Church and Society, beginning with a reading of texts from the prophets Amos and Jeremiah. The
prophecy was fundamental to define the type of religion which finds its validity not
only in doctrinal statements and rituals but also in the concrete life of persons, that
is, in its relationship with society where it is embedded. This relationship between
religion and society is at the very origin giving rise to many texts of the Bible. In
fact it is exactly the encounter or confrontation between the various dimensions
of reality and the evocation of faith which gives rise to prophecy as for instance of
Amos or Jeremiah. In the case of Amos the text of chapter 2:6-16 is quite revealing
because it tenders in words the proof that without knowledge and involvement in
reality there is no prophecy. Moreover, there is no prophecy without remembrance
of the experience of God as liberator. On the other hand, if there is resistance
against it there arise prophecy, projects, and hope. Also in the case of Jeremiah,
the word “YHWH” doesn’t drop from the clouds or from speculations, but from the
life of his people, from the sensibility of the prophet towards righteousness and
injustice, from the willingness to appreciate and judge reality and society.
Igreja e sociedade: entre profecia
e legitimação
Luiz José Dietrich*
*
O autor, doutorado em Ciências da Religião e em Teologia Bíblica, é membro da
coordenação nacional do CEBI e professor no ITESC.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010, p. 119-132.
Igreja e sociedade: entre profecia e legitimação
Eu te estabeleci em meu povo como observador, para que conheças e
proves o seu caminho (Jr 6,27).
Introdução
No versículo acima, a palavra observador descreve a função do
profeta. No hebraico encontramos aí a palavra ba­hon, que não é de fácil
tradução. Isso fica evidente quando vemos que cada uma das Bíblias em
português apresenta uma tradução diferente:
– Eu nomeio você como o examinador do meu povo, para que
conheça e examine o comportamento dele (Bíblia Pastoral).
– Eu te nomeio provador de metais junto ao meu povo, tu apreciarás
e examinarás sua conduta (Tradução Ecumênica da Bíblia).
– Qual acrisolador te estabeleci entre o meu povo, qual fortaleza, para que venhas a conhecer o seu caminho e o examines (Bíblia de
Estudo de Almeida).
– Ponho-te como provador do meu povo, para conhecer e examinar
sua conduta. (Tradução da CNBB)
Os versículos que seguem ao texto citado, referem-se a diversos
metais: ferro, bronze, chumbo e prata refugada. Esse é o universo semântico da palavra bahon, que tem a ver com a função da pessoa que
avalia os metais, assim como indicam as traduções da TEB e Almeida
de estudo. Essa palavra é usada para definir a função do profeta entre
seu povo. É uma função mais ativa do que aquela indicada pela palavra
observador. O provador, examinador de metais, o acrisolador, deve fazer
vários testes, procedimentos, misturas, confrontos, submeter ao fogo o
metal observado para poder avaliar sua perfeição, sua pureza, seu valor.
Portanto, assim também os profetas e as profetisas estão entre seu povo
para testar, analisar suas ligas, seus comportamentos, seus valores, seus
projetos. Em suma, a profecia consiste em fazer testes, confrontos e
experiências dentro de uma certa realidade social a partir de uma determinada escala de valores, e dar um veredicto sobre ela.
A abordagem da temática Igreja e Sociedade permite repensar um
importante aspecto da vida eclesial e espiritual. Muitas vezes esquecido, é
fundamental para definir o caráter da religião. Uma religião não encontra
sua validade somente em suas palavras e conteúdos doutrinários e rituais.
Fundamentalmente seu valor, sua importância se mede pela incidência na
vida concreta das pessoas, portanto em sua relação com a sociedade em
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que ela se encontra. E ali ela pode, em nome de Deus, animar as pessoas
e a comunidade a lutarem por outros mundos possíveis, ou pode, também, em nome de Deus, abençoar ou calar-se de modo cúmplice diante
de sociedades que não são coerentes com os Evangelhos.
Ao abordarmos a Bíblia com essa preocupação, temos a oportunidade de revisitar e resgatar as raízes mais profundas de nossa fé. A fé
de Israel surge como uma organização e um grito em defesa da vida. E
é esse também o coração do judaísmo vivenciado e ressaltado por Jesus
de Nazaré. Portanto, a reflexão sobre a relação entre nossa vivência religiosa e a sociedade em que vivemos é imprescindível, para a fidelidade
ao Espírito do Deus revelado em Jesus.
Com este artigo queremos modestamente contribuir para a reflexão sobre a relação Igreja e Sociedade, partindo de uma leitura de textos
de Amós e de Jeremias. Neste estudo podemos não só encontrar novos
impulsos para seguirmos semeando novas relações, sonhos de um mundo
diferente, novo. Mas também poderemos perceber como a relação fé/religião e sociedade está na origem do processo que deu à luz muitos textos
da Bíblia. É exatamente do encontro entre as dimensões da realidade e da
memória da fé que nasce a profecia, como a de Amós, ou de Jeremias.
Sem conhecimento e envolvimento com
a sociedade não há profecia
Isso aparece claramente no capítulo dois do livro de Amós (Am
2,6-16). Olhemos com um pouco mais de cuidado esse trecho. Chama a
atenção que os verbos da primeira parte, versos 6-8, referem-se a coisas que
estão acontecendo, ao momento presente das comunidades camponesas por
volta do ano 750 antes de Cristo, época em que viveu Amós. É o que em
certa metodologia da Pastoral Latino-americana costumamos chamar de o
momento do “ver”. Analisar, dizer, dar os nomes para o que se está vivendo
na realidade, o que está acontecendo na sociedade, é o ponto de partida.
Deve-se observar também que esse momento não é fruto de
uma só voz. Pois podemos perceber no texto muitas vozes que vêm de
diferentes realidades do cotidiano da vida do povo. Nesses versículos
podemos ouvir as vozes
1) do inocente que foi condenado por juízes corruptos (2,6b);
2) do pobre endividado que foi condenado por causa de “um par
de sandálias” (2,6c);
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3) do camponês oprimido, esmagado contra o pó da terra
(2,7a);
4) dos pobres cujo direito é distorcido para que não tenham acesso
à justiça (2,7b);
5) da jovem que é violentada por seus patrões (2,7c);
6) daqueles e daquelas que percebem os templos como lugares
de acúmulo de tributo e de exploração dos pobres (2,8).
São vozes de muitas pessoas e grupos, são gritos e clamores que
também vêm de muitos espaços sociais e de diferentes locais e instituições
da cidade (tribunais, comércio, campo, leis e decretos, casa dos patrões,
templos...). Podemos imaginar uma espécie de reunião de representantes
de comunidades, onde cada pessoa fala dos problemas da sua realidade, da
sua experiência de vida. Elabora-se de forma comunitária o conhecimento
da realidade. O texto da profecia é tecido com os muitos fios vindos da
experiência de muitos atores sociais. Percebe-se, porém, que a perspectiva a
partir da qual se analisa a sociedade não é a perspectiva dos poderosos. Mas
é, sobretudo, a perspectiva das vítimas dessa sociedade. É a sensibilidade
às vitimas, aos seus clamores, que preenche o coração da profecia e também o coração de Jesus. Dá-se voz e visibilidade às vítimas da sociedade
e de seus processos, caminhos e projetos. As vítimas são colocadas no
centro do debate sobre a sociedade. É um processo coletivo, comunitário,
de reconhecimento e acolhida, de solidariedade. Este é o primeiro passo
para a organização da resistência. Ele estabelece a realidade da qual brota
a profecia. Mas a profecia não é feita somente com a análise da realidade
e das estruturas da sociedade. Ela precisa da memória, precisa de valores,
de projeto. É isso que vemos nos versículos seguintes.
Sem memória da experiência do Deus libertador
não há profecia
Nos versículos 2,9-12 podemos ver o reavivamento da memória
do processo de libertação que deu origem ao povo de Israel. Primeiro,
menciona-se a libertação dos camponeses frente ao “amorreu”, os reis
que ocupavam as cidades-estado de Canaã, (2,9) e, em seguida o Êxodo
(2,10). Na sequência, aparecem os profetas e nazireus, que são as pessoas
responsáveis por fazer o povo andar conforme o rosto de Deus revelado
nessas experiências de libertação (2,11). Mas enquanto na parte anterior
os verbos indicavam ações que estavam acontecendo naquele momento,
aqui os verbos falam de ações realizadas por Deus no passado.
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Atribuindo a Deus os processos de libertação nos quais os camponeses
e as camponesas foram os sujeitos históricos, esses camponeses e camponesas
estão proclamando sua fé no Deus libertador, no Deus da Vida. Dessa forma
esses eventos são instituídos como revelação do rosto de Deus, mas com
isso também passam a ser fonte de valores e parâmetros para as relações
pessoais e sociais. Formam o quadro de valores com os quais a realidade é
analisada e a sociedade é julgada. São esses valores que norteiam a ação de
Amós e do seu movimento. Estamos no momento do “julgar”.
Havendo resistência, há profecia, há projeto
e há esperança
Nos versículos finais, os verbos indicam ações que ainda irão se
realizar, apontam para o futuro. Entramos então em outro bloco. Depois
de ver e julgar, somos chamados ao “agir”. Aqui aparece o fruto da análise
da realidade feita na primeira parte do texto, e o resultado do confronto
feito com a memória e com os valores históricos que orientam o grupo
de Amós. Essa parte é denúncia e também é projeto.
É denúncia na medida em que aponta, em última análise, quem
são as pessoas e instituições que realizam ou permitem as situações de
violência e opressão elencadas na primeira parte. A resistência começa, quando a realidade de injustiça e opressão é exposta com palavras,
quando as pessoas oprimidas, as vítimas da sociedade, falam sobre sua
situação, quando se pode ver claramente a realidade em que se vive (versículos 2,6-8). Aqui, a resistência começa a tornar-se projeto de luta e de
sociedade ao apontar claramente qual é a instituição social que causa e
mantém a situação de violência e opressão. “O ágil”, o “forte”, “o herói”,
“o arqueiro” e “o cavaleiro” aqui provavelmente indicam os guerreiros a
serviço do rei e do estado. Essa instituição é aquela que dá cobertura para
que os grandes oprimam os camponeses e camponesas e também, em
muitos casos, é a executora da opressão. Poderíamos ver nessa denúncia
a luta, mas também o desejo, o sonho, o projeto e a utopia de Amós e
do grupo de pessoas que estava com ele. Seus esforços são direcionados
para relações sem violência, abertas a relações de solidariedade e para a
construção de uma sociedade sem poderes concentrados e opressores.
Esse rápido passeio pelo texto de Amós também serve para vermos
como toda a profecia é formada. Esse é o caminho pelo qual se formaram os textos proféticos que estão na Bíblia. É palavra comunitária, é
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movimento e ação solidária e coletiva, mas suas raízes estão nas palavras
que fazem a realidade aparecer, que nomeiam as dores, que identificam
os processos e acolhem e se solidarizam com as vítimas, que discernem
as causas da injustiça, da violência e da opressão, que trazem a memória
e cultivam as sementes de “outros mundos possíveis”. Tanto a profecia
de Amós quanto a própria imagem de Amós são coletivas, são formadas
por palavras e ações de muitas pessoas. No momento histórico em que
são ditas, mais ou menos no ano 750 aC., são palavras de denúncia, de
indignação, palavras de ordem para a luta. São palavras como muitas
que ouvimos nos movimentos populares vindas de líderes populares
semelhantes a muitos homens e mulheres que conhecemos hoje.
Como hoje, as palavras desses camponeses não foram imediatamente aceitas pelos poderosos e pelos chefes de Israel, mas ficaram
guardadas e vivas nas lutas e nas esperanças dos camponeses, pois são
palavras e ações que, desde sua realidade, plantam resistência e espalham esperança porque apontam caminhos e antecipam a libertação. É
somente depois da destruição da capital (Samaria) e dos poderosos da
monarquia do reino do Norte pelos assírios, que os camponeses poderão
instituir e apresentar essas palavras como “oráculo de YHWH”, e é dessa
forma e nesse momento que Amós é instituído como profeta de YHWH,
e assim ele entra na Bíblia. Antes eles eram somente parte importante do
movimento camponês de Israel.
Esse é outro motivo pelo qual para nós é fundamental avançar no
envolvimento com a sociedade e no conhecimento da realidade em que
vivemos. Esse processo nos coloca dentro de um processo semelhante
ao que deu origem à Bíblia, fertiliza nossa prática, ao mesmo tempo em
que fertiliza nossa compreensão do texto e do mundo bíblico.
O que vimos resumidamente em Amós, pode ser visto de uma
forma ou de outra também nos outros textos proféticos. A seguir faremos
exercício semelhante no livro do profeta Jeremias.
Jeremias: Portador de memória
Quem é Jeremias? O que vimos acima para Amós, vale também
para Jeremias, como para a maioria dos outros profetas. Eles foram
personagens históricos que se distanciam muito do pensamento comum,
que imagina o profeta como um indivíduo isolado do mundo e do seu
povo, que de forma quase mágica recebe lampejos de iluminação vin-
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dos diretamente de Deus. Como Amós e outros profetas e profetisas,
Jeremias não é um personagem isolado. Muito pelo contrário. Ele atuou
entre os anos 627-580 a.C., mas sua história começa muito tempo antes
de ele ter nascido. Podemos seguir esta linha muito para trás, na história
de Israel. Ela nos leva até as raízes de Israel. Até a sociedade tribal e ao
início da monarquia.
Podemos perceber isso na importância que a memória da destruição de Silo ocupa em sua argumentação. A destruição de Silo, um dos
santuários mais reverenciados da época tribal, aconteceu por volta de
1.030 a.C. Esse acontecimento é relembrado por Jeremias em Jr 7,12 e
14 e em Jr 26,6 e 9. A história de Jeremias começa neste santuário.
A memória da sociedade tribal
Silo era um importante santuário da tribo de Efraim, onde estava
guardada a Arca da Aliança, veja por exemplo Js 18,10; 19,51; 22,12; Jz
21,19; 1Sm 1-3. O santuário de Silo, porém, foi destruído pelos filisteus, que
nesse momento também se apoderaram da Arca (1Sm 4-6). Depois disso, os
sacerdotes sobreviventes de Silo irão se estabelecer em Nob. Quando irrompe
o conflito entre o rei Saul e Davi, que nesse momento era um dos chefes do
exército de Saul, aparentemente os sacerdotes de Nob tomam partido a favor
de Davi (1Sm 21,1-9). Por isso serão massacrados por Saul (1Sm 22,7-19).
Desse massacre escapará um sacerdote, Abiatar, ele irá aliar-se com Davi
(1Sm 22,20-23; 30,6-7). Após a morte de Saul e de seu filhos (1Sm 31,2),
Davi torna-se primeiro rei de Judá (2Sm 2,1-4) e, depois, rei de Israel (2Sm
5,1-3). Em seguida, Davi irá conquistar a cidade de Jerusalém (2Sm 5,6-10)
fazendo dela “a cidade de Davi”, a capital de seu reinado sobre as 12 tribos.
Abiatar vai com Davi para Jerusalém. Tendo-se instalado em Jerusalém, Davi
resgata a Arca dos filisteus e a leva para Jerusalém (2Sm 6). Desse modo, o
sacerdote Abiatar e a Arca estão juntos novamente.
Mas, em Jerusalém, Davi terá dois sumos sacerdotes, um dos quais
será Abiatar. O outro será Sadoc. Sadoc, muito provavelmente, é um
sacerdote de origem Cananeia, comandando o culto oficial da monarquia
dos jebuseus que vivia anteriormente em Jerusalém. De fato, ambos aparecem como membros da estrutura administrativa, dividindo as funções
sacerdotais durante o reinado de Davi (2Sm 8,15-18; 20,23-26). Em
2Sm 20,25 somente é dito que “Sadoc e Abiatar eram sacerdotes”. Mas
em 2Sm 8,17 está escrito que “Sadoc, filho de Aquitob, e Aquimelec,
filho de Abiatar, eram sacerdotes”. Essa passagem denota a tentativa
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Igreja e sociedade: entre profecia e legitimação
de apresentar o sacerdote cananeu Sadoc como descendente de uma
linhagem sacerdotal Israelita, pois claramente distorce e se aproveita da
informação apresentada em 1Sm 22,20, onde podemos ler que Abiatar
é “filho de Aquimelec, filho de Aquitob.”
Memória da história: consciência política
Com a velhice ou a morte de Davi, deflagra-se uma disputa pelo
trono dentro da sua própria família. A disputa divide a corte de Davi em
dois grupos com projetos políticos distintos: o grupo de Hebron, formado
pelas mulheres com as quais Davi casou enquanto era rei de Hebron e os
filhos que nasceram desses casamentos (2Sm 3,2-5); e o grupo formado
pelas mulheres com as quais Davi casou quando reinava em Jerusalém
e os filhos nascidos em Jerusalém (2Sm 5,13-16).
Aqui precisamos notar que cada um desses casamentos representa
uma aliança feita com famílias, clãs e tribos com importante poder e influência política, econômica e guerreira. Neles representa-se a estrutura social
do poder. Representam a sociedade daquela época. Essas mulheres não
vinham sozinhas para a casa do rei. Vinham acompanhadas por um séquito
de mulheres e homens, que não somente irão apoiá-la na casa do rei, mas
que também devem ajudá-la a participar e influenciar nos negócios e nas
políticas da corte, de maneira a garantir que os interesses de sua família,
clã ou tribo, fossem favorecidos ou pelo menos respeitados. Assim, na
lista de Hebron (2Sm 3,2-5) podemos ver que uma das mulheres vinha
da importante planície de Jezrael; outra, da região do Carmel; outra, de
Gessur; e as outras, certamente eram de outros lugares. Os filhos que essas
mulheres tinham com o rei eram criados, educados e formados por esse
grupo de pessoas. Cada mãe e filho representam um grupo de interesses
econômicos, comerciais e políticos dentro da corte. E, no momento da
sucessão, esses grupos juntam forças e lutam para fazer com que seu filho
seja o novo rei. Podemos ver claramente o grau de violência, que essas
lutas podiam alcançar, quando da sucessão de Davi.
De acordo com as tradições tribais, o poder deveria passar do pai
para o filho mais velho. Nessa lógica, o sucessor deveria ser o primogênito da lista dos filhos nascidos em Hebron, Amnon. Mas, na história
da sucessão de Davi, que está em 2Sm 13-20 e termina em 1Rs 1 e 2,
o que vemos é uma sucessão de mortes dos filhos mais velhos. Amnon
é o primeiro a morrer. Depois morre Absalão. O último representante
do grupo das mulheres e dos filhos nascidos em Hebron, que tem força
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política para pleitear a coroa, é Adonias, que é apoiado pelo comandante
Joab e também pelo sumo sacerdote Abiatar (1Rs 1,5-8). O projeto desse
grupo certamente possui maior proximidade com as tradições camponesas
tribais, javistas e israelitas. O outro grupo será formado pelas mulheres
e filhos de Davi nascidos em Jerusalém. Com eles, apoiando Salomão,
estará Banaías, o chefe dos guerreiros mercenários estrangeiros e o sumo
sacerdote Sadoc (1Rs 1,38-39). O projeto político deste grupo está mais
próximo das tradições monárquicas, estatais, cananeias.
Salomão, com o grupo de Jerusalém, vence o conflito, e o grupo oposto será assassinado (1Rs 2,12-35), com exceção do sacerdote
Abiatar que será expulso para a cidade de Anatot (1Rs 2,26-27). Anatot
fica a uns 10 km a noroeste de Jerusalém. Será de lá que Abiatar e seus
descendentes verão ser construído o templo e florescer a religião oficial,
agora sob o comando de Sadoc, sacerdote de origem cananeia, e do ramo
davídico de Jerusalém.
Aqui nos reencontramos com o profeta Jeremias. Como o sacerdócio se transmite hereditariamente, cada família sacerdotal transfere para
seus descendentes o ofício sacerdotal, e junto com o ofício são também
transmitidos os ensinamentos rituais, certos códigos de conduta, a história
da família, sua teologia e sua espiritualidade. Isso é transmitido de geração
em geração, como o patrimônio mais valioso da família. Jeremias é de
Anatot, e é um dos membros da linhagem sacerdotal de Abiatar (Jr 1,1):
na sua formação, ele recebeu toda essa memória.
Memória e realidade
Mas Jeremias não somente portador da memória, ele também
conhece muito bem a realidade em que vive. Essa memória certamente
o auxilia a interpretar a realidade, de forma diferente de muitos dos seus
contemporâneos.
Os “homens de Judá”, os membros da corte e do templo, achavam
que suas políticas e ações estavam corretas. Eles diziam: “Nós somos
sábios, e a Lei de Yahweh está conosco! (8,8)” Exaltavam a “paz” dessa
situação (6,14; 8,11); fiavam-se na presença de Yahweh em Jerusalém e
apresentavam-se como seus fiéis seguidores (7,4; 14,13). Mas Jeremias,
com base na sua memória, e com seu conhecimento das alianças e dos
projetos desses grupos, e certamente com sua sensibilidade para com as
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Igreja e sociedade: entre profecia e legitimação
vítimas das injustiças causadas por eles, interpretava essa realidade de
outro modo:
Com os crimes familiarizaste os teus caminhos;
Até nas orlas dos teus vestidos encontra-se
o sangue dos cadáveres dos pobres inocentes (2,33-34);
Como passarinheiros que se agacham
eles montam armadilhas,
e caçam homens.
Como gaiola cheia de pássaros,
assim suas casas estão cheias de rapina.
Por isso tornaram-se grandes e ricos,
gordos e reluzentes.
Ultrapassaram até os limites do mal;
não respeitam o direito,
o direito dos órfãos e, todavia, têm êxito!
E não fazem justiça aos indigentes. (5,26-28)
Os profetas profetizam mentiras,
os sacerdotes procuram proveitos.
E meu povo gosta disso! (5,31)
Jerusalém é a cidade que foi visitada;
em seu seio tudo é opressão.
Como o poço faz brotar as suas águas,
assim ela faz brotar a sua maldade.
Violência e devastação é o que nela se ouve;
há continuamente diante de mim doenças e ferimentos. (6,6-7)
Aqui precisamos lembrar que Jerusalém é a capital do reino de
Judá. Em Jerusalém, além dos chefes militares e da guarda pessoal do
rei, moram os administradores do país, os grandes proprietários e os
grandes comerciantes. O rei e sua família e os sacerdotes sadoquitas,
que controlam Jerusalém desde os tempos de Salomão, quando Abiatar,
o “tataravô” de Jeremias, foi expulso de lá, certamente fazem parte
desses grupos sociais. Também ali estão os profetas oficiais, que trabalham como “assessores” do rei e dos sacerdotes. É para essa gente que
Jeremias está falando. Ele analisa e compreende o fluxo da riqueza em
Judá. E é nas mãos dessa gente que vai parar a maior parte da produção
dos camponeses e camponesas de Israel. Esta é a sua sociedade. E é isto
que ele denuncia.
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Sociedade: produção, circulação e acumulação
da riqueza e os rostos e a vida do povo
Não sabemos exatamente se estas palavras foram ditas por Jeremias antes, durante ou depois da reforma de Josias (640-609 aC.). É bem
possível que tenham sido proferidas após a centralização do culto em Jerusalém, promovida por Josias. Todos os outros lugares de culto do reino
do norte, que não haviam sido destruídos pelos ataques assírios, foram
destruídos por Josias (2Rs 23). Após a reforma de Josias, somente era
permitido o culto com sacrifícios e oferendas em Jerusalém. Inclusive a
Páscoa deveria ser celebrada em Jerusalém. Isso aumentou enormemente
o acúmulo de riquezas em Jerusalém.
Jeremias olhava a sua realidade. Olhava para os rostos e para a
vida de seu povo. Olhava e acompanhava também o caminho feito pelo
trigo, pelo azeite e pelo vinho em sua sociedade. Via como esse caminho
começava com o suor dos camponeses e camponesas, e terminava acumulado na abundância e no luxo das casas de Jerusalém. Na linguagem
de Jeremias, as casas dos moradores de Jerusalém estavam “cheias de
rapina”. Via também que nesse caminho uma importante função era
ocupada pelo Templo de Jerusalém. Assim, não condenava somente os
chefes políticos, mas também culpava a elite sacerdotal de Jerusalém.
Sociedade: as alianças comerciais e políticas
A direção do fluxo da produção dos camponeses é determinada
pelas alianças políticas dominantes. Jeremias vê que essas alianças
faziam com que a maior parte da produção dos camponeses terminasse
acumulada em forma de riqueza em Jerusalém. Por isso, ele denuncia
políticos e religiosos envolvidos:
Não vos fieis em palavras mentirosas dizendo: ‘Este é o Templo
de Yahweh, Templo de Yahweh, Templo de Yahweh!’ Porque se realmente melhorardes os vossos caminhos e as vossas obras, se realmente
praticardes o direito cada um com seu próximo, se não oprimirdes o
estrangeiro, o órfão e a viúva, se não derramardes sangue inocente neste
lugar e não correrdes atrás de deuses estrangeiros para vossa desgraça,
então eu habitarei convosco neste lugar, na terra que dei a vossos pais há
muito tempo e para sempre. Eis que vós vos fiais em palavras mentirosas
que não podem ajudar. Não é assim? Roubar, matar, cometer adultério,
jurar falso, queimar incenso a Baal, correr atrás de deuses estrangeiros,
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Igreja e sociedade: entre profecia e legitimação
que não conheceis, e depois virdes e vos apresentardes diante de mim
neste Templo, onde meu nome é invocado e dizer: ‘Estamos salvos’,
para continuar cometendo essas abominações! Este Templo, onde o meu
nome é invocado, será porventura um covil de ladrões?
Mas Jeremias percebe que o caminho das mercadorias produzidas
pelos camponeses de Judá vai além de Jerusalém. Jeremias também
denuncia as alianças internacionais. Nos textos bíblicos, lemos que os
reis de Israel e de Judá têm várias mulheres, e filhos e filhas com essas
várias mulheres. Mas talvez nem sempre nos demos conta do significado
e das implicações desses casamentos. Já vimos isso acima ao falar da
disputa pelo trono de Davi. A corte do rei era formada por vários grupos
que apoiavam política, econômica e militarmente o rei.
A sociedade vai além das fronteiras: as alianças
e o comércio internacional
Os vários casamentos dos reis são os selos dessas alianças e abrem
espaços para esses grupos participarem dentro da corte e influenciarem diretamente nos negócios, nas políticas e nos projetos do rei. Cada grupo cuida,
educa, prepara e faz a formação do filho que o rei teve com a mulher do seu
grupo. Uns têm interesses ligados à Assíria, cujo poder está em decadência,
outros ao Egito, que luta por reocupar espaço, e outros estão ligados ao florescente poder Babilônico. O filho que se tornar o rei colocará em primeiro
plano os interesses e projetos do grupo ao qual sua mãe pertence.
E é exatamente essa variação de projetos e interesses que vemos
nos últimos anos da política de Judá antes do exílio. É por isso que,
quando um rei ou imperador estrangeiro vence Judá, ele escolhe o novo
rei entre os filhos do rei morto. O novo dominador escolhe um filho
do rei que é ligado a algum grupo que tenha negócios comerciais e/ou
interesses políticos afins aos seus.
Assim, o Faraó que matou Josias “constituiu como rei a Eliacim,
filho de Josias, em lugar de seu pai Josias” (2Rs 23,34). Este rei, que teve
o seu nome mudado para Joaquim, pagará tributos para o Egito (2Rs 23,33
e 35) e colocará Judá em aliança com o Egito e contra a Babilônia (2Rs
24,1). Esse alinhamento de Judá com o Egito, que seguirá com o filho de
Joaquim, que será chamado de Jeeonias (às vezes também aparece como
Joaquin, Jeoaquin, Jeconias ou Conias), será o motivo do primeiro ataque
dos babilônios a Jerusalém, e o rei Jeeonias e sua família estarão entre o
primeiro grupo de deportados para o exílio na Babilônia (2Rs 24,12.15).
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O rei da Babilônia substituirá Jeeonias por Matanias. Para indicar que este
novo rei deverá ser submisso à Babilônia, o rei da Babilônia muda seu
nome: de Matanias para Sedecias (2Rs 24,17). Mas Matanias/Sedecias
era tio de Jeeonias, isto é, era irmão de Joaquim, do grupo pró-egípcio
dos filhos de Josias. Ele agiu “como havia feito Joaquim”. Novamente
fará aliança com o Egito e se revoltará contra a Babilônia (2Rs 24,19-20;
Jr 2,18; 37,7) . Por essa reincidência, a Babilônia atacará com fúria redobrada. Jerusalém será completamente arrasada, todos os filhos de Sedecias
serão degolados na frente de Sedecias, que depois de ver isso terá seus
olhos furados e será levado vivo para o exílio (2Rs 25,1-21).
Jeremias conhece esses grupos e suas motivações. Ele denuncia
essas alianças. Alianças feitas para favorecer grupos interessados no
grande comércio internacional. Não são alianças nem para proteger nem
para favorecer o povo. Jeremias ataca os reis e seus “amantes”, que é
como ele chama esses grupos de conspiradores (Jr 4,30; 22,20.22; 27,1-6).
Jeremias percebe que os interesses deles estão somente nas mercadorias
e não na vida do povo. Além de acompanhar o fluxo das mercadorias,
Jeremias também analisa o comportamento político dessas lideranças.
Num momento em que estavam cercados pelo exército babilônio, os ricos
de Judá deram liberdade para seus escravos hebreus. Mas logo depois
que o cerco se desfez, eles voltaram atrás e escravizaram novamente a
seus irmãos pobres (Jr 34,8-22). Essas elites não estavam interessadas
na vida de seu povo, mas somente olhavam para seus interesses.
“A Palavra de YHWH veio para Jeremias”
Por todo o itinerário que até aqui percorremos, podemos ver como
veio para Jeremias a Palavra de YHWH. Não veio das nuvens, nem veio
de forma mágica. Não veio a uma pessoa isolada da sociedade, nem
veio em sonhos. Mas a Palavra de YHWH veio a Jeremias enquanto
ele “observa” a vida, a realidade em que vive seu povo. Enquanto ele
recorda a memória dos seus antepassados, enquanto ele observa o fluxo
que faz a produção desde os campos dos trabalhadores até a capital,
passando pelo Templo e alcançando as rotas comerciais internacionais.
Ele observa as pessoas que controlam esse fluxo, as que ficam ricas com
este movimento. Ele também vê e ouve as muitas pessoas que ficam
pobres por causa desses mecanismos. É no meio das vozes dos seus antepassados e no meio dos clamores dos pobres do seu povo que brota a
Palavra de Deus. A Palavra de YHWH vem a Jeremias na voz das vítimas
de sua sociedade. São os pobres que guardam essas palavras, enquanto
Encontros Teológicos nº 56
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131
Igreja e sociedade: entre profecia e legitimação
os reis queimam os livros em que elas foram escritas (veja o capítulo
36 de Jeremias). Os camponeses explorados guardaram essas palavras,
porque para eles eram palavras de Vida. Por isso, também são eles que
instituem essas palavras como Palavra de Deus. Hoje as temos graças a
eles, e certamente as palavras e a imagem de Jeremias, que chegaram até
nós hoje, estão engrandecidas pela admiração que eles respeitosamente
dedicaram àquele que sempre esteve ao lado deles e não teve medo de
enfrentar reis, sacerdotes e profetas em defesa da vida de seu povo. (Jr
20,1-2; 26,8-9; 28,10; 29,26-27; 33,1; 36,5; 38,4-6.28; 39,15)
Jeremias escuta também o que dizem os condutores das caravanas
comerciais. Atenção: uma notícia, eis que ela chega! Grande ruído vem da
terra do Norte para transformar as cidades de Judá em solidão, em abrigo de
chacais (Jr 10,22). As caravanas e as notícias andam mais depressa do que
os exércitos que se detêm para cercar, guerrear e saquear as posições que
encontram pelo caminho. Jeremias sabe avaliar a força do inimigo do Norte
(1,14; 6,1.22-24; 8,16; 13,20). Sabe que Judá não tem condições de vencer
essa luta porque sabe corretamente avaliar a sua realidade e a força do inimigo. Ele sabe também que os grandes que querem jogar Judá na aventura
da guerra estão querendo somente proteger os seus interesses comerciais e
políticos: Mas tu não tens olhos nem coração senão para o teu lucro, para o
sangue inocente a derramar, para a opressão e para a violência a praticar (Jr
22,17). Por isso ele prega contra a guerra (27,8-22; 38,1-5).
Mas tudo isso vem da sensibilidade de Jeremias para com a justiça
e a injustiça, para com os pobres, e da sua capacidade de “observar”,
analisar e julgar a sua realidade e a sua sociedade.
Possamos nós inspirar-nos em Amós e em Jeremias, que certamente
também inspiraram a prática de Jesus, para reencontrar as vertentes mais
profundas de nossa fé. Que esses textos nos ajudem a compreender a importância fundamental de não somente conhecer a nossa sociedade, mas
também de nos tornarmos cada vez mais sensíveis, acolhedores e solidários
com as vítimas, para que em nós e em nossas comunidades se reforce o
compromisso com a construção de uma sociedade em que se pratique o
“direito e a justiça”, em que se “julgue a causa do pobre e do indigente”,
o verdadeiro caminho para o conhecimento de YHWH. (Jr 22,15-16).
Endereço do Autor:
E-mail: [email protected]
132
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Resumo: O Acordo firmado entre a República Federativa do Brasil e a Santa
Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, consolidou as
disposições legais e consuetudinárias vigentes no plano do ordenamento jurídico interno, as quais constituem a expressão do relacionamento entre a Igreja
Católica e o Estado Brasileiro desde as origens da nação. De modo geral, o
Acordo reforça o princípio da igualdade, da liberdade religiosa, da liberdade de
consciência, ressaltando, inclusive, a garantia institucional da diversidade e do
pluralismo religioso.
Abstract: The pact of agreement signed by the Federal Republic of the Brazil
and the Holy See concerning the juridical status of the Catholic Church in Brazil
consolidated the legal and consuetudinary provisions in vogue about the internal
juridical status which constitute the expression of the relationship between the
Catholic Church and the State of Brazil since the origin of the nation. In general
terms, the pact of agreement reinforces the principle of equality, religious freedom, freedom of conscience, emphasizing as well the institutional warranty of
diversity and religious pluralism.
Acordo Brasil – Santa Sé
Relações tuteladas pelo direito
David Bruno Goedert*
* O autor, presbítero diocesano, é pároco da Catedral Diocesana de Lages, Juiz do
tribunal Eclesiástico de Florianópolis, Bacharel em Filosofia, Pedagogia, Teologia e
Direito, e Mestrando em Direito Canônico – Universidade Gregoriana – Extensão
Londrina-PR.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010, p. 133-166.
Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito
1 O Acordo Brasil Santa Sé – Natureza
e Possibilidades
1.1 Considerações Iniciais
No dia 11 de fevereiro deste ano, foi assinada a promulgação do
Acordo Brasil e Santa Sé, que estabelece o Estatuto Jurídico da Igreja
Católica no Brasil. O ato foi divulgado na edição do dia 12 de fevereiro,
no Diário Oficial da União. Evidentemente, o assunto despertou as mais
diversas reações, seja na mídia, seja entre os políticos, seja em outras
comunidades eclesiais e até mesmo no seio da Igreja Católica.
O princípio estruturante do Acordo celebrado entre o Brasil e a
Santa Se é o da autonomia e independência da Igreja e do Estado na
sua própria ordem. Com isso, o estado brasileiro reconhece a libertas
Ecclesiae não apenas como liberdade religiosa, mas como uma independência de qualquer poder em geral e do poder estatal em especial,
reconhecendo uma soberania não somente ad intra, mas também uma
soberania ad extra.
O Acordo, nessa perspectiva, efetiva-se como um instrumento de
clarificação e valorização das relações Igreja-Estado numa sociedade
democrática e pluralista, bem dentro do que preconiza a Constituição
de 1988, no caso do Estado brasileiro, e o Concilio Vaticano II, no caso
da Igreja.
O objetivo do Acordo, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, foi o de consolidar, em um único instrumento jurídico,
os diversos aspectos envolvidos na relação entre o Estado brasileiro e a
Santa Sé e, também, da presença da Igreja Católica no País, consolidando
as disposições legais e consuetudinárias vigentes no plano do ordenamento jurídico interno e que constituem a expressão do relacionamento
entre a Igreja Católica e o Estado Brasileiro.
Instalada a polêmica, e acima de qualquer preconceito, urge esclarecer que o acordo não fere, de modo algum, a salutar e necessária
laicidade do Estado. Vale lembrar aqui as palavras recentemente pronunciadas por Nicolas Sarkozy, Presidente da República da França, Nação
que sempre foi, e continua sendo, maître à penser e ‘porta-bandeira’ do
princípio da laicidade do Estado. “A laicidade não poderia ser a negação do passado. A laicidade não tem o poder de cortar uma Nação das
suas raízes cristãs. Ela tentou fazê-lo. E não deveria tê-lo feito [...], eu
134
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
David Bruno Goedert
acho que uma nação que ignore a herança ética, espiritual e religiosa
da sua história comete um crime contra sua cultura [...] que impregna
tão profundamente nossa maneira de viver e pensar. Arrancar a raiz é
perder o significado, é enfraquecer o cimento da identidade nacional, é
tornar ainda mais ásperas as relações sociais, que tanta necessidade têm
de símbolos de memória. [...] É por isso que desejo o advento de uma
laicidade positiva, ou seja, uma laicidade que, preservando a liberdade
de pensamento, a de crer ou não crer, não veja as religiões como um
perigo, mas, pelo contrário, como um trunfo. [...] Trata-se de procurar
o diálogo com as grandes religiões e ter por princípio facilitar a vida
quotidiana das grandes correntes espirituais, ao invés de procurar
complicá-las”1.
Em artigo publicado por Nilton de Freitas Monteiro Procurador
do Estado de São Paulo, em exercício na Assessoria Técnico-Legislativa,
o mesmo afirma que “pelo princípio da laicidade, Estado e Religião
são separados e não podem estabelecer relações de aliança de qualquer
espécie. No entanto, como bem nota José Afonso da Silva2, o Brasil não
adotou o sistema de separação rígida.
Pelo sistema de separação rígida, Estado e Religião são absolutamente separados. Entretanto, pelo sistema de separação atenuada, que é
o nosso, Estado e Religião são separados, mas a regra geral comporta algumas exceções. Tais exceções precisam constar da própria Constituição.
Assim, é prevista a prestação da assistência religiosa em entidades civis
e militares de internação coletiva (art. 5º, VII), a destinação de recursos
públicos a escolas confessionais e filantrópicas, conforme a lei (art. 213),
a concessão de efeitos civis aos casamentos religiosos (art. 226, § 2º), a
imunidade de impostos de templos de qualquer culto (art. 150, VI, b ),
a chamada “objeção de consciência” (art. 5º, VIII).3
1.2 As Razões do Acordo
Para entendermos as razões do acordo entre o Brasil e a Santa Sé,
faz-se necessário, antes de adentrar no tema, apropriar-nos dos conceitos
de segurança jurídica e certeza jurídica. O princípio da segurança ou cer1
Discurso pronunciado em Roma, em 4 de Janeiro de 2008.
2
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. Revista dos Tribunais, p.
222.
3
Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista3/rev11.htm>.
Encontros Teológicos nº 56
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135
Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito
teza jurídica encontra-se estreitamente ligado ao estado democrático de
direito garantindo o aperfeiçoamento do sistema legal do país, seja pela
dinamicidade do próprio direito, seja pela necessidade de uma constante
aferição da realidade social.4
A aplicação do principio da segurança jurídica possibilita a funcionalidade de qualquer ordenamento, não importando, inclusive a sua
natureza. Miguel Reale afirma que a ideia de justiça liga-se intimamente
à ideia de ordem, pois em toda comunidade é mister que uma ordem
jurídica declare, em última instância o que é lícito ou ilícito.5 Em outras
palavras, podemos dizer que a segurança jurídica é de caráter objetivo,
enquanto que a certeza jurídica está diretamente vinculada ao estado de
conhecimento da ordem jurídica pelas pessoas.6
Sem dúvida alguma, o Acordo tem razões objetivas muito claras.
Em primeiro lugar era mais que premente a necessidade de colocar num
único texto legislativo o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil;
em segundo lugar, esse texto adquire o status e a força jurídica de um
tratado internacional.
A bem da verdade, o que o Acordo traz nada mais é do que a
sistematização de normas esparsas em nossa legislação, reunidas num
único texto de forma ordenada e sistematizada segundo os parâmetros de
um tratado internacional, estipulado entre duas entidades soberanas, de
direito público internacional, a saber, o Estado brasileiro e a Santa Sé.
1.3 Acordo ou Concordata
A questão de fundo é a seguinte: por que nem todos os pactos da
Santa Sé com a comunidade internacional são chamados de concordatas?
por que o Acordo com o Brasil não foi chamado de “concordata”?
Primeiro, porque realmente não se trata de uma concordata.
Existem diferentes tipos de acordos internacionais e somente um tipo,
o tratado, pode ser chamado de concordata. Um tratado vigora e é
imposto pela lei internacional, ao contrário de um acordo, que não tem
a força de um tratado.
136
4
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 1998, pg. 171.
5
Id. Filosofia do Direito, Saraiva, São Paulo, 1996.
6
NADER, Nader. Introdução ao Estudo do Direito, 28. Ed. Editora Forense, 2007.
Encontros Teológicos nº 56
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David Bruno Goedert
Outra razão: a palavra concordata não é usada quando pode despertar suspeitas em um país secularizado. Por outro lado, o termo jurídico
“Acordo” [...] não representa problema para o laicismo do Estado e a
ordem jurídica pluralista e democrática.”7
Assim, a palavra concordata foi evitada durante certo tempo
quando, após o Concílio Vaticano II (1962-1965), esses acordos não mais
tornavam o catolicismo a religião oficial. Franco foi o último ditador
europeu que concedeu direitos religiosos exclusivos em uma concordata. Quando a Espanha se tornou uma democracia, o novo acordo em
que a Igreja abriu mão de seu papel como igreja oficial do Estado, foi
chamado de acordo.
Na verdade, uma concordata teria que trazer em seu bojo praticamente todos os itens relativos ao estatuto jurídico da Igreja, o que,
salvo melhor entendimento, seria inoportuno. A regulamentação das
assim chamadas res mixtae, comuns às partes contratantes, estenderia
o processo por tempo indeterminado e discussões intermináveis, tendo
em vista, especialmente, a reação contrária de vários organismos da
sociedade. Desse modo, o Acordo responde de forma mais adequada às
necessidades da Igreja Católica no Brasil sem comprometer os objetivos
do próprio Acordo.
Historicamente, as Concordatas acabam evocando tempos de
interdependência entre a Igreja e o Estado, o que por sua vez interferia
na legítima laicidade do Estado, comprometendo os legítimos interesses
das partes e da sociedade como um todo.
Além disso, o termo Acordo tem uma conotação jurídica moderna,
que ressalta a autonomia das partes contratantes, garantindo a laicidade
do Estado Democrático de Direito e a recíproca colaboração no interesse
do bem comum da sociedade.
1.4 Privilégio, Discriminação ou Sistematização
O Acordo, como temos ressaltado até o momento, veio apenas consolidar e sistematizar uma legislação já presente em nosso ordenamento
jurídico, dando forma e criando um instrumento jurídico único. Todos
os artigos do Acordo evidenciam duas exigências fundamentais em se
7
Rádio Vaticano, disponível em: <http://www.radiovaticana.org/bra/Articolo.
asp?c=247306>.
Encontros Teológicos nº 56
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137
Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito
tratando de acordos internacionais, a saber: o respeito ao ordenamento
jurídico, especialmente a Constituição Federal e demais leis infra constitucionais, bem como a paridade de tratamento com as outras entidades
de natureza semelhante, sejam elas de caráter religioso ou não.
A Declaração Dignitatis Humanae, do concílio Vaticano II, sobre
a liberdade religiosa, afirma que “todos os homens devem estar livres
de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou
qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa,
ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido
de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado
com outros, dentro dos devidos limites”.8
Como se vê, a Igreja Católica reconhece e reafirma o princípio da
igualdade e da liberdade religiosa, sendo pois natural que o instrumento
legislativo que regulamenta o estatuto jurídico da Igreja Católica no
Brasil tenha suas bases bem fincadas nesse princípio.
Além disso, o Acordo abre caminhos para que outras confissões
religiosas definam e elaborem uma legislação que contemple o seu estatuto jurídico, desde que, também elas, ofereçam garantias de seriedade
e confiabilidade que o Estado, justamente, pode e deve exigir.
Em que pese essas considerações, as reações contrárias ao Acordo
pipocaram por vários segmentos da sociedade brasileira. Nesse sentido
assim se manifestou o Rev. Roberto Brasileiro Silva9 – Presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil, em outubro de 2009:
A IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL, representada pelo Presidente
do seu Supremo Concílio, diante do momento atual, em que forças organizadas da sociedade manifestam sua preocupação pela aprovação
do texto do Acordo que vem labutar contra a laicidade do Estado Brasileiro e cercear a liberdade religiosa através de manifesta preferência e
concessão à Igreja Católica Apostólica Romana de privilégios por parte
do Estado Brasileiro, em face dos termos do Acordo entre a República
Federativa do Brasil e a Santa Sé, firmado no dia 13 de novembro de
2008, vem a público, considerando que:
138
8
Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651207_dignitatis-humanae_po.html>.
9
Disponível em: <http://www.gospelprime.com.br/confira-o-manifesto-da-igreja-presbiteriana-do-brasil-sobre-o-acordo-santa-se-x-brasil/>.
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David Bruno Goedert
VII. – a aprovação pelo Congresso Nacional do referido Acordo conferiu
privilégios históricos à Igreja Católica Apostólica Romana em nosso
País, reconhecendo-os como direitos, constituindo norma legal, uma
vez que acordos internacionais, conforme a Constituição de 1988, têm
força de lei para todos os fins. Aquilo que a história legou, a cultura vem
transformando e o Direito não pode aceitar por consolidar dissídio na
sociedade brasileira, que tem convivido de forma tolerante com o legado,
mas não o admitirá como imposição contrária ao direito à liberdade de
consciência, de crença e de culto, amparado pela Carta Magna e pelo
Direito Internacional
Várias outras entidades da sociedade civil se posicionaram contra o
Acordo, entre outras: Associação dos Magistrados Brasileiros, Sindicato
dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP),
Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, Associação Brasileira de
Antropologia, Associação Brasileira de Defesa da Laicidade do Estado,
Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Associação Brasileira de Templos de Umbanda (ABRATU), Superior Órgão de Umbanda de SP (SOUESP), Conselho Regional
de Assistentes Sociais -SP, Associação Brasileira de Liberdade Religiosa
e Cidadania (ABLIRC), Católicas pelo Direito de Decidir, Associação
dos Pastores Evangélicos do Piauí, Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente-SP, Ação Educativa e outros. Roseli
Fischmann,10 professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da
USP, professora da Universidade Metodista de São Paulo, coordenadora
do Grupo de Trabalho “Estado Laico”, da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência – SPBC, assim escreve:
O acordo proposto como sendo supostamente de cunho internacional,
bilateral, entra de fato no âmago da vida nacional, interferindo em direitos de brasileiros e brasileiras, de todas as idades e de todos os modos
de crer e não-crer. Nega a religiosos e religiosas da religião católica
seus direitos trabalhistas, subordina a escola pública aos interesses
de um Estado que rege uma religião e, em nome de sua personalidade
jurídica, tenta interferir na formação da consciência tenra de crianças,
interferindo no que é tarefa das famílias e de suas comunidades religiosas, escolhidas por seu livre arbítrio, dentro do direito à liberdade
de consciência e de crença.
10
Disponível em: <www.cfemea.org.br/pdf/brasilevaticano_odesacordorepublicano.pdf>.
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Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito
2 Aspectos importantes do Acordo
Composto de 20 Artigos, o Acordo entre a Santa Sé e o Brasil
apenas consolida disposições legais já presentes no nosso ordenamento
jurídico e que constituem por si mesmos a expressão do histórico relacionamento entre a Igreja Católica e o Estado Brasileiro. Esse expresso
reconhecimento, dentro do nosso ordenamento estatal, significa, a bem da
verdade, que o Estado não ignora o papel histórico que a Igreja Católica
teve e tem na formação do Estado brasileiro:
O reconhecimento das Igrejas e Confissões no âmbito das pessoas
jurídicas dentro do ordenamento estatal, assim como a atenção que o
Estado lhes dedica em diversas ordens jurídicas, e também os diversos
Acordos entre Igrejas e Confissões com os Estados, representam uma
fenomenologia suficientemente expressiva para pensar que o Estado não
desconhece o fenômeno religioso.11
Evidentemente, quando o Estado Brasileiro passa a reconhecer de
forma oficial a personalidade jurídica da Igreja Católica, este reconhecimento não provém de uma razão estritamente religiosa, mas sim do
reconhecimento de um estatuto jurídico que tem um valor sociológico
inegável na construção do próprio Estado enquanto entidade política, e
da nação enquanto identidade sócio-cultural e religiosa.
O Acordo, na verdade, é um instrumento jurídico que regula as
relações entre a Santa Sé e o Estado brasileiro. Partimos do pressuposto
de que a Igreja Católica, do ponto de vista jurídico, é uma entidade
autônoma e independente de qualquer poder estatal. Nesse sentido, o
preâmbulo do Acordo estabelece as bases sobre as quais encontram-se
assentados os fundamentos de sua celebração, a saber:
1. o reconhecimento das relações históricas entre a Igreja Católica
e o Brasil;
2. o reconhecimento de que a Santa Sé é a Suprema autoridade
da Igreja Católica, regida pelo Direito Canônico;
3. o reconhecimento da autonomia própria do Estado e da Igreja,
e que ambos contribuem para a construção de uma sociedade
mais justa, fraterna e solidária;
11
140
Salvador, Carlos Corral. Derecho Internacional Concordatário. Madrid: Biblioteca
de Autores Cristianos, MMIX, pg.213.
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4. o reconhecimento da validade jurídica do Concílio Vaticano
II e do Código de Direito Canônico, que estrutura a Santa Sé,
bem como o ordenamento jurídico brasileiro que estrutura a
Republica Federativa do Brasil;
5. a reafirmação do princípio da liberdade religiosa;
6. a garantia constitucional para o livre exercício dos cultos religiosos;
7. o fortalecimento das mútuas relações já existentes.
Tendo em vista as questões que o Acordo aborda, muitos têm levantado a bandeira da sua inconstitucionalidade, ancorados no princípio
de que o Acordo traria benefícios para a Igreja Católica no Brasil. Uma
análise mais atenta do Acordo prova que isso não corresponde à verdade.
O Acordo não fere o princípio da igualdade, da liberdade religiosa, da
liberdade de consciência, reforçando inclusive a garantia institucional
da diversidade e do pluralismo religioso. Jayme Weingartner Neto12,
professor da Universidade Luterana do Brasil e da Escola Superior do
Ministério Público do Rio Grande do Sul, assim se posiciona:
Tenho a convicção, neste contexto, de que o regime concordatário acordado não padece de qualquer vício de constitucionalidade. Pelo contrário,
densifica uma série de posições jurídicas que já resultavam de interpretação sistemática da Constituição Federal, tendo o mérito de explicitá-las
e de forma compatível com o princípio fundamental do Estado laico, de
não-identificação com separação, que não se coaduna com hostilidade
ou oposição ao fenômeno religioso – já se disse que a Constituição
embora não confessional, também é cooperativa, solidária e tolerante
em relação às instituições religiosas. O Acordo, pois, consubstancia os
princípios da cooperação e da solidariedade. Ademais, o Estado cumpre
suas funções, no que toca aos deveres de proteção, de criar condições
para que as confissões religiosas desempenhem suas missões (dever de
aperfeiçoamento). Protege-se, por fim, como garantias institucionais, a
liberdade religiosa coletiva, isto é, as igrejas como instituição.
Vejamos com mais atenção, sem a pretensão de esgotar o assunto,
alguns desses aspectos, especialmente aqueles que, a nosso juízo, carecem
de uma regulamentação mais clara, de modo a se evitarem problemas
para as partes contratantes.
12
Disponível em: <http://camaraecamara.wordpress.com/2009/10/05/estatuto-juridicoda-igreja-catolica-no-brasil-acordo-entre-brasil-e-santa-se-sera-em-breve-aprovadoe-tera-20-artigos-leia-a-materia/>.
Encontros Teológicos nº 56
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Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito
2.1 Personalidade Jurídica da Igreja
2.1.1O Regime Legal da Igreja Católica frente ao Ordenamento Jurídico Brasileiro. Relações Tuteladas
pelo Direito
Desde a implantação da República, o direito constitucional brasileiro estabeleceu o Estado Laico, desvinculado do poder soberano
da Igreja. Contudo, no seio da sociedade ficou a corporação moral da
Igreja Católica, reconhecida pela própria Lei da separação. Definir seu
regime legal, antes de tudo implica em reconhecer o caráter orgânico
da Igreja.
A Igreja, enquanto entidade orgânica, é anterior ao Estado e à República. Sua natureza corporativa, lhe confere as características próprias
de toda e qualquer corporação, a saber: tem espírito próprio, vontade
própria e meios e instrumentos de manifestação, diferentes da vontade
e meios dos indivíduos que a compõem.
Decorre daí que, no dizer de Lacerda de Almeida, “a personalidade
jurídica da Igreja resulta logicamente de seu caráter orgânico, em virtude
do qual e do modo porque se compõe, assume a natureza não de simples
totalidade, mas de verdadeira unidade coletiva”13.
Diferentemente do Estado, o caráter orgânico da Igreja é fruto de
um processo analítico, ou seja, a Igreja é fruto e consequência de um
ato fundacional, em virtude do qual surgiram suas leis internas, seus
ritos e suas subdivisões em sociedades inferiores distintas, ligadas entre
si pelos laços de uma fé comum, com um único chefe visível. Por sua
vez, o Estado é fruto e consequência de um processo sintético, isto é,
sociedades inferiores como a família, as tribos, as cidades e assim por
diante, antecederam o seu surgimento. Fica, pois, evidente, que a Igreja,
como o Estado, tem e sempre terá o seu direito e a sua jurisdição.
Ingressar, pois, na questão da personalidade jurídica da Igreja,
implica necessariamente, antes de mais nada, definir conceitos e optar por
uma determinada linha doutrinária, no caso a sustentada por Hariou, que
imagina as pessoas jurídicas como organizações sociais as quais, por se
destinarem a preencher finalidades de cunho socialmente útil, são perso13
142
ALMEIDA, Lacerda de. A Igreja e o Estado. Suas Relações no Direito Brasileiro. Rio
de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1924, p. 77.
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nificadas. Discute-se então, não se a Igreja tem ou não tem personalidade
jurídica, mas sim a natureza própria dessa personalidade.
Enquanto corporação, é evidente, tanto para a doutrina como
para a jurisprudência pátria, que a Igreja possui vontade convergente,
liceidade dos fins e legalidade, requisitos necessários para a legalidade
de qualquer pessoa jurídica no nosso ordenamento jurídico. Por isso,
em face do nosso direito, a Igreja Católica, para efeitos de capacidade
civil, é representada pela Santa Sé, reconhecida como pessoa jurídica de
direito público internacional. Por extensão, a Igreja Católica classifica-se,
incontestavelmente entre as corporações de direito público.
O Código Civil de 2002, entretanto, não menciona a Igreja entre as entidades reconhecidas como de direito público. Por estar a Igreja Católica numa
situação sui generis frente ao nosso ordenamento, necessário seria mencioná-la.
Isso, porque a Igreja é um organismo, como é o próprio Estado. Deste modo,
Vasconcelos (1925, p. 523), sobre essa questão, assevera o seguinte:
É certo que a Igreja, como representação da Santa Sé, e suas divisões,
dioceses e paróquias, regem-se em todos os seus aspectos, pelo direito
eclesiástico. Mas na administração de seus bens patrimoniais, sob a direção dos bispos e dos párocos, quanto à aquisição, uso e alienação deles,
observam as leis civis e processuais do país. [...] Seria um contrassenso
reputá-las como pessoas jurídicas de direito privado, porque não se pode
admitir as divisões de uma pessoa de direito público externo, com forma
das sociedades civis, determinando a individualidade de seus membros,
estabelecendo as condições do seu funcionamento e o modo como se
devem extinguir. [...] Na ordem civil, portanto, as pessoas jurídicas da
Igreja, aparecem, não sob o aspecto espiritual, diretoras das normas da
consciência, mas nas relações de natureza jurídica, que as necessidades
patrimoniais da vida social reclamam, para que se realizem, de modo
mais eficaz as exigências do culto e a permanência de seu apostolado.
Para responder às exigências legais e satisfazer às exigências civis,
as dioceses têm suas designações de “Mitra Diocesana”. Sob esse ponto
de vista, tanto as dioceses como as paróquias aparecem em nosso direito
com uma representação própria, revestidas de caráter jurídico. Portanto, na
ordem civil, a Igreja Católica, representada por suas dioceses e paróquias,
tem personalidade jurídica especial, de natureza eclesiástica, por força do
Decreto 119-A. Como consequência imediata, o referido Decreto reconheceu também a multiplicidade de pessoas que a ela se subordinam.
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143
Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito
Para Cyrne Lima, o mesmo diploma político que separou a Igreja
do Estado (Decreto n.º 119-A, de 7 de janeiro de 1890), reconheceu a
personalidade jurídica da Igreja e reconheceu-lha, fora e acima de qualquer intervenção do poder público. [...] Tal conhecimento trouxe, para
logo, como aplicação necessária, o reconhecimento, já da multiplicidade
de pessoas jurídicas que se subordinam e articulam como expressão
jurídica da Igreja Católica, já da faculdade, que a esta lhe é peculiar,
distinta do Estado, de gerar, em seu seio, novas pessoas jurídicas, por
desmembramento ou subdivisão”14.
A assessoria jurídica da CNBB, acerca da questão: No próprio
Direito Canônico, está dito que: “as pessoas jurídicas públicas adquirem essa personalidade pelo próprio direito ou por decreto especial da
competente autoridade que expressamente a concede [...]” (Cân. 116, §
2). Foi o que ocorreu com a Igreja Católica no Brasil já no alvorecer da
República, em razão do referido Decreto 119-A”15.
Mais adiante, afirma Cirne Lyma16 que a personalidade jurídica de
uma Diocese “é um fato de direito público, a ser simplesmente aceito como
tal, na ordem civil, independente de qualquer providência específica”.
Cabe, pois ampliar a questão, tendo em vista que as relações entre Igreja e Estado no Brasil, na ordem civil, carecem de uma definição
jurídica mais segura. Se, na ordem civil, as pessoas jurídicas da Igreja
Católica são emanação de uma organização internacionalmente reconhecida de direito público externo, essa mesma ordem civil, no caso a nossa,
não pode desconhecer ipso facto, a natureza interna de suas emanações
e suas relações jurídicas com o Estado.
2.2 A Natureza Jurídica da Igreja Católica no Brasil: Vias
de Entendimento entre a Igreja e o Estado
2.2.1 O Registro Civil das Pessoas Jurídicas
O Registro Civil de Pessoas Jurídicas nasceu em 1893, com a Lei
nº 173, que criou o registro das sociedades civis e associações de fins não
144
14
LIMA, Cyrne. Preparação à Dogmática Jurídica. Porto Alegre, 1958, pág. 87.
15
Disponível em: <cnbb.org.br/setores/JurpersoIgreja.rtf>.
16
Idem, Preparação à Dogmática Jurídica. Porto Alegre, 1958, pág. 87
Encontros Teológicos nº 56
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David Bruno Goedert
econômicos. Naquela época, esses registros ficaram a cargo dos Oficiais
do Registro Hipotecário, hoje Registro de Imóveis.
A Lei nº 173 estabeleceu que as sociedades civis de fins científicos,
religiosos, morais, artísticos, ou recreativas, só adquiririam personalidade
jurídica quando estivessem inscritas por contrato social, compromisso ou
estatutos autenticados e devidamente arquivados. Além disso, antes de serem
registrados, esses contratos deveriam ser publicados, integralmente ou por
extrato, no jornal oficial, com as declarações essenciais e eventuais alterações.
Tudo isso só valeria, contra terceiros, depois do competente registro.
Não há dúvida que “na ordem espiritual, todas as associações
católicas constituem ramificações da sociedade religiosa, que toda se
resume no chefe visível da Igreja, mas, para que tais associações possam
existir na ordem temporal, como personalidades jurídicas, preciso é que
se organizem de conformidade com a lei civil”17. No entanto, muitas pessoas jurídicas da Igreja católica são anteriores ao ordenamento jurídico
estabelecido com a proclamação da República, ou seja, fazem exceção
à regra geral acima estabelecida e reconhecida pela própria Igreja. Essas
pessoas jurídicas foram expressamente reconhecidas pelo Decreto 119-A
e pela refeerida Lei 173 de 1893, conforme Vasconcelos18:
Se assim não fosse, a lei seria retroativa, contrária aos princípios jurídicos
adotados pela nação, que lhe vedam a influência sobre atos já consumados
na vigência de outros dispositivos legais. As associações religiosas, quer
organizadas na legislação do Império, quer de acordo com a lei acima
citada, essas continuarão a funcionar independente de quaisquer novas
formalidades, permanecendo no gozo da capacidade já adquirida.
As dioceses e paróquias canonicamente erigidas após essas leis
exigem um estudo à parte. Em primeiro lugar, porque, exigir que elas se
organizem como as demais associações, para o efetivo exercício de seus
direitos civis, seria exigir uma forma de constituição que juridicamente
desvirtuaria a sua natureza sui generis. Em segundo lugar, porque, por
analogia19, essas novas dioceses e paróquias seriam regidas pelos mesmos
princípios que norteiam suas congêneres.
17
VASCONCELOS, Abner C. L. de. Regime Legal da Igreja, Revista de Crítica Judiciária,
Ano II, VcolI – nº 6, Rio de Janeiro, Abril, 1925, p. 636.
18
Idem, 1925, p. 636.
19
Sobre a questão, Clovis Bevilaqua faz comentários muito apropriados em sua obra
“Código Civil Comentado”, vol. 1º, p.109.
Encontros Teológicos nº 56
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145
Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito
Ao longo da história recente do Brasil, inúmeras foram as dioceses e paróquias criadas sem que nosso ordenamento jurídico oferecesse
obstáculos de qualquer natureza. “Trata-se, assim, de uma questão de
fato, à qual a lei não pode negar efeitos, quando chamada a assegurar
direitos e interesses, coletivos ou individuais”20.
Nesse sentido, o ordenamento jurídico pátrio acolheu as dioceses
como pessoas jurídicas e, como as demais pessoas jurídicas, segundo
Vasconcelos21, assegura-lhes as seguintes características, ou melhor,
qualidades:
1º) apresentar-se em seu próprio nome aos poderes públicos, requerendo
e sustentando quaisquer direitos e pretensões legítimas, como fazem os
indivíduos particulares; 2º) criar ou organizar, por si só ou associadas
com outras pessoas físicas ou jurídicas, instituições de beneficência,
caridade e instrução, exercendo-se sobre elas a precisa fiscalização;
3º) confeccionar e promulgar regulamentos dos seus serviços, impondo
neles obrigações e penas aos seus subordinados; 4º) exercer mandatos
e gerir negócios alheios.
Por fim, um artigo da Assessoria Jurídica da CNBB22, citando o Dr.
Waldir Luiz Costa, professor da Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Goiás, em trabalho publicado na “Revista Arquidiocesana”,
ressalta que a Diocese é uma projeção da Igreja, e portanto “uma pessoa jurídica de direito eclesiástico, sui generis, e como tal “independe
do registro de seus estatutos no livro das pessoas jurídicas, segundo o
processo comum previsto na Lei de Registros Públicos.
2.2.2 A Natureza Jurídica da Igreja Católica no Brasil:
Perspectiva de Novas Abordagens
Em virtude dos pontos até aqui observados, a Igreja pode ser vista
sob dois aspectos. Num primeiro, a partir de suas finalidades mediatas,
ou seja, a realização do bem comum espiritual de seus membros. Num
segundo, a partir de suas finalidades imediatas, e neste sentido deve ser
146
20
Ibidem, Abner C.L. de. “Regime Legal da Igreja”, Revista de Crítica Judiciária, Ano
II, VcolI – nº 6, Rio de Janeiro, Abril, 1925, p. 638.
21
Idem-ibidem. 1925, p. 754.
22
Disponível em: <cnbb.org.Br/setores/JurpersoIgreja.rtf>.
Encontros Teológicos nº 56
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David Bruno Goedert
vista como sociedade política, organicamente estruturada no interesse
de seus membros.
Como se vê, não existe uma visão exclusivamente jurídica da
pessoa. Particularmente quando se trata de definir o que seja a pessoa
jurídica, as divergências aparecem tanto na doutrina como na legislação pátria.
Para Orlando Gomes, pessoa jurídica “são grupos humanos dotados de personalidade para a realização de um fim comum”23. Por sua vez,
Maria Helena Diniz define pessoa jurídica “como a unidade de pessoas
naturais ou de patrimônio que visam a consecução de certos fins, reconhecidos pela ordem jurídica como sujeito de direitos e obrigações”24.
No Direito português, à guisa de ilustração, “as pessoas coletivas são
organizações constituídas por uma coletividade de pessoas ou por uma
massa de bens dirigidos à realização de interesses comuns ou coletivos,
às quais a ordem jurídica atribui a personalidade jurídica”25.
Nessa perspectiva, o jurista não pode ignorar entidades que apresentam um caráter sui generis como é o caso da Igreja Católica. Ao longo
da história jurídica do Brasil, a Igreja sempre demonstrou sua existência
no ordenamento jurídico nacional.
A natureza corporativa da Igreja Católica faz dela uma sociedade, regida não pelo direito comum, mas pelo seu próprio ordenamento
jurídico. O direito constitucional brasileiro, desde a proclamação da
República, assim o atesta. Nesse sentido, Lacerda de Almeida escreve:
“Não foi a Igreja que passou a ser governada pelo direito comum, mas
os seus bens, a sua propriedade, até então governadas pelas leis de mão
morta”26. A Igreja rege-se por leis próprias, a saber, o Código de Direito
Canônico, quer seus bens estejam sob regime de exceção, quer sob o
regime do direito comum no estado democrático de direito. Assim, dois
princípios devem nortear a discussão em torno da personalidade jurídica
da Igreja Católica e suas frações:
Em primeiro lugar, o princípio da liberdade religiosa, que está
na gênese e no conteúdo do decreto de separação. O reconhecimento
23
GOMES, Orlando. Introdução do Direito Civil, nº 105, p.186.
24
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil, vol. I, p.142.
25
PINTO, Mota. Teoria Geral do Direito Civil, nº 67, p. 267.
26
ALMEIDA, Lacerda de. A Igreja e o Estado. Suas Relações no Direito Brasileiro. Rio
de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1924, p. 69.
Encontros Teológicos nº 56
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147
Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito
pleno do direito à liberdade religiosa é o “princípio e fundamento” de
qualquer sistema de relações Igreja-Estado, reconhecido como direito
fundamental de todas e cada uma das pessoas no plano individual e
como direito social.
Em segundo lugar, o princípio da dimensão pública da missão da
Igreja, ou o princípio de cooperação. O reconhecimento pleno do verdadeiro âmbito do “religioso” é completamente vital para uma adequada e
fecunda presença da Igreja na sociedade. O “religioso” não se limita aos
atos típicos da pregação e do culto; repercute-se e exprime-se por sua
própria natureza na vivência moral e humana, que se torna efetiva nos
campos da educação, do serviço e compromisso sociais, do matrimônio
e da cultura. Desse modo, abre-se um amplo campo de cooperação da
Igreja com todos os grupos e forças sociais e, especialmente, com o
Estado, na grande tarefa comum de serviço às pessoas..
A Igreja Católica, como visto, tem personalidade jurídica internacional. Por necessidade de atuação, a Igreja se fraciona em Dioceses e
Paróquias. Resta saber se suas frações serão pessoas jurídicas. E em caso
afirmativo, qual a sua natureza jurídica. Três são as posições até agora
analisadas. A primeira, de Lacerda de Almeida, que sustenta tratar-se, no
caso das frações da Igreja, de pessoas de direito público. Sua posição27
é consequência do seguinte raciocínio:
A personalidade da Igreja como um todo, personalidade distinta de
cada uma de suas divisões ou partes, resulta da sua própria natureza
orgânica. Assim como o Estado é pessoa jurídica a que se subordinam
outras pessoas, constituídas pelas suas divisões e partes, assim também
a Igreja, a qual não se concebe sem a personalidade que reconhecemos
nas coletividades particulares em que se subdivide.
A segunda posição é defendida por Bevilaqua (1931). Segundo
este doutrinador, a Igreja situa-se no mesmo nível de qualquer associação cujos membros se reúnam em corporações ou fundações. Entende
o douto doutrinador que o Estado é soberano, e todas as organizações
na esfera do mesmo devem ser-lhe submissas. No seu entendimento28 é
impensável que dentro do Estado possa existir qualquer instituição que
tenha poder jurídico igual ou superior ao seu. Assim se posiciona:
148
27
CHAVES, 1982, p. 794-795.
28
Idem, 1982, p. 794 – 795.
Encontros Teológicos nº 56
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David Bruno Goedert
Por isso, podendo determinar o modo pelo qual as pessoas jurídicas
externas exercem direitos privados no país e as pessoas jurídicas internas se organizam, o Estado vê na Igreja Católica, externamente, uma
vasta unidade dirigida pela Santa Sé e, internamente, uma variedade de
corporações e fundações colocadas no plano das outras corporações e
fundações, que o Direito Privado protege e reconhece.
Uma terceira posição, intermediária, defende a ideia de uma legislação expressa que resolva a questão de modo definitivo, evitando-se com
isso inconvenientes, tanto para a Igreja como para o Estado. Esta posição
admite que a personalidade jurídica da Igreja advenha do Direito Canônico.
É uma construção jurídica, fruto do julgamento de apelação cível nº 10.848,
travado no Tribunal de Justiça do Distrito Federal em 1952.
O Estado, por sua natureza e finalidade, não cria associações religiosas como pessoas de direito privado. O Estado apenas reconhece essas
associações, regulando sua personalidade, não sua capacidade. Esta, no
caso da Igreja, é regida pelo Direito Canônico. Na Igreja, a subordinação
se deve à autoridade eclesiástica conforme definido nesse Direito. Na
prática, significa que essas associações são criadas e controladas pela
competente autoridade eclesiástica e não dependem de qualquer convenção expressa dos seus membros.
Frente ao ordenamento jurídico pátrio, o Direito Canônico tem
caráter de estatuto da Igreja e suas frações. Portanto, situa-se no nível
da norma estatutária, regulando internamente a capacidade dos administradores, dos associados entre si e com terceiros e na administração
em geral. Se assim não fosse, as dioceses, por exemplo, ficariam numa
situação anômala e caótica, uma norma legal reconhecida pelo Estado.
Carvalho Mourão, em voto no acórdão de 26/08/1940:
O Direito Canônico reconhece, não o valor da norma geral obrigatória,
não o caráter de lei, mas o de estatuto das associações e fundações.
A norma do Direito Canônico, depois da separação da Igreja e do
Estado, perdeu o caráter de norma legal, mas tem o de norma estatutária: por conseguinte, ao regular a capacidade dos administradores,
dos associados, entre si e com terceiros, nas associações religiosas ou
fundações, não podemos deixar de aplicar como norma estatutária o
Direito Canônico.
Assim seria descabido, a pretexto da separação da Igreja e do
Estado, que porções da Igreja Católica no Brasil ficassem submissas às
Encontros Teológicos nº 56
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149
Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito
leis civis, ignorando que quem as constitui e as regula é a própria Igreja.
Na verdade, seria um anacronismo jurídico insustentável no atual ordenamento brasileiro. Como poderiam as Dioceses, paróquias e demais
associações religiosas recusar submeter-se à disciplina da Igreja sob o
pretexto de estarem, sob todos os aspectos, submissas às normas e leis
do Estado? Como uma associação leiga poderia promover o serviço do
culto da Igreja Católica, se as Dioceses, paróquias etc, fossem meras
sociedades civis?
2.2.3 A Natureza Jurídica da Igreja Católica no Brasil a
partir da Constituição de 1988 e do Novo Código
Civil de 2002
Colocar a Igreja Católica no mesmo patamar de qualquer sociedade
civil fere princípios constitucionais, consagrados no nosso ordenamento
jurídico desde a proclamação da República. A Constituição de 1988,
inclusive, reafirma os princípios constitucionais de liberdade religiosa
e não intervenção estatal no funcionamento das Igrejas, nos seguintes
termos:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei,
a proteção aos locais de culto e às suas liturgias;
[...]
XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas,
independe de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu
funcionamento.
[...]
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçarlhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações
de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração
de interesse público.
Contrariando esses princípios constitucionais, o novo Código Civil
introduziu inovações e alterações que possibilitam ao Estado, pelo menos
150
Encontros Teológicos nº 56
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David Bruno Goedert
em tese, uma interferência escancarada no governo das Igrejas (não só da
Igreja Católica). Os artigos 40, 44, 57, 59 e 60 da lei Ordinária 10.406, de
10 de janeiro de 2002, caracterizam a intromissão do Estado nos cultos
religiosos, permitindo, inclusive, que o magistrado possa interferir na
administração interna das Igrejas.
Essa legislação teve o artigo 44 alterado pela lei 10.825, de 22 de
dezembro de 2003, sem contudo resolver de forma definitiva o problema.
No caso da Igreja católica, não há como conviver simultaneamente com
duas legislações que tratem diferentemente da mesma matéria, no caso
a legislação canônica e a legislação civil. Trata-se de inconstitucionalidade flagrante. O Código Civil de 1916, em que pese suas limitações,
não interferia na organização da Igreja, respeitando, assim, a ordem
constitucional.
Desde a emanação do Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890,
que extinguiu o sistema de padroado, a personalidade jurídica da Igreja
Católica é um fato. De um regime de religião de Estado, com mera
tolerância das demais confissões, passamos a um regime de separação,
com pleno reconhecimento constitucional da liberdade de consciência
e religião.
Nem a doutrina nem a jurisprudência tiveram dificuldades ao
longo da história acerca da questão. O problema, na verdade, não está
em reconhecer o estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil e por
extensão as suas Dioceses.
O problema diz respeito à personalidade jurídica das paróquias e
demais pessoas jurídicas eclesiásticas, quando estas por razões diversas
buscam serviços cartorários e ou bancários. Evidentemente, não foram
poucas as críticas nesse sentido. À guisa de ilustração, os advogados Dino
Ari Fernandes, Edson de Camargo Brandão, Jorge Luiz Carnitti, Carlos
Alberto Pinto, Israel Moreira de Azevedo, Rubens Ferreira de Barros e
Wanderley Bizarro29, entraram com uma AÇÃO POPULAR, com pedido
de LIMINAR em CARÁTER DE URGÊNCIA, junto ao Juiz Federal da
Vara da Subseção Judiciária de Guarulhos – SP, alegando que:
O instrumento sob ataque, a ser submetido a referendo do Congresso
Nacional (art. 49, incs. I e 84, inc. VIII da CF/88), ao reconhecer à
Igreja Católica sua personalidade jurídica, causa lesão ao patrimônio
29
Disponível em: <http://www.atea.org.br/arquivos/acao_pop_contra_concordata_vaticano.doc>.
Encontros Teológicos nº 56
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151
Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito
público e às entidades estatais, merecendo questionamentos quanto à
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência administrativa (art. 37 “caput” da CF/88).
Quando o Acordo reconhece explicitamente a personalidade jurídica da Igreja Católica, está apenas formalizando uma situação já existente
e reconhecida pelo nosso ordenamento jurídico. Para tanto basta conferir
o parecer do Consultor Geral da União, de agosto de 2006, aprovado
pelo Advogado Geral da União.30
Num parecer de João Baptista Galhardo31, Oficial de Registro de
Imóveis de Araraquara-SP, de 06 de março de 2003, acerca da personalidade jurídica da Igreja, lemos o seguinte:
Afere-se, por tudo, que a personalidade jurídica da Diocese é de Direito
Público. A Igreja é entidade eclesiástica, mas com personalidade jurídica de Direito Público, em razão, principalmente, do Estado Soberano
que representa. Não é associação, sociedade, fundação e muito menos
empresa. Nem associação religiosa. Dispensável o seu registro como
pessoa jurídica de direito privado. Segue regras do Direito Canônico. A
CNBB, por exemplo, é uma associação de Direito Privado, mas a Igreja
Católica é de Direito Público, embora especial, ou sui generis.
Sem nos estendermos mais sobre o tema, vemos com clareza que
o debate sobre o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, em que
pesem as divergências, é questão pacificada quer pela doutrina, quer
pela jurisprudência de nossos tribunais, não mais cabendo alegações de
qualquer natureza a um fato jurídico consolidado.
3 Filantropia e Benefícios Tributários
A questão da filantropia e benefícios tributários, previstos no Acordo, são tratados em função da natureza da ação social da Igreja Católica,
em iguais condições com instituições da mesma natureza.
O art. 5º do Acordo dispõe sobre as pessoas jurídicas eclesiásticas
reconhecidas na forma mencionada, que também tenham fins de assistência e solidariedade social. Elas podem desenvolver a própria atividade e
desfrutar todos os direitos, imunidades, isenções e benefícios atribuídos
152
30
AGU/MP – 16/2005 e respectivo despacho 34/2006.
31
Disponível em: <http://www.controlm.com.br/artigo.php?idartigo=88>.
Encontros Teológicos nº 56
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David Bruno Goedert
às entidades com fins de natureza semelhante, previstos no ordenamento jurídico brasileiro, desde que observados os requisitos e obrigações
exigidos pela legislação.
Já o artigo 14 determina que “às pessoas jurídicas eclesiásticas
e religiosas, assim como ao patrimônio, renda e serviços relacionados
com as finalidades essenciais, é reconhecida a garantia de imunidade
tributária referente aos impostos, em conformidade com a Constituição
Federal”. Para o Deputado Federal Ivan Valente, PSOL, a Constituição
prevê imunidade tributária apenas aos templos religiosos. Segundo ele,
nos últimos anos, a definição de “templo” tem sido alargada, ultrapassando em muito as atividades inerentes ao exercício da religião.
Quanto aos benefícios tributários, temos que apropriar-nos, em
primeiro lugar, do que diz a nossa Carta Magna. A Constituição vigente, no art. 150, inciso VI, letra b, informa que a imunidade absoluta diz
respeito aos “templos de qualquer culto”. Evidentemente a lei deve ser
interpretada, seja pela doutrina, seja pela jurisprudência dos Tribunais.
Assim, temos que, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, há uma
compreensão segundo a qual o templo de qualquer culto não é apenas a
materialidade do edifício, mas todo o conjunto dos bens a ele agregados
e que não visem um fim meramente econômico.
À guisa de exemplo, temos uma interpretação extensiva do art.
150, inciso VI, letra b, da Constituição Federal, feita pelo Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, que, reiteradas vezes, tem decidido pela
imunidade tributária independentemente da destinação dada ao imóvel.
Presume o TJRS32 que a renda auferida pela entidade religiosa, mesmo quando aluga um imóvel, é destinada a suas finalidades essenciais,
cabendo ao Fisco provar que não é assim que sucede. Nesse sentido é a
ementa da decisão abaixo:
DIREITO TRIBUTÁRIO. IPTU. IMÓVEL LOCADO. ENTIDADE QUE
SE DEDICA AO CULTO RELIGIOSO: IMUNIDADE. As entidades
descritas no art. 150, VI, “b”, da Constituição Federal são imunes ao
pagamento de impostos. A destinação dada aos imóveis pelas entidades
religiosas não autoriza o Município a cobrar o IPTU. O fato de estarem
alugados não afasta a presunção de que o produto arrecadado deste
contrato esteja sendo aplicado nas atividades essenciais da entidade. À
32
Apelação e Reexame Necessário 70003042694 TJ/RS 41 RE 325822/SP, rel. Min.
Ilmar Galvão – Tribunal Pleno – DJ de14-05-2004, pp 00033.
Encontros Teológicos nº 56
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153
Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito
unanimidade, negaram provimento ao 1° apelo. Por maioria negaram
provimento ao 2° e confirmaram a sentença em reexame necessário,
vencido o Presidente que o proveu. Sobre o tema em comento, o Supremo Tribunal Federal tem como acórdão paradigma o RE 325822/SP,
relatado por Ilmar Galvão e redigido por Gilmar Mendes: EMENTA:
Recurso extraordinário. 2. Imunidade tributária de templos de qualquer
culto. Vedação de instituição de impostos sobre o patrimônio, renda
e serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades.
Artigo 150, VI, \”b\” e § 4º, da Constituição. 3. Instituição religiosa.
IPTU sobre imóveis de sua propriedade que se encontram alugados.
4. A imunidade prevista no art. 150, VI, \”b\”, CF, deve abranger não
somente os prédios destinados ao culto, mas também o patrimônio, a
renda e os serviços \”relacionados com as finalidades essenciais das
entidades nelas mencionadas\”. 5. O § 4º do dispositivo constitucional
serve de vetor interpretativo das alíneas \”b\” e \”c\” do inciso VI do
art. 150 da Constituição Federal. Equiparação entre as hipóteses das
alíneas referidas. 6. Recurso extraordinário provido. Nesse julgado, o
Supremo entendeu de uma maneira bastante ampla tanto o conceito de
imunidades, quanto o plexo de abrangência da imunidade conferida aos
templos religiosos. Os imóveis pertencentes à entidade religiosa foram
beneficiados pela imunidade tributária, mesmo quando destinados à
locação, desde que, evidentemente, a renda auferida dos alugueres fosse
destinada às finalidades próprias da instituição religiosa.
Como se vê, não há como falar em restrição ao conceito de templo, mesmo porque, quando da instituição de direitos, estes devem ser
reconhecidos da maneira mais ampla possível, ao contrário das restrições
a direitos, que devem ser interpretadas sempre da maneira mais estrita
possível. Assim, o conceito de “templo” expresso no art. 150, inciso
VI, letra b, da Constituição Federal, deve ser interpretado de forma
extensiva.
4 Ensino Católico, assim como de outras
Confissões Religiosas, nas Escolas Públicas
de Ensino Fundamental
A questão do ensino religioso é de índole constitucional. Trata-se,
concretamente, de aplicar regras inseridas na Constituição de 1988. Ela
prevê, como direito fundamental, a inviolabilidade da liberdade de crença
e de consciência, assegurando-se ainda o livre exercício de cultos religio-
154
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
David Bruno Goedert
sos (art. 5º, inc. VI). Sem dúvida alguma, a questão do ensino religioso,
confessional ou não, envolve o problema da laicidade e da liberdade.
A temática das relações entre as religiões e a educação e, em
particular, entre o Estado, no Brasil, a constituição da escola pública e
a Igreja Católica Romana, remonta à década de 70. O que se constata,
especialmente a partir da constituição de 1988, é que não há conflito entre
a laicidade do Estado, imperativo constitucional, e o ensino religioso,
especialmente por estar ele inserido em princípio constitucional geral
da formação integral do ser humano e do cidadão.
Assim, quando o Acordo prevê o ensino da religião católica nas
escolas públicas de ensino fundamental, não há que se falar em inconstitucionalidade, mesmo porque o artigo em questão está plenamente
sintonizado com o que a Constituição da República prevê em seu art.210
§ 1º e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação em seu art. 33. Evidentemente, quando a Constituição fala do ensino religioso, não está
falando de uma religião genérica, a-temporal e a-confessional. Uma
religião assim não existe.
Daí a necessidade de se interpretar o texto constitucional. Na verdade, essa interpretação não é monopólio exclusivo do estado de direito.
Peter Häberle33, assim se posiciona:
Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive
com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, intérprete dessa
norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo
do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como
não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a
norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição..
Portanto, o que o texto do Acordo reafirma categoricamente, no
nosso entendimento, é o direito constitucional de cada aluno receber a
educação religiosa conforme a sua fé, nos termos fixados pela lei, cumprindo assim o dispositivo constitucional de uma educação religiosa sem
concessão de privilégios a qualquer igreja. Esta é a verdadeira e legítima
laicidade do estado democrático de direito.
33
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a Sociedade Aberta dos Intérpretes
da Constituição: Constituição para e Procedimental da Constituição. Tradução de
Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1997, pág. 15
Encontros Teológicos nº 56
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155
Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito
Há, no entanto, quem pense diferentemente. O ensino religioso
ministrado em escola pública pode se transformar num perigoso espaço
de luta pelo poder e atentar contra minorias religiosas no país, alertou a
professora Roseli Fischmann, ao falar para estudantes da Universidade
Metodista de São Paulo (Umesp).
A Agência Brasil34 fez o seguinte comentário: “Na proposta
inicial, o Vaticano queria a inclusão do ensino religioso católico como
matéria opcional do ensino fundamental. O governo brasileiro aceitou,
mas acrescentou a expressão ‘outras confissões’ ao texto, para garantir
o respeito à diversidade religiosa no país”.
Não é este o espírito do Acordo e muito menos do texto constitucional brasileiro. O Acordo não busca privilégios para a Igreja Católica
em detrimento das outras confissões religiosas. Garantir o ensino religioso
confessional, segundo o espírito da lei, é dar aos alunos e suas famílias o
ensino religioso que corresponda a seu credo, não importa ele qual seja.
Esta é a liberdade religiosa preconizada pela nossa Constituição.
Ela é um direito absoluto que deve ser garantido a todo custo dentro de
nosso ordenamento jurídico. Desse modo, embora sejam admissíveis os
debates, criticas ou polêmicas a respeito das religiões em seus aspectos
teológicos, científicos, jurídicos, sociais ou filosóficos, a garantia constitucional prevalece e o ensino religioso pluri-confessional é perfeitamente
democrático e leigo, pois não fere a laicidade própria do Estado.
5 Reconhecimento dos Efeitos Civis do Casamento
Religioso e das Sentenças Eclesiásticas
em Matéria Matrimonial
Não é de agora que o Estado Brasileiro reconhece os efeitos civis do casamento religioso.ACF/88, no seu artigo 226, prevê que a família é base da sociedade,
tendo o Estado o dever de provê-la de especial proteção. Além de estabelecer o
caráter civil e gratuito do casamento (§ 1°), garante também, efetividade civil ao
casamento religioso (§ 2°). Do mesmo modo, no artigo 1515 do Código Civil, encontra-se a seguinte disposição: “O casamento religioso, que atender às exigências
da lei para a validade do casamento civil, equipara-se a este, desde que registrado
no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração.”
34
156
Disponível em: <www.agenciabrasil,gov.br/notícias/2008/11/12/mate ria2008-11-12.0158632307/view>.
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David Bruno Goedert
Note-se que a expressão da lei é “casamento religioso”, sem especificar religiões e sem estabelecer requisitos quanto a estas. A expressão é
genérica, o que significa que, verificando o atendimento dos requisitos que
seriam necessários para a validade do casamento realizado perante a autoridade pública, o casamento celebrado perante autoridade religiosa produzirá
os mesmos efeitos. O próprio artigo 1515 prevê o registro do casamento
religioso no registro próprio, o que significa que a autoridade encarregada dos
registros de casamento deverá registrar também o casamento religioso.
O artigo 1516, parágrafo 1º do Novo Código Civil, disciplina que
o “o registro civil de casamento religioso deverá ser promovido dentro de
noventa dias de sua realização, mediante comunicação do celebrante ao
oficio competente, ou por iniciativa de qualquer interessado, desde que
haja sido homologada previamente a habilitação regulada neste Código.
Após o referido prazo, o registro dependerá de nova habilitação”.
O parágrafo 2º do mesmo artigo dispõe que “o casamento religioso,
celebrado sem as formalidades exigidas neste Código, terá efeitos civis se,
a requerimento do casal, for registrado a qualquer tempo, no registro civil,
mediante prévia habilitação perante a autoridade competente e observado o
prazo do art.1532”. Euclides Benedito de Oliveira35, assim se manifesta:
A validade do casamento religioso continua vinculada à exigência de
sua inscrição no registro próprio, que é o Registro Civil das Pessoas
Naturais, desde que atendida a providência da habilitação dos nubentes,
entes ou depois da celebração religiosa. O prazo para o registro, que
a Lei 6015/73 limita a 30 dias, é aumentado, pelo Novo Código Civil,
para 90 dias, no caso de prévia habilitação. Mas ainda depois desse
prazo será possível o registro a qualquer tempo, desde que efetuada nova
habilitação. Da mesma forma, se o casamento religioso foi celebrado
sem as formalidades da lei civil, poderá vir a ser inscrito no registro civil
a qualquer tempo, bastando que se faça a devida habilitação perante
a autoridade competente. Deu-se, portanto, acertada valorização ao
casamento religioso, uma vez que podem ser admitidos os seus efeitos
a qualquer tempo, desde que regularizado mediante habilitação dos
contraentes e o devido registro. Note-se que os efeitos, ainda que tardio
o registro, retroagem à dada da celebração do casamento religioso”
Aqui faz-se necessário tecer algumas considerações de ordem canônica e jurídica. Em primeiro lugar, na nossa legislação pátria, uma vez
35
OLIVEIRA, Euclides Benedito de. União Estável: do Concubinato ao Casamento, 6.
ed., Ed. Método.
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Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito
equiparado pelo Registro Civil, o casamento religioso passa a ser meramente
civil e sujeito as normas pertinentes do nosso ordenamento jurídico, podendo,
por exemplo, ser dissolvido pelo divórcio. Segundo, se o casamento religioso
não for registrado, não produzirá os devidos efeitos civis. Terceiro, quem por
qualquer razão foi casado apenas no religioso, sem contudo ter feito o registro
civil, poderá contrair casamento civil sem impedimento de vínculo. Quarto,
quem registrou o casamento religioso civilmente passa a ter impedimento de
vínculo no civil. Este vínculo se mantém, mesmo que esse casamento seja
declarado nulo pelo competente Tribunal Eclesiástico.
Há, portanto uma discrepância que deve ser necessariamente
corrigida. Daí a razão do Art.12 – § 1º:
“A homologação das sentenças eclesiásticas em matéria matrimonial,
confirmadas pelo órgão de controle superior da Santa Sé, será efetuada
nos termos da legislação brasileira sobre homologação de sentenças
estrangeiras”.36
Na prática processual canônica, no entanto, a Igreja Católica terá
sérios problemas. Se, pelo Acordo, o governo brasileiro passa a reconhecer a competência dos Tribunais Eclesiásticos em matéria matrimonial,
estará dando efeito civil às sentenças de nulidade emanadas por eles.
Ora, é sabida por todos a precariedade humana e material dos tribunais eclesiásticos instalados pela Igreja Católica no Brasil. Essa precariedade sem dúvida alguma irá comprometer a legitimidade das sentenças
emanadas, pondo em dúvida, inclusive, a seriedade das mesmas.
Assim, se o direito civil brasileiro vier a homologar essas sentenças, mesmo que requeridas pela Santa Sé ao STJ, haverá dificuldades
concretas para ambas as partes. O que poderia o Estado Brasileiro exigir
da Santa Sé para se comprometer a respeitar as decisões dos nossos
tribunais? Qual a segurança canônico-jurídica que se poderia esperar da
36
158
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – PRESIDÊNCIA – RESOLUÇÃO Nº 9, DE 4
DE MAIO DE 2005 (*) Dispõe, em caráter transitório, sobre competência acrescida ao
Superior Tribunal de Justiça pela Emenda Constitucional nº 45/2004. O PRESIDENTE
DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, no uso das atribuições regimentais previstas
no art. 21, inciso XX, combinado com o art. 10, inciso V, e com base na alteração
promovida pela Emenda Constitucional nº 45/2004 que atribuiu competência ao Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar, originariamente, a homologação de
sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias (Constituição
Federal, Art. 105, inciso I, alínea “i”), ad referendum do Plenário, resolve: Art. 1º Ficam
criadas as classes processuais de Homologação de Sentença Estrangeira e de Cartas
Rogatórias no rol dos feitos submetidos ao Superior Tribunal de Justiça.
Encontros Teológicos nº 56
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David Bruno Goedert
maioria dos tribunais eclesiásticos em matéria matrimonial? O Estado
reconheceria a força e a eficácia dos matrimônios católicos, enquanto
não fossem declarados nulos? A Igreja Católica reconheceria a força e
a eficácia do casamento civil dos não divorciados, por terem contraído
matrimônio civil sem a dispensa da forma canônica? O Estado terá interesse em reconhecer a declaração de nulidade do casamento religioso
sem necessidade de um processo civil de divórcio, bem como seus efeitos
na vida dos cônjuges: partilha de bens, guarda dos filhos etc?
Estas são apenas algumas, entre tantas questões, que este artigo
do Acordo traz à nossa reflexão.
5.1 Direito Comparado
Valor Civil do
Casamento
Religioso
Impedimento
de Vínculo e
Divórcio
Constituição
Federal
Art. 226. A família,
base da sociedade,
tem especial
proteção do Estado.
§ 1º – O casamento
é civil, e gratuita a
celebração.
§ 2º – O casamento
religioso tem efeito
civil, nos termos
da lei.
Acordo Brasil
Santa Sé
Art.12 – O
casamento
celebrado em
conformidade
com as leis
canônicas, que
atender também
às exigências
estabelecidas pelo
direito brasileiro
para contrair
o casamento,
produz os efeitos
civis, desde que
registrado no
registro próprio,
produzindo efeitos
a partir da data de
sua celebração.
Emenda
A Santa Sé
Constitucional n.
sempre reafirmou
9 – Lei nº 6.515, de
a doutrina sobre a
26 de dezembro de
indissolubilidade
1977 – Regula os
do vínculo em
casos de dissolução qualquer matrimônio
da sociedade
validamente
conjugal e do
contraído.
casamento, seus
efeitos e respectivos
processos, e dá
outras providências.
Código Civil
Brasileiro
Art.1515 – O
casamento religioso
que atender às
exigências da lei
para a validade do
casamento civil,
equipara-se a este,
desde que registrado
no registro próprio,
produzindo efeitos a
partir da data de sua
celebração.
O divórcio tem como
primeiro efeito pôr
termo ao casamento
e aos efeitos civis do
matrimônio religioso.
A separação judicial
termina com a
sociedade conjugal,
mas permanece
o vínculo até que
a mesma seja
convertida em
divórcio.
Encontros Teológicos nº 56
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159
Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito
6 Exclusão, nos termos da legislação e da jurisprudência trabalhista brasileira, do vínculo empregatício entre os padres e suas Dioceses e também
entre religiosos e religiosas e seus respectivos
Institutos
A exclusão do vínculo empregatício entre ministros ordenados e
suas respectivas Dioceses, e fiéis consagrados e os Institutos religiosos
a que pertencem, é matéria pacificada tanto pela doutrina quanto pela
jurisprudência em nosso ordenamento jurídico. Há o entendimento de
que o trabalho realizado por religiosos não gera vínculo empregatício,
pela natureza peculiar de sua atividade. A subordinação, quando existe, é
de natureza eclesiástica; a retribuição visa exclusivamente a manutenção
quanto ao necessário. O reconhecimento do vínculo empregatício só seria
possível se houvesse um desvirtuamento da instituição religiosa, o que
também é reconhecido plenamente pelo Acordo.
O que se verifica, pois, é que, no nosso ordenamento jurídicotrabalhista, o trabalho dos religiosos e sacerdotes não é objeto do direito
do trabalho, pois não possui relação com a profissão, não sendo objeto
de um contrato de trabalho. Ele não pode ser avaliado economicamente.
Em sintonia com a doutrina, assim se manifesta a jurisprudência:
RELIGIOSA. NÃO RECONHECIMENTO. Vínculo empregatício.
Religiosa. A religiosa que se dedica durante 28 anos, na condição de
noviça e, depois, de freira, às atividades próprias da Congregação das
Irmãs Filhas de Caridade de São Vicente de Paulo, não pode ser considerada empregada da congregação da qual também é parte. A ausência
de pagamento de salário durante quase três décadas, a natureza do
trabalho desenvolvido, não configura a presença dos requisitos do art.
3º da CLT. Relação de emprego não reconhecida. Recurso da reclamante
a que se nega provimento.37.
O mesmo raciocínio se aplica aos ministros ordenados quando
atuam no específico de sua missão de dispensador dos sacramentos,
pregador, etc. Assim, temos na jurisprudência:
37
160
TRT – PR-RO-01716/92 (Ac. 2ª T. 10.277/93) – Rel.: Juiz Ernesto Trevizan, DJPR,
17.09.93, p. 239. Julgados Trabalhistas Selecionados. v. III. Irany Ferrari e Melchíades
Rodrigues Martins. São Paulo: LTr, p. 610
Encontros Teológicos nº 56
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David Bruno Goedert
Impossível o reconhecimento de pacto laboral entre o pastor e sua
Igreja. O trabalho do chamado Ministro da confissão religiosa tem
peculiaridades próprias e está baseado fundamentalmente na fé decorrente da vocação para as coisas de Deus. Hipótese de carência de
ação. TRT – 13ª Reg. RO-1710/92 – 10.2.93. Rel.: Juiz Francisco de
Assis Carvalho e Silva.38
Evidentemente o status de religioso não impede ao mesmo a possibilidade de firmar contrato de trabalho como qualquer outro trabalhador.
Sendo o contrato de trabalho sinalagmático e comutativo, dele resultam
direitos e obrigações recíprocas. No caso do ministro ordenado, ou de
fiel ligado a algum Instituto religioso, no entanto, não há que se falar
em contrato de trabalho, porque o elo que os vincula é de natureza eclesiástica, ou seja, a subordinação de quem quer que seja a uma Diocese
ou Instituto religioso não resulta de um contrato, mas sim do seu voto
de obediência proferido solenemente quando de sua adesão à entidade
religiosa.39
Segundo Dino Ari Fernandes e outros40, na mesma AÇÃO POPULAR, com pedido de LIMINAR em CARÁTER DE URGÊNCIA, junto
ao Juiz Federal da Vara da Subseção Judiciária de Guarulhos – SP, o
Acordo Brasil Santa Sé interferiu na justiça do trabalho, alegando que o
Artigo 16 do referido acordo interfere na legislação trabalhista brasileira.
Alegam ainda que o Acordo engessa o juiz trabalhista e que este torna-se
cativo de uma entidade religiosa:
Quando o texto impõe o não reconhecimento de vínculo empregatício a
ministros ordenados ou fiéis consagrados na ICAR, interfere na Justiça
do Trabalho, consequentemente na SOBERANIA DO ESTADO BRASILEIRO, lançando a DISCRICIONARIEDADE do magistrado ao monturo
[...] ao juiz trabalhista deve ser dado o espaço para aquilatar o valor das
provas, e julgar, mas na conformidade com nosso ordenamento pátrio,
fundamentado em suas convicções pessoais, e não de uma religião ou
Estado estrangeiro.
38
Rev. LTr 57-8/972
39
Cf. Arnaldo Süssekind e Luiz Inácio B. Carvalho. Pareceres. Direito do Trabalho e
Previdência Social. v. VIII, 1995, São Paulo: LTr, p. 30.
40
Disponível em: <http://www.atea.org.br/arquivos/acao_pop_contra_concordata_vaticano.doc>.
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Acordo Brasil – Santa Sé: relações tuteladas pelo direito
7 Conclusão
O grande mérito do Acordo Brasil e Santa Sé foi a regularização
e sistematização definitiva de uma legislação, que a bem da verdade,
já existia em nosso ordenamento jurídico. O Acordo apenas deu forma
e visibilidade a essa legislação relativa ao Estatuto Jurídico da Igreja
Católica no Brasil.
Um estudo mais atento das Constituições da República e da
legislação pátria revela-nos que, ao longo dos anos, sempre houve
uma abertura inequívoca para o relacionamento do Estado Brasileiro
com as mais diversas igrejas e confissões religiosas e, evidentemente,
com a Igreja Católica. Nesse contexto, há que se aceitar que o Estado
brasileiro sempre soube conviver com as igrejas e suas peculiaridades. Esta convivência de modo algum fere o princípio da laicidade
do Estado.
Ao contrário, quando o poder público reconhece a indiscutível
presença da Igreja Católica na formação da nação brasileira, reafirma que o Estado não prescinde da colaboração da Igreja em prol
do interesse coletivo, especialmente em se tratando da assistência
social, ação esta consideradas de motivações públicas. Posto isso,
constata-se desde logo que a presença da Igreja Católica junto à sociedade brasileira marcou profundamente os destinos da nação. Em
primeiro lugar, porque essa presença é anterior à própria presença
do Estado. Em segundo lugar, porque durante muito tempo a ação da
Igreja exerceu caráter supletivo à ação do Estado, especialmente no
campo da saúde, educação e assistência social. Em linhas gerais, a
ação da Igreja Católica no Brasil sempre foi pautada por uma relação
de mútua colaboração com o Estado.
O reconhecimento pleno do verdadeiro âmbito do “religioso” é
completamente vital para uma adequada e fecunda presença da Igreja
na sociedade. O “religioso” não se limita aos atos típicos da pregação e
do culto; repercute-se e exprime-se por sua própria natureza na vivência
moral e humana, que se torna efetiva nos campos da educação, do serviço
e compromisso sociais, do matrimônio e da cultura.
162
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
David Bruno Goedert
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Endereço do Autor:
E-mail: [email protected]
Endereço postal: Rua Frei Gabriel, 145 – Centro
88502-030 Lages, SC
166
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
A invocação de Deus na liturgia: “Deus
todo-poderoso”? ou, antes, simplesmente,
“Pai”?
Pe. Ney Brasil Pereira*
De uns tempos para cá, está sendo cada vez mais difícil para
mim, na celebração eucarística, rezar o texto das orações no teor oficial
que elas apresentam, no que concerne ao modo como Deus é invocado.
Isso, especialmente nas três orações próprias de cada celebração: a “do
dia”, e a que conclui o rito da preparação das ofertas, e a pós-comunhão.
Por exemplo, na oração “do dia” do 5º domingo do tempo comum1:
“Velai, ó Deus, sobre a vossa família...”; na da preparação das ofertas:
“Senhor nosso Deus, que criastes...”; e na pós-comunhão: Ó Deus, vós
quisestes...”
Afinal, qual é o nome próprio de Deus? No Antigo Testamento,
segundo a revelação feita a Moisés, em Ex 3,14, esse nome é o tetragrama
YHWH, logo tornado impronunciável e substituído, em hebraico, por
’ADONAY, e na Septuaginta, por KYRIOS, “o Senhor”. No Novo Testamento, porém, o “nome próprio” de Deus, nos lábios do Senhor Jesus,
é sempre “PAI”. E isso, quer nas inúmeras vezes em que, nos Sinóticos
e em João, ele se refere a Deus, sempre chamando-o de “PAI”, quer nas
invocações, como na oração do Horto, nos três Sinóticos2, ou, em João,
na oração ante o túmulo de Lázaro: “Pai, eu te dou graças...” (Jo 11,41),
*
O autor, Mestre em Ciências Bíblicas (Roma, 1973), e membro da Pontifícia comissão
Bíblica, é professor no ITESC, Florianópolis, SC.
1
O exemplo do “5º domingo do tempo comum” nada tem de excecional. Antes, é a
regra geral. Cito-o apenas porque foi nessa semana que rascunhei este artigo.
2
Marcos faz questão de registrar o próprio termo aramaico empregado por Jesus:
“Abbá, Pai, tudo é possível para ti”... (Mc 14,32)
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010, p. 167-170.
A invocação de Deus na liturgia: “Deus todo-poderoso”? ou, antes, simplesmente, “Pai”?
e no diálogo íntimo equivalente à oração do Horto: “Minha alma está
perturbada. E que direi? Pai, livra-me desta hora? Mas foi precisamente
para esta hora que eu vim. Pai, glorifica o teu nome!” (Jo 12,27-28).
Ainda em João, na oração “sacerdotal”, no cap. 17, várias vezes: “Pai,
chegou a hora. Glorifica teu Filho...” (v.1); “E agora, Pai, glorifica-me...”
(v. 5); “Pai Santo, guarda-os em teu nome...” (v.11); “Que todos sejam
um, como tu, Pai, estás em mim...” (v. 21); “Pai, quero que estejam
comigo...” (v.24); “Pai justo, o mundo não te conheceu...” (v. 25).
Além disso, todos sabemos que, quando ensinou-nos a orar, o
Senhor Jesus assim nos instruiu: segundo Mateus, “Vós, portanto,
orai assim: Pai nosso que estás nos céus...” (Mt 6,9); e segundo Lucas,
“Quando orardes, dizei: Pai, santificado seja teu nome” (Lc 11,2). Não
esqueçamos também que, segundo Paulo, aos gálatas, é o próprio Espírito Santo que, em nossos corações, clama por nós: Abbá, Pai! (Gl 4,6).
De modo semelhante, o mesmo Apóstolo, aos romanos, nos assegura
que recebemos “o Espírito que, por adoção, nos torna filhos, e no qual
clamamos: Abbá, Pai! (Rm 8,15).
Se é assim, fica a pergunta: Por que será, que em nossa liturgia, nos
textos eucológicos, se desconhece a grande novidade, o grande “evangelho” que o Senhor Jesus nos trouxe em relação a Deus, que é antes
de tudo PAI, e que assim quer ser invocado por todos os seus “filhos e
filhas”, por isso mesmo “irmãos e irmãs” entre nós?3
Deus como “Pai” no Antigo Testamento
Já no Antigo Testamento, a começar do profeta Oséias, temos
vários prenúncios desse “evangelho” da paternidade de Deus. Assim,
enquanto Amós anunciava a justiça punitiva de YHWH, justo juiz,
decidido a punir e “dar fim” a seu povo infiel (cf Am 8,1-2 e 9,1-4),
simultaneamente ou pouco depois, Oséias, no reino do Norte, embora
denunciando essa mesma infidelidade, apresentou a face misericordiosa
de YHWH, esposo fiel (Os 2,4-25) e verdadeiro pai do seu povo (Os
3
168
Interessante é o fato de que essa pergunta não é feita explicitamente, pelo que pude
ver, na grande obra de JUNGMANN, J.A., “Missarum Sollemnia”, afinal traduzida em
português e lançada pela Paulus, SP, no ano passado. A edição brasileira é tradução
da última edição do autor, em alemão, publicada em 1962, pouco antes do Concílio.
Na p. 374, a nota 25 começa assim: “Nas orações romanas jamais ocorre o título
explícito do Pai...” e cita um artigo de Karl RAHNER, numa revista alemã, em 1942,
sobre “ ‘Deus’ como Pessoa trinitária no Novo Testamento”.
Encontros Teológicos nº 56
Ano 25 / número 2 / 2010
Pe. Ney Brasil Pereira
11,1-4.8-9)4. Vale a pena citar, pelo menos parcialmente, essa última
passagem: “Israel era ainda criança, e eu já o amava: do Egito chamei
meu filho. Quanto mais, porém, os chamava, mais eles se afastavam de
mim... Fui eu, contudo, quem ensinei Efraim a andar, eu o tomei pelos
braços... eu era para eles como quem pega uma criança ao colo e a traz
junto ao rosto...”
Ecos desse Deus paterno de Oséias encontramos em Jeremias:
“Vós me chamareis ‘meu Pai’, e não vos afastareis de mim... (Jr 3,19)
Eu sou um Pai para Israel, e Efraim é meu primogênito... (Jr 31,9) Será
Efraim para mim um filho tão querido, que, cada vez que nele falo,
quero ainda lembrar-me dele? Por ele se comovem minhas entranhas,
por ele transborda minha ternura, oráculo de YHWH ” (Jr 31,20). Ecos,
ainda, de Oséias, no Deuteronômio: “No deserto viste que YHWH teu
Deus te levou, como um homem – um pai – leva seu filho...” (1,31); em
Dt 32,6b: “Não é ele teu Pai, teu Criador? Ele próprio te fez e te firmou!
” Também no Êxodo, na passagem em que aparece o embate entre dois
“pais”, na mensagem que Moisés deve levar ao Faraó: “Assim falou
YHWH: meu filho primogênito é Israel. E eu te disse: Faze partir o meu
filho, para que me preste culto! Mas, porque recusas deixá-lo partir, eu
farei perecer o teu filho primogênito” (Ex 4,22-23). Ecos, novamente, de
Oséias, no Terceiro Isaías: “Com efeito, tu és o nosso Pai... Tu, YHWH,
és nosso Pai e nosso Redentor: tal é o teu nome desde a eternidade” (Is
63,16). “No entanto, YHWH, tu és o nosso Pai; nós somos a argila e tu
és o nosso Oleiro...” (Is 64,7) No Sl 89,26, messiânico, o próprio Deus,
retomando a profecia de Natã (2Sm 7,14), anuncia que o descendente
de Davi o chamará de “Pai”: “Ele me invocará: Tu és meu Pai e meu
Rochedo salvador...”
No livro do Eclesiástico/Sirácida, impressiona a apóstrofe a Deus
como Pai, por duas vezes, no início do capítulo 23: “Senhor, Pai e Soberano da minha vida...” (v. 1) e “Senhor, Pai e Deus da minha vida...” (v.4).
Ambos os versículos, especialmente o primeiro, parecem o começo e o
fim da oração do Senhor Jesus: “Pai nosso... não nos deixes cair...” (Mt
6,9.13). Isto é, Ben Sirá antecipou-se a Nosso Senhor nesse modelo filial
de invocar a Deus, sendo o primeiro do qual saibamos que fez a transição
do conceito de paternidade coletiva (como encontramos em Os 11,1 e Is
4
Cf PEREIRA, Ney Brasil, “Os Profetas, nossos contemporâneos”, apostila , ITESC,
Florianópolis, 1997, cap. VII, “Oséias: a revelação de Deus como Esposo e Pai”,
pp. 28-30.
Encontros Teológicos nº 56
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169
A invocação de Deus na liturgia: “Deus todo-poderoso”? ou, antes, simplesmente, “Pai”?
1,2 e 63,16, em que YHWH é apresentado ou invocado como Pai do seu
povo) para a paternidade individual: Deus é o “meu” Pai, Pai e Soberano
“da minha vida”. Notar ainda que, no livro da Sabedoria, posterior ao
Sirácida, os “ímpios” criticam o “justo” porque tem a pretensão, segundo
eles, de invocar a Deus como Pai, numa notável antecipação da acusação
que os adversários de Jesus lhe fazem, especialmente no quarto evangelho: “...ele dizia ser Deus seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus” (Jo
5,18)5. Ainda no Sirácida, no salmo de agradecimento quase no final do
livro, novamente a invocação de Deus como Pai: “E proclamei: Tu és
meu Pai, meu poderoso Salvador...” (Eclo 51,106)
Conclusão
O tema merece, creio, estudo e debate. Excelente material para
uma boa pesquisa no Novo Testamento e, também, nos textos eucológicos da nossa liturgia. Fica a pergunta, que em mim não quer calar: Por
que, na liturgia, não invocamos nosso Deus como o Senhor Jesus o fez,
chamando-o simplesmente de “Pai”? Se a “lex orandi, lex credendi” e,
por isso mesmo, “lex agendi”7, quais as conseqüências, inevitáveis, dessa
maneira não jesuânica de invocar a Deus?
E-mail do Autor:
[email protected]
170
5
Cf PEREIRA, Ney Brasil, “Sirácida ou Eclesiástico”, da col. “Comentário Bíblico do
AntigoTestamento”, Petrópolis, 1992, coed. Vozes/Sinodal/Metodista, pp. 114-115.
6
Nas citações do Eclesiástico, devido à complexidade da tradição manuscrita, é sempre
necessário conferir o versículo: na Bíblia da CNBB, seguindo a Nova Vulgata, 51,10
é 51,14.
7
Traduzindo: “O modo (a norma) como se reza torna-se o modo como se crê” e, consequentemente, “o modo como se age”...
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“Costela”, ou “lado” de Adão, em Gn
2,21-22? Um texto de João Crisóstomo
Ney Brasil Pereira*
Introdução
Há certo tempo venho insistindo em que, apesar da tradução tradicional, o termo hebr. tselâ‘ em Gn 2,21-22 não significa “costela”, mas,
como a LXX interpretou, “costado”, ou seja, “lado”, em grego pleurá1.
É do “lado” de Adão, isto é, do “lado” tirado do homem, que “o Senhor
Deus formou a mulher e apresentou-a ao homem” (Gn 2,22). Esse “lado”,
“um dos lados”, Deus o havia tirado do homem profundamente adormecido, “fechando o lugar com carne” (cf Gn 2,21). O argumento que
mais me convenceu foi o fato de pleurá ser o termo que volta 4 vezes
no evangelho de João, exatamente para designar o “lado” do Cristo, o
novo Adão, de cujo “lado” perfurado pela lança do soldado, saiu sangue
e água (Jo 19,34), símbolos patrísticos da Eucaristia e da Igreja, a nova
Eva, formada do “lado” de Adão. É seu “lado” perfurado que o novo
Adão mostra aos discípulos, na tarde do domingo pascal (Jo 20,20), e
torna a mostrá-lo ao cético Tomé, que não queria crer “se não pusesse
a mão no seu lado” (Jo 20,25.27). O mesmo termo, pleurá, sempre sig*
O Autor, mestre em Ciências Bíblicas e membro da Pontifícia Comissão Bíblica, é
professor no ITESC, Instituto Teológico de Santa Catarina, Florianópolis, SC.
Praticamente em todas (!) as traduções e comentários dessa passagem, nas várias
línguas, não há a mínima referência ao termo empregado pelos LXX, que são, como
sabido, os primeiros tradutores do texto hebraico original. O próprio Jerônimo, na
Vulgata, nesta passagem traduz o hebr. tsela‘ pelo lat. costa (costela), sem levar
em conta a opção dos LXX.: pleurá, em lat. latus. A TEB, versão brasileira da TOB
(Loyola, SP, 1994), chega a afirmar, em nota, sem comprovar a afirmação: “Único caso
em que o termo hebr. tselâ‘ significa ‘costela’ e não ‘flanco’ ou ‘lado’, geralmente de
um edifício, de onde o verbo ‘construir’...” Por que esse é o “único caso”? No “Antigo
Testamento Poliglota”, da SBB, Ed. Vida Nova, SP, 2003), a nota crítica a Gn 2,21,
sem fazer referência à LXX, apresenta apenas, como tradução opcional: “took part
of the man’s side”.
1
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Ano 25 / número 2 / 2010, p. 171-175.
“Costela”, ou “lado” de Adão, em Gn 2,21-22? Um texto de João Crisóstomo
nificando “lado”, em alguns manuscritos2 aparece em Mt 27,49, e ainda
nos Atos dos Apóstolos, na cena em que o Anjo toca o “lado” de Pedro,
para despertá-lo (At 12,6)3.
O texto do Crisóstomo
Numa de suas catequeses4, o grande exegeta antioqueno, ao
comentar exatamente Jo 19,34, assim fala: “Queres compreender mais
profundamente o poder desse sangue? Repara de onde começou a correr
e de que fonte brotou. Começou a brotar da própria Cruz, e a sua origem foi o lado (gr. pleurá) do Senhor. Estando Jesus já morto e ainda
pregado na cruz, diz o evangelista, um soldado aproximou-se, feriu-lhe
o lado com a lança, e imediatamente saiu sangue e água: a água, como
símbolo do batismo; o sangue, como símbolo da eucaristia. O soldado,
traspassando-lhe o lado, abriu uma brecha na parede de templo santo5, e
eu, encontrando um enorme tesouro, alegro-me por ter achado riquezas
extraordinárias. Assim aconteceu com este Cordeiro. Os judeus mataram
um cordeiro, e eu recebi o fruto do sacrifício.
Do seu lado saiu sangue e água: Não quero, querido ouvinte, que
trates com superficialidade o segredo de tão grande mistério. Falta-me
ainda explicar-te outro significado místico e profundo. Eu disse que esta
água e este sangue são símbolos do batismo e da eucaristia. Ora, foi
destes sacramentos que nasceu a santa Igreja, pelo banho da regeneração
e pela renovação no Espírito Santo (cf Ef 5,26), isto é, pelo batismo e a
eucaristia que brotaram do lado de Cristo. Pois Cristo formou a Igreja
do seu lado traspassado, assim como do lado de Adão foi formada Eva,
sua esposa.
Por essa razão, a Sagrada Escritura, falando do primeiro homem,
usa a expressão osso dos meus ossos e carne da minha carne (Gn 2,23),
172
2
A inserção, claramente interpolada de Jo 19,34 (cf aparato crítico em NESTLE-ALAND,
Novum Testamentum Graece, Ed. 26ª), não se encontra no texto latino da Vulgata
nem, claro, no da Nova Vulgata.
3
Na Bíblia da CNBB, o tradutor preferiu “ombro” a “lado”, não sei por quê. Na Bíblia de
Jerusalém, na 4ª. impressão da “nova edição” (2006), a tradução está correta: “lado”.
Correta, igualmente, a tradução da Bíblia “Almeida Século XXI”.
4
CRISÓSTOMO, João, Cat. 3,15-19: “Sources Chrétiennes” 50,175-177, transcrito da
“Liturgia das Horas”, vol. II, p. 416, segunda Leitura do Ofício das Leituras da Sextafeira Santa (Ed. Vozes, Petrópolis, 1995).
5
É sabido que, para João, o novo Templo é o corpo do Senhor: Jo 2,19.
Encontros Teológicos nº 56
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Pe. Ney Brasil Pereira
que São Paulo6 refere, aludindo ao lado de Cristo. Pois assim como Deus
formou a mulher do lado do homem, também Cristo, do seu lado aberto,
nos deu a água e o sangue para que surgisse a Igreja. E assim como Deus
abriu o lado de Adão enquanto ele dormia, também Cristo nos deu a água
e o sangue durante o sono de sua morte”.
Outro texto, breve, mas não menos significativo, por equivaler ao
final do texto do Crisóstomo, é o do autor anônimo de “uma antiga homilia
no grande Sábado Santo”7. Entre as palavras dirigidas pelo Ressuscitado
a Adão, no mundo dos mortos, o autor formula as seguintes: “Adormeci
na cruz e, por tua causa, a lança penetrou no meu lado, como Eva surgiu
do teu, ao adormeceres no paraíso. Meu lado curou a dor do teu lado.
Meu sono vai arrancar-te do sono da morte. Minha lança deteve a lança
que estava dirigida contra ti”.
Outros indícios
Creio que valeria a pena uma pesquisa mais completa, que não é
meu objetivo aqui. Gostaria apenas de ressaltar que essa aproximação
entre a pleurá de Gn 2,21 e a de Jo 19,34, praticamente não é mencionada
pelos comentaristas. Não a vi em Schöckel, na “Bíblia do Peregrino”;
não a vi em Konings, nem em Léon-Dufour, nos seus Comentários a
João; não a vi em Westermann, no seu grande comentário do Gênesis8
etc. Mateos e Barreto, porém, no seu comentário a Jo 19,34, escrevem,
sucinta mas acertadamente: “A descrição da morte de Jesus como sono
(Jo 19,30), e o uso do termo pleurá (lado), relacionam essa passagem
com a da criação da mulher em Gn 2,21-22: ‘Então JHWH fez cair um
torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou um de seus lados (LXX:
mían tôn pleurôn autou)... e do lado... modelou a mulher’... A primeira
mulher era carne da carne de Adão e osso dos seus ossos (Gn 2,23); a
nova esposa do Homem é espírito do Espírito de Jesus...”9. Brown, numa
das notas explicativas a Jo 19,34, diz, de passagem, sem dar o devido
6
A que texto de Paulo o Crisóstomo alude? a 1Cor 11,8-9? ou a Ef 5,25-32? Quanto ao
“osso dos meus ossos, carne da minha carne”, não tem nada a ver com “costela”, mas,
segundo Gn 29,14; Jz 9,2; 2Sm 5,1, é simples expressão de parentesco próximo.
7
Tradução em português na “Liturgia das Horas”, vol. II, no Ofício das Leituras do
Sábado Santo, p. 438. Original grego do séc. IV, em PG 43,451
8
WESTERMANN, Claus, “Genesis 1-11, a Commentary”, SPCK, Londres, 1984, p. 230
9
J.MATEOS-J.BARRETO, “O Evangelho de São João”, Grande Comentário Bíblico,
Paulus, SP, 1989 (trad.), pp. 796-797.
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“Costela”, ou “lado” de Adão, em Gn 2,21-22? Um texto de João Crisóstomo
relevo à referência: “Some, including Feuillet10, have suggested that John
is recalling the use (singular) in Gn 2,21-22 where God takes a pleurá
from Adam and forms it into a woman”11.
Ainda quanto à “costela” em Gn 2,21, encontrei a nota seguinte, de Derek Kidner, no seu breve comentário do Gênesis12: “Tem-se
chamado a atenção para a conexão entre uma costela e a criação de
uma mulher na estória sumeriana de Enki, para cuja cura foi formada
Nin-ti. Este nome pode significar tanto ‘dama da costela’ como ‘dama
que faz viver’13. Mas, fora os dois temas da costela e da produção da
vida, verbalmente ligados na narrativa suméria, não na hebraica, as
narrativas têm pouca coisa em comum. Enki era um deus que havia
causado em si mesmo oito doenças, e Nin-ti era uma das oito deusas
criadas para curar as oito partes enfermas (no caso, sua costela)...” O
que tenha isso a ver com a narrativa J, não parece fácil demonstrá-lo.
Já Russell N. Champlin refere algo semelhante e afirma: “Os paralelos entre Eva e Nin-ti, tanto no tocante à definição de nomes, como
no que concerne às funções, são por demais evidentes para negarmos
qualquer conexão entre elas”14. O mesmo Champlin15, porém, ao comentar Jo 19,34, registra de passagem a opinião de Wordsworth16, o
qual, “seguindo antigos Pais da Igreja, comenta que, assim como Eva
foi extraída do lado do dormente Adão, assim também a Igreja e os
sacramentos da Eucaristia (sangue) e do Batismo (água) emanaram do
lado transpassado do Senhor Jesus.”
10
11
174
FEUILLET, A., “Le Nouveau Testament et le Coeur du Christ”, in “L’Ami du Clergé”
74 (may 21, 1964), pp. 321-333, especialmente pp. 327-333 sobre Jo 19,34, cit. por
BROWN, Raymond, The Gospel according to John XIII-XXI, Doubleday, New York,
1970, p. 961.
BROWN, Raymond, op. cit., p. 935.
12
KIDNER, Derek, “Gênesis. Introdução e Comentário”, Ed. Mundo Cristão, Série Cultura
Bíblica, SP, 1985 (tradução, 3ª edição), p. 62
13
Aqui, KIDNER cita: S.N.KRAMER, History begins at Sumer (Thames and Hudson,
1958), p.. 194-196, e D.J. WISEMAN, “Illustrations from Biblical Archaeology”, Tyndale
press, 1958.
14
CHAMPLIN, Russell Norman, “O Antigo Testamento interpretado versículo por versículo”, Ed. Candeia, SP, 2000, vol. I, p. 38.
15
Id., “O Novo Testamento interpretado versículo por versículo”, Ed. Milenium, SP, 1979,
vol. II, p. 624.
16
Infelizmente, Champlin não dá mais detalhes sobre Wordsworth. Seria Charles
Wordsworth, cuja obra, “The Greek Testament”, de 1875, é citada na bibliografia do
comentário ao AT (cf nota anterior)?
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Pe. Ney Brasil Pereira
Por fim, entre esses “indícios”, não posso deixar de citar um artigo
do Pe. Caetano Minette de Tillesse, propondo, já em 198617, a substituição do termo “costela”, em Gn 2,21, por “lado” ou, como ele preferia,
“banda”. Infelizmente, apesar da pertinente argumentação do autor, o
artigo não teve a ressonância que merecia.
Conclusão
O assunto merece, por sinal, um exame detalhado da questão, uma
monografia, ou mesmo uma tese. O fato é que, apenas considerando a
argumentação sintética feita acima, especialmente o peso do texto de São
João Crisóstomo, não me parece mais possível continuarmos falando da
“costela” de Adão, em Gn 2,21, e sim do seu “lado”, como Jo 19,34 fala
do “lado” do Senhor.
17
MINETTE DE TILLESSE, Caetano, in “Revista de Cultura Bíblica”, Loyola, SP, nn.
39-40, 1986, pp. 29-37, artigo depois publicado na “Revista Bíblica Brasileira”, ano
8, 1991, pp. 255-264. No momento, não me consta o título do artigo, o qual, porém,
retrabalhado e com o título de “Matrimônio e Aliança”, foi republicado na mesma
RBB, ano 12, 1995, pp. 439-449, em um número dedicado à “Teologia Narrativa da
Bíblia”.
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Recensões
ANDRADE, Barbara, Pecado original... ou graça do perdão?
São Paulo: Paulus, 2007 (trad.), 220 p.
Wellington Cristiano da Silva*
O livro “Pecado original... ou graça do perdão?” é fruto de conferências realizadas na Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt
Georgen, em Frankfurt, Alemanha, em julho de 2001, no curso de Teologia da Criação, e das contribuições inovadoras de Barbara Andrade.
A autora, Barbara Andrade, estudou Filosofia em Heidelberg, Filosofia e Literatura em Nova Iorque e Teologia no México. Doutorou-se em
Teologia Sistemática na referida Philosophisch-Theologische Hochschule
Sankt Georgen, em Frankfurt. Dentre suas obras, destacam-se: Dios en
medio de nosotros. Esbozo de una teología trinitária Kerygmática (1999)
e Pecado original... ou graça do perdão? (2002).
“Pecado original... ou graça do perdão?” foi publicado primeiramente em alemão, em outubro de 2002, na página Web de Sankt
Georgen, com o título “Erbsünde” – oder Vergebung aus Gnade? Apareceu em 2003 em Books on Demand GmbH. E em 2004 foi publicada
a tradução espanhola – “Pecado original” ¿O gracia del perdón? – pelo
Secretariado Trinitario. A tradução para o português, editada em 2007, é
de responsabilidade de Maria Paula Rodrigues.
Este ensaio, de 220 páginas, possui um estilo argumentativo e
expositivo, com uma linguagem científica e bastante densa, direcionado
aos crentes, de modo particular aos teólogos. Está estruturado em seis
capítulos centrais, que abordam sistematicamente: algumas reflexões
hermenêuticas prévias sobre o pecado original, a graça e a experiência
da fé (I); a experiência da graça; e algumas considerações antropológicas – um novo conceito de pessoa (II); o querigma: perdão e conversão
no encontro com Deus (III); a herança de Agostinho ou a inversão do
testemunho bíblico (IV); a busca de uma nova compreensão: a doutrina
do pecado original pode ser, ao mesmo tempo, dogma e incompreensível?
* O recensor é bacharelando do 2º ano de Teologia do ITESC.
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Recensões
(V); e a experiência do perdão – na qual tornamo-nos novos no encontro
com Deus (VI). A obra apresenta ainda um prólogo e nota introdutória.
É possível continuar falando de pecado original? Tendo a consciência da problemática apresentada pelo tema a partir de uma visão
tradicional de um pecado hereditário – tão questionável hoje e de pouca
aceitação – e sendo fiel ao ensinamento da Igreja, a obra busca ser um
ensaio de antropologia teológica em perspectiva trinitária. Segundo a
autora, a questão do pecado e, especificamente, do pecado original, deve
ser tratada a partir da graça do perdão. A pergunta por um pecado original, mesmo estando um tanto afastada de nossas inquietações, continua
sendo levantada ao menos teoricamente, por estar ligada a uma afirmação
de fé. A questão atual do pecado original se volta para a culpa pessoal
e a responsabilidade. A teóloga busca esboçar ainda um novo conceito
de pessoa, com ênfase na dimensão comunitária antes da individual e a
experiência de fé fundamental: a de sermos acolhidos dentro do amor
trinitário.
No primeiro capítulo, a autora afirma que, tradicionalmente, a
doutrina do pecado original é estudada isoladamente ou no contexto da
Teologia da Graça. Abordada isoladamente, pode levar a um pessimismo
antropológico, enfatizando a debilidade da “natureza” humana. Na doutrina da graça, costuma-se partir primeiro do pecado original: acentua-se
demasiadamente o pecado original, enquanto a graça é apresentada como
reflexo do pecado. Partindo do pressuposto de que, na fé, a criação é
símbolo de nossa comunhão com Deus na comunhão entre nós, e símbolo
também para sua própria cura, a doutrina do pecado original poderia ter
seu lugar dentro da Teologia da Criação; pertencendo, simultaneamente,
à doutrina da graça, enquanto autocomunicação de Deus. Assim, a doutrina do pecado original estaria intrinsecamente relacionada com a cura
e com a comunhão com Deus, que experimentamos através de nossos
encontros interpessoais.
O ponto de partida da reflexão é a experiência de fé, entendida
como “um acontecimento no qual se experimenta Deus, na dimensão
pessoal e comunitária, como aquele que perdoa continuamente, e isso
de tal maneira que os homens se reconhecem a si mesmos como pecadores perdoados” (p. 20). A fé conhece a Deus como aquele que perdoa.
Do perdão de Deus, origem da experiência de fé, nasce a conversão.
Pela experiência de fé, experimentamos que no Espírito Santo fomos
adentrados no amor entre o Pai e o Filho, e que nos foi dado o perdão
178
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(abraço trinitário). A graça de Deus vem por primeiro; o reconhecimento
do pecado é posterior ao perdão e é provocado pelo perdão. Partindo
da experiência da graça do perdão, o acesso ao pecado se dá de forma
indireta, ou seja, o pecado se coloca desde o princípio num contexto de
graça. Começar pelo pecado é, ao contrário, conduzir a humanidade à
desesperança.
A experiência de fé pertence a uma linguagem narrativa de processos vivos, de testemunho do que foi experimentado e comunicação do
testemunho. O Primeiro e o Novo Testamento são o testemunho narrativo
de diversas experiências de fé. Narram e testemunham que Deus encontrou aqueles que compartilharam sua narrativa e lhes perdoou; que só no
perdão perceberam sua própria realidade de pecado. Esta experiência os
fez entender que Deus é Aquele que perdoa, e que seu perdão capacitouos para a conversão e para a comunhão uns com os outros.
No segundo capítulo, Barbara Andrade constata que, no decorrer
dos séculos da era cristã, a doutrina sobre a graça seguiu um rumo com
muitas dificuldades, fruto de três grandes problemas: o “esquecimento”
da Trindade de Deus; a compreensão do ser humano e de Deus como
substância/sujeito (por analogia); e a compreensão das “liberdades”
humana (entendida como liberdade de escolha) e divina que, segundo
o pensamento tradicional, estão em contradição mútua. Todavia, na
atual Teologia da Graça, enfatiza-se a perspectiva trinitária e se parte
da autocomunicação do Deus Trino; a graça passa a ser entendida como
um acontecimento relacional entre Deus e o ser humano, incluindo a
dimensão social da existência humana e a esperança escatológica.
A autora procura introduzir em sua reflexão um novo conceito de
pessoa: pessoa entendida como autopresença-em-relação. Esse conceito
inovador integra-se a uma ontologia relacional, em que se compreende
que a substância é constituída pela relação, que antecede à própria substância. A pessoa, por estar inserida numa rede de relações, provém das
suas próprias relações. Para a pessoa, a referência a Deus tem a forma da
referência aos outros e do provir de outros. Entretanto, nossa referência a
outros e nosso provir de outros não são totais. Por isso, não somos simples
produtos de nossa sociedade ou de nossas relações. O conceito de pessoa
relacional e inclusivo nos ajuda a explicar a graça como um encontro
renovador e libertador com Deus, e nos leva a entender o pecado – e o
pecado original – como o fato que nos faz culpavelmente envolvidos na
marginalização, na exclusão e na violência.
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Recensões
Na autopresença, enquanto pergunta por sua própria identidade, o
“tu” concreto de um encontro nos dá identidade. Nossa identidade está
relacionada com a imagem que os outros formam de nós. As diversas
identidades parciais que nos chegam da parte dos outros e de nossa cultura
são respostas que se transformam na identidade de nossa autopresença,
se as convertemos numa nova pergunta (pergunta transcendental). As
perguntas possibilitam o processo de apropriação no qual acolhemos,
corrigimos ou rejeitamos as propostas de identidade. Destarte, nossa
autopresença vai sendo preenchida, na história, com nossos encontros,
experiências e acontecimentos. Através da apropriação de propostas de
identidade nos tornamos essa autopresença concreta. Nesse contexto, a
liberdade se apresenta sob duplo aspecto: por um lado, nosso perguntar
transcendental é livre: apropriamo-nos livremente das identidades que
se nos oferecem como doação. Por outro lado, o dom da identidade nos
liberta para a tarefa que nos corresponde como autopresença. Ambos os
aspectos fazem parte do processo de libertação da autopresença. Não se
trata simplesmente de uma liberdade de escolha, pois não escolhemos
uma identidade, mas desenvolvemo-la; não somos livres, mas nos encontros com os outros nos tornamos livres.
As propostas de identidade provêm de um encontro eu-tu, que
é distinto dos encontros transitórios ou impróprios. O encontro eu-tu é
único e diferente de todos os outros; envolve uma aceitação mútua e uma
doação imprevisível; e por isso, é considerado um encontro “criador”,
pois o encontro com o tu “cria” um eu novo. Da relação eu-tu surge um
nós: um nós social, ou um nós distante dos condicionamentos sociais,
ou ainda um nós mais profundo, fruto de uma comunhão fraterna e
solidária.
A comunhão com Deus dá-se na forma de perdão. A cruz e ressurreição são o acontecimento central do perdão. A experiência do perdão é
sinônimo de conversão; e conversão significa sermos adentrados na cruz
e ressurreição. Esse adentramento é a própria graça, é abraço trinitário.
No encontro com Deus nos é doada a identidade de pecadores perdoados.
Dessa identidade surge a tarefa de agirmos de acordo com nossa nova
identidade em nossos encontros uns com os outros.
Num terceiro momento, este ensaio deixa claro que toda experiência de fé é um encontro com Deus; com o Deus que caminhou com
Israel; com o Deus que em Jesus Cristo quis salvar o ser humano de sua
história cheia de desgraças. O caminho da aliança é o caminho de YHWH.
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Recensões
Deus quer ser acompanhado por seu povo. Na história de Israel, o povo
desvia-se do caminho, caindo na idolatria e na infidelidade à aliança. No
entanto, Israel, a partir do encontro com YHWH– na superabundância do
amor, da graça e do perdão de YHWH – reconhece seu pecado, confessa
sua culpa. Esses são sinais de sua conversão. Nessa perspectiva, o sentido
fundamental de culpa e pecado é exatamente o desviar-se do caminho.
Somente na ação libertadora de YHWH e em seu perdão antecipado
reconhece Israel sua culpa, o seu pecado.
No âmbito do pecado original insere-se também a narrativa da
“queda” de Gênesis 3. Lohfink vê no texto uma “narrativa de antepassado”
em que, quando se buscava explicar uma característica de todo o grupo
e de cada membro desse grupo, atribuía-se tal característica ao antepassado. Nesse sentido, a realidade de pecado apresentada vale para todos
os seres humanos sem exceção. Contudo, não podemos considerar um
antepassado como real, ou postular um acontecimento real no princípio
da história da humanidade. Se se opta pela “narrativa do antepassado”,
renuncia-se à pergunta pela origem, em sentido casual, do pecado. Por
outro lado, se o pecado original for entendido como hereditário, só poderá
partir de uma etiologia entendida no sentido acidental e não explicada. A
alternativa resultante será ocupar-se pela questão de como esse pecado
pode passar do primeiro casal a seus descendentes.
Na compreensão veterotestamentária, o pecado é pecado “do
mundo”, na medida em que influi na realidade de todos. Refere-se a uma
universalidade do pecado relacionada com violência, injustiça, desconfiança. No ambiente neotestamentário não encontramos explicitamente a
expressão pecado original. No entanto, São Paulo, na carta aos Romanos
(5,12-21), fala da unidade de todos os seres humanos: todos pecaram
“em Adão”; todos são salvos “por Cristo”. A graça doada por Cristo, que
aponta para a cruz, transborda em todos de forma inconcebivelmente
abundante. Paulo também conhece um pecado do mundo, porém em
Cristo este já começou a ser vencido, na forma de uma nova criação e,
por isso, cada crente é de antemão um pecador perdoado.
Na perspectiva tradicional, como nos apresenta o quarto capítulo,
destaca-se Agostinho, o mestre da graça. Sem embargo, é com ele que
surge uma falha na história da Teologia. Por não dominar o grego, Agostinho insere, em correspondência com a versão latina de Rm 5 que tem
diante de si, no versículo 12, peccatum, isto é, pecado, como sujeito do
verbo transiit (passou a). Portanto, não é a morte a que passa de Adão
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a todos os seres humanos, como na versão original, e sim o pecado. Há
outro erro de tradução: Agostinho lê o in quo do versículo 12 não como
porquanto ou porque, e sim como um relativo, no qual ou pelo qual, e
o refere a Adão. Logo obtém a versão: “Assim o pecado passou a todos
os homens por meio de Adão, no qual todos pecaram”. Entende-se que
esse provir de Adão se dá por meio da procriação. Esta, porém, se dá no
desejo sexual e na paixão, o que nos leva à concupiscência ou impulso
sexual. Agostinho vê na concupiscência o elemento inseparável do pecado
original e a condena como a lei do pecado, nascida junto com a criança.
A concupiscência é sinal de uma natureza debilitada, que, por sua vez,
precede à liberdade. O pecado original resulta na perda da submissão do
corpo à alma. Dessa maneira, a liberdade se converte em ponto de partida
do pecado, por sofrer aqueles impulsos cuja força não pode controlar.
Apesar dos exageros de Agostinho, devem-se destacar duas linhas
importantes: o pecado de origem é realmente universal e só pode ser
quitado pela graça de Cristo; e se trata de um pecado ao qual cada um
está submetido pela procriação na sucessão geracional. Agostinho não
abandona o privilégio da graça, porém, deu uma ênfase exagerada ao
pecado, o que levou ao paralelismo entre pecado e graça. Ele engrandeceu
o pecado e se olvidou da superabundância da graça.
A recepção da reflexão agostiniana já é visível nos cânones de
Cartago e no segundo Sínodo de Orange, e se mantém durante a Idade
Média. Lutero, por sua vez, destaca a justificação e a natureza corrompida
da pessoa humana, referindo-se a uma auto-experiência do crente diante
de Deus, diferente de seus adversários, que compreendem a expressão
como constituição ontológica da pessoa. Para o reformador, não há diferença entre a concupiscência, o pecado pessoal e o pecado original; a
concupiscência não é eliminada pelo batismo, pois o batizado continua
pecando. Diversamente de Lutero, Trento não identifica a concupiscência
como pecado original, mas como inclinação para o mal. O pecado original
é uma realidade concernente a todos. Trata-se de uma mesma realidade
em e para todos. Por isso, não deve ser confundido com os pecados
pessoais. Não obstante, Trento aborda o pecado original isoladamente
e, assim sendo, este vem primeiro.
Nos textos do Concílio Vaticano II, o pecado original é mencionado apenas duas vezes. Ambas as vezes se trata da dignidade da pessoa,
e da ordem social a ela orientada. A grande novidade consiste em ter
feito recair o acento na comunhão criada pela graça, e na destruição da
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comunhão pelo pecado. O Vaticano II enfatiza, assim, a dimensão social
do pecado.
Na recepção da doutrina agostiniana foram recebidos também seu
pessimismo antropológico e seu vocabulário. Com isso, teve-se a inversão
da experiência de fé atestada no querigma: parte-se do pecado, não da
graça. Devido a essa inversão, a teologia do pecado precederá a teologia
da graça: pecado e graça são postos em paralelo. Contudo, há uma clara
distinção entre as elaborações teológicas e os documentos doutrinais da
Igreja. Nestes, o privilégio da graça foi mantido ininterruptamente, ainda
que se tenha perdido a superabundância da graça.
O quinto capítulo trata sobre a busca de uma nova compreensão
da doutrina do pecado original. De fato, atualmente, há uma variedade de ensaios de explicação do pecado original. Destacam-se, dentre
eles: a solidariedade no pecado de Schoonenberg; o modelo teológico
transcendental de Rahner; o modelo teológico existencial protestante;
o modelo evolucionista; a explicação psicanalítica de Drewermann; o
modelo de explicação que parte das estruturas do pecado (modelo presente na América Latina); e a explicação de James Alison, que segue a
teoria mimética de René Girard. Esses ensaios trazem elementos novos:
atenção às conseqüências sociais do pecado; distanciamento de um
quadro puramente moral; reflexão sobre uma sociedade pecaminosa
e suas estruturas; certa ampliação do conceito de liberdade, incluindo
também o de responsabilidade. Na maioria dos ensaios não há problema
na compreensão do pecado original como uma realidade universal. A
grande problemática está na antropologia tradicional, no que se refere
à dificuldade de explicar a liberdade humana, de esclarecer o caráter
de culpa e da ausência de uma explicação convincente da comunhão
humana. Percebe-se que, do vocabulário tradicional, ficou o conceito de
liberdade. O conceito de concupiscência desaparece em grande medida;
em seu lugar se fala de todos estarmos envolvidos na culpa. Preservou-se
o discurso sobre uma liberdade debilitada; em muitos casos continua-se
mantendo o paralelismo entre pecado e graça.
No último capítulo, a partir das reflexões sobre a experiência de
graça e sobre o conceito de pessoa como auto-presença-em-relação,
Barbara Andrade conclui que é preciso, desde o interior da experiência
de fé, corrigir o pessimismo antropológico tradicional, voltando-se para
o conceito relacional de pessoa e aplicar esse conceito ao pecado original
e ao pecado pessoal.
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Vivemos em sociedades que nos fazem experimentar situações de
desgraça. Isso é exatamente o chamado “pecado do mundo”, uma realidade que impede a formação da comunhão. As sociedades estão marcadas
pela exclusão violenta e pela injustiça, legitimadas como algo ‘natural’,
e submetidas ao princípio do encobrimento. Em nossos encontros, apropriamo-nos das identidades socialmente aceitáveis e precondicionadas.
Questionamos as diferentes identidades, e ao questionamento se associa
a culpa, pois o modo concreto de apropriação de uma identidade é em si
mesmo culpado. Do campo dos dons sociais de identidade, apropriamonos daqueles que correspondem à autopresença concreta que já nos tornamos. É contudo culpável questionarmos determinadas coisas e outras
não. Acabamos perpetuando as identidades e os padrões de conduta não
questionados e os legitimamos tacitamente, perpetuando o encobrimento. Aquilo que se apropria na sociedade se converte no motor das ações
pessoais. A apropriação e a criação de estruturas violentas, bem como seu
encobrimento posterior, encontram-se, em germe, na própria estrutura da
autopresença-em-relação. Todavia, a culpa é apenas possível. Não se trata
de uma natureza corrompida. Isso elimina o pessimismo antropológico.
Todo pecado é social e pessoal, pois procede de um nexo social e é apropriação pessoal de estruturas sociais excludentes.
Somos responsáveis pelo questionamento transcendental, e também quando não questionamos as identidades doadas. Somos livres para
nos apropriarmos de nossa identidade e para nossa tarefa de nos libertarmos uns aos outros. Ao existir libertação de nossa situação concreta,
podemos dizer que nos tornamos culpados. O “pecado do mundo” não
nos é exterior, e sim interior por meio da apropriação. É possível falar
de um “pecado do mundo” apropriado, que pode ser identificado com
o pecado original. Esse pecado, pela apropriação, é pecado em sentido
próprio e também pecado pessoal. Aquilo que é designado como pecado
original é, em sentido antropológico, o “pecado do mundo” apropriado.
O pecado está sempre encoberto e subtraído à nossa identificação, pois
é legitimado pelas leis e padrões de conduta sociais.
Para eliminar o paralelismo tradicional entre graça e pecado, devese buscar enfatizar a superabundância da graça. Na fé experimentamos ser
adentrados na comunhão do Deus triúno. Na libertação no Espírito, que
rompe com o processo de encobrimento, reconhecemos Jesus como alguém
que pereceu na cruz e a quem seu Pai, na ressurreição, converteu em Senhor.
Cristo liberta-nos, no encontro com Ele, para a tarefa de fazer visível a misericórdia do Pai. Somos chamados a nos apropriar dessa identidade recebida
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de Cristo e de transformá-la em nossa real tarefa. A nova criação encontra
sua expressão no fato de sermos integrados no serviço da reconciliação. Com
essa nova identidade apropriada, habitamos no abraço trinitário. A identidade
criada no encontro com Deus é renovação e conversão. Também precisamos
questionar essa identidade, para podermos apropriá-la. No entanto, nesse
questionamento não há rompimento. Percebe-se aqui claramente a superabundância da graça: o amor com que se perdoa é o amor entre o Pai e o Filho,
que é o Espírito; o pecado é apenas nossa própria invenção destruidora. No
encontro com Deus somos curados, pois já não precisamos nos envergonhar
de nosso pecado e, assim, já não precisamos escondê-lo. O pecado é visto
somente no contexto de seu perdão. Não há uma solidariedade no pecado,
mas uma solidariedade no perdão. O acontecimento da experiência de fé
tem caráter de promessa: orienta-nos para o futuro definitivo, em comunhão,
no abraço trinitário.
No encontro com Deus experimentamos, na fé, um perdão que
revela nossos pecados e que nos liberta e capacita para o encontro com
os outros. A superabundância do amor trinitário cria a comunhão entre
nós. “Não é possível cair fora do ‘abraço’ trinitário, porque já fomos
criados dentro dele – exatamente por isso na fé não podemos pensar no
inferno” (p.208). É necessário que possamos nos perdoar mutuamente e
entre todos, incondicionalmente e com perdão antecipado.
Partindo das reflexões de Barbara Andrade, situamos a problemática da doutrina do pecado original no contexto histórico atual. Vivemos
hoje num novo paradigma, no qual os conceitos são muito diversos, mas
ocupam lugar indispensável no sistema de comunicação. Cada sistema
de comunicação possui um campo semântico correspondente. O novo
campo semântico abarca a dimensão antropológica do drama existencial,
numa descrição da realidade que sofre com violência, com guerras, fome,
solidão, angústia, desespero. Diante desse novo paradigma, a teologia do
pecado original tem o desafio de permanecer razoável perante tamanha
complexidade. O conceito de pessoa enquanto autopresença-em-relação
possibilita um diálogo teológico mais plausível com o homem e a mulher
contemporâneos. A pessoa passa a ser vista a partir de suas relações,
assumindo uma identidade, fruto do encontro com o outro. Trata-se de
uma antropologia mais existencial, personalista e encarnada.
Dado um novo sentido antropológico, o pecado assume nova dinamicidade: ele não é mais visto como ponto de partida, mas sim a graça (a visão
hamartiocêntrica é superada pelo otimismo da graça antecipada). Há um
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“pecado original”, porém há também uma “graça original” superabundante
que antecede e ultrapassa demasiadamente a realidade do pecado. Há uma
unidade de todos no pecado de Adão (pecado universal), que se perpetua
pela apropriação do chamado “pecado do mundo”, mas há também uma
unidade de todos na graça de Cristo (graça universal). Com essa virada
hermenêutica, supera-se o forte pessimismo e dualismo que persistiram
no decorrer da reflexão teológica sobre o pecado original. Tem-se uma
reviravolta histórica: com a nova criação em Cristo, a superabundância
da graça não só antecede plenamente o pecado, mas nos faz experimentar
a misericórdia de Deus na expressão amorosa do abraço trinitário. É essa
experiência que nos faz reconhecer o pecado, e nos impulsiona para uma
conversão a partir do encontro com a graça santificante de Deus.
A grande questão que depreende desse ensaio é a problemática da
salvação e da condenação. Já que todos os seres se encontram num nó
de relações, como se justificaria uma condenação eterna, admitida uma
interdependência de comunhão entre todos? Como poderíamos nos desprender das relações que fundamentam nossa identidade? A autora não
chega a tratar propriamente dessa questão, e todavia compromete, em certo
ponto, a possibilidade de uma condenação eterna (leva-nos a pensar numa
impossibilidade do inferno). Não obstante, mesmo que haja uma interdependência entre os humanos, a liberdade pessoal pode levar-nos a romper
o diálogo concreto. A “relação” continua num afastamento proveniente da
vontade pessoal de isolar-se, de fechar-se em si mesmo, de não querer estar
inserido numa comunhão com todos (egoísmo absoluto). Por conseguinte,
a possibilidade do inferno faz parte dessa complexa liberdade humana.
A autora nos ajuda a esclarecer termos tão distorcidos ao longo da
história do cristianismo. Ela realiza um verdadeiro resgate da concepção
primeira de pecado: “pecado do mundo”. Este só tem sentido quando fazemos a experiência querigmática de um Deus que nos faz sentir pessoas
perdoadas, capazes de, pela experiência da graça do perdão, constituir
autênticas conversões nas relações entre-nós.
Endereço do Recensor:
Seminário Teológico Convívio Emaús
Rua Dep. Antonio Edu Vieira, 1690,
Cx postal 5084
CEP 88040-970 Florianópolis, SC
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Crônicas
Dom Jacinto Inácio Flach
Cujo lema episcopal é “Anuncio-vos a misericórdia do Senhor”, foi
nomeado, pelo Papa Bento XVI, bispo da diocese de Criciuma – SC no dia
16 de setembro de 2009 e já no dia 13 de novembro do mesmo ano tomou
posse da diocese com grande participação do clero e do povo da diocese
local e da região de Guaíba, como também dos seus familiares.
Dom Jacinto Inácio Flach, natural do município de Bom Princípio
(RS), nasceu no dia 26 de fevereiro de 1952. Seus estudos primários
foram feitos em sua cidade natal, e os secundários na cidade de Viamão,
ingressando no Seminário Maior Nossa Senhora da Conceição em Viamão, onde estudou Filosofia. Estudou Teologia no Instituto Teológico
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Foi ordenado
sacerdote no dia 07 de maio de 1988 e iniciou suas atividades naquele
ano até 1989, como vigário paroquial na Paróquia de Santo Antônio, em
Estrela. Nos anos de 1995 a 1997 frequentou, em Roma, o Pontifício
Instituto de Espiritualidade Teresianum, conseguindo a licença em Espiritualidade. De 1990 a 1995 e, de 1997 até 2003, foi professor e diretor
espiritual no Seminário Maior de Viamão. De 1991 até 2003 foi vigário
na Paróquia Nossa Senhora da Conceição, também em Viamão. No dia 12
de novembro de 2003, o Papa João Paulo II nomeou Dom Jacinto como
bispo auxiliar de Porto Alegre, com o título Gummi di Proconsolare. No
dia 5 de fevereiro de 2004, foi ordenado bispo em sua cidade natal. No
dia 20 de fevereiro de 2004 assumiu a função de Vigário Episcopal do
Vicariato de Guaíba, na Arquidiocese de Porto Alegre onde permaneceu
até sua nomeação para a diocese de Criciuma.
Brasão Episcopal: O Brasão Episcopal é um emblema tradicionalmente utilizado pela Igreja Católica, para identificar as características pessoais do modo de evangelizar de cada bispo.
O Brasão de Dom Jacinto é composto de:
– Chapéu Prelatício, com três fileiras de Borlas: significa a missão
episcopal.
– Cruz Missioneira: sinal de salvação e esperança, lembra a
evangelização.
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Crônicas
– Escudo, dividido em três campos: azul, amarelo e vermelho. O
azul – a cor e a letra “M” lembram Maria, Mãe de misericórdia;
o coração representa o amor misericordioso de Deus. O amarelo – a cor representa a riqueza espiritual; o ramo de oliveira
a paz e a esperança; riquezas de um povo. O vermelho: lembra
o amor misericordioso de Deus; o cajado do pastor representa
a missão de apascentar o rebanho do Senhor; o anel simboliza
a fidelidade com a Igreja de Cristo, e a dignidade do Filho
Pródigo, que volta à casa do Pai.
Tomada de Posse de Dom Irineu Andreassa como bispo diocesano de Lages
No domingo do dia 28 de fevereiro de 2010, às 10 horas, Dom
Irineu Andreassa tomou posse na Diocese de Lages, em cerimônia realizada na Catedral Diocesana. O novo bispo foi recepcionado no átrio da
catedral pelo bispo emérito Dom Oneres Marchiori e acolhido por toda
comunidade diocesana reunida.
Ao iniciar a Santa Missa, leu-se a Bula Papal que nomeia Dom
Irineu titular da diocese. Pe. José Roberto Moreira, coordenador de pastoral, em nome do clero, entregou uma cruz peitoral esculpida em um
nó de pinho, esse gesto foi acompanhado com um poema que descrevia
as expectativas do povo serrano com seu novo bispo. Em seguida, o
Arcebispo Metropolitano Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger e Dom
Oneres Marchiori entregaram-lhe o báculo pastoral, símbolo do serviço
confiado ao pastor para cuidar, defender e orientar seu rebanho, o povo
de Deus. Na continuidade, o novo bispo sentou-se na cátedra, símbolo
do serviço atento e fiel de pastor que ensina, segundo o modelo de Jesus
Cristo o Mestre dos mestres que ensina o Caminho a Verdade e a Vida. O
rito de posse foi enriquecido com o gesto de saudação e acolhida do clero
e seguido pela benção ao povo pelos corredores da Igreja Catedral.
Dom Irineu presidiu a Santa Missa que foi concelebrada pelos
bispos do Regional Sul IV, pelos padres da diocese e padres das diversas
dioceses do estado e de São Paulo e contou com a presença das diversas
autoridades políticas.
A celebração transcorreu conforme o costume. Durante a homilia,
Dom Irineu dirigiu-se aos presentes, lembrando de sua missão: “venho
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Crônicas
como pai, pastor e amigo. Meu desejo é de junto com vocês, ‘Fazer o
Amor ser amado’”.
Ao final da cerimônia, tomaram a palavra Dom Murilo Krieger,
Pe. Arnildo Longh Primon, em nome do presbitério, e o governador do
Estado Luiz Henrique da Silveira.
Pe. José Roberto Moreira, leu a Ata de Posse e em seguida, invocando a Padroeira Nossa Senhora dos Prazeres deu-se a benção final.
Dom Irineu, é o quarto bispo da Diocese de Lages que foi criada
em 17 de janeiro de 1927. Hoje, a diocese conta com 23 paróquias, 502
comunidades e território de 18.206,6 km2. Três bispos fizeram parte
desta história: Dom Daniel Hostin (1929/1973), Dom Honorato Piazera
(1973/1987) e Dom Oneres Marchiori (1987/2009).
Dom Wilson Tadeu Jönck, SCJ assumiu como quinto Bispo de
Tubarão!
No dia 18 de julho passado, às 15h, na Catedral Diocesana, em
Tubarão, aconteceu a solene tomada de posse de Dom Wilson Tadeu
Jönck – SCJ, como quinto bispo diocesano de Tubarão.
Após a palavra de acolhida, feita pelo Pe. Nilo Buss, – até então
Administrador Diocesano, – Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger –
SCJ, arcebispo de Florianópolis e Presidente do Regional Sul IV da
CNBB presidiu este ato solene da posse. Ela se deu em três momentos
sucessivos: a) com a leitura da Bula Papal de Bento XVI, nomeando-o,
oficialmente, para Bispo de Tubarão, b) com a entrega, por Dom Murilo,
do Báculo de Pastor e, c) ao assumir a Cátedra, sentando-se nela.
Seguiram-se várias saudações, a saber: a primeira, da Ir. Elisangela Sales de Alencar, em nome do Conselho Diocesano de Pastoral; a
segunda, do Dr. Manoel Bertoncini, Prefeito Municipal de Tubarão; a
terceira, do Pe. Sérgio Jeremias de Souza, em nome do Colégio de Consultores e do Presbitério diocesano e, por último, de Dom Orani João
Tempesta – OCist, arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde
Dom Wilson, até o momento, exercia o seu ministério episcopal como
Bispo Auxiliar.
Seguiram-se a ele os cumprimentos, por primeiro, dos Arcebispos
e Bispos presentes e pelos integrantes do Colégio de Consultores.
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Crônicas
Ato seguinte, Dom Wilson Tadeu abençoou a todos os presentes,
caminhando pelos corredores da Catedral diocesana, literalmente tomada
por fiéis vindos das 28 paróquias e comunidades da diocese, por autoridades, amigos e familiares que afluíram de cidades, como: Vidal Ramos/
SC, sua terá natal, Brusque, Joinville, Jaraguá do Sul, Rio de Janeiro,
dentre outras e por familiares, destacando a presença de sua mamãe, já
com a idade de 91 anos.
Seguiu-se a solene celebração Eucarística, presidida pelo novo
bispo empossado de Tubarão, Dom Wilson Tadeu. A Homilia foi proferida pelo Arcebispo de Florianópolis, Dom Murilo Sebastião. Ao final,
Dom Wilson, por primeira vez e de modo oficial, dirigiu a palavra a
todos os presentes. Falou, – ademais dos muitos agradecimentos, – de
suas intenções e de como deseja governar a diocese, usando de imagem
simbólica e, por analogia, reportou-se à Parábola do Bom Samaritano,
no caminho de Jericó para Jerusalém.
Após ter sido lida a Ata da posse e com a bênção final, deu-se por
finda esta solene e significativa cerimônia em especial para a Diocese
de Tubarão. Seguiram-se os numerosos cumprimentos.
À noite, no salão paroquial São José Operário, em Oficinas, foilhe oferecido um jantar por adesão, com a presença de padres, amigos,
familiares, autoridades e ainda de lideranças de todas as paróquias e
muitas comunidades da diocese.
A Dom Wilson Tadeu, com alegria, desejamos o melhor pastoreio
em Tubarão!
Seja bem vindo entre nós!
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