Romance e política no Brasil Benedito Antunes, UNESP, Brasil ____________________________________________________________________________________ Resumo Este trabalho propõe-se examinar alguns traços do romance produzido no Brasil ao longo do século XX com a finalidade caracterizar a possível especificidade formal do gênero como decorrência da tentativa de representar impasses do contexto social e político do País. Procura, para isso, discutir o papel de determinadas obras ficcionais para a compreensão da realidade brasileira. Toma como base considerações feitas, entre outros, por Antonio Candido, para quem a literatura no Brasil tem dialogado com os estudos sociais, numa sensível aproximação entre ficção e ensaio. Palavras-chave: Romance brasileiro – Forma literária e história – Experimentação formal – Ensaio e ficção. ____________________________________________________________________________________ 1. Introdução A literatura, reconhecida ou não como tal, sempre foi espaço privilegiado de percepção da vida social e, à sua maneira, proporcionou profunda reflexão sobre a história humana. No Brasil, dadas as condições da formação histórica e cultural do País, a literatura frequentemente se tem vinculado às práticas sociais. Desde as primeiras manifestações nativas, no século XVI, esteve “empenhada”1 em construir uma nação. Ou, dito de outro modo, enquanto o aparato colonial serviu-se também da literatura como forma de domínio, o próprio processo de constituição de uma nação autônoma fez que a literatura, inicialmente uma retomada quase completa do modelo europeu, fosse adquirindo perfil próprio, sem perder essa marca de origem. De uma literatura descritiva e claramente utilitária em seus primórdios, quando se buscava principalmente conhecer o novo território e seu potencial econômico, passa-se à imitação da poesia barroca e árcade europeia, o que auxilia na implantação de um modelo de literatura no Brasil. Do ponto de vista de uma representação ficcional mais profunda e, de certa forma, original, é com o surgimento do romance que se verifica o início da constituição de uma literatura propriamente brasileira. Igualmente, é o modelo europeu que se implanta enquanto gênero, mas com todas as consequências de sua adaptação a um contexto histórico e cultural diverso. Consolidado graças ao trabalho inicial de Joaquim Manuel de Macedo e, O termo é de Antonio Candido, para quem poucas literaturas “têm sido tão conscientes da sua função histórica, em sentido amplo”, como a nossa (CANDIDO, 1969, p.26). 1 principalmente, de José de Alencar, o romance adquire tonalidade local e muitas vezes original com algumas obras do próprio Alencar (Lucíola, de 1862, Iracema, de 1865, Senhora, de 1875) e de Manuel Antonio de Almeida (Memórias de um sargento de milícias, de 1852). Este, aliás, talvez esteja na origem de uma tendência a que se filiarão os mais representativos romances da história literária brasileira, seja pela capacidade de representar os conflitos inerentes ao processo histórico de um país colonial, seja pela transformação formal a que o gênero é submetido nesse processo. São exemplos dessa linha Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), de Lima Barreto, Serafim Ponte Grande (1933), de Oswald de Andrade, Angústia (1936) e São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, O amanuense Belmiro (1937), de Cyro dos Anjos, Um copo de cólera (1978), de Raduan Nassar, Estorvo (1991) de Chico Buarque. Para uma breve abordagem de parte desses romances, procura-se adotar aqui o método dialético desenvolvido por Antonio Candido em várias análises literárias, particularmente na de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almeida. Nesta, o crítico acompanha o ritmo geral da sociedade brasileira da primeira metade do século XIX por meio de sua redução estrutural. Conforme explica Roberto Schwarz: “trata-se de ler o romance sobre fundo real e de estudar a realidade sobre fundo de romance, no plano das formas mais que dos conteúdos”. E esse processo se dá pela “sondagem mais ousada possível da experiência estética e dos conhecimentos havidos: ler uma na outra, a literatura e a realidade, até encontrar o termo de mediação” (SCHWARZ, 1979, p.140). 2. Rupturas e adequações Nos romances mencionados anteriormente, observa-se a ruptura com o modelo canônico como decorrência da procura de uma forma que represente determinados impasses vividos no contexto social e político que se quer representar. A esse propósito, cabe notar que quanto mais a questão social e política alimenta o universo temático desses romances, mais o gênero tende a buscar novas configurações formais. Tomando como referência a linha formal inaugurada por Manuel Antonio de Almeida, em Memórias de um sargento de milícias, e levada às últimas consequências, do ponto de vista da construção, em Memórias póstumas de Brás Cubas, por Machado de Assis, é possível compreender o impasse formal que se verifica em dois dos livros mais radicais do início do século XX brasileiro: Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá e Serafim Ponte Grande. Trata-se de obras muito diferentes, situadas normalmente em tendências estéticas diversas e até contrapostas, mas que apresentam preocupação crítica e perfil ideológico similares. São, talvez, as que mais se distanciam do que se considera comumente romance. Gonzaga apresenta uma longa conversação entre o narrador e o suposto objeto da biografia, na qual, muitas vezes, as opiniões e mesmo a caracterização de cada um deles se misturam na defesa de gosto, ideias e princípios. Como resultado, delineia-se uma história que, mais do que envolver o leitor nos acontecimentos narrados, instiga-o a mergulhar numa extensa discussão de teorias, conceitos e observações. Serafim, por sua vez, seria a própria negação do gênero romance ao constituir-se de diversos fragmentos de textos da tradição literária ocidental, cuja articulação se dá menos por um narrador do que por uma voz satírica que, inclusive, varia o foco durante o percurso da personagem central do livro. Além do aspecto formal, mas intimamente vinculado a ele, destaca-se o conjunto temático dos dois livros. Sua natureza satírica, mais corrosiva em Serafim do que em Gonzaga, leva-os naturalmente a uma revisão crítica dos valores, hábitos e da própria estrutura da sociedade brasileira do início do século passado. Essa revisão, no entanto, passa, em ambos os livros, pela tradicional tensão das relações entre Brasil e Europa que, na época, adquiriu novos contornos à vista do desenvolvimento socioeconômico brasileiro, muito valorizado no meio intelectual pelo componente da autonomia literária e cultural. Decorre disso a constante oposição, em Gonzaga, entre a herança histórica da colonização europeia e os valores sociais e culturais advindos da miscigenação e das próprias condições geográficas brasileiras, que deveriam apontar para um novo homem. Da perspectiva oswaldiana, essa tensão daria munição para formulações antropofágicas e utópicas, que aparecem em Serafim como um processo de valorização e, ao mesmo tempo, de negação, em busca de uma síntese revolucionária. São essas condições que conduzem as duas histórias para um universo utópico. No caso de Serafim, a utopia é claramente assumida como forma de negação total da sociedade burguesa, representando alegoricamente o homem livre, em mobilidade permanente, já que o navio no qual embarcam as personagens no capítulo final passa a vagar pelo mundo, só parando “para comprar abacates nos cais tropicais” (ANDRADE, 1978, p.264). Já em Gonzaga, a utopia corre paralela à história da personagem biografada, como uma espécie de sinalização do ideal de perfeição pela imagem do balão do conto “O inventor e a aeronave”. O saber que Gonzaga procurou construir ao longo de sua vida de burocrata e estudioso está, sob muitos aspectos, representado pelo balão: ambos não se realizam naquilo que seriam seus objetivos últimos. Essas coincidências temáticas e formais apontam provavelmente para questões mais amplas que inquietavam os intelectuais brasileiros do período. Seriam questões políticas que instavam seus autores à ação, à militância mesmo, sem que os resultados pudessem ser considerados satisfatórios. Tal como sugerem algumas passagens dos romances, seus autores tinham simpatia pelo socialismo: de forma um tanto difusa em Lima Barreto e como engajamento partidário em Oswald de Andrade. Prescindindo da filiação político-partidária, que no caso de Oswald de Andrade só viria a ocorrer após a publicação do romance, em 1933, basta considerar a militância de ambos: um, na defesa da causa dos oprimidos e mestiços; outro, na implantação de novas concepções de arte no País, no início, e de uma nova sociedade, depois, quando se filia ao Partido Comunista. Nesse quadro, é possível considerar que suas principais obras literárias, ou pelo menos aquelas que representam mais completa e explicitamente seu pensamento estético, estejam marcadas de alguma forma pela atuação sociopolítica. Isto explicaria, pelo menos em parte, a tentativa de apontar saídas, ainda que os autores estivessem conscientes das limitações contextuais, que levariam, formalmente, a soluções externas ao enredo por assim dizer realista ou decorrente de uma práxis social efetiva. Partindo de perspectivas e valores diversos, até mesmo opostos sob certos aspectos, tanto Lima Barreto como Oswald de Andrade parecem expressar em seus livros a contradição de uma cultura transplantada para a América selvagem que luta para encontrar sua forma adequada de ser. Em outras palavras, parecem representar literariamente aquele sentimento que Sérgio Buarque de Holanda definiu como “desterrados em nossa própria terra” (2006, p.19). Reconhecem as origens, procuram a especificidade brasileira e apontam para uma solução fantasiosa, no terreno da utopia, em sinal de rendição diante de um contexto ainda imaturo. Melancólica em Lima Barreto, eufórica em Oswald de Andrade, a solução parece objetivar-se, assim, em algo externo ao Brasil. É como se os finais utópicos se tornassem recursos para resolver uma tensão insolúvel, porque imatura. É possível entender que esse impasse se apresenta aos autores como problema formal, levando-os a elaborar um romance não convencional. O resultado desse processo, aliás, não seria propriamente um romance, mas uma narrativa com características ensaísticas. Em termos literários, portanto, não se trata de resolver, mas sim de representar o impasse. E, nesse sentido, tanto um como outro livro logram romper com a forma típica do romance europeu, ainda que se servindo dela como referência, inclusive atualizada, para experimentar recursos que pudessem corresponder às inquietações vividas naquele momento tanto no plano intelectual como no artístico. Ao se observarem questões da mesma ordem num escritor amadurecido no quadro das transformações históricas da virada dos anos de 1930, verifica-se um salto em termos de soluções formais, com consequências talvez mais dramáticas do ponto de vista humano, mas muito mais condizentes com a vida social e, portanto, mais densas enquanto forma literária. Praticamente toda a obra de Graciliano Ramos pode ser evocada à luz dessas considerações, especialmente seus três principais romances: São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas secas (1938). O primeiro deles pode ser tomado como exemplo por abordar o impasse social ao configurá-lo com impasse formal. São Bernardo, com efeito, narra a história da ascensão de Paulo Honório, um proprietário cuja pujança e clareza no processo de acumulação fazem que o livro represente uma espécie de alegoria do capitalismo. Coerente com essa imagem, o protagonista enfrenta uma crise, tanto econômica quanto existencial, alimentada pela esposa, que introduz a perspectiva de socialismo no universo criado pelo marido. No auge da crise, o proprietário escreve sua história, buscando a compreensão da vida. O processo de compreensão de si mesmo e do mundo que o cerca por intermédio da metalinguagem literária é, na verdade, a essência do tema abordado no romance: a tentativa de apossar-se de Madalena, com tudo aquilo que esta personagem representa como mulher, como antídoto do proprietário e até mesmo como linguagem. Dessa forma, a crise de Paulo Honório dá-se não apenas quando a máquina da fazenda emperra, com a crise econômica, mas sobretudo quando se agrava o conflito com Madalena, que ele não consegue possuir plenamente. Daí a necessidade de repercorrer sua história para procurar compreender a mulher e, com isso, incorporá-la ao seu ser, ainda que no plano imaginário da ficção. Portanto, a crise que se verifica no universo da fazenda atinge o narrador não apenas enquanto capitalista, mas também enquanto homem, ao não ser bem-sucedido na posse plena de sua mulher, que se submete enquanto esposa, no plano material, mas se rebela enquanto ser humano, no plano espiritual. Essa crise, embora desastrosa para Madalena, altera simbolicamente a personalidade de Paulo Honório. Assim, o leitor toma conhecimento, no plano da enunciação, de um narrador-personagem que procura, por meio da escrita, recuperar algo perdido, sua mulher. Ou melhor, a essência de sua mulher, já que ela não poderia retornar senão como memória. Esse narrador-personagem é, por isso, lento e reflexivo, quase o oposto do fazendeiro empreendedor e autoritário. Diz com frequência que, se não conseguir entender sua mulher, sua narrativa de nada servirá. Aparentemente, não atinge seu objetivo, mas experimenta uma mudança significativa, pois ele está buscando Madalena naquilo em que ela lhe era oposta: Madalena trabalhava com as palavras, ensinava a escrever, escrevia, tinha ideias, desejava mudanças. Ela se entrega a Paulo Honório, mas não se integra ao seu universo, a não ser como elemento que vai minar esse universo. E esse processo é tão radical a ponto de atingir o próprio Paulo Honório, que, de senhor absoluto, a quem todos se dirigiam, inclusive Madalena, torna-se um ser em crise, que se dirige aos outros, na medida em que busca compreendê-los. A narrativa que escreve refaz, iconicamente, esse percurso: começa com o narradorpersonagem comandando, dividindo o trabalho para construir um produto de mercado, previsível e aceitável, em que seus subordinados trabalhariam e ele apenas daria o nome e colheria os frutos deles advindos, e caminha para o processo de aquisição da própria escrita, em que se torna, ele próprio, o sujeito e o objeto dessa ação. O aparecimento dessa personagem em transição é o processo de surgimento do livro. Ambiguamente, essa personagem representa um novo estado de consciência – o do narrador que, de alguma forma, incorpora Madalena e tudo aquilo que ela representa. Acaba num impasse porque a incorporação é um processo que não se completa, e não pode se completar, porque fazer valer as ideias de Madalena e introduzi-las no universo de São Bernardo seria negar esse universo, o que só se pode admitir como virtualidade. Assim, o que se apresenta é a configuração do impasse de um narrador. Esse narrador guarda semelhanças com o “historiador da angústia” examinado por Alfredo Bosi (1988) em estudo sobre Vidas secas. Como tal, ele conhece os limites humanos do capitalismo, bem como os limites históricos para sua superação. Daí a representação como contradição cuja superação se dá na tomada de consciência: de forma limitada, como beco sem saída, no âmbito do narrador; de forma plena e angustiante, como perspectiva a ser construída, no âmbito do leitor. Trata-se de um jogo que somente a forma literária, no plano da ficção, pode configurar. Se o narrador chegasse à compreensão de Madalena, haveria uma integração entre eles, com a negação simbólica do capitalismo. Como isso não acontece, observa-se, da perspectiva do “realismo crítico” (BOSI, 1988, p.20) do autor, a figuração do impasse, que apontaria para a impossibilidade de superação do conflito representado. Dessa forma, os conflitos representados em São Bernardo permanecem em aberto e vivos para o leitor, pois o narrador não conclui sua narração, sugerindo que ela retorna ao início, repropondo, pois, o conflito de origem. Trata-se, portanto, de recurso formal que se abre a múltiplos sentidos, uma vez que a metanarrativa do romance, ostensiva no início mas presente em todo o seu desenrolar, não é senão a forma de representar o conflito, o que contribui, em última instância, para representar o impasse da forma, que gera obras muito particulares, inovadoras mesmo, capazes de empurrar o romance para o seu limite enquanto gênero que acompanha o percurso da sociedade burguesa. A discussão formal empreendida pelo narrador indica que o gênero clássico de romance não é mais capaz de representar uma questão cuja compreensão literária se dá menos pela mimese do que pela configuração da contradição que se vive no momento. Trata-se, portanto, de impostação que incorpora aspectos próximos do ensaio, alçando a literatura a um novo patamar, em que a representação instaura diversos pontos de ruptura, movimento e superação. A configuração do narrador em Graciliano Ramos, nos moldes delineados aqui, serve para balizar alguns romances posteriores que têm como tema a crise da sociedade burguesa e seus impasses do ponto de vista político. É dessa perspectiva que podem ser lidos, por exemplo, Um copo de cólera (1978), de Raduan Nassar, e Estorvo (1991), de Chico Buarque. São dois livros em que se observa o desenvolvimento de uma linha típica da contemporaneidade, do ponto de vista tanto formal quanto temático. Trata-se de um tipo de narrativa que aborda, direta ou indiretamente, questões sociais e políticas e, nessa medida, experimenta uma forma diversa do romance realista e se configura como impasse, representando, com isso, uma sugestão de impasse no plano temático. Nesse sentido, os romances indicam, nos termos de Adorno (1980), o aumento da dificuldade de narrar, o que corresponderia a um possível agravamento das contradições da sociedade burguesa. Os livros parecem, então, prestar-se para encenar a ação descontrolada ou a própria falta de ação, como que a representar, depois de momentos de intensa conturbação e revolta nos anos de 1960 e 1970, a perturbadora acomodação do fim do século XX. Nesses livros, observa-se, mais do que a abordagem direta da resistência política, o possível rescaldo de seu insucesso ou falta de perspectiva, num contexto em que restariam poucas ilusões quanto à luta pela transformação social. O protagonista de Um copo de cólera é, aparentemente, um proprietário, que vive de renda, pois sua profissão não é mencionada. Sua companheira, com quem contracena o famoso “Esporro” do livro, é jornalista, em princípio, de esquerda e feminista, pois se preocupa com os oprimidos e considera o companheiro fascista, pelo comportamento no momento da briga e por suas atitudes em geral. Não há certeza de que ele seja, digamos, de direita, e se contraponha a ela como um proprietário. (Pensar em Paulo Honório e Madalena de São Bernardo, aqui, é quase inevitável). Os xingamentos que dirige a ela e as atribuições que lhe faz revelam não apenas o conhecimento de causa – isto é, o discurso político lhe é familiar –, como parecem atingir a ele próprio, fazendo doer sua própria consciência. Aliás, encolerizar-se tem muito de sofrimento, de patológico, também no sentido psicológico – quem sente cólera é sujeito e objeto da ação. A quase passividade dela, que pouco retruca às suas ofensas, faz parecer que ele fala consigo próprio, como num grande desabafo. Haveria, assim, a representação de um drama além da aparente crise entre dois amantes: um drama externo ao casal que, pelos indícios apresentados, remete à opressão e a uma possível atuação contestatória. Nesse sentido, observar a invasão das formigas, que trabalham à noite, de forma ordeira e eficiente, rompendo a cerca que separa o refúgio do universo mais amplo, é como perceber uma força externa que age sobre ele, invadindo, mais do que sua propriedade, sua maneira de ser ou a tentativa de ser diverso daquele mundo externo. Com efeito, a discordância entre eles não se limita ao plano pessoal e atinge a própria maneira de se contrapor a esse universo opressivo. Parece surgir, implicitamente, uma crítica à possível limitação de uma libertação que implique uma nova organização social, igualmente opressora. Afinal, ela é engajada politicamente, um tanto populista é verdade, mas contestadora do sistema vigente. Observa-se que essa divergência não é suficiente para a ruptura entre os dois; pelo contrário, após o clímax da violência provocada pela cólera, há uma prostração dele, que é amparado pelos dois empregados. E mais, no recomeço da história, sua fragilidade é tal que ela, ao chegar à chácara, tem o desejo de acolhê-lo no útero. Seja na forma circular da narrativa, seja nessa espécie de nascimento ao contrário, o percurso narrativo configura um giro em falso, isto é, não movimenta as personagens, que retornam ao ponto de partida, sem perspectiva de avançar. Seria uma espécie de configuração da impotência diante de algo mais forte, cujo enfrentamento não é possível a não ser por uma espécie de imenso grito colérico, que atinge muito mais quem grita do que o suposto ouvinte. A falta de clareza e de contornos definidos das personagens e a ausência de ações consequentes, pois tudo é vivido num tempo interior, parece apontar para uma espécie de beco sem saída, que nos atinge e nos contamina menos por aquilo que é dito racionalmente, do que por aquilo que nos faz experimentar por uma espécie de imagem mental que, de alguma forma, também nos encoleriza. Isto é, sem dúvida, muito mais eficaz, do ponto de vista narrativo, do que uma história construída com todos os detalhes no lugar, que soaria algo ingênuo e pouco real no sentido da representação. Em uma análise da obra, Leyla Perrone-Moisés situa Copo de cólera “longe dos estereótipos da literatura engajada”, afirmando que se observa nela “a insidiosa contaminação das relações individuais pelo discurso do poder, o discurso fascista”, e por isso o romance “reflete bem a situação vivida pelos brasileiros sob a ditadura militar” (PERRONE-MOISÉS, 1996. p.69). Já Estorvo parece ambientado no período posterior à ditadura militar, que governou o Brasil de 1964 a 1984, e nesse sentido talvez represente o desencanto com o sonho de mudanças radicais condizente com o espírito de 68. Trata-se de uma narrativa simples, mas consistente, que provoca forte efeito no leitor que acompanha o que o narrador-personagem faz, vê ou imagina. Os fatos narrados são estranhos porque inconclusos, como se nada tivesse uma finalidade definida, o que gera uma impressão de circularidade. A personagem, cujo nome permanece oculto, acorda com alguém tocando a campainha. Temendo o desconhecido por alguma razão que não fica clara, ele o despista e foge. Vai à casa da irmã, que mora em uma rica mansão, recebe dinheiro dela e segue para o antigo sítio da família. Como este se encontra ocupado por pessoas suspeitas, acaba procurando a antiga esposa, que lhe fornece a chave de sua casa para que ele apanhe sua mala. Continua a perambular, retornando à casa da irmã, onde se aproveita da festa que lá acontecia e rouba todas as suas joias, que são passadas aos novos habitantes do sítio, para onde acaba voltando em busca de refúgio. Recebe em troca das joias uma mala de maconha, que tenta deixar, primeiro, no apartamento da mãe e, depois, no do amigo, mas a mala se abre na escada e ele tem de fugir. Depois de estilhaçar a vidraça da loja em que a ex-mulher trabalha, é levado novamente para a casa da irmã, onde fica sabendo do assalto e do estupro sofrido pela irmã. Acompanha o delegado ao sítio, onde os bandidos são mortos, e ao sair dali, tenta abraçar um desconhecido que o esfaqueia. Enquanto no livro de Raduan Nassar o tempo é de grande importância para o efeito do desabafo, no de Chico Buarque destaca-se a função do espaço associado à mobilidade da personagem. Ela percorre diversos locais da cidade, culminando com dois extremos: o condomínio em que reside a irmã e o sítio da família, em que vivem, além das pessoas humildes da família do antigo caseiro, os marginais em seu conluio com a polícia. Aqui, como no outro livro, as personagens não têm nome e são pouco caracterizadas, à maneira de “clones publicitários”, segundo a expressão de Roberto Schwarz (1999). Essa caracterização estabelece um nítido contraste com a precisão do mundo externo, o que destaca o papel do narrador. É seu olhar que cria a perspectiva geral e o efeito com o qual o leitor se identifica. O resultado desse procedimento é que passa a ter maior importância a atitude do narrador, na sua aparente fuga, já que não se sabe ao certo se ele é mesmo perseguido ou imagina ser perseguido. Da mesma forma que suas ações não têm sequência, sua condição social é pouco clara: pode ser um joão-ninguém ou um filho de família desgarrado. Isso lhe permite transitar pelos diversos espaços, configurando certa mobilidade pelos correspondentes níveis sociais. Não se trata de classes sociais, mas de diversas categorias que se surgem naquela sociedade, em que a irmã flerta com o delegado, este é próximo dos bandidos, os trabalhadores produzem mercadoria suspeita. Nesse sentido, a distinção entre imaginação e realidade tem pouca importância, já que o que a personagem efetivamente vive e o que imagina possível fazem parte de sua condição e têm como efeito a perplexidade diante do quadro social. Se nada disso tem sentido imediato, o sentido verdadeiro pode ser encontrado em outro plano. Talvez na própria condição da personagem, que parece encampar toda a carga significativa do título do romance: estorvo. Dessa forma, um possível sentido poderia ser buscado nessa condição da personagem. Ou, nas palavras de Roberto Schwarz, a “disposição absurda para continuar igual em circunstâncias impossíveis é a forte metáfora que Chico Buarque inventou para o Brasil contemporâneo” (SCHWARZ, 1999, p.181). Essa metáfora, evidentemente, pode ter desdobramentos. De um lado, representa a própria configuração social, em sua diversidade de categorias, que torna porosa a separação entre classes sociais. Mesmo assim, a questão das classes aparece como problema, seja nas contradições que representam, seja no possível posicionamento da personagem em relação a elas. Em determinados momentos, a personagem central dá indícios de certa simpatia por uma classe social, mas diante da “dissolução das fronteiras entre as categorias sociais” (SCHWARZ, 1999, p.179), resta desfigurada, sem rumo, sem identidade – um estorvo, enfim. Aqui cabe a pergunta: estorvo para quem, se prevalece a indistinção entre as classes, entre bem e mal etc. Seria para a classe dominante ou para os pobres? A rigor, o problema recai sobre o próprio narrador e aquilo que ele representa, já que sua individualidade é rarefeita e relativizada diante do cenário social. Desajustamento familiar ou social pura e simplesmente talvez seja pouco para definir sua situação, pois sua configuração parece encobrir dramas mais profundos. Para fundamentar essa hipótese, é possível perceber em pequenos indícios fornecidos pelo narrador que a personagem é desgarrada, sim, de sua classe, mas num sentido que poderia ir além da simples rebeldia. No capítulo 6, quando recorda a convivência com o seu amigo, vêm à tona fragmentos de discussão tipicamente política, com suas implicações nas escolhas de cada um. Entre outras coisas, o amigo lhe cobrava alguma forma de coerência, dizendo que ele deveria renunciar às suas propriedades, mesmo que para isso tivesse de enfrentar a família. E o narrador prossegue relatando o discurso do amigo, que ataca a lei vigente e os governos e, passando do discurso à ação, atira coisas para fora da varanda, o que “acabou juntando o povo do sítio para ver. Ele gritava ‘venham os camponeses’, e os camponeses que vinham eram o jardineiro, o homem dos cavalos, o caseiro velho e sua mulher cozinheira, mais os filhos e filhas e genros e noras dessa gente, com as crianças de colo” (HOLANDA, 1991, p.78). Sinalizações como essa não são exaustivas no romance, mas aparecem o suficiente para se tornarem relevantes. No quadro de indefinição das personagens, das ações inconclusas, das idas e vindas desnorteadas enfim, que culminam com o desfecho sem explicação, elas ganham sentido, pois surgem como possível explicação para aquilo que contamina o leitor mas não diz por quê. A cena referida é plena de sentido nessa linha de interpretação. Os amigos discutem poesia e, quando a tensão aumenta, enveredam pela política, questionando sua própria condição social. O ataque à família, supostamente de posses, à ordem vigente e principalmente à falta de decisão de ambos para tomar o partido de uma classe subalterna, representada aqui pelos “camponeses”, apontam claramente para o desejo de transformar o desajuste em engajamento. Só que esse engajamento já está minado na base, uma vez que a imagem dos camponeses é diminuída pela desfiguração com que se apresenta. Na linha evolutiva configurada pelos romances Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, Serafim Ponte Grande, São Bernardo, Um copo de cólera e Estorvo, temos, do ponto de vista da representação do embate político no Brasil do século XX, uma sequência de situações que podem ser identificadas como impotência, angústia, cólera, perplexidade (ou desnorteio, inação). Nos dois primeiros romances, observa-se a necessidade de uma espécie de escapismo para resolver as contradições sociais. No romance de Graciliano Ramos, o narrador acaba no impasse da escrita, sem poder avançar na compreensão da esposa morta e de sua própria condição de homem reificado. No romance de Raduan Nassar, o narrador, um chacareiro mas com dotes intelectuais, sugere um ex-militante revoltado com os rumos da militância e com o possível horizonte das mudanças, o que o leva a um grande desabafo que pode ser entendido também como autocrítica. Por fim, no romance de Chico Buarque, prevalece o desencanto. Como indica Roberto Schwarz, aqui “o desejo de uma sociedade diferente e melhor parece ter ficado sem ponto de apoio”, sugerindo que “a suspensão do juízo moral, a quase atonia com que o narrador vai circulando entre as situações e as classes, seja a perplexidade de um veterano de 68” (SCHWARZ, 1999, p.180). Essas hipóteses interpretativas repousam menos naquilo que os romances dizem explicitamente do que naquilo que configuram como impasse, tanto de viver como de narrar. Trata-se de impasse que pode ser experimentado pelo leitor no efeito provocado pelo movimento das personagens, que na sua maneira de ser se expressam como impotência, angústia, cólera e estorvo. 3. Considerações finais As análises aqui resumidas procuram chamar a atenção para uma série expressiva de romances brasileiros que se filiam às tendências mais modernas do gênero. Estão longe de seguir o modelo canônico dos séculos XVIII e XIX e buscam a representação do real pela linguagem. Essa hipótese baseia-se em princípios teóricos defendidos, entre outros, por Theodor Adorno, que situa o paradoxo do romance contemporâneo na impossibilidade de narrar, enquanto o romance exige a narração. Assim, a saída para esse gênero seria concentrarse naquilo de que o relato não dá conta, renunciando a um realismo de fachada e buscando criar uma forma que, enquanto tal, configure os impasses da sociedade reificada. Analogamente, essa tendência do romance contemporâneo pressupõe uma crítica capaz de relacionar a série social à série literária, por meio de “um princípio mediador que organiza em profundidade os dados da ficção e os da realidade, sendo parte dos dois planos” – para usar a formulação de Roberto Schwarz (1979, p.141). Ou, como resume o autor em estudo recente, a forma seria percebida pela crítica como “um princípio ordenador individual, que tanto regula um universo imaginário como um aspecto da realidade exterior. Em proporções variáveis, ela combina a fabricação artística e a intuição de ritmos sociais preexistentes” (SCHWARZ, 2012, p.48). Trata-se, aqui, do método dialético de Antonio Candido referido no início que, quando bem-sucedido, evita a abordagem meramente sociológica e permite que a literatura proporcione conhecimento novo. Com esse método, é possível compreender a provável função que determinadas obras ficcionais têm cumprido na discussão de questões políticas brasileiras. Recorde-se, a título de história do gênero, que o romance é considerado, inicialmente por Hegel e depois por outros pensadores que relacionam a literatura com a história, como uma espécie de “epopeia burguesa”. Esta é, por exemplo, a tese de Lukács, para quem, embora obras semelhantes ao romance tenham existido no antigo Oriente, na Antiguidade e na Idade Média, é na sociedade burguesa que ele “adquire seus caracteres típicos” (LUKÁCS, 1999, p.87). Muito percuciente e sugestiva sob diversos aspectos, a teoria do romance elaborada pelo filósofo húngaro tem sua principal limitação no horizonte político, uma vez que ele restringia a evolução do gênero à perspectiva de superação da sociedade burguesa pela socialista, vislumbrando no romance proletário ensaiado na antiga União Soviética uma espécie de nova epopeia, por sua suposta capacidade de representar uma sociedade sem classes. Essa limitação não invalida as abrangentes perspectivas de abordagem do romance que desenvolveu, percebendo-o como gênero típico da sociedade burguesa e, por causa de suas características formais, capaz de representar a experiência do sujeito em contraste com o mundo em que vive. Nessa linha, são luminosas as perspectivas abertas por pelo filósofo russo Mikhail M. Bakhtin. Em meados do século XX, suas teorias sobre o gênero pressupõem não o fim, mas a continuação e a transformação da sociedade burguesa. No seu entender, o romance “é o único [gênero] nascido e alimentado pela era moderna da história mundial e, por isso, profundamente aparentado a ela, enquanto que os grandes gêneros são recebidos por ela como um legado, dentro de uma forma pronta, e só fazem se adaptar – melhor ou pior – às suas novas condições de existência” (1988, p.398). Considera ainda que “o romance é o único gênero em evolução, por isso ele reflete mais profundamente, mais substancialmente, mais sensivelmente e mais rapidamente a evolução da própria realidade”. E, numa frase lapidar para indicar a historicidade do gênero na sociedade burguesa, afirma: “somente o que evolui pode compreender a evolução” (p.400). É ainda de Bakhtin uma avaliação que, ao contrapor o contexto da epopeia com o do romance, aponta para uma das características fundamentais do gênero. Diz ele: A profecia é própria da epopeia, a predição é própria do romance. A profecia épica se realiza totalmente nos limites do passado absoluto [...]. Ela não diz respeito ao leitor e ao seu tempo real. Já o romance quer profetizar os fatos, predizer e influenciar o futuro real, o futuro do autor e dos leitores. O romance tem uma problemática nova e específica; seus traços distintivos são a reinterpretação e a reavaliação permanentes. (BAKHTIN, 1988, p.420) A capacidade de evoluir, possibilitando sua própria reinterpretação e reavaliação permanentes, faz do romance o gênero mais adequado para acompanhar, predizer e influenciar o futuro da sociedade. Essa percepção comporta, pelo menos no geral, as transformações por que passa o gênero, sobrevivendo à morte mais de uma vez decretada. Na verdade, trata-se já de uma forma romanesca que se distancia do formato canônico, mas que mantém seus traços gerais por causa da íntima relação que estabelece com a sociedade burguesa, também ela muito diferente de sua conformação percebida no auge de sua história, quando era, diga-se com Marx, revolucionária. Retomando o argumento em termos mais amplos, é possível perceber a função do romance na literatura brasileira, ao longo dos últimos cem anos, com base em argumentos de Antonio Candido sobre a particularidade do gênero no Brasil. Em ensaio de aparência despretensiosa mas pleno de sugestões luminosas, o crítico recorda, por volta de 1950, “que as melhores expressões do pensamento e da sensibilidade têm quase sempre assumido, no Brasil, forma literária” (1973, p.130). E acrescenta que, com isso, não está se referindo apenas ao romance de José de Alencar, Machado de Assis, Graciliano Ramos ou à poesia de Gonçalves Dias, Castro Alves, Mário de Andrade, mas também a textos de Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, que produziram “livros de intenção histórica e sociológica”. Dessa forma, para ele, “diferentemente do que sucede em outros países, a literatura tem sido aqui, mais do que a filosofia e as ciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito” (p.130). Embora vislumbre naquele momento “o fim da literatura onívora”, não deixa de perceber “o poderoso ímã da literatura [que] interferia com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero misto de ensaio, construído na confluência da história com a economia, a filosofia ou a arte, que é uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do Brasil” (p.130). Ainda que a situação seja bem outra nos anos posteriores, com o desenvolvimento das ciências sociais e a própria evolução da forma literária, é possível que alguns princípios lançados por Antonio Candido continuem válidos quando se trata de estudar a literatura e sua função social. São princípios dessa natureza que estão na base da proposta de leitura aqui apresentada, imaginando-se com isso colocar em relevo sugestões válidas para se perceberem nuanças do que de melhor tem produzido o romance no Brasil. 4. Bibliografia ADORNO, T. W. A posição do narrador no romance contemporâneo. In: BENJAMIN, W. et alii. Textos escolhidos. 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