“SUA SANTIDADE. JOÃO PAULO II E A HISTÓRIA

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Pelo Socialismo
Questões político-ideológicas com actualidade
http://www.pelosocialismo.net
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Annie Lacroix-Riz, professora de história contemporânea, Universidade de Paris 7
Sobre a obra
“SUA SANTIDADE. JOÃO PAULO II E A HISTÓRIA ESCONDIDA DA NOSSA
ÉPOCA”, de Carl Bernstein e Marco Politi
Publicado em: http://www.historiographie.info/critiques.html
Tradução do francês de AA e AM
Colocado em linha em: 2010/09/30
Nota prévia:
Recensão redigida em 1997 para a revista Golias, que esperava, para a publicar –
disse-mo então o seu director Christian Terras –, fazer um número especial sobre João
Paulo II. Ignoro se o dito número foi publicado, mas esta solicitada redação nunca foi
impressa para esse efeito.
Annie Lacroix-Riz, 23 de dezembro de 2009
A DESCOBERTA TARDIA DA AMÉRICA E SUAS LACUNAS: SOBRE A
OBRA DE CARL BERNSTEIN E MARCO POLITI, SUA SANTIDADE. JOÃO
PAULO II E A HISTÓRIA ESCONDIDA DA NOSSA ÉPOCA, PLON, PARIS, 1996.
Para tentar beneficiar dos contributos da obra de Carl Bernstein e Marco Politi, convém
abstrairmo-nos de um estilo hagiográfico ao ponto de obscurecer análises, além do
mais, plausíveis. Os autores, para o fim da obra – portanto, sobre o período da «crise»
profunda do ídolo, que revela a fragilidade da espectacular ofensiva clerical dos anos
1978-1990 –, recuperam o sangue-frio perdido nas centenas de páginas precedentes.
Tem-se, até então e demasiadas vezes, a impressão de ler uma crónica de santo nesta
biografia de um papa com créditos firmados na sua contribuição para a «destruição do
comunismo», e brutalmente – por que milagre? - passado do estado de clérigo místico
ao de homem político integrado, justamente pelo 'menu', na estratégia e na táctica
americanas na Europa e na América latina (e noutras partes?).
O método presta-se ao sorriso, no que respeita a Karol Wojtyla, personalidade
fundamentalmente política, como o confirmam todos os dados discerníveis da sua
carreira (o não-dito e o não-preciso abundam), do começo do sacerdócio ao pontificado.
A obsessão antirrussa e antibolchevique deste polaco germanófilo – um caso de figura
representativa da hierarquia da Igreja polaca – é aqui transfigurada em amor de Deus e
da Virgem (de Fátima, muitas vezes, à qual Pacelli-Pio XII votava o mesmo culto). A
colaboração quotidiana da Cúria e do seu chefe com os serviços secretos americanos
enquadra-se mal com a alegada «natureza mística» do papa: a vaga de literatura de
1
espionagem militar (donde emerge o coronel polaco Kuklisnki, grande informador dos
americanos, p. 272 e sgs.), sobre o fundo de mísseis ou de projectos de aniquiliação da
Teologia da Libertação e do poderio soviético na Europa, e não só, convive mal com as
preces, a venaração de Maria e os êxtases que teriam sido partilhados por Reagan, os
seus colaboradores mais próximos – integristas católicos e, de há muito, responsáveis
dos serviços secretos – e Wojtyla. Este revestimento lírico e devoto – enquanto as
ligações do papa com o Opus Dei são reduzidas a uma nota (p. 334) – constrange
acentuadamente a leitura, sem falar da tendência à confusão e à desordem, escolho que
permitiu evitar um maior respeito pela cronologia.
Por outro lado, este livro ensina-nos muito menos do que pretende, tendo sido
precedido por trabalhos históricos sobre um grande número de questões. Se os autores
pretendem revelar-nos «a história escondida da nossa época», eles afastaram quase
totalmente a questão jugoslava, grande dossiê deste reinado, tratado na tradição
germano-italiana antissérvia da Santa-Sé. O acento tónico colocado sobre as relações
americano-vaticanas – com efeito, um dado fundamental da política vaticana do século
– conduziu os autores a negligenciar as raízes alemãs desta grande aliança concluída no
termo do primeiro conflito mundial, e não no lampejo entre um Reagan, grande cruzado
contra «o Império do mal» no «cristianismo salvador» (p. 303), e um Wojtila
comungante no amor da Virgem Maria.
Ao reunir as peças de um puzzle espalhadas por mais de 450 páginas, vê-se confirmado
o retrato – efectuado pelos arquivos diplomáticos franceses – de Karol Wojtila e do
universo clerical que o formou e enquadrou. Na base de uma biografia redigida por
hagiógrafos, o futuro papa aparece de súbito como um polaco violentamente antirrusso
– sólida tradição, bem anterior à era bolchevique – para ensaiar com o Reich simpatias
que a circunspecção dos autores apenas aborda: germanófono, ele é apresentado como
«hostil aos nazis» mas, sobretudo, como um dos clérigos mais hostis a toda a
resistência ao ocupante (p. 43 e sgs., até à 59, p. 89, etc.); duvida-se do seu
antinazismo ao saber-se que, face à barbárie alemã, que castigava até os salesianos da
sua paróquia, consagrou os seus esforços, com sucesso, «a convencer a maior parte»
dos seus amigos «do Rosário Vivo» - organização secreta sobre a qual gostaríamos de
conhecer mais - «a não desenvolver a luta clandestina»: «orar era a única coisa a fazer»
(p. 56-57), teria ele então sentenciado – serenidade que, seguramente, não regeu as
suas relações tumultuosas com o mundo russo. Ele teria amado os judeus, neste país
em que a Igreja conduzia a todo-poderosa coligação antissemita, sob o báculo do
primaz Hlond (p. 32 e sg.), um dos protagonistas essenciais da organização pró-alemã –
tanto francófoba como russófoba – da política polaca anterior a 1939.
Da confusa descrição de um hipotético filossemitismo sobressaem elementos
antagónicos com esta tese: Karol Wojtila nunca prestou socorro a um judeu (p. 57)
durante a guerra – como a quase totalidade dos seus pares, verdade se diga; ele teria
tido, depois da infancia, «amigos judeus», menção muito vaga, mais vaga do que os
actos. Pois este presumido filossemita canonizou Kolbe, «personagem complexa» talvez,
mas sobretudo antissemita notório; o seu obstinado capricho de santificação católica do
campo de Auschwitz não o classifica entre os amigos dos judeus, no julgamento dos
principais interessados (p.194-195).
Da guerra alemã contra a URSS ele esperava, tal como os seus superiores hierárquicos,
que liquidasse o comunismo e permitisse ao «povo russo» que «reencontrasse a via do
cristianismo» (p. 57). O livro evoca várias vezes esta antiga obsessão de converter a
2
Rússia ao catolicismo romano. Mas calcula-se mal, nesta obsessão de aparência
puramente anti-vermelha, a velha missão que os Habsburgos assinaram no Vaticano,
por via do uniatismo[1], que o Vaticano conduziu a seguir ao final do século XIX,
igualmente sob o báculo dos Hoenzollern, e que prosseguiu depois de 1917-1918 com o
Reich alemão, criando, designadamente, organismos dominados pelo Instituto oriental e
o seu Russicum[2], instrumentos ideológicos (incluindo a informação militar) da
reconquista futura ou sonhada.
Da mesma forma, percebe-se muitas vezes a determinante influência germânica na
promoção deste polaco. Neste assunto há, entretanto - os arquivos franceses atestamno -, outra coisa além da comum adesão, inegável, ao integrismo e à desforra contra o
Vaticano II (p. 93 e sgs.). Ninguém contestará o quadro, correctamente elaborado, no
final da obra, de um integrismo cultural sustentado numa impressionante misogenia
sexual (p. 341 e sgs.). Mas foi, além do mais, sobre as fronteiras – os autores sugeremno com uma excessiva discrição – que se jogou a aliança que fez de Wojtyla papa.
Apesar do que é aqui dito sobre as «perseguições» contra a Igreja polaca, e do
«martírio» suportado por Wyszynski para preservar os «direitos» da Igreja desprezados
«pelo poder estalinista» (p. 79), foi ao mero não reconhecimento das fronteiras polacas
de 1945, exigido por Pio XII de todo o episcopado polaco, que Wyszynski, primaz
sucessor de Hlond, ficou a dever os seus problemas, designadamente, a sua prisão, em
Setembro de 1953.
O pedido de perdão...aos alemães, redigido em 1964 pelo episcopado polaco sob a
pressão de Wojtyla, orienta-nos sobre as vias familiares: a «recusa comum do
nacionalismo e [a] vontade de assegurar a defesa dos valores da Europa contra o
comunismo» reuniriam o prelado polaco e o episcopado alemão (p. 94-95). Do idílio
polaco-austroalemão que se concretizou, em 1978, na eleição de Wojtyla, retiveram-se
quase exclusivamente os aspectos anti-comunistas; ora, aquela eleição conformou-se,
evidentemente, com o velho princípio romano defendido com unhas e dentes depois de
1918: um prelado polaco não é aceitável pela Cúria a não ser que faça uma declaração
prévia de respeito intangível das fronteiras do seu Estado, estabelecido sobre os
despojos de uma Alemanha vencida(1). É a única base susceptível de fundamentar o
apoio austroalemão à promoção pontifical de um polaco antirrusso – condição
necessária mas não suficiente para ganhar estas vozes germânicas.
Este aparente paradoxo desaparece quando levantamos a cobertura «polaca» - que traz
consigo a etiqueta de «fortaleza» do antibolchevismo, rotina ideológica da Polónia de
1918-1939 – que manteve intacta a velha tutela germânica sobre a Igreja romana: se
acreditarmos na história – a qual teremos de seguir, caso não tenhamos provas
contrárias -, a comunhão no integrismo não chegou para assegurar a hegemonia
incontestável deste reino pelo chefe da Inquisição, Ratzinger, cardeal arcebispo de
Munique, capital de uma Baviera votada à tradicional missão do Anschluss[3] (objectivo
a que Roma não renunciou em 1945, tal como não o fizera em 1918). A obra encontrase repleta de indicações sobre a presença, em todos os escalões decisivos, de
elementos alemães e austríacos: Wojtyla, por exemplo, frequentava assiduamente o
cardeal arcebispo de Viena, König, um dos mestres, quer das iniciativas dirigidas ao
Leste, quer da eleição de 1978 (p. 138 e sg.). Podemos, desta forma, compreender os
vários sinais que nos indicam que os “polacos” antiquados que rodeiam o papa pesam,
depois de 1978, muito menos do que os chefes de orquestra germânicos, seja em
relação à nomeação papal, seja em relação ao funcionamento quotidiano da Cúria.
3
Em paralelo, lamentamos muito o facto de ignorarmos praticamente tudo sobre as
modalidades de uma grande ação comum no interior do antigo espaço jugoslavo, hoje
em dia retalhado. Aliás, o receio de conquistar o espaço russo ao catolicismo germânico,
tal como a contribuição vaticana à destruição do ortodoxismo sérvio não datam da era
comunista: levados a cabo no tempo dos Habsburgos, foram prosseguidos com o Reich
(e com a Itália, em busca de uma expansão balcânica); a Sérvia anterior a 1914 apoiada pela Rússia czarista e considerada como a barragem principal ao alargamento
austríaco para o Sul -, assim como, a partir de 1918, a Jugoslávia monárquica e
ditatorial - aliada da França -, suscitaram tantos ódios e iniciativas do Vaticano como,
mais tarde, o Estado titista[4] e o seu sucessor jugoslavo, depois sérvio. É verdade que
os Estados Unidos mostraram, durante todo o século, vastas ambições balcânicas e
mantiveram sempre grande interesse, tal como os seus rivais, no porto de Trieste –
projectos rapidamente travestidos, depois de 1945, em cruzada anti-titista. Mas a
Alemanha nunca abdicou das suas ambições, isto sem falar da Itália, cuja direita sempre
exibiu os seus apetites pela Dalmácia[5](2).
A obra é, pois, sobretudo consagrada às relações entre os EUA e o Vaticano, que são a
chave de uma remodelação da carta da Europa, estabelecida pelo resultado militar da
Segunda Guerra Mundial e codificada nas conferências interaliadas de 1945 - Yalta e
Potsdam. O idílio não remonta, deste modo, a Reagan, pelo que a tese de que este
introduziu gandes novidades nas relações entre o seu país e a Roma pontifícia é
particularmente infundada (p. 223 e sg.). Seguramente, o Vaticano de Wojtyla foi
utilizado como a mais eficaz agência de informações e de «ação psicológica»: 1.º – para
pôr em causa o resultado europeu da última guerra, ao qual os Estados-Unidos se
resignaram muito contra vontade, uma vez que a sorte das armas beneficiou também o
vencedor soviético (como acontecera outrora com o vencedor francês); 2.º - para dar
de novo estabilidade ao “pátio das traseiras” dos Estados-Unidos, a América latina,
corroída pela riqueza e a miséria extremas, que ameaçava pôr em movimento os
humildes, apoiados pelos adeptos da «teologia da libertação».
O dossiê não tem, desta forma, origem num amor louco entre o presidente republicano
e o papa polaco, mas em velhas prioridades de Washington e do Vaticano. No final do
primeiro conflito mundial, os EUA tiveram necessidade de uma força ideológico-política
estabilizadora crucial para restabelecer na Europa o statu quo posto em perigo pela
guerra e pela agitação (revolucionária ou não) que se lhe seguiu: aquela foi, aliás, uma
das condições para a abertura do Velho Continente aos produtos e aos capitais
americanos – a começar pela Alemanha vencida, país europeu dotado do capitalismo
mais moderno, mais concentrado e ligado, mesmo antes de 1914, às mais poderosas
empresas americanas (banca, química, electricidade, etc.); Washington desejava,
igualmente, os recursos dos vastos impérios coloniais dos seus aliados-rivais da Entente
- potenciais fornecedores de matérias-primas a preços baixos, por enquanto unicamente
afectados às metrópoles -, terras ultramontanas por excelência, com as suas missões
católicas regidas pelo Vaticano.
Este último – que, durante o conflito mundial, colocou as suas forças ao serviço dos
Impérios centrais – encontrou naquele parceiro [EUA] um bom aliado para desestabilizar
uma Entente frágil, porque dividida em relação aos objectivos da guerra: o Vaticano
apoia-se, deste modo, nos americanos, decididos, por sua vez, a reconstruir
rapidamente um Reich-pivô da sua penetração na Europa ou, pelo menos, a evitar-lhe
uma boa parte do custo elevado da sua derrota. Apenas com a redução à impotência da
Entente europeia – e, sobretudo, da França, vencedor militar no programa da paz dura
4
– preservaria as hipóteses de realização dos planos territoriais alemães. Objecto
frequente de discussões entre a Cúria e o Reich (promovido, ao longo dos anos, ao
estatuto de único herdeiro do Império austro-húngaro condenado), desde o início da
guerra, sobretudo desde que a derrota alemã se confirmou, ambos pretendiam alcançar
um duplo objectivo: a recuperação de Altreich – da época anterior a Versalhes – e a
expansão territorial – incluindo, quer a retomada total do antigo Império dos
Habsburgos (a partir do pivô austríaco), quer novas conquistas (da anexação ao
controlo total), da Rússia (sobretudo da Ucrânia e dos países bálticos) à Bélgica.
Definido num momento em que Berlim esperava ganhar a guerra, este programa
imperialista quase ilimitado – que constituía uma vingança e o início da uma nova era, a
hitleriana – foi estritamente mantido na hora da derrota (3).
A obra, sem, contudo, o precisar, restitui, deste modo, o pontificado de João Paulo II a
uma perspectiva duradoura, o que reduz seriamente a sua tese central do reino-milagre
que aterrorizava o «império do mal». O estabelecimento de relações entre os EUA e o
Vaticano, no final da Primeira Guerra Mundial, foi o resultado da preocupação comum
pelo futuro do Reich. O inteligente núncio de Munique, Pacelli, declarou, logo no mês de
Março de 1918, que «a única prancha de salvação era a América». A «prancha» não
permitiu, contudo, à Alemanha evitar a derrota – a qual constituía, igualmente, um
objectivo de guerra americano; apesar disso, a «prancha» revela-se sólida. A aliança,
consideravelmente financiada pelos católicos americanos, apoiados, por sua vez, pelo
Estado americano, busca uma base dupla: por um lado, pôr em prática – através do
Vaticano - um enorme aparelho missionário americano, a partir do início dos anos vinte,
numa China até então devotada aos europeus (com a França à cabeça, beneficiária,
desde 1858, dos privilégios do protectorado católico de Tien-Tsin); por outro, pôr em
prática a campanha em favor de uma «paz cristã» (com a qual o Reich concordava), a
qual acabou por juntar novos aliados contra a impiedosa «paz de vingança» da França
que culminou com a ocupação franco-belga do Rhur, em 1923: estigmatizou-se, então,
a França, acusada, por um lado, de martirizar um Reich sem forças e pilhado e, por
outro, de impor uma «vergonha negra» (referência às tropas coloniais de negros e de
árabes) a este excelso paradigma da «civilização (Kultur) europeia» - essa França,
revolucionária, ímpia, com traços de bolchevismo e de judaísmo (a imprensa católica via
em cada ocupante um judeu, utilizando, por vezes, o termo «negro»). Contribuindo
grandemente para esta ofensiva, os fundos americanos, deixados em grande quantidade
em dioceses alemãs, financiaram, entre outras ações, a «resistência passiva» (e ativa) à
ocupação do Rhur; financiaram, igualmente, a missão do emissário do Vaticano Testa,
que apoiou a dita resistência e tentou acabar com os obstáculos que nasceram com a
ocupação francesa do oeste alemão. Este aspecto da intervenção americana é paralelo
às pressões financeiras poderosíssimas que se abateram sobre a França por parte
daquele que, desde a guerra, lhe emprestava dólares (o banco Morgan à cabeça). Estas
pressões acabaram por fazer com que a França do pós-guerra capitulasse – prefiguração
da capitulação militar de 1940 - aceitando, desta forma, desde o fim do ano de 1923, o
«Plano Dowes» que, em 1924, anuncia a «paz dura» reclamando a liquidação das
reparações e da ocupação (4).
É neste contexto idílico que o jovem padre americano-irlandês Spellman (36 anos),
amigo de Pacelli e de um íntimo deste último, o conde Enrico Galeazzi (que brevemente
se viria a encarregar dos fundos americanos reservados ao Vaticano), começou, em
1925, em Roma, a sua fulgurante carreira de tesoureiro dos «cavaleiros de Colombo».
Eram membros desta organização integrista algumas das maiores famílias financeiras
germano-americanas ou americano-irlandesas, tão anti-inglesas e anti-francesas como
5
anti-bolcheviques, cujo discurso inflamado escondia substanciais interesses temporais.
Às suas responsabilidades financeiras, essenciais, o futuro arcebispo de Boston
acrescenta a função de chefe dos serviços de informação americanos no Vaticano, a
qual se revelaria de uma grande importância durante e após a guerra que se seguiu.
Numa Europa afectada pela Grande Crise, o trunfo Vaticano mostrou-se cada vez mais
importante: assim foi em Outubro-Novembro de 1936, quando Pacelli e Galeazzi, os
«dois agentes principais dos cavaleiros de Colombo em Itália» partiram rapidamente
para Nova Iorque com vista à organização de «uma crise de tesouraria grave». O
Vaticano pôde, assim, aprofundar a sua ligação com os fiéis americanos que
começavam, então, a fazer cara feia ao «dízimo a São Pedro», utilizado, «praticamente
todo», ora num empréstimo ao «Sr. Mussolini» para que este pudesse ter os fundos
necessários para a «conquista da Abissínia», ora num apoio à rebelião franquista contra
a República espanhola. Pacelli discutiu com Roosevelt os meios existentes para
apaziguar os sobressaltos, incómodos para os dois Estados, quer da América latina (a
começar pelo México) quer de uma Europa na qual Washington pretendia preparar o
seu futuro: «o essencial da conversa entre ambos consistiu na discussão do perigo
crescente do comunismo», relatou um diplomata francês.
Ao mesmo tempo que dispensava consideráveis esforços, como durante a Primeira
Guerra Mundial, para manter os EUA na neutralidade, a Cúria ia mais longe no início da
Segunda. Colocando, uma vez mais, todas as suas forças em prol do germanismo, desta
vez aliado à Itália, no quadro do «Eixo», a Cúria estabeleceu com Roosevelt – que,
acrescente-se, era combatido pelos seus próprios seguidores – uma aliança quase
oficial: no final de 1939, ficamos a saber que seria nomeado «representante pessoal do
Presidente junto do papa Pio XII» o riquíssimo protestante Myron Taylor, antigo
presidente da US Steel, intimamente ligado, através dos seus investimentos, a Itália, na
qual era acolhido pela sua sumptuosa vila de Florença. Consagrada por financiamentos
estatais enormes, esta aliança, ambígua, é certo, nunca pôs em causa, em nenhuma
etapa da guerra, o forte apoio do Vaticano ao Reich. Nenhum dos dois aliados forçados
ignorava o carácter fingido desta ligação, mas os interesses de cada um acabavam por
encontrar o seu espaço de manobra: acrescente-ce que Washington visava, sobretudo,
beneficiar, neste início de conflito, através do Vaticano, de uma «fonte de informação
consideravelmente importante sobre a Alemanha, a Itália e a Espanha».
A aliança esteve em constante conflito até 1942, quando os EUA assumem como
prioridade a derrota do Eixo, condição de um novo compromisso com o Reich: o
pagador americano, via Spellman e o adjunto permanente de Taylor, Harold Tittman,
levantou, muitas vezes, a voz contra a concepção muito germano-italiana do «princípio
das nacionalidades» de Pio XII. Depois de Estalinegrado, torna-se mais importante a
remodelação futura da Europa, à imagem do que acontecera na primeira Paz. Esta etapa
decisiva da derrota da Alemanha atenua, um pouco, a urgência militar, colocando,
sobretudo, como questão fundamental os problemas do pós-guerra. Os conflitos entre o
Vaticano e a «prancha de salvação» americana nunca desapareceriam (apesar do furor
de Pio XII contra a «capitulação sem condições» exigida em Janeiro de 1943 pelos
anglo-americanos na conferência de Casablanca), contudo apaziguar-se-iam aquando do
estabelecimento de uma frente comum contra as consequências previsíveis da
participação da URSS na vitória aliada: a recuperação das fronteiras do antigo Império
russo (objectivo de guerra afirmado claramente desde o ataque alemão de Junho de
1941) e o controlo da Europa ocidental. Ambas as condições perturbavam seriamente o
6
Reich e distanciavam, igualmente, os EUA de uma zona sedutora, quer pela abundância
de matérias-primas agrícolas e industriais quer pelo preço da sua mão-de-obra (5).
Spellman tinha, em tempo de guerra, dirigido o serviço americano de informação em
Roma, batizado (praticamente como em 1915) «serviço do Vaticano de informações
para os prisioneiros e para os refugiados da guerra»: o seu vaivém permanente entre a
América e a Europa tinha, obrigatoriamente, de passar por Roma. Spellman caucionou a
organização, iniciada em 1943, de um serviço de resgate de criminosos de guerra,
dirigido por duas pessoas importantes da Cúria: uma, assumindo funções oficiais, o
secretário dos Assuntos ordinários, Montini, outro, promovido por Pacelli desde os anos
vinte, o austríaco Hudal, que assumiu um papel discreto em razão da sua precoce
admiração fervente do nazismo, a qual incluiu a exaltação do antissemitismo em todas
as suas dimensões. O dito serviço salva os favoritos da Cúria – dos nazis aos oustachis -,
reciclados na parte ocidental do continente ou no Novo Mundo latino-americano;
forneceu, igualmente, aos EUA, «especialistas» da luta contra o comunismo, preciosos
aliados contra a parte da Europa que estaria, pelo menos durante algum tempo, fora do
seu controlo.
Spellman recebeu o chapéu[6] no primeiro consistório[7] do pós-guerra (Fevereiro de
1946), o qual sancionou, entre outros sinais de apoio vaticano às «forças opostas ao
comunismo», a «americanização» da Igreja romama. Tão rico em apelidos como em
dólares – «cardeal dinheiro» (moneybags), «Richelieu do Texas» (l’Unità), «cardeal
secretário de Estado de Sua Santidade nos EUA» (pelos serviços de informação
franceses), etc. – o homem de negócios ligado aos Kennedy e construtor imobiliário fez,
até à sua morte, longas estadias, em Roma, em companhia, notadamente, do
«arquitecto do Palácio apostólico», Galeazzi, encarregado dos «relatórios financeiros
com a América do Norte» - «que nunca se chatearia por ninguém» excepto se fosse
pelo seu «amigo íntimo». Tendo continuado como o grande financiador do Vaticano,
detentor de enormes investimentos geridos pelo Chase, pelo First National City Bank e
pelo Continental Illinois (2 a 4 mil milhões de dólares para um rendimento anual de 800
milhões de dólares, no final dos anos quarenta), Spellman conta tanto para a vida
romana – e italiana – como o enraizado Taylor, que fazia tantas etapas em Roma como
o prelado. Ocupavam ambos funções decisivas no domínio das informações e da ação
no leste europeu «sovietizado».
É neste quadro que cresce a estrela Montini, símbolo do engajamento não apenas
americano mas, igualmente, germano-americano, do Vaticano de Pio XII. Montini foi,
sem dúvida, como o confirmou recentemente, após outras pesquisas, uma obra italiana,
o «principal agente do Vaticano» do Office of Strategic Services, e, mais tarde, do seu
sucessor, a CIA; os arquivos franceses catalogam-no imediatamente (desde os anos
trinta e da guerra) como um dos mentores da estratégia alemã do Vaticano. É sob a sua
autoridade que a hierarquia clerical do leste – dianteira das camadas sociais hostis às
mudanças internas induzidas pela sua inclusão na esfera soviética – se inseriu num
sistema de informação e de «ação psicológica» de uma grande eficácia contra os
regimes nascidos da relação de forças militares, na Primavera de 1945.
Segundo este ponto de vista, os EUA entregaram a realização de uma série de tarefas à
Igreja (até então mestre da sociedade civil), uma vez que esta se encontrava
infinitamente mais apta a assumi-las; o Russicum, extremamente germanizado, mas
também, doravante, americanizado, dominava através de uma missão inalterada.
Durante a Guerra da Coreia, Washington afirmou tão claramente essa cooperação e com
7
tanto despudor, que, em Outubro de 1951, Montini acaba por ficar incomodado,
afirmando estar «extremamente descontente» com o facto de se dar «a ideia de que o
Vaticano seria uma espécie de oficina de informações clandestinas que interessavam o
Segundo Gabinete americano». Numa Polónia mais violenta e hostil ao comunismo e aos
Sovietes do que todas as nações do leste, esta aliança revestiu formas espectaculares. A
Cúria episcopal de Cracóvia - feudo do velho príncipe Sapieha, depois de Baziak, outro
campeão da cruzada anti-russa (Pio XII manteve, no papel, este arcebispo latino à
cabeça da sede de «Lwow» - que se tornou na soviética Lvov, em 1945), antes de
Wojtyla (seu arcebispo auxiliar desde 1958) – teve um papel importante nesta
colaboração permanente. A América financiou as organizações católicas polacas e
assegurou as relações entre a Cúria e o episcopado, com o objectivo de as subtrair ao
controlo do estado polaco, muito antes da era «Solidariedade» e de Walesa. O
argumento, muitas vezes repetido, desde a proclamação da lei marcial de Dezembro de
1981, da «incapacidade do papa em comunicar com os seus bispos» (p. 288) não pode
ser aceite: a embaixada americana em Varsóvia – ela assim o afirma desde 1947,
quando apareceram as lembranças de Stanton Griffis, seu antigo titular – serviu, desde
o fim da guerra, de caixa de correios eclesiásticos e de distribuidor de liberalidades
contra o regime a destruir. Wojtyla, por seu lado, sob o impulso de Pio XII – por razões
alemãs que já evocámos num artigo anterior –, rapidamente se impôs (o livro fala
bastante deste momento) como «o homem de confiança do Vaticano na Polónia»,
favorito de Montini, que, por sua vez, se tornaria Paulo VI (p. 95 e sgs).
Quer dizer, os fenómenos descritos pelos dois autores da nossa obra têm continuidade
ao longo do século: esta Igreja de combate, fonte essencial de informações sobre o
estado geral do país e centro de ação política, preparava, depois de 1945 (mesmo
1943), o assalto ao pivô do «talude» soviético, sob a batuta do Vaticano e do
distribuidor da «mina de ouro» (expressão francesa que qualificava as actividades
romanas de Spellman em 1930): os arquivos franceses dos anos quarenta e cinquenta
repetem isso como uma ladainha. Deste permanente complô – os cépticos fariam bem
em ir consultar a correspondência diplomática, para verificrem que os ataques não eram
à Polónia, ou a regimes mitómanos ou paranóicos – e da durável crise económica dos
países socialistas, com descontentamentos populares, resultou, em última análise, o
sucesso. O estudo, a longo prazo, da importante dimensão sócioeconómica, parece-nos
que autorisa hipóteses mais frutuosas do que aquela do Deus ex machina a duas
cabeças – papa e presidente dos Estados-Unidos – esmagando o império do Mal com as
orações e a palavra. Empresa secundada, a obra admite-o largamente, pelos meios
consideráveis postos à disposição de uma Igreja dotada de todas as missões.
Esta instituição, após invocar os «direitos do homem» violados pelo comunismo –
direitos que ela recusava firmemente considerar relevantes na zona de influência da
«teologia da libertação» -, provou que não podemos abolir a história, de forma ligeira. A
Igreja polaca é responsável, tanto quanto o seu chefe, da «crise» do final do reino
wojtyliano – general de uma Europa oriental onde a miséria em massa sucedeu à
esperança largamente divulgada mas irrealista de um Mercedes-Benz para todos ou de
fundos americanos inesgotáveis: a obra estabelece este sombrio balanço com tanta
objectividade, que temos a impressão de não estarmos a ler o ou os mesmos
redactores, no final do volume.
O clero, alegado porta-estandarte das liberdades polacas, apressou-se, depois de ter
recuperado a totalidade do poder, a demonstrar que não tinha perdido nem uma das
suas tradições; a alegada ferocidade, em 1954, do padre de Lille, Desmettre, contra este
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modelo medieval de «Igreja espanhola», partilhada entre o integrismo e a «cobiça»
(desde o muito alto custo dos sacramentos ao puro e simples «tráfico de divisas»), não
tinha nada de excessiva, a julgar pela era clerical que a Polónia conheceu nos anos
1980.
Resta, quando se abrirem os arquivos, fazer «a história escondida da nossa época», do
lado das relações entre a Alemanha e o Vaticano. O pontificado de Wojtyla
correspondeu também à época em que o signatário da capitulação de maio de 1945,
rendido ao poder, começou a revisitar o statu quo europeu nascido da sua derrota: as
manobras dos americanos e do vaticano, que foram o objecto da obra, não esgotam a
questão da liquidação dos acordos de Yalta e de Potsdam, que fecha , sob o fundo de
uma crise gravíssima, a era de paz posterior à guerra.
NOTAS
As citações nas páginas são retiradas da obra analisada; as outras de arquivos cuja
referência precisa figura na nossa obra O Vaticano, a Europa e o Reich da Primeira
Guerra mundial à Guerra fria (1914-1955), Armand Colin, 1996.
(1) Sobre esta velha questão, essencial, ver Stewart A Stehlin., Weimar and the Vatican
1919-1933, German-Vatican Diplomatic Relations in the Interwar Years, Princeton,
Princeton University Press, 1983, cap. III e VI, Hansjakob Stehle, Eastern Politics of the
Vatican 1917-1979, Athens, Ohio, 1981, passim, o nosso livro Le Vatican, l'Europe et le
Reich, cap. 1, 2, 6, 10 e 11, e o nosso artigo «O sentido “polaco” do pontificado de Karol
Wojtyla», Golias, n° 50, setembro-outubro 1996, p. 61-75.
(2) Ver especialmente Carlo Falconi, Le silence de Pie XII 1939-1945, essai fondé sur
des documents d'archivesrecueillis par l'auteur en Pologne et en Yougoslavie, Monaco,
Ed. du Rocher, 1965, passim, James E. Miller,The United States and Italy, 1940-1950.
The Politics and Diplomacy of Stabilization, Chapel Hill, TheUniversity of North Carolina
Press, 1986, p. 162 e sgs. e a penúltima referência da nota 1, loc. cit.
(3) Ver Fritz Fischer, Les buts de guerre de l'Allemagne impériale 1914-1918, Paris,
Trévise, 1970, e Le Vatican, l'Europe et le Reich, passim.
(4) Ibid, cap. 4-5, Stewart A Stehlin., Weimar and the Vatican, cap. IV-VI, e Frank
Costigliola, Awkward Dominion: American Political, Economic and Cultural Relations with
Europe, 1919-1933, Ithaca, Cornell UP, 1984, cap. 3-4.
(5) Ficou claro, desde o Verão de 1941, que, em caso de vitória, a URSS recuperaria o
território do Império e uma vasta zona de segurança que permitisse proteger-se do
Reich; Roosevelt e os seus serviços – que recusaram discutir esta questão com Moscovo
– sabiam-no tão bem como os ingleses, os quais estiveram de acordo, desde 1942, com
os objectivos de guerra soviéticos (apesar de, em 1944-45, se terem tentado apoiar nos
americanos para escapar à inevitabilidade do que fora definido pelas posições militares
do final da guerra): ver Lynn E. Davis, The Cold War begins. Soviet-American conflict
over Eastern Europe, Princeton, Princeton University Press, 1974, obra que destrói o
discurso ideológico da “Guerra fria” – ainda pouco madura na Europa – sobre as
«concessões» excessivas consentidas pelos anglo-americanos em Yalta.
(6) Ennio Caretto e Bruno Marolo, Made in USA. Le origine americane della republica
italiana; Rizzoli, 1996: após Werner Brockdorff., Flucht vor Nürnberg. Pläne und
Organisation der Fluchtwege der N-S Prominenz im «Römischen Weg», Verlag
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Welsermühl, Munich-Wels, 1969, Tom Bower., Blind eye to murder. Britain, America and
the purging of Nazi Germany, a pledge betrayed, London, André Deutsch, 1981, Mark
Aarons e Jonh Loftus, Des Nazis au Vatican, Paris, O. Orban, 1992; e antes Le Vatican,
l’Europe et le Reich, cap. 10-11 (dos anos trinta à Guerra, cap. 8-10). Esta obcessão
antissoviética, impondo o uso intensivo dos carrascos da Europa, atingiu o jovem
Hilberg, na época em que o governo Americano o empregava na exploração de uma
parte do seu enorme «espólio de arquivos alemães», Raul Hilberg, La politique de la
mémoire, Paris, Gallimard, 1996, p. 67-68.
[1]O uniatismo foi uma solução encontrada pela Igreja católica, na sua busca de
união com as Igrejas orientais, especialmente eslavas [NT] .
[2]Russicum (Faculdade Pontifical Russa): a faculdade católica romana
alegadamente dedicada aos estudos da espiritualidade na Rússia [NT].
[3]Anexação (da Polónia pela Alemanha) [NT]
[4] De Tito (Josip Broz 1892-1980), líder dos partisans durante a II Guerra Mundial e
Presidente da Jugoslávia entre 1953 e 1980 [NT]
[5]Região da Croácia [NT]
[6]De cardeal [NT]
[7]Assembleia de cardeais da Cúria romana, por vezes com outros
membros,convocada e presidida pelo papa [NT]
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