A experiência artística na clínica

Propaganda
A experiência artística na clínica
Alberto Andrés Heller1
O consulente encontra-se à minha frente: seus movimentos – pés, mãos, rosto,
tronco - formam uma dança, e mesmo as interrupções que vão ocorrendo fazem parte
dessa dança. Talvez não uma dança em sentido tradicional, mas ainda assim, uma
dança. De repente, o consulente suspira e olha pela janela – descortina-se à minha frente
um quadro, belíssimo e profundo. Ouço aquele momento de silêncio, atravessado por
uma leve brisa que balança a cortina e pelo canto ocasional de pássaros, e desse fundo
irrompe a voz do consulente, reatando a frase melódica do suspiro – pura música. Há
cheiros, que perpassam minhas narinas e meus lábios, condensando-se sobre minha
língua e transformando-se em gosto; saboreio e engulo seu perfume. Estou ali, com
todos os meus sentidos, fazendo parte da dança, do quadro, da música, da cena.
Sentidos que se entrelaçam, reversíveis: tateio com os olhos, ouço com o corpo,
vejo com os ouvidos. Não se trata de metáfora nem de linguagem poética, mas de uma
experiência muito própria (apropriadora, apropriante). Algo se cria em nós – mas como
falar em criação se isso que em mim se apropria surge quase como uma passividade? É
difícil pensar-se em criação sem cair em armadilhas semânticas, lógicas discursivas nas
quais quem cria, cria alguma coisa – e a partir de onde se infere a existência de um
sujeito que faz alguma coisa (sujeito, verbo, predicado, objeto, causalidade, passado,
futuro, linha temporal etc.). Na experiência acima descrita diluem-se os sujeitos,
diluem-se os espaços e as temporalidades. Mais que uma vivência estética, é uma
experiência ética.
Há muito a se discutir em relação à dimensão artística na prática clínica (e não
me refiro aqui às diversas formas de arte-terapia). Essa dimensão costuma emperrar ou
perder-se quando inserido o conceito (congelante) de “Arte”. O artista não lida com
arte, lida com o vazio, e neste campo não há segurança alguma; a cada processo/obra,
um novo vazio, uma nova angústia. O artista não aprende a dar forma aos vazios; no
máximo, aprende a conviver e a deleitar-se com eles.
Artista e Gestalt-Terapeuta - Instituto Müller-Granzotto. Autor dos livros “Fenomenologia da expressão
musical” e “John Cage e a poética do silêncio”.
1
Download