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O direito sobre a placenta
Rafael Felício Jr. *
De todos os órgãos do corpo humano, a placenta é o único que surge na
mulher durante a gestação e é eliminado pelo corpo após o nascimento do
bebê. Presente na maior parte dos mamíferos, a placenta é responsável por
fornecer oxigênio ao bebê, ajudar a movimentar a massa sanguínea, mantendo
a circulação entre o feto e sua mãe, depura e regula os líquidos no corpo do
nascituro, dentre outras funções.
A placenta sempre teve papel importante em diversas culturas, dispondo,
geralmente, de rituais para o seu tratamento após o parto. Em alguns países do
ocidente, a placenta é incinerada. Alguns povos enterram a placenta, pelos
mais diversos motivos, como por exemplo os Maoris da Nova Zelândia, que
enterram a placenta de um recém-nascido no intuito de melhorar o
relacionamento entre os seres humanos e a Mãe Natureza. Da mesma forma,
os índios Navajo dos Estados Unidos enterram a placenta e o cordão umbilical
em um lugar sagrado para eles, particularmente no caso do bebê morrer no
parto. No Camboja e na Costa Rica, enterra-se a placenta acreditando que a
prática protege e assegura a saúde do bebê e da sua mãe. Se a mãe morrer no
parto, o povo Aimará da Bolívia enterra a placenta em um lugar secreto, para
que o espírito da mãe não venha a reivindicar a vida de seu filho. O povo Ibo
(ou Igbo) da Nigéria considera a placenta como o gêmeo morto do bebê e
conduz um verdadeiro funeral para ela. Ainda em algumas culturas e religiões,
a placenta é comida. A prática se chama placentofagia.
A placenta humana também tem aplicação medicinal e cosmética, com origem
no mundo oriental, mas já espraiada no ocidente.
Muito embora as realidades acima se verifiquem, no Brasil a placenta é
rotineiramente jogada no lixo, de acordo com a visão moderno-tecnológica do
parto. Profissionais da área médica, bem como a maioria dos hospitais
consideram a prática como padrão e, ao receber um pedido diferente, por
muitas vezes impedem que as donas dos órgãos dêem qualquer outro destino
à placenta que não seja o lixo.
As Recomendações da Organização Mundial de Saúde para o nascimento
estabelecem que:
“AS INSTITUIÇÕES DE SAÚDE DEVEM
(...)
8- Preservar o direito das mulheres parirem em instituições, de decidir sobre a
sua roupa e o bebê, sobre a alimentação, o destino da placenta, e outras
práticas culturalmente significantes.”
Em setembro de 2001, durante o V Congresso Mundial de Medicina Perinatal,
os congressistas elaboraram um manifesto chamado de DECLARAÇÃO DE
BARCELONA SOBRE OS DIREITOS DA MÃE E DO RECÉM-NASCIDO, com
vistas a “conseguir que no século XXI, o processo reprodutivo humano, em
qualquer parte do mundo, fosse obtido, em condições de bem estar físico,
mental e social, tanto para a mãe quanto para o filho”. A declaração em seu
item 12, praticamente reproduziu o constante das recomendações da OMS,
mas é bom transcrever:
“12. As mulheres que dão à luz em determinada instituição tem direito a decidir
sobre a vestimenta (própria e do recém-nascido) destino da placenta e outras
práticas culturalmente importantes para cada pessoa”
Nota-se que a legislação pátria, bem como resoluções e pareceres do CFM,
são silentes sobre o assunto “livre disposição da placenta”. Desta forma, há
que se trazer a lume o Art. 5º, inciso II da Constituição Federal, que traz, in
verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei;
Assim sendo, não havendo disposição expressa da lei para que haja o descarte
da placenta para o lixo hospitalar, não há que se obrigar a dona (grife-se bem a
palavra “dona”) do órgão a dispor sobre esta parte do seu corpo de tal maneira.
Ainda em sede constitucional, como já expusemos no início deste trabalho, é
fato que algumas religiões têm a placenta como parte de sua doutrina, optando
algumas pessoas por comê-la (como a Cientologia, por exemplo) ou então
enterrá-la junto a uma árvore, por exemplo. Desta forma, mostra-se ilegal
obrigar a mulher a jogar sua placenta no lixo hospitalar, já que também pode
impedir o pleno direito da liberdade religiosa, protegido pelo inciso VI do já
aludido Artigo 5º da Constituição Federal (“é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas
liturgias”).
Também O Código Civil brasileiro protege o direito de disposição da placenta
por sua dona, conforme reza o Art. 13, que dispõe:
Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio
corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou
contrariar os bons costumes.
Ora, a lei é clara em afirmar que, havendo diminuição permanente da
integridade física ou contrariando-se os bons costumes, é proibida a disposição
de partes do corpo. Através de simples análise, percebe-se que a livre
disposição da placenta não importa em diminuição permanente da integridade
física (pois é um órgão que é naturalmente eliminado após o parto) e nem é
atentatória aos bons costumes (pois não é imoral uma mãe querer levar a sua
própria placenta para casa) e desta forma, concluímos que compete à dona do
órgão placentário dispor desta parte de seu corpo da maneira que lhe convier,
a menos que haja exigência médica razoável que impeça o ato.
O Código de Ética Médica, em seu Art. 48, proíbe o médico de “Exercer sua
autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre
a sua pessoa ou seu bem-estar.”, o que também pode acarretar na
responsabilização do profissional da medicina que obrigar a paciente a destinar
sua placenta ao lixo hospitalar.
Desta forma, não há dúvidas de que a placenta pertença à mulher e que a ela
cabe a decisão de dispor desta da maneira que mais lhe aprouver. Talvez seja
a falta de hábito em atender pessoas que queiram dar destino diferente do lixo
que leve o médico ou o hospital a se surpreender e alegar que a placenta tenha
que obrigatoriamente ficar no hospital para descarte. Porém, tal pretensão é
totalmente carente de fundamento legal.
Apenas a título de informação, como já dissemos anteriormente, a placenta tem
sido usada como matéria prima na indústria de cosméticos e de remédios.
Porém, se a idéia é levar a placenta para casa no intuito de vendê-la, deve-se
lembrar da Lei 9.434/97, que em seu Art. 15, prevê como crime a venda de
tecidos, órgãos (como é o caso da placenta) ou partes do corpo humano, com
a pena de reclusão de 3 a 8 anos e multa de 200 a 360 dias-multa.
Não podendo esgotar o assunto nesta breve reflexão, aceitamos sugestões,
bem como estamos abertos a dirimir as dúvidas que possam surgir em virtude
deste
artigo,
bastando
entrar
em
contato
através
do
e-mail
[email protected].
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Schmid, Verena, “Venire al mondo e dare alla luce. Percorsi di vita attraverso la
nascita”. Milano, Urra, 2005, pp. 194-5. Tradução por Adriana Tanese
Nogueira.
"Why
eat
a
placenta?".
BBC.
2006-04-18.
http://news.bbc.co.uk/1/hi/magazine/4918290.stm. Acesso em 24/05/2009.
Metge, Joan. "Working in/Playing with three languages: English, Te Reo Maori,
and Maori Body Language."
Francisco, Edna. "Bridging the Cultural Divide in Medicine". Minority Scientists
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http://sciencecareers.sciencemag.org/career_development/previous_issues/arti
cles/3360/bridging_the_cultural_divide_in_medicine/. Acesso em 24/05/2009.
Buckley, Sarah J. "Placenta Rituals and Folklore from around the World".
Mothering.
http://www.mothering.com/articles/pregnancy_birth/birth_preparation/amazing_
placenta_side.html. Acesso em 24/05/2009.
Davenport, Ann (June 2005). "The Love Offer". Johns Hopkins Magazine.
http://www.jhu.edu/~jhumag/0605web/ruminate.html. Acesso em 24/05/2009.
Falcao,
Ronnie.
"Medicinal
Uses
of
the
Placenta".
http://www.gentlebirth.org/archives/eatplcnt.html. Acesso em 24/05/2009.
BRASIL, Constituição Federal
BRASIL, Código Civil
BRASIL, Código de Ética Médica
* Advogado e Consultor Jurídico.
Disponível em:
http://www.artigonal.com/doutrina-artigos/o-direito-sobre-a-placenta934643.html
Acesso em: 29 mai.2009.
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