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Campinas, 8 a 14 de agosto de 2016
Cartografia de maravilhas
Dissertação aborda a representação do maravilhoso no imaginário medieval e renascentista
LUIZ SUGIMOTO
[email protected]
m estudo sobre a representação do maravilhoso – um apanhado de seres, povos, ilhas e
países fantásticos – no imaginário medieval e renascentista,
mostra como a visão de mundo pelo homem
vai se modificando ao longo do período, vindo inclusive a se tornar, posteriormente, uma
justificativa para o racismo e a escravidão.
“Um maravilhoso imaginário” é o título da
dissertação de mestrado do historiador Leonardo Meliani Velloso, que inclui uma minuciosa análise da cartografia medieval como
receptáculo deste imaginário. A pesquisa
teve a orientação do professor Paulo Celso
Miceli, no Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) da Unicamp.
Leonardo Meliani aborda os chamados
livros de maravilha, ou mirabilia (do verbo
mirar), do final da Idade Média, que estão
inseridos na antiga tradição de descrição de
lugares fantásticos localizados nos extremos
do mundo conhecido. “Eu analiso especialmente dois livros, As Viagens de Jean de Mandeville e o Libro del Conosçimiento (ambos do
século 14), que trazem conteúdos similares,
mas intenções diferentes. O primeiro é um
relato de viagens e, o segundo, um livro de
geografia, que se propõe a descrever todos
os países conhecidos até então, com seus
respectivos brasões – esta obra tem servido
como referência para estudos em heráldica.”
O historiador também procura traçar as
origens da representação do maravilhoso
conversando com obras da Antiguidade (a
exemplo de a História, de Heródoto, e História Natural, de Plínio, o Velho) e da alta Idade
Média (como as Etimologias de Santo Isidoro
de Sevilha). “Os livros de maravilha trazem o
blêmio (homem sem cabeça e o rosto no peito) de Heródoto, o cinocéfalo (homem com
cabeça de cachorro), a Fênix, o grifo (cabeça e asas de águia e corpo de leão) e outras
criaturas da mitologia grega. Existe uma permanência deste imaginário que chega até as
narrativas de viagem.”
Meliani reservou um capítulo para um
histórico da cartografia produzida no período, seguindo a divisão em três grupos de
mapas proposta pelo historiador português
Luís de Albuquerque: as representações esquemáticas, o mapa T/O e os enciclopédicos
(grandes atlas do Renascimento). “Os mapas
esquemáticos dividem o mundo por zonas
climáticas (os polos, os trópicos e o círculo
equinocial). Havia a crença de que era habitável apenas a zona temperada do norte, entre o círculo equinocial e a região polar, onde
estava o mundo conhecido; a zona temperada do sul também seria habitável, mas desde
que se atravessasse a zona tórrida (do Equador), algo tido como impossível.”
O mapa T/O, segundo o pesquisador,
também é esquemático e apresenta a Terra
dividida nos três continentes então conhecidos – Europa, Ásia e África – cortados ao
meio pelo Mediterrâneo e os rios que, acreditava-se, nasciam no ‘Paraíso Terrestre’ e
alcançavam o Mar Oceano. “Os rios, o Mediterrâneo e o Mar Oceano formam um T e
um O. Além disso, o T forma uma cruz, refletindo forte representação teológica da Terra,
dada por Santo Agostinho e outros teólogos
da Idade Média. É comum, também, ver os
três continentes com os nomes de Sem, Cam
e Jafé, ou seja, o mundo tripartido entre os
filhos de Noé.”
O autor do estudo segue explicando que
os mapas enciclopédicos ainda carregam esta
característica esquemática (com o Mar Oceano e a representação do T rearranjada na
figura de Cristo), mas já procurando repre-
Publicação
Dissertação: “Um maravilhoso imaginário”
Autor: Leonardo Meliani Velloso
Orientador: Paulo Celso Miceli
Unidade: Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH)
Imagens: Divulgação
Na sequência, os mapas de
Ebstorf, Hereford e T/O (acima):
estudo apresenta um histórico
da cartografia
sentar tudo o que se conhecia sobre o mundo. “Vemos representações mais detalhadas
da Europa, África, Ásia e de cidades, pessoas
famosas, povos, figuras mitológicas e cenas
religiosas. É comum encontrar Jerusalém
do centro do mapa, devido ao imaginário de
que o centro espiritual do mundo, a ‘Terra
Prometida’, deveria ser também o centro do
mundo físico.”
Outra representação comum apontada
por Leonardo Meliani é a do “Paraíso Terrestre”, tanto nos mapas como na literatura de
viagem. “Há um debate constante sobre este
imaginário: alguns representam o paraíso
com as figuras de Adão, Eva e a árvore do fruto proibido; outros não entendem o paraíso
como um lugar maravilhoso e perfeito. A sua
localização é mais um motivo de debate: se
para a teologia cristã o paraíso está a leste, as
tradições pagãs europeias, como a escandinava, representam este lugar maravilhoso, fértil
e de enormes fortunas a oeste – a exemplo do
mito da ilha de Hy-Brazil.”
Entretanto, com a chegada do homem
europeu à América no final do século 15, há
um deslocamento do “Paraíso Terrestre” da
Ásia para a o novo continente. “O horizonte
maravilhoso é deslocado, incluindo outros
mitos, como o ‘País das Amazonas’, de quan-
do sir Walter Raleigh chegou à Amazônia e
registrou em seu diário a visão dos índios de
cabelos longos e peles lisas, portando arco
e flecha. Da mesma forma, a visão do europeu ao chegar à América é de um lugar fértil,
rico em frutas, fauna e flora. Tudo isso que
vemos representado nos mapas e na literatura de viagem compõe um imaginário que
se propaga ao longo da Idade Média e pelo
Renascimento.”
AS CINCO TRADIÇÕES
A partir do terceiro capítulo, Meliani passa a cumprir a intenção do seu estudo: mostrar como este imaginário vai se modificando
ao longo do período, com suas permanências
e diferenças. “Foco as cinco tradições culturais que desenham este imaginário: a tradição clássica (greco-romana), germânico-escandinava, gaélico-bretã, hebraico-cristã e
a oriental. Da tradição clássica trabalho com
pensadores como Heródoto, Hesíodo e Plínio, o Velho. Plínio escreveu a obra História
Natural, que foi de grande influência para As
Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha, um
livro lido ao longo de toda a Idade Média, o
que significa dizer que este conhecimento da
antiguidade se propaga, ainda que existam
modificações ao longo do período.”
O pesquisador vê os escandinavos, que
depois seriam os vikings a invadir a Europa Continental e as Ilhas de Bretanha, e os
germânicos do norte da Europa, como povos
com similaridades culturais que o levaram a
agrupá-los na tradição germânico-escandinava. Pelo mesmo motivo, reuniu todos os
povos da Gália e da Bretanha na tradição gaélico-bretã. “Já a tradição hebraico-cristã é de
imensa importância, visto que a teologia cristã marca todo o imaginário do período. Por
último, temos a tradição oriental, agrupando
povos do Oriente Médio e Extremo Oriente.
Poucas obras do mundo oriental chegaram
à Europa, mas mais relevantes são as imagens que os ocidentais faziam do Oriente:
seja do sarraceno ou árabe como inimigo da
cristandade, seja do Extremo Oriente como
horizonte onde se encontrariam tesouros e o
paraíso terrestre.”
De seu apanhado de representações do
maravilhoso nestas tradições culturais, o
autor da dissertação destaca a figura do gigante, que habita o imaginário do homem
do período. “Vamos encontrar o gigante nas
mitologias escandinava e grega, nos livros
de viagem do final da Idade Média e do Renascimento e mesmo em obras de literatura como Gargântua e Pantagruel, de François
Rabelais. Também vemos os homens com
particularidades físicas: além do blêmio e do
cinocéfalo, podemos encontrar um homem
de orelhas muito grandes, outro com o pé
enorme que o protege do sol, o hermafrodita, a sereia. E os animais fantásticos: o grifo,
o dragão, a serpente marinha e a quimera
(mistura de animais diversos).”
Meliani abordou ainda os lugares fabulosos como o País das Amazonas e a Hiperbórea – país setentrional onde as pessoas
viveriam centenas de anos. “Exemplo interessante é o reino de Preste João, um país
cristão no meio do mundo muçulmano.
Durante a Idade Média, uma carta de Preste
João chega a alguns reis europeus, deixando-os fascinados, especialmente os portugueses, que enviam diversas expedições, todas mal sucedidas, para encontrar um reino
que seria riquíssimo, onde o trono do rei
era em ouro maciço e cravejado de joias – a
idealização do reino cristão perfeito.”
O PORQUÊ
DA REPRESENTAÇÃO
Ao procurar entender o porquê da representação destes lugares fabulosos, o
historiador conclui que, para o imaginário
medieval, não existia diferença entre o que
hoje sabemos ser real e o fantasioso. “O maravilhoso era tudo aquilo que fascinava. Não
se diferenciava a Fênix da águia, eram duas
aves; o grifo era um animal tão fantástico
quanto o elefante; Prestes João era tão impressionante quando o imperador Khan de
Catai – hoje sabemos que os Khan da China
existiram, ainda que não fossem como descritos por Marco Polo. Importava que fossem figuras maravilhosas.”
Voltando aos seus dois documentos
principais, As Viagens de Jean de Mandeville e
o Libro del Conosçimiento, Leonardo Meliani
divide as descrições em três partes: homens
e mulheres, animais e plantas, e cenários.
“Em relação aos povos, descreve-se o que
era diferente. Jean de Mandeville, ao chegar
à Núbia, escreve que ‘os núbios são cristãos,
porém negros’; não precisava descrever a
religião dos núbios, pois seu leitor era um
cristão igual, o diferente estava na pele. Da
mesma forma, ao descrever os gregos, ele
não vai se ater à fisionomia, mas ao cristianismo ortodoxo e seus rituais diferentes.
Em lugares onde as pessoas andavam nuas,
destacava-se a nudez.”
O pesquisador vê na descrição do que é
diferente uma questão de alteridade, sustentando-se no conceito de François Hartog
sobre as duas formas de descrever o outro:
a inversão ou a diferenciação. “No caso, o
outro é o oposto de mim (anti-A) ou o diferente de mim (A e B). Percebe-se ainda uma
gradação. Jean de Mandeville, ao descrever
povos similares, começa pelos ‘cristãos imperfeitos’ como os gregos, que celebravam
a missa de forma diferente. Em seguida, o
exemplo dos sarracenos, que eram de outra
religião e a seguiam com retidão, podendo
ser convertidos em bons cristãos. E, no último grau de descrição positiva, o Khan de
Catai, que apesar de não ser cristão, era admirável e um exemplo a ser seguido pelos
cristãos.”
Por outro lado, outros povos não mereciam a empatia de Jean de Mandeville, o
que leva Leonardo Meliani a recorrer a um
conceito de Todorov, sobre ‘o outro’ positivo e ‘o outro’ negativo. “Mandeville descreve alguns povos muçulmanos, como os
beduínos, enquanto bárbaros em quem não
se podia confiar; os povos antropófagos já
caem no monstruoso e não são tratados
como homens, ficando ao nível dos blêmios
e dos cinocéfalos. Colombo, quando chega à
América, vê o índio bom, possível de ser catequizado, e o índio mau, a ser escravizado.
Se o negro era tão diferente, um ser inferior,
para os europeus era justificável escravizá-lo. Esses discursos de negatividade e monstruosidade vão ser utilizados para justificar
outros discursos que se propagam para muito além do imaginário, como a escravidão e
o racismo. A ideia do meu estudo é justamente entender como este imaginário está
representado e o que ele acarreta.”
Livros circulavam
entre os iletrados
O historiador Leonardo Meliani sustenta
que embora os livros de maravilha fossem
lidos por uma elite intelectual da corte e do
clero, o imaginário ali descrito também afetava
a população de forma geral. “Em O Queijo e os
Vermes, famoso livro de micro-história, Carlo
Guinzburg conta sobre Menocchio, um moleiro
perseguido pela Inquisição, que possuía vários
livros, entre eles As Viagens de Jean de Mandeville. Menocchio trabalhava em um moinho,
o que atesta que os livros de maravilha circulavam entre a população comum.”
Foram registradas aproximadamente 250
cópias do livro de Mandeville espalhadas pela
Europa, em latim, inglês, francês, espanhol,
italiano e, com o advento da imprensa, a obra
se tornou ainda mais frequente. “É verdade
que havia poucas pessoas letradas, mas temos a questão da oralidade, que é bastante
forte na Idade Média. O próprio Marco Polo
ditou as suas viagens para um escriba. O viajante voltava e simplesmente contava sobre os
lugares que visitou, descrevendo suas maravilhas, como fazemos hoje.”
Meliani pôde confirmar a importância
da oralidade medieval nos próprios livros de
maravilha, sendo que a descrição do autor era
tomada como autoridade, sem contestação.
“Chegando à ilha de Lango, Mandeville afirma
que ali está um dragão, a filha de Hipócrates,
convertida na criatura mitológica: ‘Assim me
disseram, pois eu não vi’, acrescenta. Não se
contestava a oralidade do outro: ele não precisava ver o dragão, simplesmente porque lhe
disseram que estava ali. Da mesma forma,
descreveu a Fênix conforme os sacerdotes
lhe contaram: que a ave fabulosa surgia de
500 em 500 anos e se deixava arder em braseiro, para em seguida renascer das próprias
cinzas.”
A propósito, o pesquisador explica que há
um debate se Jean de Mandeville percorreu
tantos lugares, sendo quase unânime que não,
e que sua própria identidade é debatida, com a
hipótese de que ele seria o alter ego de outro
escritor, François de Bourgogne. “Mandeville se
apresenta como um cavalheiro inglês e como
tal era lido. Já no primeiro capítulo de As Viagens..., afirma que descreverá o caminho para
Jerusalém: sai da Inglaterra, atravessa a Europa, descreve o Oriente Médio e segue além
da Terra Santa, chegando à China e a ilhas do
Extremo Oriente – é uma viagem praticamente
impossível para a época.”
Segundo Leonardo Meliani, era comum que
os autores de livros de viagem descrevessem
o que realmente viram e, também, fizessem
compilações de outras obras. “Durante a Idade
Média, eram práticas comuns se apropriar de
outros textos ou utilizar o nome de autores já
reconhecidos para valorizar o que se escrevia.
O Khan de Catai de Jean de Mandeville é praticamente uma cópia do imperador descrito por
Marcolo Polo. O Libro del Conosçimiento tem
intenção enciclopédica, descrevendo cada cidade com seu brasão do lado, mas os países
são os mesmos e ambos os livros mencionam
o reino de Preste João e Khan da China, assim
como povos e monstros parecidos. O autor do
Libro é anônimo, mas a escrita arcaica e as cópias limitadas confirmam a hipótese de que se
trata de um monge espanhol.”
Imagens: Divulgação
Foto: Antonio Scarpinetti
O historiador Leonardo
Meliani Velloso, autor
da pesquisa: “Tudo isso
que vemos representado
nos mapas e na literatura
de viagem compõe
um imaginário que se
propaga ao longo da Idade
Média e pelo Renascimento”
À esquerda, cinocéfalo, blêmio, homem de pé gigante e homem de orelhas imensas; acima, Fênix
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