vigotski: desmistificando equívocos e resgatando seu estatuto

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 REVISTA ELETRÔNICA ARMA DA CRÍTICA | ANO 2: NÚMERO ESPECIAL | DEZEMBRO 2010 | ISSN 1984‐4735
VIGOTSKI: DESMISTIFICANDO EQUÍVOCOS E RESGATANDO
SEU ESTATUTO MARXISTA
Patrícia Tereza Santos Torres1
Edna Bertoldo2
A dialética abarca a natureza, o pensamento, a história: é a ciência
em geral, universal ao máximo. Essa teoria do marxismo psicológico
ou dialética da psicologia é o que considero psicologia geral.
Vigotski
Resumo
O objetivo deste artigo consiste em desmistificar alguns equívocos existentes
na literatura vigente sobre as obras de Vigotski, que consistem em tomar as
concepções epistemológicas e ideológicas de Vigotski e Piaget sem suas
devidas distinções. Pesquisas marxistas, a exemplo daquela desenvolvida por
Carmo (2008), constatam que, nos estudos sobre Vigotski, se dá a substituição
da centralidade ontológica da categoria trabalho pelas categorias linguagem,
interação, entre outras. A difusão das obras de Vigotski sem sua base
fundamental – a teoria social de Marx – vem tendo ampla inserção nos
programas oficiais, nos discursos dos professores, nas formações continuadas
e em disciplinas oferecidas nos cursos de pós-graduação, tanto do Brasil como
do exterior. Constata-se que, além de ser visível a ausência do referencial
marxista nas obras de Vigotski que são disseminadas no Brasil, elas
apresentam também problemas de tradução, conforme constatação de Duarte
(2006). O resultado disto tem sido a apropriação da teoria de Vigotski pelo
neoliberalismo e a descaracterização da sua base teórica marxista. Conclui-se
que a categoria trabalho, fundamental na abordagem marxista, aparece como
eixo central nas análises de Vigotski.
Palavras-chave: Vigotski. Marxismo. Trabalho.
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação, Programa de Educación, Maestría en Política y
Gestión de la Educación do Instituto Universitário – CLAEH/Uy.
2
Professora do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Líder do
Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação e Ontologia Marxiana, vinculado ao Programa de PósGraduação em Educação da UFAL.
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VIGOTSKI: DESMISTIFICANDO EQUÍVOCOS Y RESGATANDO SU
ESTATUTO MARXISTA
Resumen
El objetivo de este artículo es aclarar algunos conceptos erróneos existentes en
la literatura sobre los trabajos de Vygotsky, que consisten en la adopción de las
concepciones epistemológicas y ideológicas de Vygotsky y Piaget, sin sus
distinciones adecuadas. La investigación marxista actual, como la que
desenvolvió Carmo (2008), encuentra que, en los estudios de Vygotsky, toman
el lugar de la centralidad ontológica del trabajo, otras categorias, como la
lenguage, la interacción, entre otros. La difusión de las obras de Vygotsky sin
su piedra angular - la teoría social de Marx – predomina de manera amplia en
programas oficiales, en discursos de los maestros en formación continua y en
disciplinas que se ofrecen en los cursos de posgrado en Brasil y en el
extranjero. Parece que además de ser visible la ausencia de sus bases
marxistas, el trabajo de Vygotsky, que se difunde en Brasil, también tiene
problemas de traducción, como lo indica Duarte (2006). El resultado ha sido la
apropriación de la teoría de Vygotsky por el neoliberalismo y la caracterización
equivocada de su base teórica marxista. Se concluye que la categoría trabajo,
el enfoque marxista fundamental, aparece como la pieza central en el análisis
de Vygotsky.
Palabras clave: Vigotski. Marxismo. Trabajo.
Introdução
Parece contraditório, mas nosso interesse pelos estudos da teoria de
Vigotski surge a partir do construtivismo de Piaget, que nos foi apresentado na
academia como sendo uma teoria de caráter crítica que, além de fornecer
respostas aos problemas cotidianos da escola, goza de grande prestígio no
meio educativo. O construtivismo é uma das correntes3 teóricas que mais
fundamentam a educação brasileira, com presença marcante nos Parâmetros
Curriculares Nacionais - PCNs - e em todos os documentos oficiais.
A base do construtivismo é a Escola Nova e ambos se assemelham
quanto ao fato de conceberem o sujeito como elemento central no processo
3
Para alguns, trata-se de uma teoria sobre conhecimento e aprendizagem (FOSNOT); para
outros, consiste numa perspectiva epistemológica, preocupada em explicar o desenvolvimento
humano (LUQUE; ORTEGA; CUBERO); outros, ainda, consideram que é uma abordagem
pedagógica, fundamentada em uma ou mais teorias psicológicas da aprendizagem ou do
desenvolvimento, fundada no princípio de que o aluno deve ser o agente de seu próprio
conhecimento (MIRANDA).
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educativo, reservando ao professor um papel secundário, que consiste em
facilitador da aprendizagem.
O escolanovismo, movimento educativo que tomou uma imensa
proporção nos últimos anos, além do aspecto acima referido, segundo Saviani
(1999), faz o deslocamento da razão para a emoção, do lógico para o
psicológico, do esforço para o querer e da disciplina para a espontaneidade.
Sua proposta consiste em formar um sujeito crítico, pesquisador,4 autônomo,
sendo o próprio sujeito o único responsável pelo seu avanço ou por seu
fracasso.
Esta perspectiva pode oferecer suporte ao modelo do novo trabalhador
para o mercado de trabalho capitalista, cujas características são as seguintes:
Um ensino de qualidade, que busca formar cidadãos capazes de
intervir criticamente na realidade para transformá-la, deve também
contemplar o desenvolvimento de capacidades que possibilitem
adaptações às complexas condições e alternativas de trabalho que
temos hoje e a lidar com rapidez na produção e na circulação de
novos conhecimentos e informações, que têm sido avassaladoras e
crescentes. A formação escolar deve possibilitar aos alunos
condições para desenvolver competência e consciência profissional,
mas não restringir-se ao ensino de habilidades imediatamente
demandadas pelo mercado de trabalho. (BRASIL apud DUARTE,
2006, p. 64).
Na compreensão de Duarte, predomina nos PCNs a concepção segundo
a qual não se deve perder tempo com discussões políticas e ideológicas e de
não se formar o indivíduo para interferir criticamente na realidade visando
transformá-la. Na verdade, encontra-se presente a defesa do mercado, o qual
4
O debate sobre a formação do professor pesquisador tem adquirido relevância nos cursos
de formação de professores. De Piaget a Paulo Freire, todos admitem que o professor deve
ser um pesquisador. Para Piaget (apud FACCI, 2004, p. 117), “só se aprende realmente a
psicologia infantil colaborando com pesquisas [...]”. Os professores “[...] podem aprender a se
tornarem pesquisadores e a ultrapassarem o nível de simples transmissores”. Paulo Freire,
na obra Pedagogia da autonomia (2007, p. 12, grifo nosso), diz o seguinte: “Fala-se hoje, com
insistência, no professor pesquisador. No meu entender o que há de pesquisador no
professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar, que se acrescente à de
ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa e a
criação. O de que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e
se assuma como pesquisador”. Atualmente, Pedro Demo é um dos principais difusores do
paradigma afeto ao professor pesquisador, com a publicação de algumas obras, a saber:
Educar pela pesquisa (2008), Professor do futuro e reconstrução do conhecimento (2004),
Pesquisa: princípio científico e educativo (1991). 145
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deve ser respeitado em seu caráter dinâmico, posto que exige um processo de
adaptação constante e, portanto, também dinâmico, por parte dos indivíduos.
Tendo em vista o processo de adaptabilidade em curso, que marca os
processos de formação humana, as teorias acabam sendo um instrumento
fundamental. Não é sem razão que nos discursos educacionais e nos
documentos oficiais verifica-se a predominância de uma relação de igualdade
entre Piaget e Vigotski, em seus aspectos ideológicos e epistemológicos. E isto
tem contribuído para uma visão equivocada da concepção marxista de Vigotski,
que concebe a psicologia geral como a teoria do marxismo psicológico ou
dialética da psicologia.
Com a finalidade de nos contrapormos às análises em voga, este artigo
busca resgatar o caráter marxista das obras de Vigotski, partindo, para tanto,
da análise da categoria trabalho. Entendemos que este é um caminho que
permite restituir à teoria de Vigotski o seu estatuto marxista, tendo em vista que
a literatura em geral predominante retira de suas análises a categoria trabalho,
no sentido atribuído por Marx, ou seja, como fundante do ser social, passando
a substituí-la pelas categorias linguagem, mediação e interação.
A
aproximação
de
Vigotski
com
as
teorias
construtivistas
e
interacionistas
Inúmeros são os equívocos na aproximação do nome de Vigotski com
pensadores das mais diferentes teorias como Piaget, Bakthin, Ferreiro, entre
outros. No âmbito educacional atualmente tem dado ênfase a aproximação
com Bakthin, por ser hoje referência na linguagem e na literatura e por
perceberem equivocadamente essas categorias como centrais nas obras de
Vigotski.
Segundo Freitas:
Vygotsky e Bakhtin se assemelham em muitos aspectos. Ambos
mostraram um sensível interesse pela literatura e buscaram na
linguagem a chave da compreensão para as principais questões
epistemológicas que atravessam as ciências humanas e sociais.
(FREITAS, 1996, p. 157).
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Outro equívoco muito comum consiste no que é ser considerado
construtivista, pois, embora alguns autores considerem que “existia” um vínculo
de Vigotski com a filosofia de Marx, suas afirmações acabam sendo
contraditórias e equivocadas. Isto pode ser constatado a partir de um material
desenvolvido pelo Centro de Formação Continuada, Desenvolvimento de
Tecnologia e Prestação de Serviços para as Redes Públicas de Ensino –
CEFORTEC - da Universidade Estadual da Ponta Grossa – PR, sobre os
Fundamentos da Ação Docente em seu caderno nº 3 intitulado Um olhar
Psicológico sobre o Desenvolvimento da Pessoa Humana. Na parte intitulada
As principais idéias de Vigotski e seus colaboradores sobre o desenvolvimento
humano (2005, p. 61, grifo nosso), temos o seguinte:
Influenciado pela filosofia materialista de Marx, Vygotsky teve suas
idéias desenvolvidas por Luria e Leontiev, seus seguidores.
Interacionista, procurou desvendar a base social dos processos
cognitivos superiores, ou seja, do pensamento lógico.
Sua visão de desenvolvimento baseia-se na concepção de um
organismo ativo construído num ambiente histórico e essencialmente
social, cujas raízes se encontram no desenvolvimento histórico e
social do homem. Vygotsky não atribui as mudanças qualitativas dos
processos superiores à maturação; ele tenta entender como as
condições sociais e as interações humanas afetam o
desenvolvimento do pensamento.
Explicando como Vygotsky e seus colaboradores se posicionam em
relação a essas idéias, Goulart afirma que o construtivismo dos
psicólogos soviéticos ‘consiste na construção de uma psicologia
adequada aos princípios do materialismo dialético’ (GOULART,1995,
p.24).
Nas ideias de Vygotsky e de seus colaboradores você poderá sentir a
influência do materialismo histórico dialético, pois eles
compreendem o indivíduo vinculado ao seu contexto histórico,
construído dialeticamente na interação com seu meio. É atuando
sobre o meio que o homem se socializa. Acreditando, como Marx,
que o conhecimento do indivíduo não pode ser separado do
conhecimento do universo, Vygotsky considera que o indivíduo é o
resultado da interação dialética do sujeito com a sociedade,
integrando no homem as qualidades da humanidade.
A abordagem construtivista e interacionista, bastante difundida no Brasil,
aparece na citação acima mesclada com o marxismo. Contudo, trata-se,
conforme Duarte (1996, p. 21), de um modelo essencialmente biológico, que se
funda na interação entre organismo e meio ambiente. O ser social, para Marx,
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vale ressaltar, resulta de um processo histórico pautado no salto ontológico da
esfera orgânica à esfera social, tendo por base o trabalho.
Ao se referir aos aspectos tidos como afins entre Vigotski e Piaget,
Duarte, citando Rocco, afirma o seguinte:
[...] há muitos pontos em comum entre VIGOTSKI e PIAGET, a
começar pela linha cognitivista, construtivista-interacionista que se
encontra na base teórica dos trabalhos de ambos. [...] apesar de o
termo [...] vir tradicionalmente ligado à obra de PIAGET, acreditamos
não ser impertinente, portanto, aplicá-lo às posições teóricas de
VIGOTSKI e LURIA, ressalvando tratar-se aqui, evidentemente, de
um sociointeracionismo, cujo enfoque principal é de raiz históricodialética, visto sob a luz da teoria marxista. (ROCCO apud DUARTE,
2007, p. 82-83).
Portanto, de acordo com este ponto de vista, ambos seriam
construtivistas e interacionistas. Ainda mais, ao fazermos uma análise mais
rigorosa, constatamos que, mesmo quando se associam as idéias de Vigotski e
Luria ao marxismo, não fazem referência à categoria trabalho. Isto, na verdade
acaba favorecendo o projeto neoliberal educacional, que desloca e distancia
suas obras da categoria central que funda o ser social, ou seja, o trabalho.
Tendo em vista o universo de interpretações das obras de Vigotski,
acaba não sendo uma tarefa fácil fazer o resgate do verdadeiro sentido dos
pressupostos teóricos marxistas deste autor.
Por uma leitura marxiana de Vigotski
A psicologia marxista não é uma escola entre outras, mas a única
psicologia verdadeira como ciência; outra psicologia fora ela, não
pode existir. E, pelo contrário: tudo que já existiu e existe de
verdadeiramente científico na psicologia faz parte da psicologia
marxista
VIGOTSKI
A apropriação deturpada da teoria vigotskiana, baseada na linguagem e
na interação como eixo norteador do ensino e aprendizagem, é lugar comum
na educação brasileira, uma vez que se faz presente nos documentos oficiais,
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nos projetos político-pedagógicos da maioria das escolas e nos cursos de
formação de professores.
Os equívocos que fundamentam o processo de formação dos
professores, mediante palestras, cursos, debates e publicações, são
transmitidos, em sua grande maioria, através de professores universitários,
com amplo acesso aos professores, coordenadores, técnicos, estudantes de
pedagogia e psicologia.
A pretexto de ilustração, é interessante registrar que, ao participarmos,
em uma dada ocasião, de uma palestra ministrada A teoria interacionista de
Vigotski, ouvimos do conferencista a afirmação de que, embora Vigotski tenha
“um pé no marxismo”, é a linguagem a categoria central de suas obras. Para o
dito conferencista, ademais, apontar elementos que tentam separá-lo dos
autores cognitivistas e interacionistas nada mais representaria que uma
tentativa para tornar atual a teoria marxista.
É nesse nível e nessa perspectiva que o pensamento de Vigotski vem
sendo proferido e internalizado pela maioria dos profissionais ligados à
educação.
Deste ponto de vista, a teoria vigotskiana consiste apenas em explicar
os processos de desenvolvimento e aprendizagem do ser humano.
Entendemos que isso se deve às várias interpretações e às mutilações nas
traduções de suas obras.
Após sua morte precoce, as obras de Vigotski foram proibidas na URSS
por vinte anos, tempo que correspondeu ao período de 1936-1956. Nesse
período pouco se ouviu falar de Vigotski não só em seu país como em todo o
mundo. Durante esses anos, suas obras foram vítimas de uma censura que
resultou, por exemplo, na retirada de textos nos quais Vigotski se contrapunha
aos rumos pelos quais a sociedade soviética se embrenhara após a morte de
Lênin. A inserção de suas obras no Ocidente, todas as partes que se referiam
aos fundamentos marxistas foram retiradas e suprimidas de todo o seu
material. Um exemplo ilustrativo é a obra clássica de Vigotski Pensamento e
Linguagem, na qual foram cortados 2/3 do texto original, conforme constatação
de Duarte (1999, p. 76).
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Se pretendemos fazer o resgate dos fundamentos ontológicos nas obras
de Vigotski é necessário partir do método, por ser o viés marxista para a efetiva
compreensão de sua obra.
Em relação ao método, Vigotski afirma que:
O método que aplicamos permite não só revelar a unidade interna do
pensamento e linguagem como ainda estudar, de modo frutífero, a
relação do pensamento verbalizado com toda a vida da consciência
em sua totalidade e com as funções particulares. (VIGOTSKI apud
CARMO, 2008, p. 104).
Vigotski acreditava que a teoria marxiana para a psicologia seria um
processo de constituição de uma psicologia verdadeiramente científica. O
teórico russo compreendia a importância de uma teoria que fizesse a mediação
entre o materialismo dialético, os fenômenos psíquicos concretos e uma teoria
psicológica mediadora.
Segundo Duarte (2007, p. 79):
Ao invés de buscar autores que interpretam Vigotski procurando
distanciá-lo de Marx, devemos procurar compreender o que da obra
deste fundamenta a obra daquele. Esse é um aspecto nãosecundário com o qual é preciso ter muito cuidado. As pessoas não
precisam ser marxistas para ler Vigotski, mas é muito pouco provável
que se possa entender Vigotski sem um mínimo de conhecimento da
filosofia de Marx, de seu método, da sua concepção do homem como
ser histórico.
A professora Francisca Maurilene do Carmo, da Universidade Federal da
Paraíba, em sua tese intitulada Vigotski: um estudo à luz da centralidade
ontológica do trabalho5, constata que o autor, ao analisar a linguagem,
compreende que se trata de um complexo possível somente a partir do
trabalho, o que o aproxima do pensamento marxiano-luckacsiano.
Nas palavras da autora:
Sabe-se ainda que a comunicação não mediatizada pela linguagem
ou por outro sistema de signos ou meios de comunicação, como se
verifica no reino animal, viabiliza apenas a comunicação, como se
verifica no reino animal, viabiliza apenas a comunicação do tipo mais
primitivo e nas dimensões mais limitadas. No fundo, essa
5
Referida tese foi defendida junto ao Programa de Pós-Graduação emEducação Brasileira da
Universidade Federal do Ceará, em 2008, sob a orientação da Professora Susana Jimenez.
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comunicação através de movimentos expressivos não merece sequer
ser chamada de comunicação, devendo antes ser denominada
estágio. Um ganso experiente, ao perceber o perigo e levantar com
uma grasnada todo o bando, não só lhe comunica o que viu quanto o
contagia com o seu susto. A comunicação estabelecida com base
em compreensão racional e na intenção de transmitir idéias e
vivências exige necessariamente um sistema de meios cujo
protótipo foi, é e continuará sendo a linguagem humana, que
surgiu da necessidade de comunicação no processo de trabalho.
(VIGOTSKI apud CARMO, 2008, p. 103 – grifos da autora).
Sendo o trabalho uma categoria central para Marx, é de fundamental
importância tomar como referência algumas reflexões do pensador alemão:
[...] O trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um
processo em que o homem, por sua própria ação,media,regula e
controla seu metabolismo com a natureza. [...] Não se trata aqui das
primeiras formas instintivas, animais, de trabalho. [...] pressupomos o
trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem.
Uma aranha executa operações semelhantes ás do tecelão e a
abelha é envergonha mais de um arquiteto humano com a construção
dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior
arquiteto da abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes
de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um
resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador,
e por tanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da
forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria
natural, o seu objetivo. [...] os elementos simples do processo de
trabalho são a atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu
objeto e seus meios. [...] O processo de trabalho [...] é a atividade
orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do
natural para satisfazer a necessidades humanas, condição natural
eterna da vida humana e, portanto, [...] comum a todos as suas
formas sociais. (MARX apud NETTO; BRAZ, 2009, p. 31-32).
Outro registro importante destacado por Carmo diz respeito a uma
passagem na obra de Vigotski, suficientemente reveladora da aproximação, por
parte do psicólogo soviético, com respeito à centralidade ontológica do
trabalho:
A invenção e o uso de signos como meios auxiliares para solucionar
um dado problema psicológico (lembrar, comparar coisas, relatar,
escolher etc) é análoga à invenção e uso de instrumentos, só que
agora no campo psicológico. O signo age como um instrumento da
atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento
no trabalho. (VIGOTSKI apud CARMO, 2008, p.105 – grifos da
autora).
Com efeito, Lukács, ao se referir às operações realizadas por signo,
pressupõe uma relação sujeito-objeto e o aparecimento do signo como relação
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sujeito-objeto por meio do trabalho, conforme assinala a mesma autora, citando
o filósofo húngaro:
[...] por sua essência enraizada no trabalho, temos que considerar
melhor um fenômeno, já por nós abordado, que é uma consequência
direta do trabalho, isto é, o surgimento da relação sujeito-objeto e a
distância entre sujeito e objeto que necessariamente advém daí. Essa
distância cria imediatamente uma das bases indispensáveis, dotada
de vida própria, do ser social dos homens: a linguagem. Engels
observa com justeza que a linguagem surgiu porque os homens
‘tinham alguma coisa para dizer-se. A necessidade desenvolveu o
órgão necessário para isso’. O que significa, porém, dizer alguma
coisa? Comunicações tão importantes como aquelas referentes ao
perigo, à comida, ao desejo sexual, etc. já as encontramos nos
animais superiores. O salto entre estas comunicações e aquelas dos
homens, às quais Engels se refere, está exatamente nessa distância.
O homem sempre fala ‘a respeito’ de algo determinado, que ele retira
da sua existência imediata em um duplo sentido: primeiro, na medida
em que isto é posto como objeto que existe de maneira
independente; segundo, - e aqui a distância aparece, se possível,
ainda mais nitidamente em primeiro plano, - na medida em que o
homem se esforça por precisar cada vez o objeto como algo
concreto, mas os seus meios de expressão, as suas designações são
tais que permitem muito bem a cada sinal figurar em contextos
completamente diferentes. De modo que a reprodução realizada
através do signo verbal se separa dos objetos designados por ela e,
por conseguinte, também do sujeito que a realiza, tornando-se
expressão conceptual de um grupo inteiro de fenômenos
determinados, que podem ser utilizados de modo análogo por sujeitos
inteiramente diferentes em contextos inteiramente diferentes. As
formas de comunicação dos animais não conhecem essa distância,
pelo contrário, são parte orgânica do processo biológico, e mesmo
quando têm um conteúdo preciso, esse conteúdo está ligado a
situações específicas dos animais que tomam parte nele; deste
modo, só podemos falar de sujeitos e objetos de modo metafórico,
que pode facilmente induzir a equívocos, embora se trate sempre de
um ser vivo concreto que procura comunicar algo a respeito de um
fenômeno concreto e ainda que tais comunicações, pelo seu vínculo
indissolúvel com a situação, sejam, de modo geral, muito precisas. A
posição simultânea do sujeito e do objeto no trabalho e aquela,
derivada da primeira, que se verifica na linguagem distanciam, no
sentido referido, o sujeito do objeto e vice-versa, o objeto concreto do
seu conceito, etc. Apenas por este caminho se torna possível a
compreensão, tendencialmente ampliável até o infinito, do objeto e o
seu domínio por parte do homem. (LUKÁCS apud CARMO, 2008, p.
123-124).
O trabalho é a categoria fundante do ser social e todas as demais
categorias que compõem sua totalidade (educação, direito, linguagem, política,
entre outras) são, por este, fundadas.
Assim, o trabalho, como a categoria que funda a nova realidade, fez
derivar outras categorias, a exemplo da ciência, da religião, da
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educação, da política etc. Mas isto não significa dizer que, pelo fato
de ser uma categoria originária e central, as atividades dos homens,
ante toda a complexidade adquirida no mundo atual, possam se
reduzir ao trabalho. (BERTOLDO, 2009, p. 96).
Percebemos, na passagem abaixo, o entendimento de Vigotski acerca
do trabalho como um processo de mediação entre o homem e a natureza.
Na verdade, a interpretação científica nada mais é do que uma forma
a mais de atividade do homem social entre outras atividades. Por
conseguinte o conhecimento científico, considerado como
conhecimento da natureza e não como ideologia, constitui um tipo de
trabalho e como todo trabalho é, antes de mais nada, um processo
entre o homem e a natureza. É, nesse processo, o próprio homem
enfrenta a natureza enquanto força surgida no seu seio (VIGOTSKI
apud CARMO, 2008, p.184).
Com base no exposto, podemos admitir com firmeza que não há
qualquer semelhança entre o construtivismo e o pensamento de Vigotski, já
que este evidencia uma coerência inquestionável com a base marxista
ontológica.
Considerações finais
A investigação realizada permitiu constatar, conforme entendimento de
Duarte (2006), que estudar Vigotski e, por extensão, os integrantes da escola
da psicologia soviética só tem sentido para aqueles educadores que assumem
uma visão crítica afinada com a perspectiva do marxismo, contrários, portanto,
ao projeto neoliberal de educação vigente. Sendo assim, entendemos que uma
das formas de luta contra a perspectiva neoliberal consiste em difundir as obras
de Vigotski no meio educacional a partir de seu genuíno sentido marxista.
Portanto, nosso esforço consiste em buscar fortalecer as pesquisas
realizadas no Brasil no âmbito desta temática, visando disseminar debates,
estudos e produções acadêmicas sem perder de vista o caráter materialista,
histórico e dialético que funda a psicologia histórico-cultural.
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Referências
BERTOLDO, Edna. Trabalho e educação no Brasil: da centralidade do
trabalho à centralidade da política. Maceió: EDUFAL, 2009.
CARMO, Francisca Maurilene. Vigotski: um estudo à luz da centralidade
ontológica do trabalho.Tese (Doutorado em Educação Brasileira).
Universidade Federal do Ceará, Ceará, 2008.
DUARTE. Newton. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica as
apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 2. ed.
Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2001.
_____. Educação escolar, teoria do cotidiano e a escola de Vigotski.
Campinas, São Paulo: Autores Associados, 1996.
FREITAS, Maria Teresa Assunção. O pensamento de Vygotsky e Bakthin no
Brasil. São Paulo: Papirus, 1994.
NETTO, José Paulo; BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução
crítica. São Paulo: Cortez, 2007.
VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Tomo II e III, Visor, Madrid, 1995 (Tomo
III), 1993 (Tomo II).
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_____. Formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1988. Autores
Associados, 2007.
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