Miséria neurótica

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MISÉRIA NEURÓTICA E DESAMPARO PRIMORDIAL.
O HILFLOSIGKEIT NA TEORIA FREUDIANA.
Daniela Goulart Pestana
“(...) aprendemos a entender que, no mundo das
neuroses, a realidade psíquica é a realidade
decisiva.” 1
O presente trabalho tem como objetivo produzir uma reflexão teórica acerca dos
impasses e indagações que atravessam o cotidiano da clínica
analítica com pacientes
menos favorecidos economicamente, tendo em vista que localizo aí o começo de minha
clínica.
Para tanto, procuraremos analisar as expressões “miséria neurótica” e
“desamparo primordial” (Hilflosigkeit), descritas por Freud ao longo de sua obra e
para isso, optamos por fazer um rastreamento na Edição Eletrônica Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, bem como a Edição em Espanhol das
Obras Completas (Amorrortu Editores). A partir da localização e contextualização
dessas noções
pretendemos, analisar possíveis relações entre os sentidos que tais
expressões assumem em diferentes contextos e, com isso, circunscrever melhor nosso
campo de estudo. Nossa hipótese de trabalho é de que qualquer sujeito pode ser tomado
pela miséria neurótica, traduzida pela pobreza da manifestação psíquica diante da
realidade e cujo aparecimento independe da classe social à qual o sujeito pertence.
Inicialmente, analisaremos a noção de miséria neurótica. Como resultado do
rastreamento em Freud, observamos que a expressão, “miséria neurótica” aparece em
alguns textos:
Em “Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica”(1919), a expressão “miséria
neurótica” surge empregada no seguinte contexto:
1
FREUD, S. Conferência 23 – Os Caminhos da Formação dos Sintomas, (1916-17). p. 430.
“(...) Os senhores sabem que as nossas atividades terapêuticas não têm
um alcance muito vasto. Somos apenas um pequeno grupo e, mesmo
trabalhando muito, cada um pode dedicar-se, num ano, somente a um
pequeno número de pacientes. Comparada à enorme quantidade de
miséria neurótica que existe no mundo, e que talvez não precisasse
2
existir, a quantidade que podemos resolver é quase desprezível”.
Freud mostra-se preocupado com o alcance da psicanálise frente à quantidade
de “miséria neurótica” existente no mundo. A psicanálise pode muito, porém, atinge
poucos. Com isso, ele sinaliza que o alcance da prática analítica é limitado, não só
pela dificuldade em abrir mão do gozo, próprio da neurose, mas também, porque a
grande maioria da população não tem acesso à psicanálise. Não se pode esquecer de
que, naquela época, e por muito tempo a prática analítica ficou restrita aos consultórios
privados, o que teve conseqüências, entre elas a elitização da psicanálise e os desvios
daí decorrentes, como a valorização do imaginário, do “setting” analítico.
Hoje, também, apesar das tentativas de inserção da psicanálise no espaço público
dos hospitais, ambulatórios e Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS) percebemos
que isso ainda é difícil, pois há poucos espaços de atendimentos comunitários, o que
dificulta o acesso principalmente das camadas mais pobres da população à experiência
analítica, tornando-a limitada.
O texto de 1919, no qual Freud procura pensar o lugar do analista e do
exercício da prática clínica, que levanta questões técnicas decisivas a respeito do
tratamento a qualquer paciente que o procure, independente da raça, educação e posição
social, o que parece nos ser de suma importância.
Sabemos que a prática psicanalítica, a escuta do inconsciente, permanece
inalterada desde a sua criação, independente de fatores estabelecidos pelo social,
embora constatemos em nossos consultórios o aparecimento de novas modalidades de
sintomas, com efeitos inusitados sobre o laço social, que desafiam o ato analítico. A
psicanálise é introduzida pela dimensão do sujeito do inconsciente e como bem assinala
Luciano Elia em
seu artigo “Psicanálise: clínica & pesquisa”,
“O sujeito do
inconsciente não é, em si mesmo, pobre ou rico, branco ou negro, tampouco – e aí se
situa talvez o ponto mais escandaloso da descoberta freudiana – homem ou mulher. É
em sua relação com a alteridade...” 3. Com isso, reafirma-se que o sujeito, de acordo
com a teoria freudiana, está acima das configurações e inserções estabelecidas pelo
2
3
FREUD, S.Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica, (1919),p . 209.
ELIA, Luciano. Clínica e Pesquisa em Psicanálise. p. 26.
social, situando-se para além do imaginário social do indivíduo imerso na rede de
comportamentos sociais. Trata-se, portanto, de marcar uma certa independência que o
processo de constituição da subjetividade mantém em relação às referidas
determinações, ou seja, que a prática psicanalítica permaneça sustentada de acordo com
seus mais rigorosos parâmetros não variáveis, segundo a “renda” dos pacientes.
A “pobreza” ou a “baixa renda” não está, portanto, de maneira alguma
identificada ou vinculada à “miséria neurótica”, nome freudiano que define o gasto
dispendido pelo paciente na cara manutenção de seus sintomas e repetições, tendo em
vista a tentativa de se manter em um determinado lugar de gozo, excluindo, assim, a
possibilidade da operacionalização da castração. Nada na vida é tão caro quanto a
doença – e a estupidez,4 afirmação freudiana que condensa a complexidade da
problemática que por essa dimensão se inaugura.
Em
“Um Estudo Autobiográfico” (1924), a miséria aparece no seguinte
contexto:
“Essa paciente era uma histérica altamente dotada, uma mulher bem
nascida, que me fora confiada porque ninguém sabia o que fazer com
ela. Pela influência hipnótica eu lhe tornara possível levar uma
existência tolerável, e sempre fui capaz de tirá-la da miséria de sua
condição. Mas ela sempre recaía após breve tempo, e em minha
ignorância atribuía isso ao fato de que sua hipnose jamais alcançara a
fase de sonambulismo com amnésia.” 5
No trecho acima, verificamos a batalha diária empreendida por Freud na luta
contra a “miséria de sua condição” de vivente, “miséria neurótica” na qual a paciente
encontrava-se mergulhada, apesar de ser uma mulher “altamente dotada” e “bem
nascida”. Nesse texto, Freud confirma o fracasso da técnica hipnótica, levantando
dúvidas sobre sua credibilidade. Já na Conferência XXIV - “O Estado Neurótico
Comum” (1916-17), Freud estabelece uma distinção entre “miséria neurótica” e
“sofrimento real”, dizendo:
“Os senhores não devem surpreender-se ao ouvir dizer que o próprio
médico, às vezes, pode tomar o partido da doença que está
combatendo...Ele sabe que não há apenas miséria neurótica no mundo,
mas também sofrimento real, irremovível, que a necessidade pode
mesmo exigir que uma pessoa sacrifique sua saúde; e aprende que um
sacrifício dessa espécie, feito por uma única pessoa pode evitar
4
5
FREUD, S. Sobre o Inicio do Tratamento, (1913), p .176.
FREUD, S. Um Estudo Autobiográfico, (1924), p .29. O grifo é meu.
incomensurável infelicidade para muitas outras. Portanto, se podemos
dizer que sempre que um neurótico, enfrenta um conflito ele empreende
uma fuga para a doença, assim mesmo devemos admitir que,em
determinados casos, tal fuga se justifica plenamente, e um médico que
tenha reconhecido a maneira como se configura a situação, haverá de
6
se retirar, silencioso e apreensivo. ”
Freud neste trecho aponta para a divisão na qual o sujeito se encontra
mergulhado. Se, por um lado, existe a miséria neurótica como solução sintomática para
os conflitos enfrentados pelo sujeito, do outro lado, existe o sofrimento real no qual
muitas vezes o sujeito é obrigado a sacrifícios que acabam reforçando a “miséria
neurótica”. Destaca, no decorrer do texto, o lucro secundário da doença, na medida em
que a manutenção da neurose traz algumas vantagens para o sujeito e paradoxalmente
sinaliza o preço alto pago por ele na miserabilização de seus laços com o Outro. A
questão levantada por Freud e que tentaremos examinar é: Em que medida o sofrimento
real contribui para o aparecimento ou mesmo fortalecimento da “miséria neurótica”?
Assim, nosso estudo recai sobre a incidência, bem como o aparecimento da
“miséria neurótica” nos seres falantes, e de que forma a realidade externa pode ou não
corroborar com esse aparecimento, agravando suas manifestações sintomáticas.
Pretendemos, assim, analisar de que forma a realidade externa é apreendida e elaborada
pelo sujeito através da fantasia, procurando enfatizar aí o peso do Real, enquanto
traumático e apontando para a falta. Sabemos, a partir de Freud, que é a realidade
psíquica a decisiva e nela se destaca o papel da fantasia velando o Real. Portanto, é a
partir da análise de tais pontos, bem como das distorções que daí surgiram,
que
fundamentamos o trabalho.
Nessa direção, gostaríamos de apresentar outra citação de Freud do texto Linhas
de Progresso na Terapia Psicanalítica (1919) em que ele recusa, de forma enfática,
qualquer tentativa de encaminhar a prática analítica em uma direção pedagógica que
buscasse retificar a fantasia do sujeito a partir de uma suposta realidade objetiva, ou dos
valores do analista. Segundo ele:
“Recusamo-nos, da maneira mais enfática, a transformar um paciente,
que se coloca em nossas mãos em busca de auxílio, em nossa
propriedade privada, a decidir por ele o seu destino, a impor-lhe os
nossos próprios ideais, e com o orgulho de um Criador, a formá-lo à
nossa imagem e verificar que isso é bom.” 7
6
7
FREUD, S . Conferência XXIV – O Estado Neurótico Comum, (1916-17), p. 446.
FREUD, S. Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica, (1919), p. 207.
Freud nos adverte que as decisões estão do lado do paciente, ainda que nos
sintamos atraídos e tentados a indicar-lhe caminhos.
A partir de Lacan, que em sua leitura de Freud explicita a concepção de sujeito,
podemos dizer que a importância da experiência da psicanálise está ligada à idéia de
que o sujeito do inconsciente não é um sujeito empírico, ele é um sujeito sem atributos,
isto
é, sem qualidades sociologicamente determinadas. Dizemos que ele
carrega
marcas significantes que servem de apoio à existência, mesmo antes do nascimento.
Esses são os fundamentos do inconsciente como discurso do Outro, discurso que nos
habita e que, no entanto, desconhecemos.
É no decorrer do processo analítico, que o sujeito vai significantizando as
tramas que o recobrem, desfazendo, pouco a pouco, a teia sintomática em que se
encontra imerso. Chamamos esse percurso de travessia psicanalítica, na qual o sujeito
vai construindo um novo saber.
Destacamos a ética como um dos fatores fundamentais a serem extraídos da
prática analítica e tentaremos nos apropriar dela no estudo que se inicia. A psicanálise
interroga o homem em seu desenraizamento, em suas dimensões indissociáveis de
liberdade e conflito.
Para tanto, começaremos analisando os escritos técnicos por estarem
relacionados ao tema do trabalho, no que se refere à discussão proveniente do
atendimento à população de baixa renda. Procuraremos apontar alguns deslocamentos
efetuados por Freud nos quais, paulatinamente, vai modificando sua posição a respeito
dessa questão. Talvez por isso, estejamos autorizados a dizer que a obra de Freud, por
permitir tais deslocamentos, é uma
obra aberta, em constante movimento,
onde
podemos perceber mudanças de posição, reafirmando construções teóricas e, muitas
vezes, mostrando humildade ao refazê-las.
Observamos Freud sustentar nesses textos que a psicanálise não pode ser uma
prática barata, na medida em que barateá-la,
poderia
corresponder a reforçar a
resistência do paciente. Em “Sobre o início do Tratamento”, (1913) Freud argumenta
que as razões financeiras alegadas pelo paciente como fatores impeditivos de análise
geralmente encobrem dificuldades
de uma outra natureza como, por exemplo, a
dificuldade do paciente em abrir mão do gozo, utilizando-se de manobras defensivas e
subterfúgios para esquivar-se de sua questão.
Mediante esse fato, devemos ficar atentos, considerando e contextualizando,
acima de tudo, a particularidade de cada caso. Obviamente, existem situações em nossa
clínica de grandes dificuldades financeiras do lado do paciente e, se aceitamos encarálas, o trabalho é exatamente o mesmo.
Sabemos que o próprio Freud, durante dez anos ou mais de clínica,
separou
uma hora por dia para tratamentos gratuitos, com o objetivo de penetrar nas neuroses,
segundo ele: “trabalhar frente à tão pouca resistência quanto possível.”8 E constatou
que não houve vantagens com relação a esse aspecto, pois as resistências de alguns
aumentavam consideravelmente com o tratamento gratuito.
“O tratamento gratuito aumenta enormemente algumas resistências do
neurótico – em moças, por exemplo, a tentação inerente à sua relação
transferencial, e, em moços, sua oposição à obrigação de se sentirem
gratos, oposição oriunda de seu complexo paterno e que apresenta um
dos mais perturbadores obstáculos à aceitação de auxílio médico.” 9
Logo a seguir, Freud menciona, entretanto, que ocasionalmente pessoas pobres,
submetidas ao tratamento não remunerado, atingem excelentes resultados.
Será que estamos autorizados a dizer que a psicanálise é uma prática elitista? A
questão do pagamento torna a psicanálise uma prática elitista?
Freqüentemente,
ouvimos tal acusação que, de certa forma, possui seu fundamento. Numa primeira
abordagem, ao enfocarmos o problema pelo viés da formação analítica, verificamos que
realmente se trata de um investimento custoso, tanto financeiramente, quanto no que
diz respeito ao dispêndio de tempo gasto em análise pessoal, supervisão e estudos
necessários para a formação do analista. Porém, a dimensão do problema não se esgota
aí, apresentando maior complexidade. A questão da formação do analista, encontra-se
localizada para além do tempo e do dinheiro despendidos pelo analista, no trabalho
de análise que lhe possibilita elaborar e, portanto, abrir mão do gozo, para reconhecer a
castração e assim sustentar o desejo do analista.
Enfocando o problema pelo viés dos pacientes, constatamos que Freud em seus
textos apresenta indicações e contra-indicações exigidas pelo tratamento psicanalítico
que o distinguem do ideal de uma terapia.
8
Ibidem, p . 174.
FREUD, S. Sobre o Início do Tratamento – Novas Recomendações Sobre a Técnica da Psicanálise I,
(1913), p. 174.
9
Pesquisando seus textos, achamos um artigo de 1898, no início de suas
elaborações, “A Sexualidade na Etiologia das Neuroses”, em que nos diz:
“A terapia psicanalítica não é, no momento, aplicável a todos os casos.
Tem, a meu ver, as seguintes limitações. Requer um certo grau de
maturidade e compreensão nos pacientes, e portanto não é adequada
para os jovens ou os adultos com debilidade mental ou sem instrução.
Fracassa também com pessoas muito idosas porque, devido ao acúmulo
de material, o tratamento tomaria tanto tempo que, ao terminar, elas
teriam chegado a um da vida em que já não se dá valor à saúde
nervosa. Finalmente, o tratamento só é possível quando o paciente tem
um estado psíquico normal a partir do qual o material patológico pode
ser controlado.” 10
Ressaltamos aqui a particularidade que esse texto comporta, pois foi escrito em
1898, quando todo o cuidado de Freud se evidencia ao procurar estabelecer as bases de
sustentação de sua teoria, haja vista que o público que ali se encontrava não fornecia,
nesse início, uma boa acolhida a seus postulados . Por isso, comenta que a psicanálise
não é aplicável a todos os casos, excluindo os jovens , os adultos com dificuldade
mental ou sem instrução e os idosos. O paciente privilegiado é o adulto “normal”. Os
critérios que utiliza já anunciam a exclusão da psicose do âmbito de trabalho da prática
analítica, que reafirmará mais tarde, juntamente com a idade e a “instrução”.
Em “Sobre a Psicoterapia”, texto de 1905, Freud mostra-se preocupado com o
reconhecimento da psicanálise, enquanto uma prática e nos diz:
“Afora a doença, deve-se reparar no valor da pessoa em outros
aspectos e recusar os pacientes que não possuam certo grau de
formação e um caráter razoavelmente digno de confiança.” 11
Comenta que há pessoas sadias que tendem a atribuir à doença uma série de
infortúnios que os incapacita para a vida, tornando-os impotentes e paralisados para o
convívio em sociedade. Recortamos, assim, algumas questões de nosso interesse que o
texto suscita, tocando diretamente a problemática examinada no presente trabalho.
Neste texto, Freud se pronuncia a respeito da análise de qualquer paciente,
excluindo aqueles que não tenham determinado grau de escolaridade e “um caráter
digno de confiança”, evidenciando, com isso, à primeira vista, um certo preconceito.
10
11
FREUD, S. A Sexualidade na Etiologia das Neuroses, (1898), p.251-252.
FREUD, S. Sobre a Psicoterapia, (1905), p . 247.
Contrariando o que afirma posteriormente em 1919, em “Linhas de Progresso da
Terapia Psicanalítica” no qual diz que qualquer paciente é passível de análise.
Gostaríamos de centrar nossa análise nesse ponto, porque primeiramente
fazendo uma leitura simplista do texto freudiano, extraímos o que nomeei como um
certo preconceito de Freud. Porém, recorrendo aos comentadores e ou historiadores de
Freud, tais como: Peter Gay, Ernest Jones, Paul Rozen, Renato Mezan , como faremos
mais adiante, podemos perceber um outro modo de perceber essa questão.
Ainda em 1905, ele apresenta novamente a contra-indicação a partir de critérios
de idade, porém com alguma modificação. Pessoas próximas ou acima de cinqüenta
anos de idade, segundo ele, não são “educáveis” e o material a ser elaborado prolongaria
indefinidamente a duração do tratamento. Em contrapartida, os jovens, que ainda não
chegaram à puberdade, são mais influenciáveis e com isso o tratamento seria indicado.
Estabelece aí um limite etário de analisabilidade, além de condenar o paciente
“idoso” a sua neurose. Se tomarmos o seu comentário hoje, o que significam cinqüenta
anos? Será que podemos considerar esse limite como válido nos dias atuais? Aqui,
vemos mais uma vez, a necessidade de nos reportarmos à época, promovendo as
devidas contextualizações.
Destacamos outra citação que poderia nos levar a supor um certo preconceito
de Freud ao escolher o tipo de pessoa adequada que pretende analisar. Que paciente é
esse “ideal para a psicanálise” de que Freud nos fala?
“É gratificante que assim se possa levar ajuda, antes de mais nada,
justamente às pessoas mais valiosas e mais altamente desenvolvidas. E
podemos consolar-nos com a afirmação de que, nos casos em que a
psicoterapia analítica só conseguiu muito pouco, qualquer outro
tratamento decerto nada teria realizado.” 12
Podemos nos perguntar o que Freud quer dizer com isso. “...levar ajuda, antes de
mais nada, justamente às pessoas mais valiosas e mais altamente desenvolvidas”. Até
onde se estende a prática psicanalítica? É restrita a alguns ou todos podem beneficiar-se
dela? Queremos sobretudo analisar esse aspecto cautelosamente,
considerando a
peculiaridade do lugar de Freud, haja vista que havia limites culturais
circunscritos
pela época, e princípios epistemológicos vigentes que afirmavam a hegemonia de um
determinado modelo de ciência.
12
Ibidem, p. 248.
Entretanto, ele sabe que está apenas iniciando a construção de um novo campo
teórico-prático. Assim, em 1910, Freud ao falar no Congresso de Nurenberg, em “As
Perspectivas Futuras da Terapêutica Psicanalítica”, adverte aos colegas psicanalistas que
todos ainda enfrentam quebra-cabeças técnicos difíceis, até então, não resolvidos,
salienta:
“Quase tudo” no campo da técnica “ainda aguarda determinação
13
definitiva e muita coisa está apenas começando a ficar clara.”
De qualquer modo, sinalizamos para a importância do alcance específico dessas
primeiras formulações freudianas, destacando as repercussões, desvios
que se
sucederam resvalando em nossa prática clínica nos dias atuais. Parece que tal postura
certamente influenciou a prática analítica pós-Freud na qual constatamos muitas vezes
uma leitura presa ao imaginário, presa às determinações formais de como deve ser a
configuração do “setting” analítico, preocupações a respeito do espaço público ou
privado, e do “paciente ideal”. Leitura que, a nosso ver, não levou em conta a dimensão
ética, na qual o inconsciente e o desejo constituem os vetores fundamentais .
Observamos, com isso, a marca de um traço elitista, conseqüência de uma
leitura apressada do texto freudiano, herança ingrata que ainda hoje se reflete nas
Sociedades de Psicanálise e em outros espaços onde sua transmissão é feita. Marca
que contribuiu, de certo modo, para a elitização da psicanálise.
Ao analisar algumas citações de Freud que corroborariam com os caminhos que
a psicanálise tomou, devemos levar em conta o lugar de Freud como fundador de um
novo campo, as dificuldades que enfrentou e os determinantes sócio-culturais a que
estava submetido. Para isso nos valemos dos comentadores de sua obra e historiadores.
Como diz Paul Rozen:
“Algumas vezes, os próprios escritos de Freud podem levar a uma
interpretação equivocada e o modelo como ele conduziu a si mesmo
merece mais atenção se nós o entendermos historicamente .” 14
Paul Rozen, historiador, pesquisou a vida de vinte e cinco ex-pacientes, dentre
eles figuras ilustres, que tiveram a oportunidade de freqüentar o divã de Freud e teve a
oportunidade de constatar que “para a ortodoxia freudiana, Freud deveria ser julgado
13
14
GAY, Peter. Freud: Uma vida para o nosso tempo, p. 274.
ROZEN, Paul. Como Freud Trabalhava. Relatos inéditos de pacientes, p. 259.
um perigoso heterodoxo”, o que pode ser lido a partir das concessões que fazia no trato
com seus pacientes.
Parece, então, que tomar não só a dimensão histórica, a atmosfera social em que
Freud produziu a sua teoria e a sua técnica é de fundamental importância, como
também considerar a liberdade que ele teve como inventor de um novo método de
trabalho terapêutico, seus impasses e sucessos que não podem deixar de assinalar o
que dessa posição de fundador, o colocava muito além de sua época.
O mundo de hoje com a chamada Revolução da Informação possui diferenças
consideráveis do mundo vivido por Freud e faz-se necessário um esforço para entender
os dilemas que os pacientes nos
historiadores, vemos que
apresentavam. Retomando as contribuições dos
tinham preocupações tanto humanitárias como também
sociais, éticas. Destacamos um exemplo significativo que nos ajuda a perceber isso.
Freud, aos cinqüenta anos, atende um jovem poeta suíço Bruno Goetz, que veio
consultá-lo devido a fortes dores de cabeça e cujos remédios já não o aliviavam. Freud
fez com que ele relatasse detalhadamente sua vida, incluindo os aspectos sexuais mais
íntimos e pôde assim concluir que não era de psicanálise que o jovem necessitava e
sim, de um bom prato de comida.
Freud diz a ele:
“O rigor consigo mesmo tem algo de bom. Mas não se deve exceder.
Quando você comeu seu último bife?” O paciente admitiu que fazia
tempo. E Freud ofereceu-lhe alguns conselhos dietéticos e um envelope
e acrescentou: “Você não deve se ofender comigo, mas sou um doutor
maduro e você ainda um jovem estudante. Aceite este envelope da
minha parte, e permita-me desempenhar o papel de pai apenas por esta
vez. É um pequeno honorário pelo prazer que você me proporcionou
com seus versos e a história de sua juventude. Adieu, e algum dia volte
a me procurar . É verdade que meu tempo é muito ocupado, mas meia
ou uma hora sempre aparece.” 15
Peter Gay enfatiza, ainda, não apenas as preocupações humanitárias de Freud,
mas também a liberdade com que se conduzia em sua prática, destacamos a seguinte
passagem:
“Vimos Freud adaptar segundo seus interesses e por vezes quebrar as
regras, com um senso soberano de domínio e no interesse da pura
humanidade. Devolvia os honorários a seus analisandos , quando
estavam em épocas difíceis. Permitia-se comentários amistosos durante
a sessão. Fez amizades com seus pacientes prediletos. Conduzia, como
15
GAY, Peter. Freud: Uma vida para o nosso tempo, p . 159.
sabemos, análises informais em alguns cenários surpreendentes: a
análise de Eitingon durante passeios noturnos por Viena é apenas a
mais espetacular dentre seus experimentos informais. Mas, nos artigos
sobre a técnica, Freud não deixava passar sequer uma insinuação
16
dessas escapadas.”
Portanto, vemos que na prática diária
Freud se permitia
alguns manejos
transferenciais pouco ortodoxos, mas, em contrapartida, jamais abandonou o rigor que
comparece em todos os seus artigos técnicos.
Como assinala o autor, precisamos aprender a ler Freud com o espírito voltado
para a tragédia daquela conturbada passagem de século, sabendo também,
separar a
figura ilustre e universal que Freud representava e a figura do homem de família,
abalado por preocupações, sofrimentos pessoais, incertezas, quanto ao futuro pessoal
dos familiares, da pátria e do reconhecimento da psicanálise no mundo.
Assim, retomamos aqui a proposta de Freud em 1919 em que destaca a
importância de atender indiscriminadamente qualquer pessoa, independente de raça,
educação, posição social.
“Isso porque consegui ajudar pessoas com as quais nada tinha em
comum – nem raça, nem educação, nem posição social, nem
perspectiva de vida em geral – sem afetar sua individualidade(...) Não
podemos evitar de aceitar para tratamento determinados pacientes que
são tão desamparados e incapazes de uma vida comum, que, para eles,
há que se combinar a influência analítica com a educativa; e mesmo
no caso da maioria, vez por outra surgem ocasiões nas quais o médico
é obrigado a assumir a posição de mestre e mentor. Mas isso deve
sempre ser feito com muito cuidado, o paciente deve ser educado para
liberar a satisfazer a sua própria natureza, e não para assemelhar-se
conosco.”17
Verificamos, então, que o próprio texto de Freud comporta diferentes posições
que se justificam ao atentarmos para os momentos em que foram elaborados. Freud
tinha mesmo que ser cauteloso, seus postulados eram muito inovadores e, devido a esse
fato, questionados. Por outro lado, ao construir sua teoria a partir dos impasses que a
prática colocava, descobre novas posições que o forçam a modificar o que já havia
dito. Podemos perceber que a teoria psicanalítica não é uma teoria fechada, ela está em
constante movimento , é uma técnica viva.
16
17
Ibidem, p. 283.
FREUD, S. Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica. (1919) p.208.
De acordo com o que tentamos encaminhar, destacamos que a ética se
mantém e que consideramos, a partir do legado freudiano, de fundamental importância
atender a todas as classes sociais sem discriminação, objetivando, além de aprofundar
os nossos estudos sobre o psiquismo humano, também nos depararmos com novas
modalidades de sintomas que se configuram em decorrência da velocidade com que
recebemos as informações do mundo atual. Consideramos importante compreender
como se estruturam esses sintomas, pois freqüentemente não sabemos diagnosticar se
são neuroses, psicoses ou até mesmo novas formas de neuroses e novas formas de
psicoses, mas não aprofundaremos isso nos limites desse estudo.
A miséria neurótica, que diz respeito ao particular de cada sujeito, coloca-nos
diante de um impasse em relação à “escolha”, no que se refere à posição do ser na
estrutura. Em Freud, ela é tomada na condição do inefável da experiência humana,
“lapso de tempo que dura nossas vidas”
18
, condensando a radicalidade dos laços de
pobreza e servidão nos quais o neurótico se encontra imerso em sua existência.
Aqui gostaríamos de fazer uma importante distinção: a miséria neurótica, que
se apresenta na estrutura discursiva do sujeito, é uma das respostas possíveis frente ao
desamparo primordial, que é dado de início para todos. As outras defesas possíveis
seriam: a psicose e a perversão que apenas citamos, pois não nos deteremos nessas
estruturas clínicas. Para este trabalho, apresentaremos somente a estrutura neurótica.
Articularemos, portanto, a expressão “miséria neurótica” à condição de desamparo, o
Hilflosigkeit, no qual todos os sujeitos são acometidos por habitarem a linguagem.
Nesse sentido, o caminho a percorrer é do universal ao particular. Se a condição de
desamparo é própria da existência humana, a condição de miserabilidade recai sob a
estrutura discursiva da neurose, dizendo respeito aos significantes singulares de cada
sujeito. Determinados sujeitos podem
apresentar-se pobres em suas manifestações
neuróticas, ao passo que outros nem tanto. O desamparo primordial, que é próprio da
estrutura, se traduz na maneira como cada sujeito lida com a questão da castração,
afetando de tal modo o sujeito,
que ele se vê paralisado,
manifestando-se
miseravelmente em seus laços com os outros.
Do termo miséria neurótica, pretendemos, assim, marcar o empobrecimento
típico da neurose. Para tal, no decorrer do estudo analisaremos, a partir de recortes de
casos clínicos de neurose obsessiva e neurose histérica,
18
Ibidem, p. 207.
alguns fragmentos que
traduzem essa condição de miserabilidade que é da estrutura discursiva da neurose.
Investigaremos como isso se dá, levantando algumas questões para uma possível
reflexão: O que é da ordem da miséria, enquanto condição universal, revelada na
precariedade de cada existência humana que grita por socorro? Por que é tão “custoso”
para o sujeito neurótico abandonar a sua miserável condição, pagando um alto preço na
miserabilização de seus laços com Outro? Por que é tão difícil abrir mão do gozo do
sintoma? O quanto da estrutura neurótica do sujeito vê-se imersa nessa condição
alienando-o, de tal modo, que a existência fique insuportável? É possível construir, na
análise com pacientes, algum saber sobre a estrutura que dê conta dessa insuportável dor
de existir?
Observamos que não é privilégio da neurose obsessiva apresentar-se
miseravelmente em suas manifestações, pois também, encontramos a miséria neurótica
na neurose histérica. Porém, lembremo-nos de que é o discurso da histérica que leva
Freud a fundar a psicanálise ao escutá-lo. A histérica vai denunciar isso através da sua
fala, ao falar “pelos cotovelos”, evidenciando o saber do inconsciente como saber que
não se sabe.
Na realidade, o que os pacientes nos falam, a todo momento, é algo de que não
querem saber, é da experiência da castração como acesso ao desejo. Diz uma paciente:
“Todos os dias eu choro, todos os dias eu penso em me matar e acabar logo com esse
sofrimento, não agüento mais o olhar da minha mãe”, traduzindo a angústia com que é
confrontada, ao ser “convocada” a assumir uma determinada posição.
Em “O mal-estar na civilização” (1929), Freud, dentre outras questões, examina
na neurose da civilização, a condição de miséria própria à existência humana em que os
verdadeiros valores da vida encontram-se, por estrutura, menosprezados. Cabe ao
analista a escuta da posição de cada sujeito, frente ao que de miséria e enfermidade a
vida coloca para todos.
Se, de algum modo, Freud chega neste texto a aproximar a neurose de um
sujeito da neurose da civilização, ele também faz uma advertência quanto aos impasses
encontrados para tal aproximação, ressaltando:
“Eu não diria que uma tentativa desse tipo, de transpor a psicanálise
para a comunidade cultural, seja absurda ou que esteja fadada a ser
infrutífera. Mas teríamos de ser muito cautelosos e não esquecer que,
em suma, estamos lidando apenas com analogias e que é perigoso, não
somente para os homens mas também para os conceitos, arrancá-los da
esfera em que se originaram e se desenvolveram.” 19
Assim, advertidos, não podemos transpor a psicanálise para a comunidade;
Freud não propôs uma Weltanschauung que se apoiasse na unicidade da explicação do
mundo.
A Weltanschauung, de acordo com a perspectiva freudiana, teria como
pretensão dar conta de tudo. Poderíamos dizer que a ciência seria uma forma de
Weltanschauung da qual a psicanálise diverge. Enfim, é pela introdução do sujeito que
podemos distinguir a psicanálise de uma Weltanschauung.
A situação analítica encontra-se localizada na dimensão de abertura do saber
inconsciente. Com Freud, o saber passa a operar em uma outra ordem que não é mais
vinculada à ordem da razão, escapa a esse campo e tem como um dos efeitos o
descentramento do eu. Ela convoca o sujeito a se implicar, responsabilisando-se, por
sua causa, por aquilo que o determina. Portanto, cabe a cada analista sustentar o rigor
de sua prática, mantendo o exercício do descentramento do eu, possibilitando assim a
emergência do sujeito do inconsciente em sua singular pontualidade, tendo ele em
análise construído a sua verdade que é sempre não-toda.
Sabemos que essa tarefa, nada simples, exige do analista responsabilidade e
implicação, principalmente, em se tratando de pacientes menos favorecidos
economicamente em que os desvios teóricos-clínicos são freqüentes. Parece que o
paciente “pobre”, de uma maneira geral, é rotulado: “pobre não faz análise, pobre
precisa é de arroz com feijão”. Assim, as demandas desses pacientes menos favorecidos
financeiramente ficam reduzidas à ordem da sobrevivência humana, não importando
por onde caminha o seu desejo . Analisando as conseqüências desses ditos que se
contradizem com a nossa experiência clínica, marcamos que é possível o atendimento à
pacientes de “baixa renda”.
Como diz A . Quinet (1993):
“Dizer que pobre não pode fazer análise é tratá-lo como um animal,
situando sua questão de dinheiro apenas no registro da necessidade.
Na verdade, o rico é mais inanalisável do que o pobre, se chamarmos
de rico aquele que não tem falta.” 20
19
20
Ibidem, p. 169.
QUINET , A . As 4 + 1 condições de análise, p . 96.
A nossa hipótese é de que a miséria neurótica é manifestada na estrutura
discursiva de cada sujeito. É no um a um de cada caso, com a singularidade do sujeito
do inconsciente, que os analistas defrontam-se com o possível aparecimento do inédito
do desejo.
Referências Bibliográficas
.
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Ambiciosos, 2000.
FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas, Edição Standard Brasileira, Rio de
Janeiro, Imago Editora , 1976.
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_______. “Sobre o Início do Tratamento” (1913).
_______. “Novas Recomendações Sobre a Técnica da Psicanálise I” (1913).
_______. “Novas Recomendações Sobre a Técnica da Psicanálise II“ (1914).
_______. Conferência XXIV “O Estado Neurótico Comum” (1916-1917 [1915-1917]).
_______. “Uma Dificuldade no Caminho da Psicanálise” (1917).
_______. “Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica” (1919 [1918] ).
GAY, Peter “Freud uma vida para o nosso tempo”. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
QUINET, A . “As 4 + 1 Condições de Análise”, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,
1997.
ROAZEN, Paul. “Como Freud Trabalhava”. Relatos Inéditos de Pacientes”. Ed.
Companhia das Letras, 1999.
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