WALDO LUÍS VIANA EU SEI QUE TU ME SONDAS... Depoimento pessoal e intimista sobre uma caminhada espiritual RIO DE JANEIRO 2008 DEDICATÓRIAS Nos três meses em que escrevi este livro sofri de uma cruel solidão. Embora não tenha sido interrompido pelas chatices cotidianas que habitualmente incomodam os escritores, e fazem parte do folclore literário, para mim, como autêntico libriano, sempre foi difícil suportar esse estado em que ficamos condenados a nos suportar a nós mesmos. No entanto, mesmo sob protesto, consegui dirigir os pensamentos mais doces para três pessoas: minha filha, Alana, que afinal tanto amo; minha mãe, Ângela, cujo padecimento em virtude do câncer no pâncreas (que finalmente a levou deste plano) me reensinou a viver e minha mulher, Rosana, em cujos olhos cheios de amor e mãos, repletas de perdão, pude me espelhar para, após grave acidente, voltar a crer na vida. A elas, minhas queridas, a mensagem irresistível e agradecida de um grande afeto... Também não posso esquecer de agradecer também a Ângela Gerber, amiga evangélica que, certo dia, ao me sentir perdido, me ofereceu uma Bíblia... 2 SUMÁRIO – Introdução: O Desastre... ....................................................................... 1 – Retornando ao Sagrado ..................................................................... 1º Intervalo – Oração ao Senhor ............................................................. 2 – Anjos ou Macacos? ............................................................................. 3 – As Contradições da Bíblia .................................................................. 2º Intervalo – A Contabilidade Sideral ..................................................... 4 – O Problema da Fé ............................................................................... 3º Intervalo – O Rondó da Criatura ......................................................... 5 – Jesus vivo ou mito? ............................................................................. 6 – A solução protestante .......................................................................... 4º Intervalo – O desmonte das lágrimas ................................................... 7 – Templo é Dinheiro! ............................................................................ 5º Intervalo – A Separação ...................................................................... 8 – A Alternativa Espírita .......................................................................... 9 – A Reencarnação ................................................................................. 6º Intervalo – A Promessa ........................................................................ 10 – A História da Luz ............................................................................. 11 – Os Doces Mistérios Cristãos ............................................................ 12 – Os Véus da Trindade ......................................................................... 7º Intervalo – O Ombro Estraçalhado ....................................................... 13 – Um Muro de Virtudes ....................................................................... 8º Intervalo – A Recuperação .................................................................... Um Desamor à Igreja Católica ................................................................... O Óbolo de São Pedro .............................................................................. 14 – Os Extraterrestres e as Moradas do Pai.............................................. 9º Intervalo – “Quem São os Extraterrestres?” ......................................... “A Regra Áurea” ........................................................................................ 15 – A Reconciliação dos Cristãos ............................................................. 3 10º Intervalo – Um Anjo Salvou Minha Vida ............................................. Os Sinais ...................................................................................................... Epílogo: Uma Caminhada Espiritual ........................................................... SUMÁRIO DAS ILUSTRAÇÕES Quadro 1 – A Bíblia e a Teoria da Prosperidade ........................................ Quadro 2 – A Bíblia e a Reencarnação ........................................................ Quadro 3 – A História da Luz ...................................................................... Quadro 4 – A Bíblia e a Trindade ................................................................ Quadro 5 – A Bíblia e o Livre Exame .......................................................... Quadro 6 – A Bíblia e as Imagens ................................................................ 4 – INTRODUÇÃO: O DESASTRE... “Se você não teve dificuldade para encontrar Deus, talvez não tenha sido Deus o que você encontrou.” Thomas Merton 5 Comecei a me interessar por escrever sobre pontos de vista religiosos a partir de um drama pessoal: fui agredido miseravelmente no Rio de Janeiro, sem possibilidade de defesa, tendo feito uma operação delicadíssima no braço direito. Hoje tenho uma prótese de titânio, de vinte centímetros e quatro parafusos, tendo sofrido demais após a cirurgia, que foi realizada em hospital público. O meu período de recuperação fez-me repensar a vida e me aproximar da religião de meus pais e avós. Era uma espécie de ovelha desgarrada, um boêmio de vida desregrada, que passou a desejar a volta ao rebanho, não só por causa do sofrimento, mas pela consciência de que aquele grave acontecimento separou minha existência em duas partes. Por que o sofrimento nos faz pensar de novo em Deus e refletir sobre a necessidade de sua existência em nossa vida? Que miseráveis criaturas somos nós que, quando vivemos o júbilo da alegria e do sucesso só pensamos em nós, esquecendo-nos do Pai. E com que rapidez, deitamos no chão os joelhos para lembrar na desgraça e na tragédia que somos filhos do mesmo Senhor e clamamos por sua misericórdia? Esse depoimento é pessoal e muito simples. Não é um tratado de teologia nem uma tentativa de provar qualquer coisa em matéria de religião. Aliás, o senso comum sempre nos aconselhou a não discutir religião, futebol e política, o que, somado a meiadúzia de outros temas polêmicos, condenaria a humanidade a não sair do lugar e a não experimentar nenhuma inovação ou progresso históricos. Quem não aprofunda nada em termos de discussão, nem tenciona buscar a verdade, pelo menos como meta, acaba sob o domínio da ditadura da opinião, do “achismo”. O medo de falar sobre assuntos controversos aponta sempre para os espíritos secos, descarnados de criatividade, afeitos à omissão e ao dar de ombros. Não é o caso aqui. Vou ousar e me expor, mesmo que digam que exagerei, de que fui além do esperado pelos conservadores de plantão. Jamais fui conservador. Sempre enfrentei, de peito aberto, as polêmicas, os assuntos que dividem e ganhei muita incompreensão e alguns inimigos. Escrevi vários livros e eles sempre tocaram em temas difíceis, como política, drogas, alcoolismo, religiões comparadas e costumes. Percorri vários caminhos, como se não soubesse nem o que queria, mas não me arrependo dos resultados. O indivíduo que é comumente apontado como intelectual e poeta fica geralmente muito vaidoso. A desgraça é que acaba por deixar de perceber a linha comum que o liga aos demais mortais no sentido social ou de cidadania. O intelectual quer ficar numa espécie de céu inatingível, numa redoma, em que os demais lhe prestem várias homenagens e, como no Brasil existe uma tendência à valorização da mediocridade principalmente na mídia, acaba frustrado com as incompreensões e praguejando contra os outros, como se os brasileiros fossem realmente uns despreparados. Isso é outro exagero que cai por terra quando olhamos uma nação com quase 200 milhões de habitantes, que detém quantidade enorme de homens e mulheres notáveis. Alguns livros meus ficaram encalhados, não por total incompetência, mas porque as editoras, com o sentido de comércio, preferem apostar em livros de grande apelo popular, deixando para trás aquilo que consideram que não ficará na lista dos mais vendidos. É o espírito do capitalismo, para elas muito natural e que não se pode 6 lamentar. Nesse país, paradoxalmente, existem mais escritores do que leitores e esse fosso estranho é difícil de cobrir, a não ser com educação e incentivo governamental à leitura. Ouso dizer que vou falar sobre religião e Cristianismo, assuntos que me despertam bastante curiosidade e que não domino plenamente, o que não me inibe e até estimula. Não me furtei a convidar para o ensaio diversos autores que compartilharam comigo o debate e gravaram informalmente as suas opiniões. Não tive vergonha de utilizar amplamente a Internet, porque ela veio para ficar e transformar nossa cultura, queimando etapas com a sua velocidade. Agora, neste momento de outono, a vida convida-me a uma suma, a um resumo espiritual necessário, mas jamais suficiente. Os espaços vazios naturalmente serão ocupados, depois, pela reflexão do leitor... Estudei em colégio de padres. Tive educação bastante satisfatória, não só pela erudição dos professores, como pela companhia dos colegas, alguns hoje muito famosos na sociedade. Eram filhos de gente rica e eu, um rapaz de classe média, num tempo em que se dizia que se houvesse muito estudo e aplicação os empregos seriam garantidos. No entanto, quando terminei a faculdade de Economia, o mercado já não oferecia esse automatismo. Nem sempre quem terminava a graduação conseguia lugar ao sol, especialmente no setor em que havia terminado o curso. No período de formação escolar e acadêmica, reli a Bíblia umas quatro vezes, pelo menos nos trechos mais importantes: o Pentateuco, os cinco livros de Moisés, os evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos, Lucas e João), os salmos, os profetas Isaías e Daniel, os Atos dos Apóstolos, também escritos por Lucas, as epístolas de Paulo e o Apocalipse de João. Alguns amigos que encontrei pela vida achavam muito chato ler a Bíblia. Os nomes e localidades hebraicos, a linguagem às vezes cifrada, afugentavam muitas pessoas, embora se saiba que o Livro Sagrado seja o mais lido e comentado do mundo. Apesar disso, sabemos que o Cristianismo, quando dividido pelas inúmeras confissões e seitas, não é mais a religião majoritária, vez que superada pelo islamismo e acompanhada de perto pelo hinduísmo1, o que demonstra que a Casa do Pai tem realmente várias moradas e os buscadores do bem podem ser encontrados inclusive entre aqueles que não reconhecem Jesus como o único Salvador. A esse propósito, quando estudamos religiões comparadas, descobrimos vários princípios comuns, porque não se concebe um ser religioso que pretenda a destruição de um irmão pela violência ou pela opressão. Aliás, a tese deste livro é bastante simples: as religiões são parecidas e propõem, todas elas, uma linguagem de amor, tolerância e compaixão. No entanto, quando crescem e se solidificam na elegância do tempo, transformam-se em instituições e se tornam exigentes e dogmáticas na sociedade. Para manter e defender seus princípios, usam de violência, intolerância e perseguem os não seguidores, chamando-os de “ímpios”, “iníquos” ou infiéis, desfigurando totalmente o que disseram, de início, os chamados “mestres-fundadores”. Principais Religiões no mundo: Islamismo – 1,2 bilhões/hab; Catolicismo – 1,1 bilhões/hab; Hinduísmo – 900 milhões/hab; Protestantes – 750 milhões/hab; Budismo – 400 milhões/hab; Ortodoxos – 280 milhões/hab; Outras – 1,4 bilhões/hab. Fonte: Principais Religiões (nº de adeptos ONU/2000). 1 7 Quanto mais institucionalizada, mais uma religião reivindica ser “a melhor” e “a única” que deva ser seguida. E ai daqueles que se aventurarem a pensar diferente... As idas e vindas dessa história é o que me comprometo a contar – mercê da paciência do leitor –, frisando que vou escoimar toda a complicação que poderia exibir num livro com temas religiosos e bíblicos, inclusive o verbo escoimar. E que Deus me ajude e que os homens não muito afeitos a aceitar novas interpretações me perdoem. Porque o perdão, este sim, é uma ciência e aqueles que são capazes de exercê-lo os realmente vencedores. Teresópolis, 1º de novembro de 2008. O autor. 8 –1– RETORNANDO AO SAGRADO “Muitos sabem falar de Deus. Alguns sabem falar com Deus. Mas quase ninguém sabe calar perante Deus para que Deus lhe possa falar.” Huberto Rohden 9 Como já disse, estudei em colégio de padres. A maioria era constituída de eruditos que me despertaram a atenção para a cultura e o valor da catolicidade, uma coleção de informações profundas, transmitida por diversos autores por quase dois milênios. Ao lado da chatíssima educação tradicional, exigida pelos currículos do Ministério da Educação e Cultura, aprendíamos a raciocinar e a criticar, apesar de meu aprendizado no curso secundário ter sido reprimido pelas normas do período de ditadura militar (1964-1985). Até a aterradora disciplina “Moral e Cívica” era servida com molho especial, preparando os jovens tenros e atentos naquelas carteiras enfileiradas a virarem futuros e decididos cidadãos. Ocorreu, porém, fato curioso: quase todos aqueles padres eruditos deixaram o celibato para resolver casar. Havia um professor de matemática, velho sacerdote cheio de manias, que arranjou uma namorada e sumiu! Muitos de meus colegas e até meu irmão, que também estudava em outro colégio católico tradicional, me confessavam que para virar bons ateus bastava freqüentar aqueles grandes colégios, controlados por salazaristas, beneditinos e jesuítas. Por meu turno, resolvi desconfiar da desconfiança. Apesar de tudo, a Igreja mantinha-se de pé, ensinando-me e com ótimos resultados. Passei brincando em dois vestibulares e comecei a fazer duas faculdades: Economia e História. O primeiro curso era em universidade particular, pela manhã; o segundo, em estabelecimento público estadual, à noite. Deixei o curso de história, porque precisava trabalhar e lamento muito ter preferido continuar e concluir o curso de Ciências Econômicas, porque na época era moda ser economista. Deixei de ser historiador, operador de história (ou qualquer nome que se lhe dê) para tentar seguir os passos de quem acreditava no milagre econômico dos denominados “anos de chumbo”. A Economia é fascinante e quando ajuntamos a ela o adjetivo “Política”, passa a ser objeto de grande interesse para um jovem estudante que vivia enfurnado na biblioteca da faculdade. Só muito mais tarde, soube que a freqüência às bibliotecas é hábito muito comum no estrangeiro, em países desenvolvidos, mas num subúrbio do Rio de Janeiro, em 1972, tal conduta era vista como cometida por um ET... Formei-me com 23 anos, sem a menor noção da importância do instrumental que tinha nas mãos. À época, já estava afastado de Deus, preocupado com outros interesses de juventude: namorar, passear no fim-de-semana e fazer todas as bobagens que eram permitidas a um jovem de classe média. Havia lido a Bíblia no colégio, obrigado pelas aulas de religião, mas a minha posição era de completa alienação e desligamento. Li o Livro Sagrado como as misses percorriam o livrinho de Saint-Exupéry “O Pequeno Príncipe”, aquele com a frase célebre e sempre lembrada: “tu te tornas responsável por aquilo que cativas...” A Bíblia para um adolescente é uma fábula, na medida em que lhe fervem os hormônios e ele se aproxima do sexo, pé ante pé, como se estivesse rasgando com 10 coragem os véus do pecado. Se um religião lhe proibisse o sexo, pior para a religião. E não fugi à regra, não sem uma pontinha desafinada de complexo de culpa! O Pequeno Príncipe Sempre gostei de ler, depois que desisti de ser jogador de futebol, por insistência de minha família, porque, na época, não era profissão digna da classe média. Jogava até bem, mas era menino de 15 anos obediente e passei a me dirigir para a biblioteca do colégio. Passei a gostar do silêncio e da companhia dos livros, que não brigavam nem gritavam comigo. Dentre tantos livros “lidos”, passei as retinas pelo “O Pequeno Príncipe” do célebre autor francês Saint-Exupéry, embora tenha absorvido muito pouco de seu significado. Pareceu-me uma estória bonita quanto tantas outras e até pensei que poderia virar mero desenho animado. Esse dado é muito importante para o que falarei a seguir. O cérebro humano, na adolescência, tende à fabulação e ao sonho, repudiando inconscientemente as mais elaboradas categorias racionais. A própria concentração, tão necessária a estudos mais refinados, é uma conquista da maturidade, sendo o jovem um ser naturalmente desatento e realmente preocupado com assuntos particulares, que, não raro, nada tem a ver com temas eruditos ou cultos. O jovem quer conquistar o dia a dia, divertir-se, que em latim significa “desviar-se de”, quer fazer tudo o que não seja obrigação, mas lhe lembre festejos e festas (hoje chamam “baladas”). E isso é muito natural. Comigo acontecia a mesma coisa. A leitura do best-seller francês não me despertou qualquer entusiasmo e li aquelas páginas como se fossem uma esquecível estória em quadrinhos. Nada mais que isso. O principezinho representava apenas um menino solitário a fazer observações sobre a vida de maneira nobre e completamente distante da minha realidade brasileira. Anos depois, ao reler o livro, é que percebi a grandeza daquela obra universal, que canta a relação de abandono do homem em relação ao universo, muito maior do que consegue entender a pobre compreensão mortal. Anos além, tornei-me amigo e assistente de um juiz, no Rio de Janeiro, que me ensinou uma regra de ouro, que jamais deixei de recordar: o importante não são os livros lidos, mas os “relidos”. A princípio não entendi o que aquilo significava, mas o reforço dos anos, com os inevitáveis sofrimentos da experiência, conduziu-me a lhe dar inteira razão. Assim como não podemos desprezar os grandes filmes, vendo-os apenas uma vez, os livros são inúmeros e não dá para ler todos no pequeno espaço de uma existência. Então, o que resta a nós, pobres mortais, senão tão somente fixar a atenção nos melhores autores, voltando sempre a eles, como se necessitássemos de uma cintilação de luz abaixo de um disfarçado e escondido véu de ignorância? Um reencontro digital... Imediatamente o espírito voltou-se para os livros que jaziam na minha pequena biblioteca, a maioria deles lidos, sublinhados, riscados e com observações nas margens. Sempre cultivei o hábito de estragar os livros que passavam por minhas mãos, 11 discutindo por escrito com os autores, ressaltando os pensamentos mais importantes, sublinhando-os com régua ou sem régua, sempre à caneta, de sorte que quando a leitura era concluída, eles estavam completamente ultrajados em sua pureza. Mal ficavam de pé as páginas, em que colocava um molho de opiniões, às vezes descabidas (perceberia posteriormente), mas para mim seria tortura deixar as folhas impressas totalmente passivas, sem ser incomodadas ou remexidas. Um hábito meio mórbido, meio necessidade visceral da qual não conseguiria nunca mais fugir. Era um vício desses que nos permitimos na solidão diante de páginas silenciosas, apenas nossas... Assim estavam os livros nas prateleiras e voltei a olhá-los com simpatia, ao invés de percorrer apressadamente livrarias e sebos em busca de títulos novos. Quem sabe eu já tivesse tudo ali... Com o advento do computador, então, minhas entranhas ficaram ainda mais calmas, porque a possibilidade de pesquisa ficou ao alcance de um clique, sem demoras ou problemas. A velocidade substituiu a procura e hoje a juventude, tendo nas mãos a selva eletrônica, não precisa mais se preocupar com a acumulação do conhecimento, mas com o treinamento em buscar informações, saber onde estão e como combiná-las. Os professores e pedagogos que se revoltarem contra essa inevitável realidade estarão em menos de dez anos completamente superados. Meu reencontro com a Bíblia deu-se digitalmente. Desloquei um programa para o computador com todo o texto e adaptei o desktop para receber passagens bíblicas todas as vezes que voltava à área de trabalho. Aí aconteceu dentro de mim grande transformação. Já havia casado e tinha uma filha, separei-me e vivia sozinho – a Bíblia passou, então, num passe de mágica, a ter sentido, a princípio como suave tônico moral, que acalmava como água fresca a fronte, depois como depósito de grande conhecimento e reflexão espiritual à disposição, mas que antes, por imaturidade, não dera a menor atenção. Casei-me na Igreja católica, com tudo o que tinha direito: noiva de branco, grávida, festa em clube e lua-de-mel. Separei-me e me informaram que, pelo direito canônico, já não poderia receber a comunhão. Tive outras esposas e, por conseguinte, era uma católico muito triste, expulso da comunidade pela porta dos fundos! Infelizmente ou não, um escritor e poeta gosta muito de sexo e de mulher (sou um homem primitivo!). Isso parece não ser bem compreendido pelas autoridades eclesiásticas que recomendam o casamento eterno e monogâmico, o que escapa um pouco da gravidade nesses tempos conturbados. Isso, todavia, não me impediu nem me censurou quanto à leitura dos textos bíblicos. Meu trabalho, como jornalista, função que exercia desde 1979, portanto antes da exigência de diploma, no Brasil, levou-me a escrever sobre religiões comparadas e história mística, ou seja, aquela que vem sendo pesquisada antes de Menés, que fundou o Egito aos 3200 a.C. (antes de Cristo) e iniciou a história ocidental consentida. A pergunta que me impulsionava, à época, era: de onde veio aquele negro, que inaugurou a história do jeito que a conhecemos? 12 Minha curiosidade não aceitava as respostas prontas da arqueologia e da etnologia. Eu queria ir além. Comecei a estudar o chamado realismo fantástico e autores como Robert Charroux, Erich Von Daniken, Louis Pauwels e Jacques Bergier, que direcionavam suas pesquisas para respostas menos caretas sobre os problemas de origem da humanidade. Nem é preciso dizer que, em tempos de ditadura militar, pesquisar assuntos como o desaparecimento da Atlântida ou a Teoria da Terra Oca não gerava complicações com a censura ou com o temido Departamento de Ordem Política e Social. Para complicar ainda mais, recebia monografias da Ordem Rosacruz, que discutia e aprofundava esses assuntos de maneira sistemática, dando inclusive um tratamento todo especial ao papel de Jesus no mundo. Cheguei ao décimo grau da Ordem e depois desisti, até hoje nem sei mesmo o motivo, embora mantenha comigo o material, que, de vez em quando, consulto. Partindo dessa barafunda espiritual, num salto no tempo, vi-me com 45 anos de idade (nasci em 1955) num reencontro inesperado e computacional com a chamada “Palavra de Deus”, que Daniken, na década de 70, tentou provar que era manifestação de seres extra-terrestres soprada nos ouvidos de pastores semi-analfabetos e machistas, que constituíam então as tribos de Israel. Os cometas seriam uma espécie de espermatozóides celestes que polinizariam a terra em tempos imemoriais, depositando o sêmen da vida nas águas de nosso planeta, cuja evolução, através de milhões de anos, foi conduzindo a vida para a terra firme. Como prova, o autor normalmente se reportava aos relatos bíblicos sobre carruagens de fogo e o célebre primeiro capítulo do livro de Ezequiel – que seriam indícios da visita e interferência de discos voadores na história humana. Não seria a sarça ardente de Moisés somente a manifestação mecânica de extra-terrestres, transferindo conhecimento moral a tribos despreparadas para uma transformação revolucionária em tempos de disseminado paganismo2? Aliás, o repúdio ao culto de ídolos e de falsos deuses, em favor de um Deus único e pessoal, é a constante do texto bíblico durante todo o Antigo Testamento, assim como a idéia de povo escolhido, em detrimento de todos os outros. Tais idéias, que prevaleciam nos textos antigos, foram superadas, no Novo Testamento, pela dilatação do Evangelho para todos os povos, mesmo os denominados gentios e não circuncidados. A linha de ligação no texto sagrado, no entanto, sempre foi a recusa radical à idolatria, ao culto de falsas divindades e das exterioridades, em nome de uma autêntica vida espiritual. Qual não foi a minha surpresa ao presenciar o retorno agressivo da idolatria em nosso tempo, com o capitalismo emporcalhando todas as festas religiosas com a ideologia onipotente do comprar e vender objetos: desde ovos de páscoa a eletrodomésticos e eletroeletrônicos. Mede-se a felicidade e bondade humanas pela quantidade de dinheiro, objetos e posses que cada indivíduo possua e não pela espiritualidade original que foi fixada pela sucessão de datas no calendário religioso. Do latim “paganismus”, conjunto de idéias dos povos “pagãos”, que habitavam os campos e não eram propensos à cultura dos cidadãos das cidades, mais preparados e esclarecidos pelo ensino. Hoje, consideram-se pagãos aqueles que não receberam o sacramento do batismo ou não aceitam a ortodoxia da religião. 2 13 E o mais grave é a mitificação de ídolos populares de música pop, rock e outros ritmos, a ponto de se perceber uma substituição perversa da vida espiritual para a exaltação pura e simples de indivíduos envolvidos com hábitos não muito recomendáveis, incluindo aí o delírio das drogas e da sexualidade desenfreada. Esse retorno à idolatria, ao contrário de ajudar a melhorar a vida humana, precipitou as pessoas, principalmente nas grandes cidades, em graves problemas psicológicos de solidão, depressão e violência – fenômenos agravados e incitados pela mídia, que depende da manutenção da mesma idolatria para continuar funcionando... 14 1º INTERVALO – ORAÇÃO AO SENHOR Meu Senhor, Sei que Tu me sondas E procurei ser forte, Na franca medida de minha fraqueza, Meus pés fraquejaram ao perseguir limites, Em que não sabia se desmaiava Ou sobrevivia. Sei que Tu me sondas E até me indicará caminhos, Sinto-me ansioso por novas jornadas, Os fins, os desafios (quais serão?)... Meu Senhor, Quão complexo é para mim O discernimento de Tuas diretrizes, Mas percebi, pelo menos, Em meio a dores e certa tragédia, Desmedida, Os Teus dedos luminosos Finalmente tocarem em mim. Deus meu, Não me sinto derrotado, És meu freio de arrumação, Quando pensava, em pobre orgulho, Que urdia um vôo de águia, No entanto, nada havia, A algaravia ficou simbolizada Nos cacos alquebrados Do ombro direito, Explodido pelo cabo de um fuzil, Bala perdida ao contrário, A desviar meu destino em direção a Ti. Ó meu Senhor, Tu me sondas e me fez chorar, Como menino sozinho, De dor, pânico e estupor, Mas deu-me compreensão Para entender a humana natureza E a sua natural torpeza De fazer sofrer A quem diz que mais ama, Pelo fio do poder, Do controle e da opressão. 15 Meus olhos, meu Senhor, Estão ensaboados de lágrimas E nem consigo ter ódio no coração, Sabes, aquele ódio de bandido celerado Que se compraz na vingança, Porque entendi, pela primeira vez, Como é que o Senhor opera: Não vale a pena sujar as mãos Com o sangue dos que nos ofendem, Em virtude de que És quem chama para Ti O supremo julgamento, Sem o qual as violências jamais seriam mitigadas, Nem ser teria o menor sentido. Se fizeres por mim um renascimento, Já terá valido a pena ter vivido, Ter meu cérebro poupado, As vísceras, o andar E a capacidade total de amar de novo. Que essa oração tão dorida, Em forma de lamento, Caia em Teu colo tão divino E converta minha dor, Particular e egoísta, Em momento de reabilitação Para o sofrimento de outro semelhante, Mais carente. Quando vejo a meu lado Os que mais sofrem, Morro de imensa vergonha De Te pedir: Afasta de mim este cálice de dor, Porque confesso que aprendi E consegui ver, em silêncio, Sozinho, trêmulo e abandonado, Que Tua luz rebrilhava E que me mandaste um Anjo. Esteja certo, Deus meu, Cumprirei a minha parte E até acho ter ultrapassado Alguns limites por pré-julgamento, Mas será que o Senhor me permitiria Diminuir tanta dor em meu corpo, Embora ela tenha sido útil Para purgar os pecados de minh'alma? Volvo a Ti, em comedimento, 16 Um sinal, porta fora, porta adentro, Ó meu Senhor, Perdoa Tua pobre criatura, Senhor, Livra-me de mim... 7 de agosto de 2008. 17 –2– ANJOS OU MACACOS? “Tanto o nascimento da espécie como o do indivíduo são partes daquela série de acontecimentos que a nossa inteligência recusa a aceitar como efeito cego do acaso.” Charles Darwin 18 Não há dúvida de que o problema da expansão do Evangelho pelo mundo não é mais questão de convencimento – já que as igrejas católica e protestante se espalharam pelo mundo – mas um tema de ordem social, quando se confronta o poder religioso em relação ao crescimento e predomínio do Estado nacional moderno, a partir do século XVI. Pouco a pouco, o Estado foi tomando para si a autoridade política, pondo as igrejas em situação paralela, em primeiro lugar; numa fase intermediária, as instituições religiosas passaram a lhe ser subordinadas e, modernamente, a maioria das sociedades ocidentais optou por separar as igrejas do Estado e ele passou a ser laico e secular, ou seja, não religioso, partidário de um código de leis completamente separado de eventuais ou permanentes crenças religiosas. Essa separação entre igrejas e Estado influenciou de forma determinante na educação e nas teorias aceitas sobre a origem do homem e do Universo, embora muitos conflitos tenham se estabelecido na fixação de políticas públicas de ensino que evitassem essas questões centrais do pensamento religioso. É interessante observar que todos os países que optaram por regimes de estados teocráticos, vale dizer, sustentados por uma ideologia religiosa e o mandonismo de uma casta de sacerdotes, sempre abrem enormes janelas para as inquisições, com extensa gama de acusações falsas, prisões injustificadas, violências, torturas e grandes injustiças. Assim, tivemos episódios sangrentos nas inquisições espanhola, portuguesa e das cidades italianas, nos séculos XVI e XVII, e, modernamente, em estados islâmicos controlados pelo fundamentalismo religioso xiita, como o Irã, a partir de 1979. O fundamentalismo é a resposta religiosa contra os costumes modernos, tentando restaurar um estado de poder anterior, geralmente com origem na Idade Média, em que a religião tinha o foco central e influenciava totalmente a vida das populações. As cruzadas na Idade Média contra os muçulmanos, as perseguições aos judeus, que chegaram até o século XX e a demonização de grupos minoritários como os ciganos e outras minorias étnicas sem pátria ou território definido – são exemplos típicos dos injustificáveis procedimentos adotados por seres humanos perturbados psicologicamente que, ao se investirem de algum poder, resolviam promover processos de limpeza étnica, com o genocídio de milhares de pessoas. Por sua vez, se a Igreja optou por reconhecer como doutrina religiosa incontestável o chamado criacionismo, isto é, que existiria um princípio inteligente (Deus) por baixo da criação de tudo, do céu, da terra e do homem, as doutrinas protestantes, principalmente em solo norte-americano, procuraram manter o ensino da doutrina de maneira universal nas escolas, a ponto de contrariar os princípios constitucionais do Estado laico, previstos na própria Constituição daquele país. Uma embriaguez científica A reação social a essa intromissão indevida da religião na interpretação científica das origens do Universo e da vida humana produziram a princípio na França o movimento iluminista, no século XVIII. Tal movimento – o nome já sugere – procurava trazer a luz do conhecimento onde só existiam pretensamente as trevas 19 mantidas pelos preconceitos religiosos. As ciências receberam grande revitalização e os pesquisadores já não eram punidos por estudos e teorias. Tal tendência evoluiu no século XIX para uma atmosfera de valorização das descobertas e experimentação científicas, apartando o pensamento humano e livre da censura religiosa e de suas espantosas exigências do passado. Foi nesse clima de embriaguez que surgiram as célebres obras de Charles Darwin3 que sacudiram as academias de ciência e os espíritos predispostos a expulsar de vez os princípios religiosos do privilégio de explicar temas que os estudiosos consideravam privativos da reflexão científica. São bem conhecidos os princípios da sobrevivência do mais apto e da seleção natural das espécies, com a manutenção daquelas mais resistentes na sua interação com o meio ambiente selvagem. Charles Darwin descobrira que a luta frenética entre os animais em busca de sustento formaria uma cadeia alimentar entre as espécies, capaz de promover o equilíbrio na natureza e a adaptação de algumas espécies e o desaparecimento de outras. Tais idéias foram aproveitadas pelos perseguidores do pensamento religioso para contestar o predomínio ideológico do pensamento bíblico, com a antiga história do Gênesis, da criação do mundo em seis dias, a existência de um casal humano original, expulso do paraíso por haver comido da árvore do conhecimento. Não admitindo nem a utilidade moral do posicionamento religioso sobre o início da Criação, os cientistas contestavam a história como sendo uma fábula sem qualquer valor, incorrendo, a meu ver, no mesmo erro estratégico dos criacionistas: invadir com argumentos científicos a seara bíblica, assim como aqueles que desejam impingir pelo ensino a doutrina criacionista como se fosse uma incontestável verdade científica. O que sobrou, na prática, na mente popular, foi a percepção imprecisa de que o homem descenderia do macaco, como se essa fosse uma punição para o nosso orgulho, que, por séculos, acreditou que éramos filhos de Deus, criados à sua imagem e semelhança. Na verdade, quando retornamos à raiz dos termos bíblicos, ao hebraico, percebemos que as palavras Adão e Eva não significam a existência de um casal concreto, como João e Maria, típicos do nosso tempo. O idioma hebraico tem a propriedade de expressar numa palavra diversos significados. Adão, por exemplo, significa o homem, o vinho, a cor vermelha. Na língua suméria “adamu” significa “imagem”, como se fosse uma feição genética interna4, sendo que “adamah” quer dizer “o terráqueo” e o sufixo “dam” significa “sangue”. Em suma, em língua suméria Adão quer dizer “feito de sangue”5. Por seu turno, Eva, no hebraico, vem de “Ava”, que significa a mãe, o branco, o leite e aquela que tem vida. Em língua suméria, a palavra “Ti” pode equivaler, curiosamente, tanto à palavra vida quanto ao vocábulo “costela”6. 3 A Origem das Espécies (1859) e A Origem do Homem (1871). Cf. SITCHIN, Zecharia. Gênesis Revisitado, p. 167, tradução de Evelyn Kay Masssaro e Marcília Britto, 7ª edição, São Paulo, Editora Best Seller, 1990. 5 Idem, p. 168. 6 Idem, p. 191. 4 20 Essas observações, um pouco complicadas, servem apenas para esclarecer que a Bíblia não é coisa simples como uma narrativa linear, tendo enormes ciladas de significado a ser interpretadas pelos espíritos abertos. Jamais consegui entender, por exemplo, como Adão e Eva foram expulsos do Paraíso por haverem comido da árvore do conhecimento, através da sedução diabólica da serpente, e Caim, ao ter matado o irmão Abel, no primeiro e terrível homicídio registrado, ter tido somente, como punição de Deus, uma marca na testa e o exílio, para fundar novas cidades7. O crime de Caim pareceu-me sempre muito mais grave. No entanto, quem sou eu para julgar as soluções divinas, que sempre chamei, jocosamente, de contabilidade sideral? A solução dos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos foi a de impedir que o criacionismo fosse ensinado nas escolas como doutrina oficial, referendando os princípios constitucionais de separação entre Religião e Estado (Estado laico e secular). De qualquer modo, apesar do sucesso popular e da penetração das idéias evolucionistas, as mais recentes pesquisas no campo da genética, da arqueologia e da paleontologia apontam para uma origem unitária da humanidade a partir do Norte da África e que os macacos e o homem derivam de um tronco comum. No entanto, a partir de certo momento, que a Bíblia refere como um sopro em suas narinas, o homem distanciou-se dos primatas, queimando etapas evolucionárias até ser o que vemos hoje com toda a sua variedade e beleza. Ao mesmo tempo, se a inteligência dependesse apenas do tamanho do cérebro, elefantes e baleias seriam muito mais inteligentes e preparados que os homens e, por conseguinte, os verdadeiros reis da criação... 7 Cf. Gn., 4: 14-17. 21 –3– AS CONTRADIÇÕES DA BÍBLIA “Poucos conhecem a fundo as máximas e os provérbios do Evangelho. A razão disso está, em grande parte, na dificuldade que a leitura do Evangelho apresenta: entendimento muito difícil para um grande número de pessoas. A forma alegórica, o misticismo intencional da linguagem fazem com que a maioria o leia por desencargo de consciência e por dever, como lêem as preces, quer dizer, sem proveito.” Allan Kardec 22 A Bíblia engloba os aspectos mais importantes da vida humana, formulando um projeto que força o crente ou seguidor de suas palavras a uma incontestável adesão a princípios sólidos. Certo? Não, errado. Nem sempre é assim, a começar pelo tipo de interpretação que se adota: aquela que compreende a Bíblia ao pé da letra, isto é, tudo o que lá foi escrito seria a pura expressão da verdade, como, por exemplo, que os primeiros homens foram Adão e Eva e outra, mais elaborada, que permitiria o reconhecimento da metáfora de seus ensinamentos, como afirmamos, Adão vem do hebraico “Adam”, que significa “o homem” e Eva, significa “Ava”, “a mulher”, sendo uma representação do alvorecer da humanidade com as suas sementes iniciais. Incontestavelmente, Deus, no texto sagrado, identifica-se com o gênero masculino, criando o homem “à sua imagem e semelhança”8, fazendo-o “governar” a mulher9, orar, segundo os ensinamentos de Jesus, o “Pai-Nosso” e realizando a sua vontade10. É adotado, também, um modelo patriarcal de sujeição da mulher ao marido, recomendando-se que “as mulheres sejam submissas ao seu próprio marido, como ao Senhor”11 assim como “também os maridos devem amar a sua mulher como ao próprio corpo”12, “porque, primeiro, foi formado Adão, depois Eva; todavia, será preservada através de sua missão de mãe, se ela permanecer em fé, amor, e santificação, com bom senso”13. A “missão de mãe”, naturalmente, refere-se à procriação e criação dos filhos, fugindo ao modelo feminista que está na moda em nossos tempos. O sexo à moda antiga Foi permitido, pela tradição judaica do Antigo Testamento, o exercício da poliginia (mais de uma mulher para um homem)14 sendo que Esaú teve três mulheres, Jacó queria Raquel e acabou tendo quatro mulheres15, Moisés teve duas mulheres e o rei Davi, ascendente do Messias, teve oito mulheres16. Salomão, por sua vez, filho de Davi, conseguiu a proeza de manter 700 mulheres e 300 concubinas17. A bigamia também existia: Lemeque praticou-a, com suas esposas, Ada e Zilá18 e Elcana, pai de Samuel, que esposou Ana e Penina19 também foi relatado o amor intersexual entre Noemi e Rute20 e entre Jônatas e Davi21. De qualquer maneira, não havia casamentos “por amor”, como modernamente o concebemos (e fingimos que dá sempre certo), 8 Cf. Bíblia Sagrada, Gn., 1: 26-27, traduzida em português por João Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada no Brasil, 2ª edição, São Paulo, Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. 9 Idem, Gn., 3: 17 10 Cf. Mt., 6: 9-10. 11 Cf. Ef. 5: 22. 12 Cf. Ef. 5: 28. 13 Cf. 1 Tm. 2: 13, 15. 14 Dt., 21: 15. Segundo a etnologia, a poliginia também seria uma prática social, ou regime matrimonial, no qual um homem pode casar-se duas ou mais mulheres que sejam irmãs entre si o que comumente ocorria nas tribos judaicas. Nesse sentido, ela difere da poligamia, que é o casamento de um homem com várias mulheres não importando a origem de sangue. 15 Cf. Gn., 29: 29 a 31:17. 16 Cf. 2 Sm., 3: 2, 5. 17 Cf. 1 Rs., 11: 3. 18 Cf. Gn., 4: 19. 19 Cf. 1 Sm., 1: 2. 20 Cf. Rt., 1: 15, 18. 21 Cf. 1 Sm., 20: 17 e 2 Sm., 1: 26. 23 havendo espaço para arranjos e negociações entre as famílias e tribos, visando sempre à descendência. É preciso notar que a sobrevivência do clã ficava acima de imperativos morais, como na célebre passagem: “Vem, façamo-lo beber vinho, deitemo-nos com ele e conservemos a descendência de nosso pai. Naquela noite, pois, deram de beber vinho a seu pai, e, entrando a primogênita, se deitou com ele, sem que ele o notasse, nem quando ela se deitou, nem quando se levantou.”22 Um outro trecho, porém, contradiz tal tendência, condenando de modo enérgico o incesto: “Nenhum homem se chegará a qualquer parenta da sua carne para lhe descobrir a nudez. Eu sou o Senhor. Não descobrirás a nudez de teu pai e de tua mãe; ela é tua mãe; não lhe descobrirás a nudez. Não descobrirás a nudez da mulher de teu pai; é nudez de teu pai. A nudez de tua irmã, filha de teu pai ou filha de tua mãe, nascida em casa ou fora de casa, a sua nudez não descobrirás.”23 No entanto, mesmo tendo sido fixada a proibição, Amnon manteve relações incestuosas com Tamar, sua irmã a quem dirigiu depois sua aversão, despertando a ira de Absalão, seu irmão, que a acolheu, embora a impedisse de protestar, e do próprio rei Davi. Passados dois anos, Absalão mata Amnon pela vergonha passada por sua irmã. Nesse sentido, vemos o incesto e o fratricídio (assassinato de irmão), aliás não raro em páginas bíblicas.24 O estupro e abuso sexual, sugeridos em Sodoma e Gomorra25 são relatados, de igual modo, em Juízes, quando uma concubina virgem é oferecida a viajantes que, embriagados, a molestaram a noite inteira. Com o amanhecer, o seu senhor a faz entrar em casa e a despedaça em doze partes26. Em Levítico, temos explícita a proibição da pedofilia e de qualquer ato sexual no período da menstruação: “A nudez duma mulher e de sua filha não descobrirás; não tomarás a filha de seu filho, nem a filha de sua filha, para lhe descobrir a nudez; parentes são; maldade é. (...) Não te chegarás à mulher para lhe descobrir a nudez, durante a menstruação.”27 No mesmo livro, foram consideradas “abomináveis” as práticas homossexuais, sendo que, explicitamente, fala-se na condenação à morte dos praticantes de relações dessa natureza: 22 Cf. Gn., 19: 32, 33. Cf. Lv., 18: 6, 9. 24 Cf. 2 Sm., 13. 25 Cf. Gn., 19: 5. 26 Cf. Jz., 19: 20 a 29. 27 Cf. Lv., 18: 17, 19. 23 24 “Com homem não te deitarás, como se fosse mulher, é abominação. (...) Se também um homem se deitar com outro homem, como se fosse mulher, ambos praticaram coisa abominável; serão mortos; o seu sangue cairá sobre eles.”28 Os atos sexuais com animais foram proibidos, embora não com tanta veemência, embora se chamando a atenção para os perigos dessa ação sobre a saúde: “Não te deitarás com animal, para te contaminares com ele, nem a mulher se porá perante um animal, para ajuntar-se com ele; é confusão.”29 Em Deuteronômio, por seu turno, há duas citações importantes, uma contra o “travestimento” e outra de segregação a castrados: “A mulher não usará roupa de homem, nem o homem, veste peculiar à mulher, porque qualquer que faz tais coisas é abominável ao Senhor teu Deus.”30 “Aquele a quem forem trilhados os testículos ou cortados o membro viril não entrará na Assembléia do Senhor.”31 O Novo Testamento, em que a novidade é a transmissão da Palavra não mais exclusivamente a judeus, mas a todos os povos32 dedica uma famosa passagem de Jesus não condenando um ato de adultério que, pela Lei Mosaica, era sempre punido com apedrejamento33. Seus discípulos mais chegados, todavia, chamados apóstolos, tiveram grande trabalho em adaptar a mentalidade dos povos às intenções do Evangelho de Jesus. Recordavam sempre que os povos deveriam abster-se da contaminação dos ídolos (idolatria), bem como “das relações sexuais ilícitas, da carne de animais sufocados e do sangue.”34 Essas coisas eram consideradas, essenciais e dispensadas a circuncisão, antes considerada, no Velho Testamento como exigência: “Todo macho entre vós será circuncidado. Circuncuncidareis a carne do vosso prepúcio; será isso por sinal de aliança entre mim e vós. O que tem oito dias será circuncidado entre vós, todo macho nas vossas gerações, tanto o escravo nascido em casa como o comprado a qualquer estrangeiro que não for da tua estirpe. Com efeito, será circuncidado o nascido em tua casa e o comprado por teu dinheiro; a minha aliança estará na vossa carne e será aliança perpétua. O incircunciso, que não for circuncidado na carne do 28 Cf. Lv., 18: 22 e 20: 13. Cf. Lv., 20: 13. 30 Cf. Dt., 22: 5. 31 Cf. Dt., 23: 1. 32 Cf. Mt., 28: 19. 33 Cf. Jo., 8: 1, 11. 34 Cf. At., 15: 20. 29 25 prepúcio, essa vida será eliminada do aliança.”35. seu povo; quebrou a minha Em diversos pontos do Novo Testamento, por conseguinte, faz-se menção à não necessidade do instituto da circuncisão como forma de agradar a Deus e obter a salvação: “A circuncisão, em si, não é nada; a incircuncisão também nada é, mas o que vale é guardar as ordenanças de Deus.”36; “Porque em Cristo Jesus, nem a circuncisão, nem a incircuncisão têm valor algum, mas a fé que atua pelo amor.”37 Instaurava-se uma nova noção de moralidade, mas ajustada à tolerância e ao congraçamento entre os povos. Um conjunto de preceitos mais tolerantes, incluindo a nova disciplina do matrimônio monogâmico. Passou-se a dizer: “aquele que pratica a imoralidade peca contra o próprio corpo”38. A viuvez da mulher tornou-se um acontecimento social importante, passando a “cancelar o adultério”39 e o Apóstolo Paulo institui o grande preceito, pelo qual o casamento se torna importante disciplinador de mentes, que, de outro modo, poderiam queimar em fantasias sexuais: “E aos solteiros e viúvos digo que lhes seria bom se permanecessem no estado em que também eu vivo. Caso, porém, não se dominem, que se casem; porque é melhor casar do que viver abrasado.”40 Como é natural que “todos pecaram e carecem da Glória de Deus”41 é preciso vencer a tentação, para a qual Deus fornecerá os limites para suportá-la42, pedindo algo que transcende os prazeres da carne, limpando o próprio coração e humilhando-se na presença do Senhor43. Paulo também denuncia os homossexualismos feminino e masculino como práticas inadequadas aos planos de Deus e a correta direção dos homens: “...até as mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas por outro, contrário à natureza; semelhantemente, os homens também, deixando o contato natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo em si mesmos, a merecida 44 punição do seu erro.” Além da lembrança dos males das doenças sexualmente transmissíveis, facilmente sugeridas no trecho acima, Paulo faz um julgamento prévio daqueles que não alcançarão o futuro Reino de Deus: 35 Cf. Gn., 17: 9, 14. Cf. 1 Co., 7: 19. 37 Cf. Gl., 5: 6. 38 Cf. 1 Co., 6: 18. 39 Cf. Rm., 7: 3. 40 Cf. 1 Co., 7: 8, 9. 41 Cf. Rm., 3: 23. 42 Cf. 1 Co., 10: 13. 43 Cf. Tg., 4: 1, 10. 44 Cf. Rm., 1: 26, 27. 36 26 “Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem 45 roubadores herdarão o reino de Deus.” Ao final, Paulo, na epístola aos Hebreus, faz menção explícita às relações sexuais ideais, tipificando o que resultaria na contribuição mais significativa do Cristianismo à formação e estabilidade das famílias: “Digno de honra entre todos seja o matrimônio, bem como o leito sem mácula; porque Deus julgará os impuros e adúlteros.”46 Pelo que vimos nas diversas citações bíblicas, o Livro Sagrado não pode ser acusado de não haver definido claramente os balizamentos do que considera uma sadia vida cristã, embora saibamos que vivemos tempos muito conturbados, em que as relações sexuais pervertidas, o homossexualismo disseminado, a idolatria para com animais e, mais recentemente, a pedofilia, que tem obtido muitos adeptos pela Internet, vêm demonstrando desequilíbrios que, segundo a Bíblia, revelam que os tempos são chegados. Na primeira epístola aos Tessalonicenses, Paulo nos diz claramente que “o Dia do Senhor virá como ladrão de noite”47 e o Apocalipse afirma que o seu reino se implantará apesar da importância da Grande Babilônia, a mãe das meretrizes e das abominações, a cidade que domina sobre os reis da Terra48. Em lugar dela, surgirá a Nova Jerusalém, em que “nunca haverá qualquer maldição”49. Fulminado pela face de Deus É necessário, pois, compreender que a Bíblia supera a discussão meramente banal sobre a sexualidade, trazendo do passado todo um simbolismo do que deve fazer o homem para se manter puro diante de um mundo que sistematicamente recusa a transcendência. Não admira que a frase mais importante da modernidade, proferida por Nietzsche, Deus está morto, profetizando o fim da metafísica e da religião, foi contraposta pelo trecho famoso de Dostoievsky, no seu famoso romance, Os Irmãos Karamazov, “se Deus não existe, tudo é permitido...” Na verdade, o direito constitucional de emitir opinião não pode nem deve ser evitado, principalmente porque, em se tratando da obra mais lida em todo mundo, a Bíblia representa um sentido de perenidade, ligando os velhos e novos tempos da humanidade por um fio condutor, que tem o mérito de explicar a própria razão de ser de estarmos ainda nesse planeta. Podemos perceber no texto bíblico, em termos de simplificação psicanalítica, um processo de internalização da culpa pelo terrível pecado de desobediência ao Pai, 45 Cf. 1 Co., 6: 9, 10. Cf. Hb., 13: 4. 47 Cf. 1Ts., 5: 2. 48 Cf. Ap., 17: 5. 49 Cf. Ap., 22: 3. 46 27 que retira de nós, suas criaturas, o privilégio do Paraíso, para lançá-las, a seguir, no mundo do sofrimento e do trabalho “com o suor do rosto”50 ou seja, uma passagem do princípio do prazer para o princípio da realidade. Ao longo de suas páginas, o livro sagrado aponta um caminho para a administração moral da culpa, a descida do Filho unigênito51 do Pai à Terra para redimir nossos pecados, o seu sacrifício físico para nos salvar, a ressurreição da Carne e a aposta no retorno de Jesus para nos julgar e povoar a Terra com seus obedientes seguidores. Nesse sentido, administrar a culpa e fugir do pecado, que significa “desvio de alvo”, leva-nos à submissão a um código de conduta que abrange vários setores da convivência social, desde o modo de proceder na comunidade, de contrair matrimônio, de tratar a riqueza e os negócios, de aceitar regras de conduta pessoal e familiar, de adorar um Deus pessoal e único, com a vantagem de que temos aí não um modelo propriamente humano, mas outro, mais imperativo, porque sugerido pelo próprio Deus. Muitos ateus opinam, inclusive, que a Bíblia pode justificar qualquer argumento, seja a favor ou contra o próprio autor e que suas páginas exibem diversas contradições. A tradição freudiana da psicanálise, por seu turno, tentou espalhar a percepção de que a culpa original e as derivadas do pecado só forçavam o homem em direção à neurose e à psicose, causando, na prática, graves danos psicológicos. Essa conduta ficou muito popular a partir dos anos 50 do século passado, quando as preferências pelo marxismo e o existencialismo tornaram-se muito fortes na Europa, que, por sua vez, expandia para os países de Terceiro Mundo os seus modismos intelectuais. Virou moda pinçar no texto bíblico uma série de contradições para tentar fazer com que mais e mais pessoas abandonassem suas crenças cristãs e repudiassem a divindade de Cristo. Voltamos àquela discussão em duas faces: ou a Bíblia fala totalmente a verdade, devendo ser interpretada ao pé da letra, ou deve ser encarada como uma fábula, um conjunto de livros qualquer. Vários problemas são encontrados no texto sagrado que podem despertar desconfiança, como, por exemplo, a questão da validade ou não de exibição de imagens. Se olharmos para o Antigo Testamento, em que a luta contra a idolatria e o paganismo eram uma constante, vários trechos mostram que a sua exibição eram consideradas abominação aos olhos do Senhor: Não farás para ti imagens de escultura52; Não farás para vós ídolos, nem para vós levantareis imagem de escultura nem estátua53; Maldito o homem que fizer imagem de escultura, ou de fundição, abominável ao Senhor54; Por que me provocaram à ira com as suas imagens de escultura, com vaidades estranhas?55 50 Cf. Gn. 3: 19. Único gerado, filho único... 52 Cf. Êx 20: 4. 53 Cf. Lv 26: 1. 54 Cf. Dt 27: 15. 51 28 E, ao mesmo tempo, os textos antigos admitem “imagens esculpidas”: Farás dois querubins de ouro batido nas duas extremidades do propiciatório56; Disse o Senhor a Moisés: Faze uma serpente abrasadora, põe-na sobre uma haste, e será que todo mordido que a mirar, viverá57; Tinham painéis que estavam entre molduras, sobre os quais haviam leões, bois e querubins58. Outra questão bastante controvertida nos textos sagrados relaciona-se com a contemplação ou não da face de Deus, se ele poderia ser visto face a face, pelas costas ou jamais pudesse ser visto por um mortal. As três possibilidades estariam previstas nos textos: Deus visto face à face: Jacó chamou àquele lugar Peniel, pois disse: Vi a Deus face a face, e a minha vida foi poupada59; Falava o Senhor a Moisés face a face, como qualquer fala com o seu amigo60; Subiram Moisés e Arão, Nadabe e Abiú, e setenta dos anciãos de Israel, e viram o Deus de Israel. Debaixo dos seus pés havia como que uma calçada de pedra de safira que se parecia com o céu na sua claridade. Mas Deus não estendeu a sua mão contra os escolhidos dos filhos de Israel; eles viram a Deus, e comeram e beberam61; Vi o Senhor em pé junto ao altar, e ele me disse: Fere os capitéis para que estremeçam os umbrais62; Apareceu-lhe o Senhor, e disse: Não desças ao Egito; habita na terra que eu te disser63; Quem me vê, vê o Pai (...) Não crês tu que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim?64 Deus visto pelas costas: Depois, quando eu tirar a mão, me verás pelas costas; mas a minha face não se verá65. Deus jamais podendo ser visto: 55 Cf. Jr 8: 19. Cf. Êx 25: 18. 57 Cf. Nm 21: 8. 58 Cf. 1Rs 7: 28-29. 59 Cf. Gn., 32: 30. 60 Cf. Êx., 33:11. 61 Cf. Êx., 24: 9-11. 62 Cf. Am., 9: 1. 63 Cf. Gn., 26: 2. 64 Cf. Jo., 14: 9-10. 65 Cf. Êx., 33: 23. 56 29 Ninguém nunca viu a Deus...66; Ninguém viu ao Pai, a não ser aquele que é de Deus; só este viu ao Pai67; Ninguém jamais viu a Deus...68; Não poderás ver a minha face, pois homem nenhum pode ver a minha face, e viver69; Aquele que tem, ele só, a imortalidade, e habita na luz inacessível; a quem nenhum dos homens viu nem pode ver; ao qual seja honra e poder sempiterno. Amém70. De qualquer forma, o que ressalta das duas partes gerais da Bíblia, o Antigo e o Novo Testamento, é a presença de um Deus exigente e vingativo na primeira, contrastando com um Deus misericordioso e compassivo na segunda... 66 Cf. Jo., 1: 18. Cf. Jo., 6: 46. 68 Cf. 1Jo., 4: 12. 69 Cf. Êx., 33: 20. 70 Cf. 1Tm., 6: 16. 67 30 2º INTERVALO – A CONTABILIDADE SIDERAL Meu Senhor, Sinto-me envergonhado em procurá-lo neste momento, em que está tão ocupado com outros homens, solapados por problemas maiores que os meus. Mas, na tibieza de meus propósitos, de simples criatura sem escoras, parece-me haver surgido bem à frente a hora de vergar a coluna ao peso de sua majestade. E lhe pedir, Meu Deus, que me ajude, enquanto pobre figura encarnada, a não submergir no mar infinito de meus erros e na tentação, sempre presente, de não guardar a fé. Neste mundo, tão sem sentido – convenhamos –, é difícil compreender o seu silêncio, bem como sua intrincada contabilidade sideral, embora, mesmo submetido aos mais cruéis castigos, ao ser humano só reste o consolo de saber que, quando lhe pede alguma coisa, o Senhor lhe faz sempre saber, com diligência, que existe alguém por aí muito pior... Ó, meu Senhor, Que minha vaidade se esqueça de si mesma e eu possa adorá-lo, como devia, que minha soberba e ingratidão se desvaneçam sob a capa esvoaçante de sua luz; que eu me torne um menino limpo à simples espera de sua presença, como um terno e merecido presente longamente esperado e bem-querido. Que ao lhe implorar conforto e algum abrigo, jamais ignore de que já fui poupado de graves tristezas, e que, mesmo assim, insisto como mau discípulo em fazer reivindicações descabidas a quem tem ciência de sobra do que eu preciso e de como me comportarei, mesmo sem sabê-lo. Senhor, alivie-me o pranto e seja compassivo com minha fragilidade... Senhor, ensina-me a viver... Rio de Janeiro, 3 de janeiro de 2003. 31 –4– O PROBLEMA DA FÉ “Basta um mistério para que tudo se ilumine.” Gilbert Keith Chesterton “O essencial é invisível para os olhos.” Antoine Saint-Exupéry 32 A fé é uma grande dificuldade para a criatura. O estado de revolta e dúvida parece ser o estado normal do ser humano, enquanto acreditar incondicionalmente, a exceção. Esse comportamento não é privilégio apenas dos desajustados e das pessoas normais (que vivem de acordo com as normas e os costumes aceitos), mas é corriqueiro na vida dos maiores santos. Muitos deles sofreram na pele as dificuldades na relação com um Deus único, muitas vezes silencioso, aparentemente ausente e irônico que parece não responder nossas orações. Normalmente, os ateus argumentam que não podem compreender as tragédias naturais, terremotos, enchentes, incêndios, desastres e naufrágios, a não ser como provas de que não existe uma força superior a governar nossos destinos. Tive, nesse sentido, a experiência de ouvir de um ator famoso, já falecido, a opinião de que se Deus existisse, ele positivamente não sabia o que Ele realizava (“se existe, não sei o que faz...”), porque, diante do assassinato de inocentes, a fome e doença de crianças sem culpa, as injustiças que nos afligem não eram diminuídas pela ação de Deus. Ter fé num mundo interconectado pela mídia, em que os grupos criminosos muitas vezes prevalecem sobre a lei e o poder econômico oprime os mais pobres, sem qualquer punição – convida-nos, sem constrangimento, a duvidar da atuação de Deus na Terra. Santa Clara até opinava em suas orações, refletindo sobre o desconcerto do mundo, que era por toda aquela aparente omissão que Deus realmente detinha tão poucos amigos... É preciso anotar, de princípio, que a vida humana não seria possível sem constantes atos de fé. Quando atravessamos uma rua, sob sinal vermelho, a primeira fila de carros é constituída de motoristas desconhecidos. No entanto, calmamente atravessamos, num ato de fé completo, de que ninguém nos atingirá com um súbito movimento dos carros então parados. Ao tomarmos um ônibus, temos fé que o motorista desconhecido irá nos levar pelo itinerário previsto. Ao entrarmos num elevador, acreditamos que os seus construtores o fizeram para nos fazer subir em plena segurança. Ao chegarmos em casa, acendendo a luz, não sabemos quem está por trás do interruptor, operando a usina de energia, mas acreditamos que o serviço nos será concedido. Temos que exercer em nossa vida cotidiana diversos atos de fé e disso não nos apercebemos. Não seria de todo uma ação não religiosa agradecer aos desconhecidos que nos cercam as práticas cotidianas que nos poupam da insegurança e da morte. Assim, a partir do dia a dia, podemos entender primitivamente como Deus atua... A perseguição do invisível Quando se trata, porém, de uma convicção religiosa, em que não lidamos apenas com os nossos sentidos, a coisa se complica porque nos envolvemos com o que é invisível. Lembro-me de um teólogo espanhol71 que argumentava que explicar Deus a alguém descrente é a mesma coisa que definir a cor amarela a um cego de nascença. Não adianta esclarecer aquilo que fica muito além de nós, de nossa pequena compreensão... 71 Cf. LARRAÑAGA, Inácio. Mostra-me o teu rosto, para a intimidade com Deus, pp. 84-85, 20ª edição, São Paulo, Ed. Paulinas, 1999. 33 Crer passa a ser então um ato de disponibilidade e de coragem da criatura diante de um mundo adverso, que, geralmente, está disposto de tal modo que o força todo dia a desistir. As violências, os desentendimentos e assassinatos, as doenças avassaladoras e o sofrimento onipotente faz com que muitos espíritos sensíveis desistam mesmo de crer. Outros, por sua vez, crêem por causa desses mesmos sofrimentos e por um dispositivo de medo e pânico que se estabelece no fundo de suas mentes. Ambas as posturas, aparentemente opostas, têm origem na fraqueza da criatura, na impossibilidade de raciocinar convenientemente enquanto sofre alguma dor ou grande injustiça. As promessas de Deus, expressas por Cristo e outros místicos iluminados, não podem ser equiparadas, por exemplo, às propostas dos políticos, geralmente desprezadas durante seus mandatos. Quando depositamos com o voto, num típico ato de fé, a confiança num representante, muitas vezes pessoalmente desconhecido, o fazemos com cautela, sabendo que ao longo do tempo poderemos ser enganados. Isso é típico do mundo dos homens. Na dimensão divina, porém, não é assim que as coisas ocorrem. Recebemos um sistema, um pacote completo de justificativas, formuladas para fazer cessar todas as dúvidas. O problema desloca-se para outra órbita: aceitar o invisível, quando nas operações diárias somos forçados a utilizar atentamente nossos cinco sentidos e interagir com pessoas que também fazem o mesmo. É aí que surge o desespero da criatura que quer acreditar mas não consegue. Muitos chegam ao ponto de se apegar a rituais exteriores das religiões sem crer em qualquer palavra do que ouvem dos sacerdotes. Lembro-me de que, certa vez, meu pai relatou-me uma lembrança de infância, no interior da Bahia, que me deixou chocado. Contou-me que meu avô costumava receber o padre da paróquia da cidadezinha aos domingos para almoçar. À tarde, conversavam preguiçosamente e o padre se despedia por volta das 17 horas. Num desses domingos, meu pai presente, ainda menino, presenciou o padre a confessar-se com meu avô, dizendo que não acreditava em nada do que fazia: não tinha crença alguma nas palavras da missa, nem que conseguisse realmente consagrar as hóstias. Na verdade, confessou-se realmente um ateu. E daí meu avô principiou a tentar convencêlo do contrário, da existência de Deus e da importância de seu trabalho. Isso marcou profundamente meu pai, que passou a desconfiar dos religiosos de maneira marcante, estendendo esse comportamento por toda a vida. Tornei-me jornalista um dia, como meu pai, e a matéria do jornalismo é a dúvida e a desconfiança. Temos que ouvir, como juízes, os dois lados da verdade e muitas vezes não chegamos a conclusão alguma. No entanto, devo declarar que a dúvida jamais me fez uma pessoa melhor e de bem com a vida. Pelo contrário. Aperfeiçoou em minha personalidade uma conduta irônica, destruidora e às vezes capaz de rompantes que fabricaram mais inimigos que amigos. Hoje, ultrapassados os 50 anos, no outono da vida, confesso que tenho necessidade de algo maior para não me sentir miserável, uma vítima da noite escura 34 dos sentidos. Percebi, não sem muita teimosia e tempo perdido, que os prazeres mundanos podem até existir, mas se transformam em ressaca e memória. Perdem-se no tempo e não voltam mais, além da enorme quantidade de dinheiro que perdemos no processo. Gosto muito de ver filmes sobre a máfia, procurando entender os valores que sustentam a vida das famílias dos criminosos. Eles transgridem as leis, traficam tóxicos, fazem contrabando, exploram o jogo e a prostituição sempre para produzir grandes lucros. Procuram ter famílias respeitáveis de fachada e promovem orgias sexuais. Em casas panorâmicas, reúnem mulheres de programa e fazem muito sexo e esse é o único prazer que o seu materialismo permite exercer. Perseguem o orgasmo, a única coisa a que se permitem, como materialistas, na busca de algo invisível, porque o prazer profundo é algo que não se pode pegar, só sentir. O materialista compromete-se a ganhar muito dinheiro, mas os seus meios de satisfação sensuais são bastante limitados e, em geral, conduzem à depressão e ao desentendimento. Esse processo, entretanto, não é universal para todos os ateus, porque há muitos que obedecem as leis e são pessoas muito éticas e algumas contribuem brilhantemente para o desenvolvimento da sociedade. Não ter uma religião, não crer em Cristo, não conduz necessariamente como uma lei à desgraça de homens e mulheres. Muito ao contrário. Se fosse assim, todos os ateus seriam destruídos pela ira divina e tal realmente não acontece. O que é paradoxal, no entanto, é que a perseguição do invisível, a tentativa de crer com certeza nas palavras de Cristo, torna-se problema para o crente, aquele que diz para si mesmo que realmente tem fé e pratica a religião com fidelidade. Enquanto o ateu luta encarniçadamente para não crer – porque existe um magnetismo interno entre a criatura e o Criador – o crente luta desesperadamente para não ter dúvidas, para não se sentir tentado pelas ondulações hipnóticas do mundo. Essa dialética entre os dois tipos, o ateu e o crente, lembra um pouco a tortura mental. Nenhum grupo comporta-se com naturalidade e serenidade. A morte de entes queridos, a grandiosidade da natureza e sua enorme beleza e a experiência do invisível, para além dos sentidos – põem interrogações em todos nós, muito difíceis de resolver. Os que não crêem usam em geral a ciência como fiador de seus argumentos contra Deus. Os que acreditam, utilizam-se da teologia para reunir argumentos a favor da divindade. Tais atitudes são desnecessárias, porque como dizia Tomás de Aquino, o maior doutor da Igreja, a teologia e a filosofia cuidam das causas primeiras; a ciência, das causas segundas, portanto não se tocam ou, quando isso acontece, não precisam ser inimigas. O velho argumento materialista de que a ciência irá explicar tudo e expulsar Deus pela porta dos fundos não se sustenta, até porque temos cientistas famosos nos dois lados. Pessoalmente, uns são ateus, outros não, o que depõe contra a opinião de que o exercício da ciência torna o homem descrente. O invisível é um setor misterioso da vida humana e causa medo nos espíritos menos preparados e desejo de investigação nas mentes mais prendadas. Atualmente, temos diversos homens de ciência desafiando, através da hipnose, os portais da mente 35 humana e efetuando regressões a vidas passadas, tentando provar, com isso, a existência da reencarnação. Enquanto o fenômeno da reencarnação era mero objeto de fé espírita, as demais confissões cristãs torciam o nariz para as argumentações, consideradas mentirosas, mas, agora, com o assunto sendo objeto de ciência é preciso mais cuidado ao julgar o tema. Estamos fazendo leve menção a isso agora, somente para assinalar que existem argumentos dentro da Bíblia contra e a favor da reencarnação que podem ser alinhados um ao lado do outro e satisfazer as duas vertentes, os que crêem e os descrentes. Tal atitude não invalida as pesquisas nem contribui para impedir que elas se realizem, já que o Estado é laico e as pessoas são livres pelo imperativo das leis para exercer suas crenças. Esse é realmente um enorme progresso conquistado a duras penas pela humanidade. Mente ou mecanismo? Você que está lendo o que digo, deve ter percebido que não estou procurando apresentar provas da existência de Deus nem o contrário. Existem centenas de livros de teologia e filosofia abarcando os dois lados da questão e não é esse o meu interesse. Apenas sugiro pontos de reflexão, sublinhando o meu caminho espiritual, não cheio de acidentes, buracos, pedras de tropeço e rochas de ofensa... Fui durante muito tempo vítima de minhas próprias descrenças e debochava de certos costumes, como o de ir à missa todos os domingos e ouvir sempre o mesmo papo, que, à época, achava uma conversa fiada e repetitiva. Cheguei até a interpelar um padre jovem sobre o assunto, dizendo que o calendário religioso trazia sempre as mesmas coisas e não entendia porque a Igreja repetia tanto as orações e os trechos bíblicos. O padre sorriu, botou a mão no meu ombro e exclamou: “meu caro, nem assim eles aprendem!” Novamente, só compreendi suas palavras bem mais tarde, porque também achava extremamente careta a recitação do terço, como uma repetição vazia de orações para entidades invisíveis que nem estavam me ouvindo. Aprendi a rezar, desde pequeno, mas repudiei a faculdade de tentar me comunicar com Deus, porque não sentia a fome de sua presença. Essa foi uma característica da mocidade e da pretensa maturidade que, com o tempo, não conseguiu se sustentar como autonomia pessoal. Hoje avalio, com muita nitidez, uma divisão de águas ideológica: os que não acreditam que Jesus foi um homem-Deus, que morreu crucificado, desceu à mansão dos mortos e ressuscitou ao terceiro dia positivamente não são cristãos. Essa conversa recente de ver o Cristo como mero filósofo, mestre dos mestres, mas um homem como outro qualquer, esvazia completamente a singularidade de sua caminhada e obra. A fé é uma delegação de confiança, de modo ilimitado e integral. Ou é ou não é. Mas é lenta, uma subida escarpada, cheia de cortes e espinhos, que custa a tomar conta dos nossos órgãos e pensamentos em plenitude, até porque nos defrontamos com o silêncio de Deus. No meio do caminho, vivemos as tentações dos prazeres mundanos e às vezes não conseguimos superar as pobres fraquezas terrestres. Sem essa religação com os poderes diáfanos celestes, ao perder a fé sobra-nos depressão, agonia e tristeza mortais. 36 Outro balizamento essencial para a aceitação da fé é a escolha ideológica sobre o significado do Universo. Se acreditamos em Deus, como bons religiosos e crentes, concebemos o Universo como uma grande mente, que produziu um planejamento intencional; em caso contrário, se somos ateus, o Universo é um mecanismo, constituído pelo mero acaso e pela trêfega necessidade natural. Ouso transcrever algumas passagens de dois grandes astrofísicos72, que não se identificam como religiosos, mas somente como cientistas, trazendo luz a todos aqueles argumentos que transitam em torno das interrogações da fé: Nosso Universo é muito conveniente para a vida como a conhecemos. (...) Os planetas, nossa menor janela astronômica, proporcionam um abrigo para a vida. (...) As estrelas também são claramente importantes, pois constituem a fonte de energia que impulsiona a evolução biológica. Elas desempenham ainda um segundo papel fundamental, como alquimistas que produzem elementos mais pesados que o hélio – o carbono, o oxigênio, o cálcio e outros núcleos que compõem as formas de vida. (...) As galáxias também são extremamente importantes. Sem sua influência agregadora, os elementos pesados produzidos pelas estrelas se espalhariam pelo Universo. (...) A atração gravitacional das galáxias garante que os elementos pesados fiquem disponíveis para gerações sucessivas de estrelas e para a produção de planetas rochosos como a nossa Terra. (...) Embora não tenhamos nada que se aproxime remotamente de uma compreensão completa de vida e de sua evolução, um requisito fundamental é relativamente certo: ela leva um grande tempo; O Universo como um todo, portanto, precisa viver bilhões de anos para permitir o desenvolvimento da vida – pelo menos de uma biologia que se assemelhe à nossa, ainda que vagamente. (...) O Universo poderia ter terminado sem átomos de hidrogênio para formar moléculas de água e, portanto, permitir o surgimento da vida comum; Nosso Universo tem de fato as características especiais adequadas para permitir nossa existência. Dadas as leis da física, determinadas pelos valores das constantes físicas, pela intensidade das forças fundamentais e pela massa das partículas elementares, nosso Universo produz naturalmente as galáxias, as estrelas, os planetas e a vida. Com uma versão apenas ligeiramente diferente das leis físicas, talvez ele fosse completamente inabitável e empobrecido em termos astronômicos; A situação interessante de um Universo repleto de galáxias e outras grandes estruturas cósmicas requer uma conciliação razoavelmente delicada entre a força da gravidade e a velocidade de expansão. E o nosso Universo fez justamente essa conciliação; 72 ADAMS, Fred e LAUGHLIN, Greg. Uma Biografia do Universo, do Big Bang à desintegração final, pp. 240-244, tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1999. 37 Sem hidrogênio, o Universo não poderia conter água e, portanto, não conteria nenhuma das variedades conhecidas das formas de vida. Felizmente para nós, nosso Universo é abençoado com o tipo de interação nuclear forte, que permite a formação do hidrogênio, da água, do carbono e de outros ingredientes necessários à vida; Se a duração máxima das estrelas ficasse aquém da marca de bilhões de anos, o desenvolvimento da vida seria claramente dificultado. A magnitude real da interação nuclear fraca, milhões de vezes menor do que a interação forte, permite que o Sol queime seu hidrogênio com o vagar e a tranqüilidade necessários à evolução da vida na Terra; Os planetas precisam que a temperatura de fundo do Universo seja suficientemente fria para que os sólidos se condensem. Se nosso Universo fosse apenas seis vezes menor do que é hoje e, portanto, mil vezes mais quente, os grãos de poeira interestelar se evaporariam e não haveria matéria-prima para a formação de planetas rochosos. (...) Felizmente, nosso Universo é frio o bastante para permitir o surgimento dos planetas; Em nossa galáxia atual, as interações estelares e as aproximações são raras e fracas, porque a densidade das estrelas é muito baixa. Se nossa galáxia contivesse o mesmo número de estrelas, mas fosse cem vezes menor, o aumento da densidade estelar levaria a uma altíssima probabilidade de que outra estrela penetrasse em nosso sistema solar e perturbasse as órbitas dos planetas. Esse tipo de colisão cósmica poderia alterar a órbita da Terra e tornar nosso planeta inabitável, ou ejetá-lo por completo do sistema solar. Num ou noutro caso, esse evento cataclísmico marcaria o fim da vida; Que nosso Universo tem essas propriedades particulares, que acabam dando origem à vida? É uma coincidência realmente notável que as leis físicas sejam a conta certa para permitir nossa existência. É como se, de algum modo, o Universo soubesse que íamos chegar. É claro que, se as condições fossem outras, simplesmente não estaríamos aqui para considerar essa questão. Mas persiste a incômoda pergunta: por quê? Essas inúmeras “coincidências” (coincidência é o pseudônimo de Deus quando Ele não quer assinar) traduzem a percepção de que o Universo fora concebido por uma Grande mente, sem a qual as coisas não estariam tão bem arrumadinhas assim. Os astrofísicos também não podem explicar porque a velocidade de rotação da Terra é adequada à manutenção da vida em sua superfície. Se fosse um pouco maior, seríamos eliminados da biosfera. Também a nossa distância do Sol é perfeita para a manutenção da vida. Se estivéssemos mais perto ou mais longe, também seríamos eliminados, pelo calor intenso ou pelo frio demasiado. Por que, num Universo com mais de dez bilhões de anos, as leis da física permaneceram constantes? Por que o Universo está em expansão, mas as galáxias não? Por que os planetas são redondos e não existem estrelas quadradas? Tais perguntas fazem-nos refletir sobre a mente de Deus que criou o Universo e que a vida é um fenômeno velho, assim como o homem, um produto que levou mais de 38 dez bilhões de anos para ser produzido em sua complexidade, o que atualmente é chamado de “princípio antrópico”. Se cada assassino ou “serial-killer”, desses que vemos nos filmes norte-americanos, soubesse que ao matar um homem está destruindo uma obra de Deus que levou mais de dez bilhões de anos para ser concebida, talvez tivesse dúvidas em cometer tamanha atrocidade. Por fim, gostaria de propor aos que ainda mantêm dúvida sobre ser cristãos ou não a leitura de dois textos bíblicos muito simples: em primeiro lugar, leiam o capítulo 13 da Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios e, depois, o Sermão da Montanha, contido no Evangelho de Mateus, entre os capítulos 5 e 8. Se não gostarem, não se sentindo confortáveis, é certo que existe uma incompatibilidade com as teses cristãs e devem procurar outros caminhos. Tal procedimento será, de qualquer modo, mais sincero e honesto do que aquele cometido pelo padre da infância de meu pai... 39 3º INTERVALO – O RONDÓ DA CRIATURA Ter dúvida, praguejar, Gritar solerte em blasfêmia, Como é fácil se irritar Com o silêncio de Deus? É quase um divertimento, Um rondó da rebelde criatura, Bancar a mais forte, qual rochedo invulnerável. Como se turva a visão Do homem maldito, Temerário no prazer e na ação, Pleno de orgulho e egoísmo... Deus, irônico, prega-lhe então uma peça E lhe entrega, de mansinho, pequena cruz, Insuportável e incruenta, Que mal ele consegue carregar. Então o homem se volta, Humilhado, às origens, Sem perceber que ainda é egoísta, Que quer somente se livrar do sacrifício. Falta-lhe consciência de agradecimento e serviço, Sem esquecer de que ainda ouve o tinhoso, Que o aconselha a confiar no mundo transitório E não confiar nas mãos de Deus, definitivas. Eu estava exatamente assim: A dúvida era a rainha, A fé simples e inútil E o resultado só infelicidade. Duvidar de Deus É olhar a própria miséria no espelho, Vendo obscura e obscena criatura, Esquecendo-se de quem lhe ligou na tomada. O que o faz vibrar, sorrir e amar É essa tal energia que você não vê, Mas dá choque em seu ser E não lhe faz mais um pobre caricato. Fraquejei na fé e fiquei desfocado, A manhã não clareava minha vista, 40 Porque a nitidez que procurava não vinha da noite, vinha do Alto. E que vertigem! 8 de agosto de 2008. 41 –5– JESUS VIVO OU MITO? “O cristão de amanhã será um místico, alguém que experimentou alguma coisa ou não será nada.” Karl Rahner 42 A contestação mais interessante dos ateus militantes à aceitação pura e simples de um ponto de vista cristão-religioso era formulada de maneira simples e até singela: como você pode acreditar num homem que nunca existiu? Parece brincadeira, mas isso era repetido na Europa, por volta dos anos 50 do século passado e em meus tempos de adolescente e jovem, nos anos 70, porque os argumentos e as modas chegam sempre atrasados à América Latina. Jesus seria uma abstração, uma mentira, inventada pelos cristãos primitivos para fazer valer seus argumentos. Nesse meio tempo, se “divertiam”, indo cantar diante dos leões famintos nas arenas romanas, que os devoravam sem dó nem piedade. Talvez fosse uma vocação coletiva para o suicídio ou uma espécie de histeria, só explicada hoje com o instrumental da psicanálise, descoberta e desenvolvida por Freud e seus continuadores... Na verdade, o Império Romano anteviu a própria desgraça com a difusão daquelas idéias, revolucionárias para a época, da existência de um só Deus, que pairava acima dos Césares e da imensa quantidade de deuses e imagens confusos. A continuação da presença das palavras de Jesus, espalhadas pelos quatro cantos do mundo então conhecido, minava a autoridade dos interventores romanos sobre diversas nações, gerando uma resistência cultural que pouco a pouco foi destruindo, de forma contraditória, as bases territoriais do Império. Muito já se escreveu sobre a realidade histórica de Cristo, mas nos esquecemos de que tivemos regimes ditatoriais no século passado, em que a perseguição aos devotos era a regra e as autoridades colocavam o Estado na outra ponta, ou seja, enquanto os fundamentalistas desejavam manter teocracias autoritárias no Oriente Médio e na América, os ateus da Ásia e do leste-europeu proclamavam a legitimidade de constituições e governos que consideravam a religião como ópio do povo – como ensinava Karl Marx. Na Polônia, onde nasceu o Papa João Paulo II, ser católico, por exemplo, representava desde os anos 40 um grito de rebeldia revolucionária em relação às idéias fascistas, nazistas e stalinistas que comandavam em parte o continente europeu. Voltando ao século I, no entanto, encontramos relatos insuspeitos da existência de Jesus Cristo através das obras do historiador judeu Flávio Josefo, que nasceu pouco após a morte do Nazareno, e que citou, em suas obras “Antiguidades judaicas” e “A guerra judaica” várias passagens sobre um judeu, considerado O Messias, sacrificado sob o governo de Pôncio Pilatos73. Também os Tanaíns, doutores de Israel que sucederam aos Fariseus, no fim do 1º século e durante o segundo, testemunharam à sua maneira em favor da existência de Jesus74. Tácito (115-116)75, historiador romano, falou em termos claros sobre Cristo, ao comentar a perseguição de Nero aos cristãos: “esse nome vem-lhes de Cristo, a quem, sob o principado de Tibério, o procurador Pôncio Pilatos tinha entregado ao 73 JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas, XVII, 3:3 e XX, p. 1. Cf. FEHNER, Henri. “O problema de Cristo” in Deus, o Homem e o Universo, pp. 380 a 383, trad. Agostinho Veloso, S. J., Porto, Livraria Tavares Martins, 1956. 75 Cf. Tácito, Anais XV,44. 74 43 suplício”76. E ainda Suetônio, num volume sobre “A Vida dos Césares”, publicada entre 115-122 refere-se a Cristo como provocador de desordens e fundador de uma perigosa seita que trazia uma superstição nova. Admite-se geralmente que o “Chrestus” assinalado por Suetônio é Jesus Cristo. Finalmente, Plínio o Moço, em carta dirigida ao Imperador Trajano (111-113) pedia instruções de como deveria se conduzir em relação aos cristãos, no que foi respondido pelo imperador de que usasse de prudência na repressão77. Já as fontes cristãs sobre tal existência podem ser encontradas na própria Bíblia nos livros do Novo Testamento, nas Cartas do apóstolo Paulo e nos Atos dos Apóstolos, escrito por Lucas. Além de muito conhecidas de todos, essas fontes não são mais contestadas por historiadores sérios.78 Resolvida a contestação sobre a existência do Cristo, profundamente comprovada, passou-se a discutir sobre sua dualidade de homem-Deus, tendência que se acentuou nos períodos da Renascença (séculos XV e XVI) e do Iluminismo (séculos XVII e XVIII), em que o resssentimento contra os desmandos históricos da Igreja católica receberam mais adeptos. Se já não havia dúvidas sobre a existência do Cristo histórico, Ele deveria ser considerado em sua verdadeira natureza, de sábio e mestre, mas um homem como outro qualquer. “O meu reino não é deste mundo...” (Jo., 18: 36) Esse homem nasceu na Palestina, dividida em três províncias (Galiléia, Judéia e Samaria) e governada por um usurpador de origem árabe, Herodes, que promoveu mais de três mil crucificações sumárias com o seu modo de governar autoritário, cruel e totalmente subordinado à Roma. Foi nesse ambiente brutal que Jesus nasceu, com os judeus desesperados por aguardar o Messias libertador79, mas que não seria, de nenhum modo, divino. O que os oprimidos queriam era a libertação do domínio romano e para isso precisavam de um comandante militar supremo, capaz de libertar Israel. 80 Jesus foi considerado por muitos um judeu de origem essênia 81, um grupo muito bem treinado na arte de curar (como o eram o seu irmão Tiago e o primo João Batista), descendente direto da Casa de Davi e que nasceu de Maria, uma Virgem, o que se constitui no ponto fundamental da tradição cristã ortodoxa. A virgindade e santidade de Maria virou objeto de discussão e divisão entre católicos, protestantes e 76 Cf. FEHNER, op. cit., pp. 382 e 383. Idem, pp. 383 e 384. 78 Idem, pp. 384 a 386. 79 Messias significa “o Ungido”, do verbo hebraico “maisach”, “ungir”. 80 Cf. GARDNER, Laurence. A Linhagem do Santo Graal, a verdadeira história do casamento de Maria Madalena e Jesus Cristo, p. 35 81 Essênio, termo oriundo do aramaico “assayya” e do grego “essenói”, que significa “médico”. O adjetivo atribuído a Jesus, chamado “O Nazareno”, acompanhava aquela acepção, porque “nazareno” significa “curador”... 77 44 evangélicos, criando problemas aparentemente incontornáveis, que discutiremos mais adiante.82 O que nos importa agora é dimensionar a reinterpretação moderna do significado da vida pública de Cristo. Teve realmente Ele um papel relevante no movimento de libertação judaico? Afinal, a inscrição “Rei dos Judeus”, no alto da cruz, foi conseqüência de uma acusação política? Na verdade, os apóstolos não foram molestados pelo poder romano após a morte de Jesus, porque com a crucificação do pretendente a Messias Pilatos considerou o assunto liquidado. Somente a partir de Nero, 40 anos depois, é que os cristãos começaram a ser sistematicamente perseguidos.83 Jesus não defendia a luta de classes nem uma guerra santa de libertação nacional. Toda a Sua pregação girava em torno do amor ao Pai “que está nos céus” e aos homens de boa vontade, que “servem a Deus e não a Mammon”. Ensinando que deveria se dar a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus, não se recusava a dividir a mesa com os publicanos, homens ricos na época, o que, para grupos revolucionários como os zelotes, poderia parecer uma traição. 84 O sacrifício de Jesus é um cântico à não-violência, o que o equipara a mártires do século XX, como Mahatma Ghandi e Martin Luther King, que igualmente derramaram o próprio sangue por ideais pacíficos. Jesus indicou, do mesmo modo, o caminho do protesto não-violento e a prontidão para o sofrimento, o que ultrapassa o imediatismo da violência revolucionária, popular desde a Antiguidade. Ele ensinava que a verdadeira libertação se iniciava no interior do indivíduo, passando pelo perdão aos inimigos e chegando ao amor de Deus e ao amor do próximo, tomando-se como modelo a própria pessoa (“...como a ti mesmo”), vale dizer, Jesus aceitava de bom grado o narcisismo, que é amar-se primeiro e aplicar esse sentimento ao outro.85 Segundo Gardner, os helenistas (judeus ocidentalizados) afirmavam que Jesus era o Cristo legítimo (do grego “Christos” que significa “rei”) enquanto os hebreus ortodoxos contestavam o título, atribuindo-o a Tiago86. O argumento persistiu por “O primeiro Evangelho publicado, o de Marcos (66 d.C.), não menciona a Concepção Imaculada. Os Evangelhos de Mateus e Lucas a destacam com variados graus de ênfase, mas a Concepção é totalmente ignorada em João. (...) Para estudar a Concepção Imaculada, os estudantes da Bíblia são instruídos a procurar Mateus e Lucas. (...) Mateus dizia que Maria era virgem, mas Marcos não; ou que Lucas menciona a manjedoura onde Jesus foi colocado, enquanto os outros Evangelhos não; ou ainda que nenhum dos Evangelhos faz a mais vaga referência a um estábulo, que se tornou parte integrante da tradição popular.”, cf. GARDNER, op. cit., p. 45. Os Evangelhos aceitos oficialmente pela Igreja são chamados sinóticos (Mateus, Marcos, Lucas e João). Sinóticos vem do grego “syn-optikos”, o que significa “ver com os mesmos olhos”. Segundo GARDNER, a palavra original semítica “almah” foi erroneamente traduzida como “virgem” (de virgo) e incorretamente interpretada como virgo intacta (op. cit., p. 49). 83 Cf. HENGEL, Martin. Foi Jesus revolucionário?, p. 15, trad. De Frei Edmundo Binder, O.F.M., Petrópolis-RJ, Editora Vozes, 1971. 84 Idem, pp. 17 e 18. 85 Idem, pp. 21 a 24. 86 Tiago era chamado de “irmão” de Jesus. Descendente de Abraão (Gal. 3:16), Filho de Davi (Rom. 1: 3, 15: 12) e vivendo entre judeus (Rom. 15:8 e I Tess. 2:15), Jesus foi verdadeiro homem, em tudo 82 45 muitos anos, mas, em 23 d.C., José (pai dos dois candidatos) morreu; tornou-se imperativo, então, resolver a disputa de uma maneira ou de outra. 87 Vários historiadores, como Gardner, procuraram em vão explicações científicas para os milagres de Jesus (a transformação de água em vinho, a multiplicação dos pães, a visão permitida a um cego de nascença, a cura instantânea de leprosos e aleijados e a ressurreição de Lázaro), mas os seus argumentos não convencem ou são inconclusivos. Esses sinais atravessaram o tempo e não incorporaram explicações, mesmo com toda a evolução da ciência. Crendo-se, pois, na existência histórica de Jesus e na realidade de seus milagres, resta aos ateus e agnósticos88 apenas uma atitude de negação pura e simples. Tal atitude não deixa de ser um ato de fé, porque afirma não ser conhecido um ser que habitou a Terra e causou efeito profundo nos rumos da História. É simplesmente paradoxal, após se aceitar a realidade de Jesus, agir como se Ele não tivesse existido, nem ensinado, nem interagido com os homens, mostrando o seu lado francamente sobrenatural. A propósito dos agnósticos, que vivem a posição cômoda de ficar em cima do muro, temos valorosos cientistas que adotam tal modo de pensar, dando de ombros em relação à perspectiva da existência ou não de Deus, bem como à questão complexa da divindade de Jesus. Tomemos, como exemplo, o comentário pessoal de um dos maiores astrofísicos do século XX, Fred Hoyle: “Desejo agora considerar um pouco as convicções religiosas contemporâneas. Há boa dose de cosmologia na Bíblia. Minha impressão é que se trata de concepção notável, considerando-se a época em que foi escrita. Mas creio que dificilmente se poderá negar que a cosmologia dos hebreus antigos é apenas o mais insignificante rabisco em comparação com a arrasadora grandiosidade do quadro revelado pela ciência moderna. Isso me leva a fazer a pergunta: será de algum modo razoável supor-se ter sido dado aos hebreus compreenderem mistérios muito mais profundos que tudo o que podemos compreender, quando está bem claro que eles eram completamente ignorantes de muitas coisas que nos parecem lugares-comuns? Não, a mim me parece que a religião não passa de uma tentativa desesperada de encontrar uma fuga da situação verdadeiramente medonha em que nos encontramos. Aqui estamos nós neste Universo inteiramente fantástico, sem qualquer indício de que a nossa existência tenha significação real. Não surpreende, portanto, que muitos sintam a necessidade de alguma crença que lhes dê uma sensação de semelhante a nós (Rom. 5: 15 e I Cor, 21: 22), exceto no pecado (II Cor. 5: 21). Ter “irmãos” significa em aramaico, como ainda hoje é em russo, ter “primos co-irmãos” (I Cor. 9: 5). Neste caso, porém, alguns Padres da Igreja, designadamente S. Hilário, S. Cirilo de Alexandria e S. Gregório de Nissa, supõem que os “irmãos” de Jesus eram filhos do primeiro matrimônio de S. José. (Cf. FEHNER, op. cit., pp. 387 e 388). José deriva do hebraico “Yosef”, que significa “ele acrescentará”. 87 Op. cit., p. 53. 88 Os que professam a doutrina do agnosticismo, que considera impossível conhecer ou compreender, e portanto discutir, a realidade das questões da metafísica ou da fé religiosa (embora admita existirem, como a existência de Deus), por não serem passíveis de análise e comprovação racional ou científica. Este conceito é atribuído Thomas H. Huxley, que admitia que só o conhecimento adquirido e demonstrado racionalmente é admissível. 46 segurança e também não é de se surpreender que fiquem muito zangados com criaturas como eu, que dizem que essa segurança é ilusória. Mas eu não gosto da situação mais do que eles. A diferença está em que não vejo como poderei conseguir a mínima vantagem em enganar-me a mim mesmo. Estamos em situação muito semelhante à de um homem que se encontre em uma posição desesperadora e difícil em uma íngreme montanha. Um materialista é como um homem que se apega a um penhasco e vai gritando: “Estou seguro!” pelo fato de não cair. A pessoa de fé religiosa é como um homem que se coloca em outro extremo, lançando-se pelo primeiro caminho que ofereça a mais vaga esperança de escapatória, inteiramente descuidado dos precipícios escancarados que lhe 89 estão por baixo.” Como se vê, resta a esses dois grupos, os ateus e agnósticos, reduzirem o Nazareno à condição de grande homem, uma personagem histórica como outra qualquer. Para o ateu, a religião é um vício; para o agnóstico, um precipício de ilusões. Despido de seu lado divino, descarnado das virtudes celestes, somos obrigados a concordar com Tilgher90, quando afirma sobre Jesus: “A mensagem de Cristo, expurgada de todo o elemento mágico, escatológico e sobrenatural, reduzida a uma simples mensagem moral, foi vivida e apregoada por Tolstoi. Mas como é esquálida essa mensagem! Como é pobre e sem eco!”91 É claro que se Jesus não tivesse objetivos nítidos em relação à humanidade (judeus + gentios), apresentando-lhes um reino que não é desse mundo, jamais se entregaria tão facilmente ao martírio, como os Evangelhos nos relatam. Como diz a liturgia, Ele abraçou livremente a paixão, ou seja, recusou-se à razão, tal como a conhecemos no mundo ocidental. Apaixonado pelos seres humanos, Ele não comandava exércitos, mas era o tradutor do Pai, sob face humana e sacrificou a vida para nos redimir de nossos pecados, porque só Ele detinha esse poder. Somente por Ele, o Pai seria compreendido pelos homens, como sintetiza Mario Satz: “O Mestre de Nazaré, conhecendo o mistério, de modo semelhante aos profetas que o precederam, e aos iniciados de todas as latitudes, culturas, épocas e idades, chegou para vivificar e curar nossos tecidos a partir de uma primeira célula geminal: a da compreensão.”92 89 Cf. HOYLE, Fred. A Natureza do Universo, pp. 128 e 129, trad. De Giasone Rebuá, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1962. 90 Cf. TILGHER, A. Cristo e noi, Modena, 1934, apud. CERIANI, Grazioso, “Os Últimos Negadores da Divindade de Cristo”, p. 32, in Heresias do Nosso Tempo, vários autores, Porto Livraria Tavares Martins, 1956. Leon Tolstoi (1828-1910) foi um escritor russo muito famoso, autor de obras monumentais como Guerra e Paz (1865-1869) e Anna Karenina (1875-1877). Ensinava que o homem deveria abandonar os luxos da vida terrena e viver com a simplicidade dos camponeses. 91 Idem. 92 Cf. SATZ, Mario. Jesus, Terapeuta e Cabalista, p. 15, trad. Euclides Calloni, São Paulo, Editora Ground, 1990 47 O Código da Vinci, uma fraude? A tendência histórica de diversos filósofos e grupos de pensamento em retirar as qualidades divinas de Jesus, transformando-o num personagem de importância, mas simplesmente um homem como outro qualquer, chegou ao máximo no século XXI, com a promoção do romance “O Código da Vinci”, de Dan Brown, publicado em 2003 e que se tornou um best-seller mundial, com mais de 60 milhões de cópias vendidas.93 O livro, uma estória de suspense, envolvendo organizações católicas secretas e obras de arte, pretendia insinuar que Jesus fora esposo de Maria Madalena, uma de suas seguidoras, que, por ocasião da crucificação do Mestre, estava grávida, concebendo assim uma menina descendente sagrada de Cristo e que foi chamada Sarah. A menina passou o resto da vida escondida e protegida pelo “Priorado de Sião”, que teria jurado cuidar eternamente da descendência de Cristo. Seria então Madalena, considerada como o verdadeiro Santo Graal. Seria uma mulher, capaz de mudar toda a história contada pela Igreja Católica, mostrando que Cristo foi um homem como qualquer outro, que se uniu a uma mulher, e gerou descendência secreta, protegida por instituições também secretas, através dos séculos. A lenda dizia que Madalena e a filha partiram para a Gália, onde fundaram a linhagem dos merovíngios, origem da monarquia francesa e que o chamado Santo Graal, o cálice sagrado, seria o sangue de Cristo retido no útero de Madalena enquanto portava a gravidez. A Igreja, que desejava um salvador masculino e celibatário, escondeu essas “verdades” e a “evidência” de que temos descendentes de Jesus, Madalena e Sarah até nossos dias. De acordo com o romance de Dan Brown, na origem do Cristianismo há um desejo de reprimir as mulheres em sua expulsão da convivência com o sagrado, donde se conclui que está envolto em diversas mentiras. Dentre 80 evangelhos, o Concílio de Nicéia (ano 325), tutelado pelo imperador romano Constantino, escolheu obrigatoriamente apenas 4 como “evangelhos oficiais ou sinóticos”, desdenhando toda a riqueza dos relatos ditos apócrifos, que incluíam o papel relevante de Maria Madalena, como a discípula preferida de Jesus. Um desses evangelhos – é interessante notar – afirmava que Pedro tinha inveja de Madalena e que Jesus constantemente a beijava na boca... Dan Brown inspirou-se num livro da tradição esotérica de Michael Baigent94, mas veio ao encontro de um desejo intenso de desmoralizar o cristianismo ortodoxo que parece bastante careta para nossos tempos de globalização, pensamento único e pós-modernidade. Em tempos de retorno à idolatria, como já nos referimos, qualquer obra que venha a desviar o público das verdades bíblicas será bem aceita e acolhida, desde que considere o livro sagrado um conjunto de obras reunidas de maneira obrigatória para cumprir os objetivos de dominação política da Igreja romana. 93 Cf. BROWN, Dan, O Código da Vinci, tradução de Celina Cavalcante Falck-Cook, Rio de Janeiro, Editora Sextante, 2004. 94 Publicado em português com o título A grande heresia: o segredo da identidade de Cristo, São Paulo, Beca, 2000. 48 A pós-modernidade é sobretudo respeito à diversidade95, o que, em termos religiosos, conduz a um retorno ao paganismo, isto é, à aceitação de uma multidão de deuses e ídolos. Nesse sentido, um Deus único, que criou o Universo96 seria interpretado em nosso tempo como algo ultrapassado ou, como no passado, simplesmente uma idéia revolucionária. Como afirma Erwin Lutzer97, o temor ao Cristianismo tinha raízes na preocupação dos romanos com a sobrevivência do Império: “Os romanos acreditavam que, se alguém tivesse um Deus acima de César, não seria confiável durante uma emergência nacional como em, por exemplo, a guerra. Era ordenado que todos os bons cidadãos “adorassem o Espírito de Roma e o talento do Imperador”, conforme o texto do decreto. Na prática, essa cerimônia se resumia a queimar incenso e dizer: César é Senhor”.” O Código da Vinci põe erroneamente um grande peso no Concílio de Nicéia (cidade que atualmente fica na Turquia) para a decisão sobre a divindade de Cristo, que fora, na verdade, decidida muito antes, ainda nos séculos I e II pelos patriarcas da Igreja. Além disso, escolhe aleatoriamente um evangelho apócrifo, o chamado “Evangelho de Filipe”98, este sim sem qualquer valor histórico e que sugeria a realidade de um deus andrógino, masculino e feminino. O mais paradoxal e cruel, é que os adeptos da crença na continuidade do Cristianismo, através de Maria Madalena e Sarah, desprezam olimpicamente a realidade de Maria, a mãe de Jesus, que comandou a célebre reunião em que os apóstolos receberam o Espírito Santo. Tal “feminismo”, esses adeptos da linhagem do Santo Graal não podem conceber, como o verdadeiro momento de expansão das idéias cristãs para além das fronteiras de Israel. O Cristianismo é realmente uma religião histórica e não apenas uma cultura de representação – como querem alguns historiadores contemporâneos. Não é uma lenda bem feita por um espírito com muita imaginação, mas a narrativa do que realmente ocorreu na Palestina, no século I. É curioso notar que esses inovadores simplesmente omitem o fato de que a devoção por Maria Virgem, a intercessora, não a mediadora, é uma singular demonstração da Igreja católica de valorização da mulher, que não encontramos entre os protestantes, evangélicos e pentecostais. Para tais grupos, Maria era uma boa mulher como outra boa mulher qualquer! Ora, uma mulher qualquer não carregaria no útero um homem-Deus, a não ser que Ele fosse apenas homem! Se é nosso Senhor e Filho do Pai, então o útero escolhido por Deus é soberanamente especial e sagrado! A aparição do Anjo não seria uma brincadeira de criança ou uma ilusão patológica, típica de um tempo em que se procuravam messias e profetas. Ali, na Anunciação, foi firmado um compromisso e um juramento, iguais aos contratos de papel passado e carimbados de nossos dias! Respeito vem do grego (respeitós ) que significa “ver o outro com os olhos do outro”. Universo significa “vertido do Um”. 97 Cf. LUTZER, Erwin. A Fraude do Código da Vinci, Toda a verdade sobre a ficção do momento, p. 36, trad. De James Monteiro dos Reis, São Paulo, Editora Vida, 2004. 98 “Os estudiosos situam a autoria do Evangelho de Filipe por volta do século III, cerca de duzentos anos depois de Jesus. Não se trata exatamente de uma testemunha ocular!” – escreve LUTZER, op. cit., p. 78. 95 96 49 Outra lenda muito difundida foi a de que Madalena era um prostituta arrependida e que passou a seguir Jesus, com devoção, fato escondido pelos primeiros cristãos do século I, tendo em vista atender a um provável ciúme de Pedro em relação ao que ela realmente representava. Confundida com Joana, administradora da casa de Herodes, Suzana e Maria de Betânia, irmã de Marta e Lázaro, Maria Madalena, no entanto, foi a primeira testemunha da ressureição do Senhor, assim como acompanhou toda a sua agonia: “O Ministério de Maria junto a Jesus colocou-a em contato com Salomé, mãe de Tiago e João, e também com Maria, mãe do Senhor (Jo., 19: 25). Essas corajosas mulheres estavam ao pé da cruz quando Jesus morreu. Maria Madalena ficou velando até que o corpo fosse descido, envolto em linho 99 e depositado no sepulcro de José de Arimatéia.” Após a ressurreição, porém, Madalena desaparece das páginas do Novo Testamento, voltando a surgir séculos mais tarde, na mitologia dos ensinos ocultistas e gnósticos, vinculados posteriormente ao movimento Nova Era100. Na verdade, isso implica dizer que seria um exagero acreditar que ela e Jesus eram um par romântico e que viviam casados101. A hipótese, formulada por Dan Brown, de que o Novo Testamento, com seus 27 livros, é um conjunto de documentos fraudulentos não se prova na prática, pela estreita correspondência que mantêm com a história da época. Alguns escritores viam Cristo como um hippie adepto da contracultura, outros como um judeu reacionário ou rabino carismático. Albert Schweitzer, o famoso humanitário, escreveu sua biografia de Cristo, concluindo que foi a insanidade de Jesus que o levou a proclamar a própria divindade102. Por sua vez, Nietzsche, precursor intelectual do nazismo, aquele da famosa frase “Deus Está Morto!”, afirmava que não gostava do cristianismo por ser uma religião de escravos... Todas essas manifestações repetem os propósitos ideológicos por baixo de opiniões tendenciosas vestidas com certo verniz intelectual, mas que são acolhidas pelos que rejeitam realmente a divindade do Cristo. Quem as aceita, se agarra a qualquer autor, mesmo que seja de ficção, se comprometendo a atingir um objetivo de desmoralização da figura histórica de Jesus, transformando-o num gênio vulgar e rejeitando tudo aquilo que Ele tem de singular, superior e divino. Essa tendência sempre se confundiu, ao longo desses dois mil anos, com os esforços para diminuir o poder da Igreja católica, o que foi conseguido parcialmente com a separação do Estado, que se tornou gestor administrativo e legal da vida dos cidadãos, independente do patrocínio espiritual da Igreja e sua interferência nos governos monárquicos da Europa, 99 Cf. LUTZER, op. cit., p. 74. Idem, p. 76. 101 Idem, p. 81. “Dan Brown afirma que, na época de Jesus, era raro um homem não ser casado. Além de tudo, sustenta que, por ser humano, Jesus teria desejado relações sexuais e a companhia de uma mulher. Todavia, isso não prova que Jesus era casado. Sabemos com certeza que escritores do Novo Testamento como Mateus e João, os quais conheciam muito bem a Jesus, não fazem nenhuma referência a esse casamento. Ora, se tal casamento tivesse ocorrido, seria com certeza mencionado.”, cf. LUTZER, op. cit., p.85. 102 Idem, p. 112. 100 50 e da Reforma Protestante, que expandiu um novo tipo de crença cristã, a partir das idéias de Martinho Lutero, no século XVI. 51 –6– A SOLUÇÃO PROTESTANTE “Enquanto eu viver, o perigo não será temível; mas quando eu estiver morto, o desamparo será grande. (...) Eu não temo os papistas, mas meus irmãos farão um grande mal ao Evangelho.” Martinho Lutero 52 A Reforma Protestante foi um movimento de rebeldia de cristãos contra os desmandos da Igreja católica, entre os séculos XV e XVI. Imaginem Papas infalíveis em matéria de fé e dogma, mas pouco piedosos em sua vida pessoal. Imaginem esses pontífices nomeando parentes para altos cargos da hierarquia eclesiástica, além de manter haréns secretos ou não tão secretos assim. Também suponham esses altos prelados traficando os bens da Igreja e vendendo lugares no céu em troca de dinheiro e moedas de ouro. Sem falar no Papa Alexandre VI, que dividiu o mundo entre Portugal e Espanha através de uma Bula, o que gerou posteriormente o Tratado de Tordesilhas. Seria o mesmo, hoje em dia, que conceber o Papa Bento XVI (2008) dividindo o mundo entre Estados Unidos e Rússia, reinaugurando as desgraçadas lembranças dos tempos da Guerra Fria (1945-1989), que expuseram o mundo às ameaças de uma guerra nuclear! O curioso, como resultado do gesto inconseqüente do Papa Alexandre VI, foi a reação de Francisco I, monarca francês, que mandava esquadras de corsários invadirem e conquistarem as terras privadas de Portugal e Espanha, sempre se justificando: “onde está o testamento de Adão?” A Reforma Protestante, que começou na Alemanha, revelou um rebelde em relação à conduta ética desviada da Igreja romana. Martinho Lutero (1483-1546), frade agostiniano, foi o porta-voz da não-aceitação da autoridade papal, considerada por ele e alguns outros pensadores europeus como uma tirania intolerável. Denunciava, ainda, a corrupção e imoralidade de bispos, padres e monges, que abusavam das coisas santas e ofendiam os mandamentos, chegando à beira do escândalo, principalmente em sua terra natal, hoje, a Alemanha. Contra a venda de lotes no céu, em troca de dinheiro sonante, doação de terras ou tráfico de cargos eclesiásticos (as indulgências e simonias), Lutero, em 31 de outubro de 1512, fixou na porta de uma capela do castelo de Vitemberg 95 teses contra aquele estado de coisas. Depois, a 15 de junho de 1520, queimou publicamente a bula Exurge Domine, que Leão X lhe havia dirigido em 15 de junho de 1520, para o convidar a arrepender-se e a retratar-se. 103 Em sua época, o ofício religioso era falado em latim e o texto bíblico também estava escrito na mesma língua (a Vulgata), o que afastava o povo, em sua maioria analfabeto, da compreensão verdadeira da religião dominante. Lutero então traduziu a Bíblia para a língua alemã, suplantando em qualidade algumas traduções solitárias, feitas por especial autorização da Igreja, em virtude da nova tecnologia de imprensa difundida por Gutenberg, a partir de 1543. O fundador do protestantismo considerava a Bíblia como única fonte de fé e que deveria ser interpretada pelo “livre exame”, isto é, sem a sombra indevida da autoridade papal. Partindo do famoso ditado a ele atribuído: “peco intensamente, mas ainda mais intensamente creio” – Lutero instituiu o princípio da “justificação passiva”, pelo qual o homem é, ao mesmo tempo, justo e pecador: pecador na plenitude do termo, mas justo em virtude da promessa, por imputação, podendo assim aspirar à salvação, embora no desespero de jamais poder viver vida realmente moral. Se o desespero se torna a via normal da justificação, o homem deve escapar para a tranqüilidade e paz através do que chamou “fé-confiança”. Basta, então aceitar Cristo como Salvador, isto é, crer com confiança no Deus-Pai, em vista dos méritos de Jesus, Cf. DUHR, Joseph. “As Origens da Reforma Protestante”, p. 513, in Deus, o Homem e o Universo, op. cit. 103 53 que não leva em conta as obras e os pecados do indivíduo, mas o verdadeiro tamanho de sua fé. Se mantiver a fé-confiança, o crente alcançará a salvação, independente da fase da vida que estiver vivendo.104 A difusão da doutrina do livre exame esfacelou o protestantismo em novas comunidades, como os metodistas, de John Wesley, os calvinistas ou presbiterianos, de João Calvino, os anglicanos, impulsionados pelo cisma entre Henrique VIII da Inglaterra e o Papado, e os batistas, de John Smith. João Calvino (1509-1564), teólogo cristão francês, teve grande influência durante a reforma protestante que perdura até hoje. Suas idéias expandiram-se pela Suíça, Inglaterra, Escócia, África do Sul, pelos Países Baixos e Estados Unidos. Sua doutrina mais famosa é a predestinação, vale dizer, o planejamento do próprio Deus para nossa vida. A predestinação de Deus é fruto de Sua vontade e absoluta soberania, em relação as pessoas e acontecimentos. E numa forma insondável, por muitas vezes não compreensível ao nosso entendimento, Deus age continuamente com liberdade total, de forma a realizar a Sua vontade de forma completa. Tal doutrina inspirou a célebre tese do sociólogo Max Weber que propôs que o espírito do capitalismo, de busca de riqueza, derivou dessa crença original de Calvino, porque quando os homens alcançavam a riqueza e a prosperidade, isso era sinal de que estavam sendo auxiliadso e beneficiadso por Deus. A religião calvinista, propagandose através de povos navegadores para terras orientais e ocidentais recém-descobertas, permitiu grande desenvolvimento da economia e do comércio, respondendo pelo puritanismo e pelo espírito de conquista de povos anglo-saxões e germânicos. Já os batistas, que se ramificaram em vários sub-grupos, são seguidores das teses calvinistas, afirmando também que a justificação ou a graça é obtida mediante a fé apenas, de tal modo que não admitem obras meritórias. A graça não apaga o pecado do crente, mas tão somente o encobre. Os ritos do batismo e da Santa Ceia não são comunicadores da graça, que só vem através da fé. Quanto mais nos aproximamos da modernidade, mais o protestantismo tende a posturas anti-intelectuais, não favoráveis ao estudo da Bíblia por métodos racionais e enfatizando uma conduta de livre exame e interpretação da Bíblia ao pé da letra. Esse fundamentalismo está presente entre grupos como os adventistas, mórmons, testemunhas de Jeová e os múltiplos ramos pentecostais e evangélicos. Os pentecostais argumentam que o verdadeiro momento inicial do Cristianismo foi a reunião de 120 pessoas no cenáculo de Jerusalém, na manhã de Pentecostes, em que os apóstolos assumem a sua verdadeira identidade de continuadores da obra de Jesus, sem medo ou covardia, liberando-se do paganismo ritualista e do judaísmo revolucionário. A emoção dos fiéis fica elevada acima do exame de teses intelectuais e serve a um engajamento integral da pessoa à sua seita sem medo de ser rejeitada por dificuldades de entendimento ou escolaridade. O curioso é que todas essas seitas mantinham até metade do século passado um grande preconceito em relação aos meios de comunicação contemporâneos (rádios e 104 Idem, pp. 520 e segs. 54 TVs), considerando-os “veículos do diabo”. No entanto, houve uma reviravolta completa nessa mentalidade, a ponto de hoje encontrarmos em todos os países uma pletora de canais abertos e por cabo a divulgarem, cada um a seu modo, as verdades do Evangelho, competindo decisivamente com a Igreja católica, que obteve significativa perda de fiéis para essas igrejas tele-assistidas... Impulsionados pela predestinação calvinista, os protestantes e pentecostais formaram pastores-apresentadores de TV, com um padrão de conduta praticamente igual: cabelo cortado bem rente, ternos conservadores com gravatas sisudas, sapatos engraxados e gestos comedidos, além do jargão típico: glória a Deus, aleluia, amém, obrigado Jesus e a lembrança onipresente de Satanás, do diabo, do Inimigo como ameaça constante na vida dos fiéis. Aos adeptos, resta ouvir, aceitar e, depois, pagar o dízimo... Dividindo o mundo entre Jesus e o Inimigo, parece também terem esquecido de que a Igreja católica fora antes condenada por espalhar a crença da existência do céu e do inferno, como forma de dominação do povo ignorante, até a eclosão da Revolução Francesa (1789), com os seus ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Protestantes e pentecostais no Brasil Segundo o Censo IBGE-2000, 1.062.144 brasileiros se declararam luteranos. Os batistas contavam com 3.162.700 fiéis brasileiros. Os presbiterianos, com 981.055 fiéis e os metodistas com 340.967 fiéis. Ao somarmos o total de protestantes históricos veremos que em 2000 representavam 5,0% do total da população brasileira. Em 1980, os protestantes históricos representavam 3,4% da população brasileira e, em 1991, com 3,0% do total da população. A leve recuperação da tendência declinante ainda é fenômeno a ser investigado. Todavia, duas hipóteses parecem razoáveis como explicação para a recuperação: a aproximação das técnicas pentecostais de proselitismo e as muitas adesões das igrejas pentecostais, embora parte de sua clientela migre para as igrejas do protestantismo histórico. Com a menção acima, tocamos numa das questões mais tematizadas no universo protestante da atualidade, o pentecostalismo. A Assembléia de Deus instalou-se no Brasil em 1911 e a Congregação Cristã em 1910. São elas as duas maiores igrejas pentecostais do Brasil. As igrejas Deus é Amor e Evangelho Quadrangular foram criadas em meados do Século XX. Já a Igreja Universal do Reino de Deus foi organizada em 1977, por Edir Macedo. Essas são as maiores igrejas pentecostais no Brasil. De acordo com o Censo 2000 o quadro de fiéis em cada uma delas é o seguinte: Assembléia de Deus – 8.418.154, Congregação Cristã do Brasil – 2.489.089, Igreja Universal do Reino de Deus – 2.101.884, Evangelho Quadrangular – 1.318.812, Deus é Amor – 774.827, Outras – 2.630.721. 55 Enquanto os protestantes históricos representam 5,0% do total da população brasileira, os pentecostais representam 10,6% da população. Sob o rótulo “pentecostais” agrupamos igrejas com ênfases e estilos bastante diferenciados.105 No entanto, dentre as comunidades pentecostais, a que mais se propaga atualmente é a chamada “Igreja Universal do Reino de Deus”, fundada no Brasil, em 1977, por Edir Macedo Bezerra. Nascido no Estado do Rio de Janeiro, Edir quis ser professor; todavia, abandonou o curso universitário sem o concluir, pois era uma pessoa deprimida. Procurou alívio na Igreja católica, mas não se satisfez. Passou então para o espiritismo e freqüentou terreiros de macumba, mas também aí não encontrou as respostas desejadas. Fez-se então membro da Igreja Pentecostal Nova Vida, onde permaneceu até 1974. Deixou-a para pregar, por conta própria, a cura mediante a fé. Em 1974, junto com Roberto Augusto Alves, Romildo R. Soares, seu cunhado, e os irmãos Samuel e Fidélis Coutinho, fundou a Igreja Cruzada do Caminho Eterno. Em 1977 se desentendeu com os irmãos Coutinho e ao lado do cunhado e de Roberto Augusto inaugurou a Igreja Universal do Reino de Deus na Abolição (zona norte do Rio de Janeiro). Quatro anos após a fundação, Edir outorgou a si mesmo e a Roberto Augusto o título de “bispo”. “Esse negócio de bispo é só um título para envolver os católicos” – teria dito Edir Macedo, segundo depoimento de Roberto Augusto à imprensa106. Depois, o próprio Roberto Augusto, que sagrou Edir como bispo, separou-se de Macedo e retornou à Igreja da Nova Vida; algo semelhante fizeram vários companheiros de Edir Macedo – entre os quais o famoso pastor Carlos Magno de Miranda, que se retirou para fundar a sua Igreja, dita “do Espírito Santo de Deus”. Romildo Soares, cunhado de Edir, afastou-se para constituir sua igreja, a “Igreja Internacional da Graça de Deus”. Na verdade, a colaboração com Edir tornou-se difícil por causa da prepotência do líder e em virtude do espírito mercantilista que cada vez mais foi prevalecendo em suas atividades. Feito bispo monárquico, Edir criou para si um vasto império. Como pregador do Evangelho e arauto de curas, foi adquirindo vários meios de comunicação e outros bens materiais no Brasil e no exterior. O culto exercido nas sessões da Igreja Universal do Reino de Deus é predominantemente o de atendimento às pessoas que lá compareçam, afetados por algum problema físico, psíquico, familiar ou econômico. Os pastores desta Igreja atribuem o surto desses problemas à intervenção do demônio (não raro confundido com a pomba-gira ou algum exu da Umbanda); conseqüentemente, aplicam exorcismos – o que se faz em meio a gritos, lágrimas, gemidos, pancadas, aclamações e palmas. Edir Macedo tem o dinheiro em grande estima: “o dinheiro é uma ferramenta sagrada que Deus usa em sua obra”107 – daí a insistência no pagamento do dízimo e na imposição de ofertas. Há diversos modos de estimular os fiéis à entrega de dinheiro, exemplificando: são distribuídos envelopes aos crentes, aos quais é dado um prazo fixo Cf. FERREIRA, Valdinei Aparecido. “O Protestantismo na atualidade”, in Revista Espaço Acadêmico, nº 59, ,abril de 2006, disponível na internet em http://www.espacoacademico.com.br/059/59ferreira.htm, 14/11/2008. 106 Cf. Jornal da Tarde, 2/4/1991, p. 16. 107 Cf. Jornal da Tarde, 6/4/1991, p. 14. 105 56 para que os devolvam com um fio de cabelo para ser benzido e a contribuição monetária; são também motivo para arrecadar donativos os cultos considerados especiais, que requerem unção com azeite, correntes de libertação, de prosperidade, de Gideão e do amor... Enfim, verifica-se que o grande interesse da Igreja Universal e de demonstrações congêneres é o serviço do homem. Assim, faz-se da religião um sistema mágico de solução de problemas materiais, um pronto-socorro capaz de realizar aparentes prodígios, mediante a sugestão movida por temas religiosos, às vezes, terminologias não-bíblicas inspiradas na macumba (descarrego, encosto, etc.). O culto a Deus, em adoração e louvor, torna-se secundário; quando ocorre, é em função de pretensas curas e façanhas “portentosas”. Edir Macedo integrou ao seu sistema de pregação o sistema de pirâmide, pelo qual o crente contribui com ofertas para beneficiar alguém que esteja desguarnecido financeiramente, que, posteriormente, irá beneficiar outros e assim por diante. É claro que o sistema não falha porque o fiador é Jesus, mantendo-se, contudo, uma visão antropocêntrica das necessidades, o que constituiu o que se chamou no Brasil de Teoria Evangélica da Prosperidade. Os adeptos da Teoria da Prosperidade estão se multiplicando e se dividindo quase como a multiplicação células num corpo que está sendo gestado. O que mais me impressiona no processo da divisão e dissidência dos protestantes, no entanto, são dois fatos singelos: além de não ser possível pagar o dízimo a tantas confissões evangélicas que o pedem na televisão, não vejo nenhuma delas proferir em suas orações, sempre individualizadas por um pastor e acompanhadas de copos com água (o que não é uso bíblico), a oração que Jesus realmente nos ensinou: o Pai-Nosso108. 108 Cf. Mt., 6: 9-13. 57 4º INTERVALO – O DESMONTE DAS LÁGRIMAS “Bem-aventurado o homem que suporta, com perseverança, a provação; porque, depois de ter sido aprovado, receberá a coroa da vida, a qual o Senhor prometeu aos que o amam.” Tiago, 1:12 Levarei ao conhecimento de todos, o que me aconteceu, entre 1º e 6 de julho de 2008, sem dúvidas e medo. Antes de mais nada, tenho 53 anos, sou escritor e poeta, escrevi vários livros, alguns publicados, outros infelizmente ainda não, plantei árvores e tenho uma filha linda. Desde o início de julho, eclodiu uma tempestade em minha vida e agora, ao final do mês, reuni forças até o limite para relatar essa estória. Costumo sintetizar ao máximo as idéias para não cansar os outros, embora não tenha o limite preciso que minha dor conceda para permitir prosseguir em antigos hábitos... Vi o diabo e ele ofereceu-me um mundo imaginário. Porém, não é assim a vida, falsa e coercitiva. Alguma coisa dentro de mim dizia que era preciso acordar, como abrir os olhos de repente, após uma anestesia profunda em delicada operação. Acordei, então, morrendo de dores e arrependimento. Estava só. Pelo menos acreditava, desesperado, nisso. Mas não é que Deus estava lá fora, me esperando, na companhia de seus anjos? Para eles, humilhei-me, recordando todo o filme de minha vida. Lembrei-me de uma das frases do Mestre: "vinde a mim os que estão sofrendo e vos aliviarei." Pois foi o que aconteceu: ultrapassei o rubicão e fiquei de pé, sem dever nada a médicos, psiquiatras ou assemelhados. Senti somente a presença abonadora e calmante de alguns anjos, que se apresentaram a mim, seletivamente. Você acorda abruptamente, entra em pânico e começa a chorar. Tenta levantar-se, olhar em torno, mas vem um estupor, uma fraqueza inaudita e você reza para não desmaiar e cai numa cadeira, pedindo: meu Deus... Foram quatro dias assim, sozinho, numa cidade pequena e acolhedora, em cuja noite de inverno sentia como flecha a temperatura de cinco graus centígrados! Só rádio, sem televisão e com as notícias habituais da violência crescente e incansável do Rio de Janeiro, de onde me retirei para tentar a recuperação. Enfrentar o frio do ambiente que, de alguma forma fortaleceu meu coração. O homem que escapou dessa iniciação não pôde se considerar uma pessoa consagrada, mas já não era um assombrado, tampouco uma ovelha desgarrada... 58 –7– TEMPLO É DINHEIRO! “Algumas pessoas imaginam a vida com Deus como uma solução para seus problemas e escolhem a Deus mais como alguém escolheria um cônjuge numa cultura de amor romântico, em busca de resultados desejáveis. Esperam que Deus lhes traga coisas boas; dão o dízimo porque crêem que o dinheiro volta dez vezes mais; tentam viver corretamente na esperança de que Deus as fará prosperar. (...) Na verdade, em alguns países, tornar-se cristão é garantia de perder o emprego, ser rejeitado pela família, odiado pela sociedade e até preso.” Philip Yancey “Deus permite a tempestade para que o crente fiel desça a seu verdadeiro nível e para que não se desvie pela soberba. Muitas vezes, Deus permite a tempestade em nossas vidas para sabermos quem realmente somos. A tempestade faz com que você saiba a quem realmente está servindo.” Silas Malafaya 59 A teoria da prosperidade109, também chamada de “Evangelho triunfalista”, ou jocosamente “templo é dinheiro”, talvez seja o ponto mais elevado e doentio, do ponto de vista psicológico e moral, do espírito do capitalismo aplicado à ética protestante. Na verdade, Cristo era (ou comportava-se) como um mendigo, filho de carpinteiro, numa nação subjugada, a Palestina dos judeus, e um profeta que pregou abusivamente contra a acumulação de riquezas, como nos diz textualmente o Sermão da Montanha, talvez a passagem mais preciosa e eloquente do texto sagrado. Como afirma Bartimeu Qvê110, lamentavelmente, o Evangelho tornou-se para um grande número de pessoas um meio totalmente eficaz de enriquecimento, fórmula fácil e perfeita de ascensão financeira. Utilizam-se do Evangelho de forma muitas vezes inescrupulosa, bombardeando os crentes com um marketing estrategicamente elaborado, fazendo uso de linguagem cristã distorcida, dando roupagem aparentemente evangélica ou gospel a vários de seus produtos. O capitalismo, sob camuflagem cristã, penetrou no seio da igreja, conduzindo muitos crentes ao consumismo exacerbado e ao materialismo desenfreado. O desejo pela prosperidade financeira suplanta, em algumas denominações, o anseio pela intimidade com Deus. E o pior: a ambição pelo dinheiro ganhou respaldo bíblico. Fazem uso da Bíblia para justificar as doutrinas de prosperidade. O dízimo, que deveria ser dado com o intuito de manter a obra de Deus, tornou-se espécie de “investimento” ou “fórmula mágica” para se obter dinheiro de Deus: “Se você der tudo, receberá em dobro”, dizem alguns; e outros: “O diabo segura a carteira do crente para ele não dar oferta”.111 A famigerada Teologia da Prosperidade, que é motivo de controvérsia entre as diversas denominações evangélicas, ganhou terreno e já é naturalmente aceita por inúmeras igrejas. Em muitos casos, é utilizada de forma apelativa, como um chamamento para os que enfrentam algum tipo de dificuldade financeira ou males físicos: “Se Jesus estivesse entre nós, hoje, ele sairia num Boeing particular e compraria emissoras de rádio e televisão para pregar o mais rápido possível a sua Palavra”, foi o que afirmou um pastor ligado ao movimento. Para muitos que compartilham essas idéias, Jesus foi um grande milionário e até usava roupas de grife.112 A prosperidade financeira transformou-se numa espécie de termômetro capaz de medir o grau da fé que alguém atinge: se prosperou, a fé é grande; se fracassou, é pequena. É muito cômodo a quem tem dinheiro e saúde proclamar, como um arauto, que a escassez de dinheiro e a enfermidade significam ausência de fé! Para esses pregadores, a fé só existe se vier acompanhada de bênçãos materiais.113 É possível conhecer pessoas sem fé que não somente têm dinheiro, como também esbanjam saúde; também é fácil conhecer pessoas cristãs, sinceramente cristãs, fiéis a Deus, que além de não terem saúde, têm escassez de dinheiro, vivem de aluguel, ganham um ínfimo salário. Também pode-se inteirar do oposto: pessoas ímpias que não tem nada, vivem na miséria, e pessoas cristãs que têm saúde e dinheiro. 109 Prosperidade (do latim prosperitate) refere-se à qualidade ou estado de próspero. Cf. QVÊ, Bartimeu. http://www.vivos.com.br/171.htm. 111 Idem. 112 Idem. 113 Idem. 110 60 A diferença não está em nossos bolsos, em nossos corpos físicos: está dentro de nossos corações.114 Tal teoria seria uma espécie de acordo entre o crente fiel e Deus, de receber benesses materiais abundantes em troca da permanência de sua fé, alocando para a respectiva igreja ofertas e dízimos, que lhe serão devolvidos por Deus, num toma-ládá-cá espiritual, onde Jesus faz o simplório papel de eterno fiador e pé-de-coelho. A lógica fechada exibe uma espécie de predestinação calvinista pervertida, na qual se o adepto não conseguir a bênção é porque a fé era insuficiente. De qualquer maneira, a culpa é sempre dele, não da igreja que haja escolhido. A oferta não é mais voluntária, é imposta com a finalidade de conseguir de Deus muito mais do que ofertou, e isso não é oferta de amor ou voluntária, é troca comercial e de fundo capitalista. Para os adeptos desse tipo de mercantilismo deslavado, existe um automatismo entre o valor e o montante das doações e o tamanho do resgate de alguma coisa intensamente almejada pela fé e que está ligada ao mundo material (carros, jóias, apartamentos, lojas, casa própria, empregos, etc.), o que seria interpretado como sinal divino de concordância e proteção, porque “Deus é fiel e cumpre o que promete”. Na verdade, a técnica do “dar e receber” é bem mais comum do que se pensa, não só em igrejas mas também em algumas seitas. Também não difere muito de técnicas de auto-ajuda ou auto-programação positiva, da qual Joseph Murphy (18981981) foi sempre lembrado como ícone. Outro autor da indústria da auto-ajuda, também pastor protestante, Norman Vincent Peale (1898-1993), em seu livro mais famoso, “O Poder do Pensamento Positivo”, dizia entre outras pérolas que não entendia o estresse em que vive o homem moderno, porque ele, quando se sentia cansado ou nervoso, pegava um avião e ia para os bosques da Suíça descansar... Ken Hagin, pregador batista e autor de vários livros, foi considerado o pai da “teologia da prosperidade” (só não me perguntem quem foi a mãe!), cometendo inúmeros erros teológicos, produtos de interpretação forçada e de uma ótica préestabelecida. Sua idéia de que a "maldição da lei"115 deveria ser interpretada como miséria, enfermidade e morte, não tem respaldo bíblico nem na experiência. Hagin acreditava que Deus era dono de todo ouro e prata existentes no mundo, argumentando em seguida que se recebemos suas bênçãos então não devemos ser pobres, porque “pobreza é coisa do diabo”. Após Hagin surgiram diversos seguidores da Teologia da Prosperidade (TP). Seu filho, Ken Hagin Jr., Oral Roberts, T.L. Osborn, Benny Hinn, Kenneth Copeland, entre outros. Na visão desses pregadores, o fiel deve confessar a posse da bênção e tudo o que for determinado verbalmente com fé será obtido. No entanto, Jesus afirmou ser mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha116 do que um rico se salvar. Tal repúdio à soberba e o cultivo da humildade 114 Idem. Gl. 3: 13,14 e 29. Esse tipo de agulha não é a de costura. Agulha era o apelido das ruas estreitas de Jerusalém, que existem até hoje. De fato, por elas um camelo não consegue andar. Do mesmo modo, a palavra “camelo” era uma espécie de gíria de pescadores na palestina, designando uma corda entrelaçada de 115 116 61 demonstra que Deus não quer sua riqueza porque Ele já é rico, dono de todo ouro e de toda a prata, mas com certeza não atribui a eles o mesmo valor que o ser humano materialista lhes atribui. Foi Jesus também quem disse que o nosso tesouro deve estar nos céus, porque lá a ferrugem não o corrói. Por que será que em vez de ter nascido num esplendoroso palácio, ele nasceu em uma manjedoura (tabuleiro em que se põe comida para os animais nas estrebarias)?117 Os discípulos de Cristo também não eram ricos. O único que se deixou levar pela ambição, Judas, teve um fim deveras trágico. Quando algumas pessoas ricas abordavam Jesus, como é o caso de Zaqueu e do jovem rico, foram motivados por ele a dividirem seus bens com o próximo.118 A Igreja primitiva tinha esse hábito. Diz a Bíblia que os irmãos prósperos dividiam com os menos favorecidos socialmente os seus bens. O apóstolo Paulo não teve, como alguns supõem, uma vida maravilhosa. Muito pelo contrário, sofreu pelo nome de Jesus, não somente açoites, mas prisões, e mesmo a morte. Em uma de suas epístolas, diz ter feito tendas para se manter, não querendo causar peso aos outros. Que diremos de João que, mesmo estando preso numa ilha, permaneceu firme na fé, sem jamais questionar os desígnios de Deus?119 Somos salvos pela fé, portanto, a fé não é uma fórmula mágica que faz surgir do nada aquilo de que necessitamos. Oferecer algo a Deus é fé: Abel ofereceu a Deus o mais excelente sacrifício, pelo que, diz a Bíblia, obteve testemunho de ser justo, tendo a aprovação de Deus120. Agradar a Deus é fé: Enoque foi transladado para não ver a morte, pois agradava a Deus121. Obedecer a Deus é fé: Noé seguiu os conselhos de Deus, construiu uma arca sob à zombaria de seus conterrâneos, e desta forma deu continuidade à espécie humana122. A fé fez com que Moisés abandonasse o conforto do Palácio de Faraó, para sofrer por seu povo. Muitos, por sua fé, foram apedrejados, provados, perseguidos, humilhados, açoitados, serrados pelo meio, mortos ao fio da espada. Outros, pela fé, tiveram de andar peregrinos, vestidos de peles de ovelhas, necessitados, aflitos, maltratados.123 Se existe uma “vítima” da chamada Teologia da Prosperidade é a própria palavra escrita na Bíblia. Essa teoria (ou prática teológica) tem se disseminado de forma surpreendente, e é defendida por evangélicos que crêem – grosso modo – que Deus tem algum tipo de dívida para com o ser humano, ou que tem uma espécie de acordo (com ares de obrigação) de dar-lhe riqueza e felicidade caso a pessoa realmente sisal, muito grossa, utilizada para amarrar embarcações e redes. Nesse sentido, um “camelo” jamais passaria pelo fundo de uma “agulha” (se fosse utilizada como instrumento de costura). 117 Cf. QVÊ, site citado. 118 Idem. 119 Idem. 120 Cf. Hb., 11:4. 121 Cf. Hb., 11:5. 122 Cf. Hb., 11:7. 123 Cf. QVÊ, site citado. 62 tenha fé e o queira. A contrapartida geralmente é o fiel desembolsar alguma riqueza própria (dinheiro) em troca de riqueza maior futura.124 Os pastores e bispos adeptos da Teologia ou Teoria da Prosperidade fazem uso da hermenêutica na leitura da Bíblia para garantir que o que estão fazendo não viola as regras de Deus ou de Jesus. A Bíblia passaria por uma espécie de re-edição, sendo os seus ensinamentos dispostos da melhor forma que interessasse aos adeptos da nova teoria. Senão vejamos: a orientação divina para que os humanos não se percam em desejos materiais em detrimento ao amor por Deus está citada duas vezes, de forma muito semelhante, em dois diferentes Evangelhos. Por outro lado há outro trecho, em Lucas, 11: 9, que diz que ao pedir algo a Deus o fiel simplesmente receberá o que deseja (de acordo com o merecimento e fé – pressupõem-se). Mas sem precisar fazer um carnê de desafio com uma igreja. Sem intermediários.125 Descaracteriza-se, assim, completamente, a essência do Cristianismo, com convites distorcidos, como: Venha para Jesus, porque se você é pobre, vai ficar rico; Venha para Jesus que você terá um carro último tipo; Venha para Jesus que você se livrará do aluguel e ganhará uma casaprópria; Venha para Jesus que você saldará todas as suas dívidas; etc., etc. Esse Evangelho triunfalista e de ilusão, no estilo “pequenas igrejas, grandes negócios”, pode trazer complicações psicológicas aos fiéis que, quando não obtêm o que querem no reino material são simplesmente acusados de não terem fé suficiente, de não “tomarem posse da bênção” e “não terem permitido a Jesus que operasse a seu favor”. Quando a pessoa não conquista as coisas é acusada de não ter fé, o que pode conduzir o crente a severos complexos de ordem psicológica. Muito ao contrário. Quem encontra a Palavra de Deus sabe que será por isso mesmo sujeito a lutas, tribulações e tempestades até porque o cristão percebe, no íntimo, que vive num vale de lágrimas. E a palavra de Deus diz: Buscai primeiro o Reino de Deus e as demais coisas vos serão acrescentadas126, o que solidifica a crença de que Deus só quer que você o busque primeiro. Em outra famosa passagem bíblica127, Jó era um homem temente a Deus e tinha tudo, mas não conhecia a Deus. Então Deus permitiu que Satanás tocasse em seus bens, nas suas coisas, até seus filhos, menos em sua vida e de sua esposa. Vendo, no entanto, que seu servo mesmo assim não desistira da fé, Deus deu-lhe tudo em dobro, “tudo o que antes possuíra”128 124 Cf. GOMES, Cristiane Machado. Teoria da prosperidade, disponível na Internet em 5/03/2007,www.cezar.azevedo.nom.br . 125 Idem. 126 Lc., 12:31. 127 Jó., cap. 42. 128 Cf. Jó., 42: 10. 63 A teoria da prosperidade no Brasil A teoria da prosperidade tem sido usada em várias igrejas para atrair os fiéis para um novo padrão de vida. E esse movimento não é tão atual assim. Surgiu no Brasil, entre outras igrejas, com a Igreja Universal do Reino de Deus do “Bispo” Edir Macedo (1977), cuja doutrina interna afirma que a prosperidade é uma das promessas de Deus, instruindo os seus fiéis para que “definam os seus pedidos e partam para o sacrifício, lançando tudo (ou seja, dinheiro, cheques, ofertas e dízimos) no altar”. Do mesmo modo, um cunhado e dissidente de Macedo, missionário Romildo Ribeiro Soares (R. R. Soares), fundou, em 1980, a intitulada Igreja Internacional da Graça de Deus, movimento neopentecostal que, além de pregar a teoria da prosperidade, trouxe inovações quanto a liberdade nos costumes, com menos ênfase nas manifestações pentecostais e colocando o louvor a Cristo como um processo mais dinâmico e fácil de compreender na velha luta entre o Senhor e o “inimigo”. A Igreja Apostólica Renascer em Cristo, por sua vez, fundada por Estevam e Sonia Hernandez (atualmente presos por sonegação fiscal nos Estados Unidos e que, a boca pequena são comentados nos meios evangélicos rivais: “o bispo e a bispa foram ver o sol renascer quadrado nos States...”)129 e a Comunidade Sara Nossa Terra, fundada por Robson Rodovalho – são as igrejas que surgiram ainda na década de 80 e vieram a engrossar esse coro de prosperidade. Entretanto, um grande investimento na mídia tem sido feito pelas igrejas que mais crescem no Brasil, como a Universal (cujo sócio-fundador é proprietário de uma rede aberta de televisão) e a Igreja da Graça, que ocupa em canal aberto um horário nobre, possuindo também canais de TV a cabo, editoras e gravadoras, conseguindo atingir famílias que antes só assistiam novelas. A teoria da prosperidade expandiu-se com facilidade em nossa sociedade consumista e materialista, enraizando-se no coração dos cristãos que pouco conseguem discernir entre o que é bíblico e o que é herético, por falta de compromisso com a palavra de Deus. Essa teoria tem fundamento bíblico altamente questionável, confundindo os cristãos porque seus líderes, usando versículos fora de contexto, insistem em dar-lhe uma aparência oficial como o verdadeiro ensino do Evangelho. Já existem fã-clubes130 para evangélicos e bloco carnavalesco evangélico. Pedem-se autógrafos, e a tietagem é explícita entre os admiradores das estrelas evangélicas. Hoje o cantor evangélico ganha Disco de Ouro e participa de grandes festivais. Há algum tempo foi realizado o Troféu Talento, considerado o Grammy da música evangélica, cujo objetivo era a premiação aos “melhores do show gospel”. Muitos desses festivais possuem efeitos especiais e são realizados em casas de shows de altíssimo nível. Em muitos casos há cobrança de ingressos. Os cachês de alguns desses irmãos cantores são excessivamente elevados, e muitos não cantam se não 129 Estevam Hernandes e Sônia Hernandes, colecionam processos na Justiça. No Brasil o casal responde por estelionato, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro, o que culminou no bloqueio dos bens dos Hernandes que abandonaram tudo e fugiram para os Estados Unidos. Chegando lá uma nova ficha criminal foi aberta para ambos ao serem pegos pelo FBI logo ao tentarem enganar a alfândega. Atualmente o casal responde em liberdade e mora em uma mansão em Boca Ratón, uma das cidades mais luxuosas dos EUA. “Fã”, redução de fanático, do latim “fanus”, templo, em referência aos adoradores da deusa Cibele, cf. QVÊ, site citado. 130 64 houver cachê! Para muitos empresários do ramo, esses cantores são “máquinas de fazer dinheiro”, e os evangélicos de um modo geral, nada mais são do que potenciais consumidores. Em muitos casos não é possível identificar se o que há em alguns templos é culto ou show. Várias igrejas estão perdendo sua identidade, passando a ser conhecidas como “ a igreja do Pastor fulano”, “a igreja do cantor sicrano”, “a igreja do jogador beltrano” etc. Alguns freqüentam estas igrejas porque lá congregam tal atriz ou tal ator.131 No entanto, tais igrejas caminham para a prosperidade financeira, enquanto os fiéis acreditam que, sacrificando o pouco que tem a favor delas, irão ter futuramente a bênção desejada e, se não conseguem alcançá-la, voltam-se contra si mesmos como se tivessem cometido erros na própria vida. – QUADRO 1 – A BÍBLIA E A TEORIA DA PROSPERIDADE ARGUMENTOS BÍBLICOS A FAVOR DA TEORIA DA PROSPERIDADE ARGUMENTOS BÍBLICOS CONTRA A TEORIA DA PROSPERIDADE “Faço aliança contigo e com “Não só de pão viverá o homem, tua posteridade, uma aliança eterna, mas de toda palavra que procede da boca de geração em geração, para que eu de Deus.” (Mt. 4 :4); seja o teu Deus e o Deus de tua posteridade.” (Gên., 17: 7); “Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a “Ele é a Rocha; suas obras são ferrugem corroem e onde ladrões perfeitas, porque todos os seus escavam e roubam; mas ajuntai para vós caminhos são justos; Deus é fiel e outros tesouros no céu, onde traça nem sem iniqüidade; justo e reto é ele”. ferrugem corrói, e onde ladrões não (Deut., 32: 4). escavam, nem roubam; porque onde está o teu tesouro, aí estará também o teu "Eu o tenho dito; também já o coração.” (Mt. 6: 19, 20, 21) chamei; eu o trouxe, e o seu caminho será próspero." (Is 48: 15); "Ninguém pode servir a dois "Os seus caminhos são senhores; porque ou há de odiar a um e sempre prósperos...” (Sl. 10: 5); amar o outro, ou há de dedicar-se a um e desprezar o outro. Não podeis servir a “Cumpria, portanto, que Deus e às riquezas." (Mt. 6: 24); entregasses o meu dinheiro aos banqueiros, e eu, ao voltar, receberia “Então disse Jesus a seus com juros o que é meu. Tirai-lhe, discípulos: Em verdade vos digo que um pois, o talento e dai-o ao que tem dez. rico dificilmente entrará no reino dos Porque a todo o que tem se lhe dará, céus.” (Mt. 19:23) 131 Cf. QVÊ, idem., 65 e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será “...mas os cuidados do mundo, a tirado.” (Mt. 25: 27, 28 e 29) sedução das riquezas e a cobiça doutras coisas, entrando, sufocam a palavra, e ela “Por isso, vos digo: Pedi, e fica infrutífera." (Mc. 4: 19); dar-se-vos-á, buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-á. Pois todo o que “Então Jesus, olhando ao redor, pede recebe; o que busca encontra; e disse aos seus discípulos: Quão a quem bate, abrir-se-lhe-á (Lc. 11:9- dificilmente entrarão no reino de Deus os 10); que têm riquezas! (...) É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do “Antes, como Deus é fiel, a que entrar um rico no reino de Deus.” nossa palavra a vós não é sim e (Mc. 10: 23 e 25); não.” (2 Cor., 1: 18); “Quem tiver duas túnicas, reparta “E, se sois de Cristo, também com quem não tem; (...) não cobreis mais sois descendentes de Abraão e do que o estipulado; (...) e contentai-vos herdeiros segundo a promessa.” com o vosso soldo.” (Lc. 3: 10, 12 e 14); (Gal. 3: 29); “Então, lhes recomendou: Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que possui.” (Lc. 12: 15) “E Jesus, vendo-o assim triste [um homem riquíssimo] disse: Quão dificilmente entrarão no Reino de Deus os que têm riquezas!” (Lc. 18: 24) “... os que querem tornar-se ricos caem em tentação e em laço, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, as quais submergem os homens na ruína e na perdição" (1 Tm. 6: 9); A teoria da prosperidade é, em suma, a nosso ver (e assumimos toda a responsabilidade por esse particular julgamento) um emporcalhamento das palavras de Jesus em nome do mercantilismo e da idolatria, típicos de nossa época. Bem que Jesus advertiu, em vários trechos de sua vida pública, assim como o apóstolo João, em Apocalipse, o extremo cuidado que deveremos ter com falsos profetas. 66 5º INTERVALO – A SEPARAÇÃO Escrevo, a título de desabafo – a única válvula de escape dos escritores – e me sinto um pedinte verdadeiro, à procura de luz, apesar de me saber poeta, que, como disse um famoso compositor, pode ver na escuridão... Meu relacionamento ficou sujo, sem mesuras e respeito. Acabou por um conjunto de motivos, mas o mais proeminente fora aquele que apodrece diversas famílias, quer dizer, o diabo aparece, travestido de necessidades financeiras e, logo após, surge a procissão infindável de brigas, discussões e desentendimentos. Ela era rica e eu, tão pobre... Ela, no entanto, faliu por conta própria, sem qualquer interveniência minha em seus negócios, mas indiretamente, ou em silêncio, talvez me acusasse intimamente de lhe trazer azar. Não pensem que não passou por mim a idéia de suicídio. O sacrifício de minha vida, ora em estado sórdido, soaria como pagamento existencial por minha vida louca, desregrada e, agora, a beira de ser desonrada. Talvez fosse melhor que eu morresse por dívidas imaginárias, intuídas ou todas as que tivesse acumulado sem qualquer lembrança. “Seria bom para todo mundo” – uma sugestão de epígrafe no bolso do cadáver, solução bem machadiana... Alguma coisa, entretanto, deteve, minha mão justiceira. Talvez a lembrança das coisas boas que realizei, os livros que escrevi, os poemas premiados, as árvores que plantei e estão viçosas e, finalmente, a filha bela que inda tenho. 67 –8– A ALTERNATIVA ESPÍRITA “Nós somos espíritos que já estiveram aqui muitas vezes, que escreveram os projetos que estamos vivendo agora e que guardam a divina promessa da eternidade no amor de Deus que nos espera do Outro Lado.” Sylvia Browne 68 Longe de mim discutir profundamente tão extensa e tão bela doutrina como a espírita, em relação à qual quase todo brasileiro, adepto ou não, conviveu de alguma forma ao longo da vida.132 Muito ao reverso da teoria da prosperidade pentecostal e evangélica, discutida no capítulo anterior, o espiritismo não pede dinheiro a seus adeptos em forma de dízimos ou patrocínios. Os lares espíritas e todas as escolas, orfanatos e asilos sustentados pelos discípulos de Allan Kardec, obedecem a regras firmes de contribuição voluntária e disponibilidade voluntária, o que não significa qualquer obrigação. Os lares e centros de inspiração kardecista funcionam como sociedades civis, com balanços mensais de receitas e despesas à disposição dos irmãos, que, em sua maioria, efetuam contribuições não monetárias, em geral ligadas a produtos alimentícios, roupas, agasalhos e cobertores. Todas as doações financeiras, entretanto, são efetuadas contra-recibo, postas ao conhecimento de todos os participantes do núcleo e as atividades de cura e assistência (palestras, passes e cursos) são completamente gratuitos. Os princípios da doutrina Allan Kardec (1804-1869) teve o grande mérito de codificar uma doutrina espiritual em pleno ambiente de valorização da ciência e do materialismo, na segunda metade do século XIX. Num tempo em que os cientistas acreditavam que a ciência já havia descoberto tudo, que a física e a química tinham chegado a seus melhores resultados – o codificador francês surgiu com idéias novas, distinguindo-as do misticismo praticado por muitos charlatães que pregavam as maravilhas do “mesmerismo”133 e da cura pelo magnetismo. Elaborou cinco livros básicos sobre a doutrina, até hoje a formulação inicial de todo edifício espírita, enriquecido por milhares de livros e autores. 132 “Uma pesquisa realizada por duas universidades brasileiras afirma que 11% dos brasileiros têm mais de uma religião. O estudo divulgado nesta quinta-feira pelas universidades federais de São Paulo (Unifesp) e de Juiz de Fora (UFJF) com 3 mil pessoas em todo o país aponta que 83% dos pesquisados consideram a religião muito importante nas suas vidas. As principais religiões citadas como primeira crença pelos entrevistados são catolicismo (68%) e evangélica (22%). Ao todo, 5% se declararam praticantes de outras religiões – como protestantismo e espiritismo – e outros 5% se disseram sem crença. Enquanto 15% dos entrevistados com nível de escolaridade superior têm o espiritismo como primeira ou segunda religião, 17% dos com escolaridade primária e 22% daqueles que completaram o antigo ginásio adotam o evangelismo, diz um dos autores do levantamento, Ronaldo Laranjeira, da Unifesp.” (Cf. BBC em português, “Pesquisa diz que 11% dos brasileiros têm duas religiões”, 03/05/2008. 133 Uma fraude médica do século 18 desenvolvida por Franz Anton Mesmer (1734-1815), envolvendo as suas sugestões e fazendo os seus clientes ficarem “mesmerizados” por ele. Ele usou os seus extraordinários poderes de sugestão para colocar as pessoas em convulsão ou em transe. Foi tão bem sucedido que o termo passou a descrever a influencia sobre os outros. 69 O “Livro dos Espíritos” (1857) seria a pedra de toque de sistematização doutrinária e em sua introdução desenha as principais teses do que se convencionou chamar de Espiritismo134: Deus é eterno, imutável, imaterial, único, onipotente, soberanamente justo e bom, tendo criado o Universo, que abrange todos os seres animados e inanimados, materiais e imateriais; Os seres materiais constituem o mundo visível ou corpóreo, e os seres imateriais, o mundo invisível ou espírita, isto é, dos Espíritos; Os Espíritos revestem-se temporariamente de um invólucro material perecível, cuja destruição pela morte lhes restitui a liberdade. Entre as diferentes espécies de seres corpóreos, Deus escolheu a espécie humana para a encarnação dos Espíritos que chegaram a certo grau de desenvolvimento, dando-lhe superioridade moral e intelectual sobre as outras; A alma é um Espírito encarnado, sendo o corpo apenas o seu envoltório. Há no homem três coisas: 1°) o corpo ou ser material análogo aos animais e animado pelo mesmo princípio vital; 2°) a alma ou ser imaterial, Espírito encarnado no corpo; 3°) o laço que prende a alma ao corpo, princípio intermediário entre a matéria e o Espírito. Tem assim o homem duas naturezas: pelo corpo, participa da natureza dos animais, cujos instintos lhe são comuns; pela alma, participa da natureza dos Espíritos; O laço ou perispírito, que prende ao corpo o Espírito, é uma espécie de envoltório semimaterial. A morte é a destruição do invólucro mais grosseiro. O Espírito conserva o segundo, que lhe constitui um corpo etéreo, invisível para nós no estado normal, porém que pode tornar-se acidentalmente visível e mesmo tangível, como sucede no fenômeno das aparições. O Espírito não é, pois, um ser abstrato, indefinido, só possível de conceber-se pelo pensamento. É um ser real, circunscrito, que, em certos casos, se torna apreciável pela vista, pelo ouvido e pelo tato; Os Espíritos pertencem a diferentes classes e não são iguais, nem em poder, nem em inteligência, nem em saber, nem em moralidade. Os Espíritos não ocupam perpetuamente a mesma categoria. Todos se melhoram passando pelos diferentes graus da hierarquia espírita; Deixando o corpo, a alma retorna ao mundo dos Espíritos. A encarnação dos Espíritos se dá sempre na espécie humana; seria erro acreditar-se que a alma ou Espírito possa encarnar no corpo de um animal; A alma possuía sua individualidade antes de encarnar; conserva-a depois de se haver separado do corpo; 134 Cf. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, pp. 23-27, tradução de Guillon Ribeiro, 83ª edição, Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 2002. 70 O Espírito encarnado se acha sob a influência da matéria; o homem que vence esta influência, pela elevação e depuração de sua alma, se aproxima dos bons Espíritos, em cuja companhia um dia estará. Os Espíritos encarnados habitam os diferentes globos do Universo. Os não encarnados ou errantes não ocupam uma região determinada e circunscrita; estão por toda parte no espaço e ao nosso lado, vendo-nos e acotovelando-nos de contínuo. É toda uma população invisível, a mover-se em torno de nós; Os Espíritos exercem incessante ação sobre o mundo moral e mesmo sobre o mundo físico; As comunicações dos Espíritos com os homens são ocultas ou ostensivas. As comunicações ostensivas se dão por meio da escrita, da palavra ou de outras manifestações materiais, quase sempre pelos médiuns que lhes servem de instrumentos. Os Espíritos se manifestam espontaneamente ou mediante evocação; Distinguir os bons dos maus Espíritos é extremamente fácil. Os Espíritos superiores usam constantemente de linguagem digna, nobre, repassada da mais alta moralidade, escoimada de qualquer paixão inferior; em resumo, as comunicações sérias, na mais ampla acepção do termo, só são dadas nos centros sérios, onde intima comunhão de pensamentos, tendo em vista o bem; A moral dos Espíritos superiores se resume, como a do Cristo, nesta máxima evangélica: Fazer aos outros o que quereríamos que os outros nos fizessem, isto é, fazer o bem e não o mal. Neste princípio encontra o homem uma regra universal de proceder, mesmo para as suas menores ações; Ensinam, finalmente, não haver faltas irremissíveis, que a expiação não possa apagar. Meio de consegui-lo encontra o homem nas diferentes existências que lhe permitem avançar, conformemente aos seus desejos e esforços, na senda do progresso, para a perfeição, que é o seu destino final. Eis aí o resumo ortodoxo da doutrina espírita, tal como formulada por Kardec, o que não a impediu de ser contestada e desvirtuada por outras escolas espíritas que apareceram depois, como a Umbanda e a Kimbanda e algumas seitas de origem africana. Não há dúvida, também, que as noções de progresso e evolução dos Espíritos, do menos para o mais, que traduz uma espécie de mecanicismo na exposição da doutrina, sofre intensa pressão ideológica dos princípios mais populares no século XIX, do evolucionismo de Darwin e da noção de progresso, difundida pelo positivismo de Augusto Comte135. 135 O francês Augusto Comte (1798-1857), fundador do positivismo, negava que a explicação dos fenômenos naturais, assim como sociais, provenha de um só princípio. A visão positiva dos fatos abandona a consideração das causas dos fenômenos (Deus ou natureza) e torna-se pesquisa de suas leis, vistas como relações abstratas e constantes entre fenômenos observáveis. A partir da percepção do progresso humano, Comte formulou a Lei dos Três Estados. Observando a evolução das concepções intelectuais da humanidade, Comte percebeu que esta evolução passa por três estados teóricos diferentes: o estado 'teológico' ou 'fictício', o estado 'metafísico' ou 'abstrato' e o estado 'científico' ou 'positivo'. Para Comte, "religião" e "teologia" não são termos sinônimos: a religião refere-se ao estado de 71 O que é e não é Espiritismo Muitos cultos e religiões que praticam a comunicação com os espíritos e aceitam a reencarnação, por outro lado, são confundidos erroneamente com o Espiritismo. Na verdade, embora mereçam todo o respeito dos espíritas verdadeiros, estas seitas são adeptas do espiritualismo ou esoterismo, e não do Espiritismo. Todos aqueles que acreditam na existência do Espírito são espiritualistas. Mas nem todos os espiritualistas são espíritas, praticantes do Espiritismo.136 Para que uma casa religiosa seja espírita, ela deve seguir os ensinamentos contidos nas obras Básicas da Doutrina, os locais espíritas recebem o nome de: Centro, Grupo, Casa, Sociedade, Instituição ou Núcleo Espírita. Deve ser legalmente constituído, de acordo com as leis vigentes no país em que está instalado. Mesmo ostentando este nome, quem os visita necessita estar atento para quais as atividades e as formas como as mesmas são praticadas por seus dirigentes e auxiliares.137 O verdadeiro centro espírita não pratica em suas atividades nenhum tipo de ritual. A Doutrina Espírita segue o que o Mestre Jesus ensinou: que Deus é Espírito, e deve ser adorado em espírito e verdade. Portanto, sem a necessidade de nada material para contatar com a espiritualidade. Nas sedes dos verdadeiros centros espíritas não são encontradas imagens de santos ou personalidades do movimento espírita, amuletos de sorte, figuras que afastem ou atraiam maus Espíritos, incensos, velas e tudo o mais que seja material e que teoricamente serviria de ligação com o mundo espiritual. O Espiritismo é contrário a qualquer tipo de sacrifício animal. Espíritos que pedem este tipo de atividade são atrasados, ignorantes da Lei de Deus e muitas vezes maléficos, que podem prejudicar a vida de quem dá ouvidos aos seus baixos desejos.138 Os grupos espíritas têm reuniões específicas e íntimas para que os trabalhadores da casa. Todo este cuidado baseia-se na orientação dos próprios Espíritos superiores, responsáveis pela elaboração do Espiritismo, como também no alerta de João, o Evangelista, que diz: "Amados, não creiais em todos os Espíritos, mas provai se os Espíritos são de Deus"139. Agindo assim, o centro espírita evita o máximo possível a influência de Espíritos zombeteiros e maldosos.A seriedade de reuniões fechadas os intimida, favorecendo a presença dos Espíritos esclarecidos.140 Há alguns tipos de trabalhos mediúnicos, principalmente de psicografia (escrita dos Espíritos através de médiuns), onde pessoas levam até lá o nome de entes desencarnados para tentarem a comunicação dos mesmos através da mediunidade, e unidade humana (psicológica, espiritual e social), enquanto a teologia refere-se à crença em entidades sobrenaturais. Dessa maneira, grosso modo, a Religião da Humanidade consiste na incorporação da teologia pelo humanismo e pela ciência – respeitando, reconhecendo e celebrando o papel histórico desempenhado por estes estágios provisórios. 136 Cf. O que é e não é o Espiritismo, Grupo Espírita Apóstolo Paulo, Última atualização em 18/11/2002, disponível em http://www.espiritismo.org/oqueeo.htm. 137 Idem. 138 Idem. 139 Cf. 1 Jo. 4:1. 140 Cf. O que é e não é o Espiritismo, site citado. 72 ficam observando a manifestação. O médium Francisco Cândido Xavier, conhecido como Chico Xavier, oriundo da cidade mineira de Uberaba, foi um destes exemplos. Porém, nestes casos, o Espírito não se comunica diretamente com seu parente. Apenas influencia o médium, que escreverá, de forma discreta e ordenada, a mensagem do além. A doutrina Espírita explica que todo ser vivo tem mediunidade, pois é através dela que os encarnados recebem influências boas e más do mundo espiritual, que servirão de ajuda ou aprendizado no decorrer de suas existências terrenas. São chamados de médiuns aqueles capazes de proporcionar a manifestação dos espíritos. O Espiritismo adverte que para poder ampliar esta ligação com o mundo espiritual, é necessário que o médium passe por uma série de preparativos. Anos de estudo, maturidade, modificação moral constante, vida regrada, abstendo-se dos vícios mais grosseiros, como o fumo e a bebida, são algumas das regras básicas para que o indivíduo possa vir a desenvolver sua mediunidade, e estão contidas em "O Livro dos Médiuns". Os centros espíritas verdadeiros não aconselham a pessoa a trabalhar mediunicamente sem antes passar por este período e preparação citados. Muito menos diz que alguém “precisa” desenvolver a mediunidade. Tudo o que é forçado é prejudicial ao homem.141 Qualquer lugar que prometa a cura de problemas espirituais ou materiais não é um local espírita. Condicionar uma cura à freqüência exclusiva naquele ambiente, ao pagamento de dinheiro ou bens materiais, ou mesmo à “força da casa” não tem base no Espiritismo e foge do bom senso que regula as leis de Deus. Estas, não podem ser modificadas de acordo com nossa vontade. Por isso, prometer algo que não depende apenas de nós mesmos beira a irresponsabilidade e pode levar a pessoa desesperada ao desequilíbrio total ou à descrença em Deus.142 O passe é um método utilizado dentro dos centros espíritas. Nada mais é do que a simples imposição das mãos de médiuns sobre a fronte de outras pessoas, transmitindo-lhes fluidos magnéticos e espirituais. Os passistas não ficam incorporados pelos Espíritos, apenas recebem sua influência mental e fluídica. Jamais há necessidade de o passista tocar a pessoa que recebe o passe. Toques, apertos, carícias têm grandes possibilidades de serem mal-interpretados, gerando confusões, e por isso são dispensados no centro espírita. Locais em que os passes são aplicados com movimentos bruscos, utilizando objetos, baforadas de cigarro ou charuto, estalando-se os dedos, repetindo mantras e cânticos, tocando várias partes do corpo do receptor não são centros espíritas. Passistas que transmitem os passes incorporados por entidades, fazendo orientações ou conversando normalmente, não são médiuns espíritas.143 O verdadeiro centro espírita não cobra nenhuma orientação ou ajuda espiritual de seu público, nem condiciona o recebimento de curas ou salvação às doações. Dar de 141 Idem. Idem. 143 Idem. 142 73 graça o que de graça receber, ensinou Jesus, em alusão aos conhecimentos espirituais. Não aceita dinheiro por serviços prestados mediunicamente. Seus dirigentes e trabalhadores têm profissões próprias, que lhes dão o sustento financeiro necessário para suas vidas. Quem sustenta materialmente a casa espírita são seus trabalhadores, através de doações mensais, destinadas ao pagamento de aluguéis, manutenção, divulgação doutrinária e aquisição de alimentos, roupas e demais objetos a serem distribuídos às famílias carentes ou instituições filantrópicas que sejam assistidas pelo grupo. Todo local que cobra dinheiro, favores ou exige qualquer coisa ou favor material devido à ajuda espiritual prestada não é um centro espírita. A cobrança financeira é própria de pessoas que vivem da exploração da crença alheia, contrariando os ensinos de Jesus. Há seitas que pedem dinheiro aos seus assistidos afirmando que será usado para o feitio de trabalhos espirituais, como a compra de velas, comida, roupas e coisas do gênero. Isso não é Espiritismo. Espíritos que se prestam a fazer serviços espirituais em troca de coisas materiais são entidades atrasadas, que nada de bom podem trazer aos que os procuram. Não podemos comprar a paz de espírito e tranqüilidade que buscamos, é isto que prega a Doutrina Espírita. Se não for esta a orientação do local, com certeza não é um ambiente espírita.144 Os cinco livros de Kardec Sem fazer comparação ao Pentateuco de Moisés, a doutrina básica do Espiritismo é exposta em cinco livros, considerados básicos para o iniciante. Como já vimos, “O Livro dos Espíritos”: lançado por Allan Kardec em 1857, é o principal livro da Doutrina Espírita. Podemos chamá-lo de espinha dorsal, pois sustenta todas as outras obras doutrinárias. Divide-se em quatro partes: “As causas primárias”; “Mundo espírita ou dos Espíritos”; “As leis morais”; e “Esperanças e consolações”. É composto de 1018 perguntas feitas por Kardec aos Espíritos superiores responsáveis pela vinda do Espiritismo aos homens. O que é Deus? De onde viemos? Para aonde vamos? O que estamos fazendo na Terra? Estas são algumas das questões respondidas pela falange do Espírito de Verdade. O segundo, chamado “Livro dos Médiuns”, teve seu lançamento em 1861. Nele, Kardec mostra os benefícios e os perigos da mediunidade, ou seja, o canal que liga o homem encarnado ao mundo espiritual. Demonstra que embora todos os seres vivos possuam esta abertura de contato, há aqueles que a têm de uma forma mais abrangente. Kardec e os Espíritos superiores alertam sobre a sutileza desta faculdade, para que uma pessoa possa contatar os Espíritos sem ser prejudicada por entidades maléficas, descontrolando sua mediunidade. O terceiro livro, “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, editado em 1864, pode ser entendido como a parte moral da Doutrina Espírita. Nele, Kardec e os Espíritos superiores comentam em linguagem acessível as principais passagens da vida de Jesus. 144 Idem. 74 Explicam suas parábolas e demonstram a grandiosidade do Mestre nos seus ensinos, dando-nos, além disso, conselhos importantes sobre nossa conduta diária frente às dificuldades e dúvidas da vida. “Céu e o Inferno”, o quarto livro, lançado em 1865, demonstra-nos, através da evocação dos Espíritos de pessoas das mais diferentes classes sociais, crenças e condutas, como foi a chegada e a vivência espiritual destes seres após o seu desencarne. Rainhas, camponeses, religiosos, assassinos, ignorantes e intelectuais são alguns dos que contam o que os aguardava depois de suas atitudes terrenas e como poderão ser suas vidas futuras. Finalmente, em “A Gênese” (1868), Kardec explica a Gênesis Bíblica, a formação do Universo, demonstrando a coerência da mesma quando confrontada com os conhecimentos científicos, despida das alegorias próprias da época em que foi escrita. Expõe o que são os milagres, explicados pelas leis da natureza, produtos da modificação dos fluidos que nos cercam. Enfim, faz a religião e a ciência caminharem juntas, fortalecendo a fé dos que crêem em Deus.145 A expansão da doutrina Mesmo os que não aceitam as idéias espíritas em seu cotidiano, não poderão deixar de concordar que as formulações de Kardec abriram caminho para reflexões sobre as coisas invisíveis, principalmente com as descobertas da Teoria da Relatividade de Albert Einstein (1905-1912) e do início dos estudos da física quântica, conduzidos de princípio por Max Planck (1900). As transformações da física, ocorridas no alvorecer do século XX, liquidaram com as noções de vácuo e éter, que praticamente explicavam tudo sobre o Universo desconhecido que pairava acima de nós, no século XIX. Embora a influência materialista dos socialistas discípulos de Karl Marx, que se estendeu desde a Revolução Soviética de 1917 até a queda do muro de Berlim (1989) – a metodologia kardecista trouxe aconchego às idéias de investigação do mundo psíquico, através da neurologia, da parapsicologia e das pesquisas, na segunda metade do século XX, sobre as experiências de quase-morte. Pesquisar o mundo espiritual, a existência de espíritos desencarnados interferindo em nossa dimensão material deixou de ser mero preconceito e, principalmente nos Estados Unidos, ganhou enorme desenvolvimento por cientistas não preconceituosos. Milhares de depoimentos e experiências com pessoas idôneas passaram a ser estudados com afinco, do mesmo modo como os estudos em torno de Objetos Voadores Não Identificados foram realizados, partindo das premissas espíritas de que existem mundos animados fora da Terra, com uma pluralidade enorme de 145 Cf. http://www.espiritismo.org/obrasbasicas.htm. É interessante anotar, de acordo com Allan Kardec, que os milagres de Jesus da transformação de água em vinho e a multiplicação dos pães (ele não se referiu aos peixes) são por ele considerados os mais elevados porque interferiram na realidade como fenômenos materiais (Cf. A Gênese: os milagres e as predições segundo o espiritismo, pp. 338 e 339, tradição de Guillon Ribeiro, 42ª edição, Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 2002). 75 civilizações tanto atrasadas e grosseiras quanto mais adiantadas e refinadas em sentido espiritual. A respeito desse tema, podemos citar os cálculos moderados dos astrofísicos Fred Adams e Greg Laughlin sobre a existência de civilizações inteligentes, fora do sistema solar: “Com moderada confiança, podemos calcular que a galáxia contenha cerca de um bilhão de planetas habitáveis. Todavia a parcela desses planetas hipotéticos que conteria vida inteligente, capaz de comunicação interestelar, está muito mais no âmbito da especulação desvairada que no das opiniões esclarecidas. Uma das maiores incertezas concerne à fração dos planetas habitáveis que de fato desenvolveriam algum tipo de vida. A história da vida na Terra sugere que, uma vez iniciada a evolução biológica, o desenvolvimento da complexidade, da inteligência e até da tecnologia é razoavelmente provável. Com o risco de virmos um dia a soar desoladoramente ingênuos, sugerimos que cerca de um em cada dez mil planetas habitáveis poderia desenvolver vida. Juntando os fatores restantes e presumindo (com pouca justificação) que as civilizações com capacidade tecnológica não tendam a se destruir facilmente, estimamos que o total de civilizações da galáxia seria de aproximadamente mil. Se essas civilizações estiverem aleatoriamente distribuídas por todo o disco galáctico, a distância típica entre civilizações vizinhas deverá ser de uns três mil anos-luz.” Tais constatações científicas, que caem no reino da especulação, confirmam que a crença em civilizações extra-terrestres, considerada um mito desagradável e até perigoso para a ortodoxia da Igreja católica, até o início do século XX, passou a ser objeto de consideração pelo Vaticano, que, recentemente, liberou um de seus cardeais para declarar que se houver ET’s no Universo, esses habitantes alienígenas também seriam nossos irmãos e igualmente filhos de Deus. O Livro dos Espíritos fala sobretudo de mundos primitivos, mundos de expiação e provas, mundos transitórios, mundos felizes e mundos celestes. Neles, transitariam os Espíritos, de forma hierárquica, do mal para o bem e do menos para o mais, em termos de Evolução. Nesse sentido, a doutrina não necessita das noções também mecanicistas da Igreja, no Catecismo, que fala em inferno, purgatório, limbo e céu, como as instâncias prováveis de alocação das almas, à espera da “Parusia” ou segunda vinda do Cristo. 76 –9– A REENCARNAÇÃO “Enquanto não morreres e não ressurgires novamente serás um estranho à escura terra.” J. W. Goethe “Posso ler a Bíblia e encontrar provas da reencarnação e você pode fazer exatamente o contrário.” Edgar Cayce 77 A reencarnação é um fenômeno que tem despertado muito interesse ao longo da história humana, principalmente entre as religiões orientais, que o encaram com assombrosa naturalidade. Os Budistas, Tibetanos e Hinduístas, todos acreditam que continuamos sempre a morrer e renascer. Todos vieram da morte e do renascimento. Eles acreditam que a reencarnação é um fenômeno da natureza e que tudo nela obedece a leis perfeitas e cíclicas. Dentre as religiões do Ocidente, no entanto, excetuando a doutrina Espírita – que não se considera em si mesma uma religião na corriqueira definição do termo – são oferecidas enormes resistências à discussão do tema, mesmo tomando-o como mera hipótese de trabalho. No Ocidente, onde o objetivo da vida é o sucesso comercial, financeiro, social ou científico – isto é, lucro, engrandecimento e poder pessoais – a vida real do ser humano recebe pouca atenção; e nós, ao contrário dos orientais, damos pouco destaque à doutrina da pré-existência da alma e da reencarnação. As definições básicas Seria assim como se perguntássemos: o que fazer com as nossas antigas crenças se realmente a reencarnação fosse comprovada? Antes de mais nada, porém, devemos conceituar o fenômeno para depois estudá-lo. A palavra “Reencarnação” significa que a nossa vida presente resulta de vidas anteriores, e que a nossa vida futura estará de acordo com as que já vivemos e a maneira como estamos agora vivendo146. Tudo na natureza mostra os esforços repetidos neste sentido, com intervalos periódicos de repouso, entre os quais é assimilada a experiência adquirida que serve de base para um novo esforço. O Homem é submetido à mesma Lei universal, e, portanto espiritual, vai seguindo fielmente as flutuações de nascimento, juventude, maturidade, velhice e morte, para renascer com um corpo novo, moldado talvez para um desígnio melhor do que foi possível no corpo anterior.147 Certos pesquisadores defendem que, durante os seis primeiros séculos de nossa era, a reencarnação era um conceito admitido por muitos cristãos. De acordo com eles, numerosos patriarcas da Igreja ensinaram essa doutrina e apenas no Segundo Concílio de Constantinopla, no ano 553, é que a reencarnação foi proscrita formalmente da igreja. Afirmaram ainda que Orígenes (185-253 d.C.), que influenciou bastante a teologia cristã, defendeu a idéia da reencarnação, além dos escritos de Gregório de Nisa (bispo da igreja Cristã do século IV) – testemunhos que são vistos por adeptos da Nesse sentido, ressalta Allan Kardec, “a doutrina da reencarnação, isto é, a que consiste em admitir para o homem várias existências sucessivas, é a única que corresponde à idéia que fazemos da justiça de Deus em relação aos homens que se acham numa condição moral inferior, a única que poderá explicar o futuro e assentar nossas esperanças, por isso que ela nos oferece o meio de resgatarmos nossos erros por novas provas. A razão no-la indica e os Espíritos no-la ensinam.”, cf. O Livro dos Espíritos, p. 122, tradução de Guillon Ribeiro, 83ª edição, Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 2002 147 Cf. http://www.portaldareencarnacao.com/secoes.php?c=8. Reencarnação significa a volta do Espírito à vida corpórea, mas num outro corpo, sem qualquer espécie de ligação com o antigo. Usa-se também o termo Palingenesia, proveniente de duas palavras gregas — Palin, de novo; genesis, nascimento. Cf. GREGÓRIO, Sérgio Biagi, Reencarnação, in http://www.ceismael.com.br/artigo/artigo095.htm, São Paulo, julho de 1999. 146 78 reencarnação como evidências de que ela era uma doutrina aceita no Cristianismo primitivo.148 A Bíblia “fala”, sim, em reencarnação, tanto quanto em bombardeiros nucleares feitos por velozes caças a jato. E não é tão difícil assim identificar os textos e abri-los com as chaves apropriadas – basta ter olhos de ver, basta levantar a letra e procurar o espírito que ela oculta. Para isso não é necessário nem mesmo ser Doutor da Lei; ao contrário, Jesus certa vez orou a Deus agradecendo-lhe haver o Pai escondido certas coisas dos sábios e as revelado aos pequeninos e humildes... Aliás, documentos históricos como a Bíblia podem admitir reinterpretações apoiadas em novos elementos informativos de absoluta confiança. Traduções forçadas para permitirem a acomodação de idéias pessoais de seus tradutores ou copistas têm sido comuns em todos os tempos e em muitos idiomas 149. Em resumo: em textos históricos há espaço para interpretar o que está escrito, mas não para acrescentar, subtrair, mutilar, deformar e falsear. As responsabilidades do pregador estão muito bem definidas e a advertência é claríssima: atenção para o espírito, cuidado com a letra morta. Muito cuidado, também, com a vaidosa erudição, que procura mais atentamente os meios de exaltar-se do que a singela e direta abordagem dos simples. Nicodemos, por exemplo, que era sábio e letrado, ignorava o sentido de importantíssimas passagens bíblicas, enquanto para os apóstolos – rudes pescadores, artesãos e trabalhadores braçais – a verdade se revelava em toda a beleza.150 Os teólogos católicos e evangélicos modernos e contemporâneos opõem-se a esta teoria, argumentando que não há citações de outros Patriarcas da Igreja e que as próprias afirmações de Orígenes e de Gregório de Nisa, que são trazidas pelos estudiosos espíritas e de outras crenças espiritualistas, não são por aquelas citadas senão para serem negadas. Na verdade, nenhum historiador da igreja católica – fosse ele crente ou não –, nem mesmo Allan Kardec defendeu isso. Por seu lado, da análise da atas conciliares do Concílio de Constantinopla (ano 381) pode-se constatar que os teólogos nele reunidos nem sequer citaram a doutrina da reencarnação – fosse para a afirmar ou para a rejeitar. Mesmo assim, a idéia persistiu entre pessoas que tinham acesso aos filósofos clássicos e ao contato com crenças antigas. Os Cátaros, no século XII, especialmente, tinham uma visão cristã original, onde a idéia da reencarnação era vista como verdade inquestionável. E foi esta crença, assim como o desenvolvimento material do sul da França onde os pretensos heréticos viviam, fato que ameaçava o poder ideológico e econômico da igreja de Roma, que levou à única cruzada em solo europeu, objetivando eliminar o pensamento cátaro com uma violência assassina que parecia prever as posteriores iniciativas macabras da Inquisição. 148 Cf. Wikipedia, in http://www.portaldareencarnacao.com/secoes.php?c=3. Prevendo isso e no firme propósito de preservar a integridade e pureza do seu texto, João escreveu em Apocalipse (22:18-19): "Eu testifico a todos os que ouvem as palavras da profecia deste livro: se alguém lhes acrescentar alguma coisa, Deus lhe acrescentará as pragas escritas neste livro; e se alguém tirar qualquer coisa das palavras do livro desta profecia, Deus lhe tirará a sua parte da árvore da vida e da cidade santa, que estão escritas neste livro." 150 Cf. MIRANDA, Hermínio C. A Reencarnação na Bíblia, op. cit. in http://www.portaldareencarnacao.com/secoes.php?c=1. 149 79 O movimento catarista foi um dos muitos precursores da inevitável reforma protestante de Lutero e outros. Posteriormente aos cátaros, outros movimentos e pessoas sentiram diretamente a mão de ferro da Inquisição, sendo o mais famoso processo o que envolveu Giordano Bruno, queimado em 1600, e que defendia idéias contra o sistema de crenças dogmáticas da Igreja de Roma e que defendia a idéia de reencarnação151. A reencarnação tem por finalidade o desempenho de tarefas especiais e particulares do Espírito encarnado, no sentido de aperfeiçoar-se neste ou em outro mundo. O Espírito resgata ou paga (expiação), através de seus sofrimentos, dívidas cármicas que abrangem sofrimentos físicos e morais, bem como suplanta provas para a própria purificação e adiantamento. Ao depurar-se nessas atividades, o Espírito colabora com os outros, impulsionando a civilização no sentido do progresso e da passagem evolutiva dos estados primitivos aos mais desenvolvidos.152 Os argumentos contrários Em assunto tão controverso e que, com certeza, desperta paixões e divisões, existem os que crêem ou não no processo reencarnatório, a ponto de se separarem em doutrinas e seitas as mais diversas. Para alguns, por exemplo, a reencarnação seria absurda porque abriria a possibilidade renascermos como animais. Tal crença teve origem no Egito e foi espalhada por grandes iniciados em conhecimentos ocultos, como Hermes Trimegistro (2.300 a.C.). Naquela época, em face da inexistência do papiro, seus ensinamentos eram gravados sob caracteres hieroglíficos nas colunas e paredes dos templos e pirâmides. A metempsicose também surgiu entre seitas indianas como o Vedismo, Jainismo, Hinduísmo e Budismo, principalmente. Do Egito e da Índia, ela se estendeu até a Grécia, levada pelo grande matemático e filósofo grego Pitágoras que, após 22 anos de ausência, retornou à Grécia para difundi-la. Apressa-se, contudo, a doutrina Espírita em contestar a metempsicose, argumentando que “o Espírito não retrograda, o rio não remonta à sua nascente153”. Isto é, a consciência humana sempre volta num corpo humano, embora os antigos que acreditavam no retorno do homem em forma de animal assim pensavam como se fosse um processo de punição temporária por causa de crimes ou condutas imorais primitivas. No entanto, o Espiritismo não aceita tal condição nem como castigo.154 151 Embora seja dever de justiça dizer que Kardec, em seu O Livro dos Espíritos, também se refere à reencarnação como “dogma” (ponto básico e irrefutável de doutrina religiosa), p. 121, pergunta, 171, op. cit. 152 Cf. GREGÓRIO, artigo citado. 153 Cf. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, op. cit., p. 302 (pergunta 612). 154 “Desde que o princípio inteligente atinge o grau necessário para ser Espírito e entrar no período de humanização, já não guarda relação com o seu estado primitivo e já não é alma dos animais, como a árvore já não é a semente. De animal só há no homem o corpo e as paixões que nascem da influência do corpo e do instinto de conservação inerente á matéria. Não se pode, pois, dizer que tal homem é a encarnação do Espírito de tal animal. Conseguintemente, a metempsicose, como a entendem, não é verdadeira.” Cf. KARDEC, op. cit., pp. 301-302. 80 Outra contestação, que envolve até certa reflexão científica, assinala que as memórias de vidas passadas raramente podem ser comprovadas e são imprecisas as lembranças reveladas pela regressão hipnótica. Contra tais idéias, são famosas as experiências do Dr. Ian Stevenson, psicanalista e um dos mais conceituados pesquisadores do tema, que, desde 1967 até sua morte, em 2007, e sem recorrer a processos hipnóticos, recolheu lembranças espontâneas de vidas passadas, especialmente em crianças. Stevenson fundou a Divisão de Estudos da Personalidade no Departamento de Psiquiatria e Ciências Neurocomportamentais da Universidade da Virgínia (EUA). Esse laboratório, que mais tarde se tornou conhecido como a Divisão de Estudos Perceptivos, é especializado em examinar crianças que se lembravam de vidas passadas, experiências de quase morte, aparições e comunicações pós-morte, experiências extracorpóreas e visões no leito de morte. Alguns céticos, porém, não aceitaram os casos apresentados pelo médico, por serem em sua maioria provenientes de países asiáticos, onde a crença na reencarnação seria muito difundida. Na verdade, Stevenson jamais acreditou que suas pesquisas provassem cientificamente a reencarnação, mas achava que, mais cedo ou mais tarde, surgiria um caso ideal que poderia comprovar o fenômeno.155 O potencial de imprecisão das lembranças durante as regressões hipnóticas foi provado com muita clareza num estudo conduzido por Nicholas Spanos, da Universidade de Carleton, no Canadá. Os pesquisadores hipnotizaram 110 estudantes, induzindo-os a recordar uma vida passada. Trinta e cinco descreveram a identidade de uma vida anterior e vinte foram capazes de apontar o ano específico e o país onde haviam estado. Mas a maioria apresentou detalhes incorretos.156 O lado mundano da regressão a vidas passadas tem se revelado, entretanto, ótimo negócio para se ganhar dinheiro na venda de livros (Shirley MacLaine, Dr. Brian Weiss) e conduzir consultórios de TVP (Terapia de Vidas Passadas). Para desbloquear traumas adquiridos ao longo de várias vidas passadas, há que se fazer um bom número de sessões de terapia, o que é financeiramente vantajoso para o psicólogo que as conduz.157 A Terapia de Vidas Passadas (TVP) ou regressão é um alegado processo de recuperação de vidas pré-uterinas. A terapia pode ser feita pela ajuda da hipnose, mas alguns especialistas não necessitam deste método. É sugerida por terapeutas da Nova Era nos Estados Unidos e por terapeutas espíritas e espiritualistas, no Brasil, para a cura de pessoas com problemas físicos ou psicológicos. Lembrando-se de experiências no passado ou traumas, uma pessoa pode identificar a origem de seu problema e curá-lo. Um dos mais famosos escritores sobre o assunto é Brian L. Weiss. Mas também já foi dito que a TVP pode ser desastrosa 155 Cf. PROPHET, Elizabeth Clare. Reencarnação: o elo perdido do Cristianismo, pp. 41-42, tradução de Urbana Rutherford e Fanny Rosa Zygband, Rio de Janeiro, Record: Nova Era, 1997. 156 Idem., pp. 45-46. 157 Cf. SOARES, Jorge A. B., “Regressão a Vidas Passadas”, disponível em http://www.geocities.com/paraciencia/regressao.html. 81 quando as memórias não são investigadas, como no caso de Bridey Murphy (que lembrava na verdade de forma altamente detalhada de acontecimentos ocorridos e presenciados na sua primeira infância). Por isso é que pesquisadores sérios como o Dr. Ian Stevenson e sua equipe trataram a questão de lembranças sobre vidas passadas de forma científica. A terapia de vidas passadas costuma utilizar a técnica de hipnose para alcançar experiências passadas não resolvidas. Terapeutas desse ramo afirmam que ajudam a resolver problemas havidos em vidas passadas que podem estar afetando a saúde física ou mental na presente existência.158 Entre os conhecidos terapeutas dos países de língua inglesa que utilizam e ensinam a TVP incluem-se Bárbara Brennan e Ken Page, nos Estados Unidos, e o Dr. John Plowman, no Reino Unido. No Brasil existe uma organização chamada SBTVP – Sociedade Brasileira de Terapia de Vidas Passadas que congrega grande quantidade de profissionais que aplicam e divulgam a técnica, oferecendo cursos destinados exclusivamente a psicólogos e médicos. Em quase todos os grandes centros do Brasil encontram-se psicólogos ou psiquiatras que aplicam a técnica. 159 Observação interessante, ainda contrária à reencarnação, é a que argumenta que se esse fenômeno fosse verdadeiro não poderia ocorrer nenhum acréscimo na população mundial e como esse aumento é evidente das duas uma: ou não existe reencarnação ou os reencarnados vêm de outros planetas, o que seria difícil de provar. Segundo Irving S. Cooper, todavia, tal argumento não se sustenta porque, se a população da Terra aumentou, isto significa apenas que a do mundo invisível decresceu proporcionalmente e a população total do planeta permaneceu a mesma. Além disso, se existem homens em outros planetas, é claro que seu nível de desenvolvimento deve ser diferente do nosso. Se é assim, podemos ter civilizações mais atrasadas e mais avançadas que a atual. No primeiro caso, encontraríamos condições tão primitivas que não favoreceriam o nosso desenvolvimento; no segundo, seríamos considerados selvagens ignorantes. É evidente que, para nós, o melhor mesmo é reencarnar na Terra, onde podemos corresponder ao nível alcançado pela civilização. Dessa forma, o aumento da população diz respeito a um compreensível processo de transferência espiritual.160 Figura exemplar do movimento Teosófico e padre da Igreja Católica Liberal, Cooper denuncia o caos moral e as desigualdades sociais que configurariam uma espécie de desespero do Universo. Sem a reencarnação – afirma ele – não haveria evolução das almas e, do ponto de vista físico, a Natureza seria apenas uma casa mortuária, o que favoreceria aos ateus, que crêem que Deus e as religiões não são necessários aos homens. Cf. “Terapias de Vidas Passadas”, Portal da Reencarnação, site disponível em http://www.portaldareencarnacao.com/secoes.php?c=11. 159 Idem. 160 Cf. COOPER, Irving S. Reencarnação: a Esperança do Universo, pp. 58 a 60, tradução de Syomara Cajado, São Paulo, Editora Difel, 1981. 158 82 Sendo o Universo uma grande escola, a humanidade teria de se habituar a subir uma escada gigantesca, sendo as mesmas almas individuais somente vestindo corpos diferentes. Cada experiência que enfrentamos faria parte dos ensinamentos, mas, evidentemente, nem todos assistiríamos às mesmas classes ou estudaríamos as mesmas lições, porquanto nem todos temos as mesmas idades de alma, embora tudo o que tenha vida – átomo, micróbio, planta, pássaro, animal, homem, super-homem ou anjo – possa passar por aquelas experiências, que são necessárias para garantir seu próximo passo ao encontro da evolução.161 Cooper ridiculariza a noção de céu, em que teríamos uma vida transcendental completamente entediante, um mundo sem comércio, livros, teatros, cinemas, passatempos, comida, bebida e sono, sem arte nem trabalhos manuais, sem construções ou eventos – enfim, nada que estimulasse a inteligência dos homens ou protegesse os seus interesses. A reencarnação convida-nos a resolver esse dilema: viver eternamente em algum paraíso indolente ou voltar à Terra, de vez em quando, a fim de participar do progresso do mundo e auxiliar nossos irmãos mais moços quando tropeçam e caem?162 No entanto, para as pessoas mais familiarizadas com a maioria das religiões monoteístas – Cristianismo, Judaísmo e Islamismo – a idéia de reencarnação parece distante e pode ser um tanto estranha. Isso porque o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo tratam o tempo de forma linear. A vida é simplesmente uma pequena etapa que determina a qualidade da vida após a morte. Para aqueles que acreditam em apenas uma vida seguida de uma existência eterna após a morte, a reencarnação é como uma difícil maratona a ser percorrida ao invés de uma pequena corrida.163 Argumentos religiosos e bíblicos Na verdade, é fato marcante notar que a Bíblia não toma posição clara e dura a favor ou contra a idéia de reencarnação. Como veremos a seguir, podemos encontrar no texto sagrado argumentos de aprovação ou reprovação ao fenômeno. Aliás, o cristianismo primitivo era tão variado como o é hoje, após a política de livre exame exaltada pelos protestantes. Quando todos podem opinar sobre religião como acham que devem, as interpretações pessoais, de grupos e seitas numerosas, mudam ao sabor dos ventos e isso fica mais característico quando a religião vira objeto de negócio, como no caso da aplicação da chamada Teoria da Prosperidade. Ganhar dinheiro tendo Jesus como fiador é o melhor trabalho do mundo, porque Ele se torna a pessoa física e jurídica mais garantida que existe! Só que Ele não encarnou na Terra, nesse vale de lágrimas, para produzir tais efeitos materialistas... Parece-nos que a razão fundamental de os católicos e protestantes não aceitarem a reencarnação está na crença, defendida por esses grupos, de que os homens 161 Idem, pp. 7 a 38. Idem, pp. 58 a 61. 163 Cf. DOWDEY, Sarah. "How Stuff Works - Como funciona a reencarnação". Publicado em 05 de dezembro de 2007, atualizado em 14 de abril de 2008), disponível em http://pessoas.hsw.uol.com.br/reencarnacao.htm,27 de novembro de 2008. 162 83 morrem apenas uma vez e esperam, obedientemente e dormindo, o julgamento final, no qual ressurgirão com o mesmo corpo de suas tumbas.164 A alma humana seria feita de substância divina, mas separada de Deus e o homem só pode se unir a Ele através da graça ou unção concedidas165. Como os espíritas consideram Jesus Cristo apenas um espírito muito evoluído através de diversas encarnações e posto por Deus na Terra como um missionário para purificar os homens e ensinar-lhes os caminhos do bem e do amor – Ele seria uma espécie de “governador espiritual desse planeta” e não o “homem-Deus, o Senhor e Filho do Pai que está nos céus” reivindicado por católicos e protestantes. Ainda, de acordo com os espíritas, a salvação não decorreria de uma especial graça divina, mas do esforço pessoal de cada indivíduo na procura da purificação do “pecado original”, que, na conceituação específica da doutrina, comportaria apenas os pecados e erros cometidos em encarnações anteriores. Uma vez liberto o homem das reencarnações, seu espírito deveria gozar de felicidade no Reino dos Céus, o que deixa de fora o conceito bíblico de inferno.166 De qualquer maneira, se não interpretarmos a Bíblia literalmente, como fazem os cristãos fundamentalistas167, não teremos uma condenação explícita da reencarnação e colheremos sobre o tema argumentos contra e a favor, o que nos faz suspeitar de que os quatro Evangelhos canônicos ou oficiais não estão absolutamente certos, porque existem manifestações conflitantes sobre o que Jesus ensinou.168 Um exemplo interessante de interpretação livre de trechos da Bíblia a favor da reencarnação é o que encontramos nas considerações do conhecido ufólogo e festejado escritor de ficção científica J. J. Benitez ao comentar o rapto do profeta Elias, arrebatado violentamente por um redemoinho, subindo ao céu através de um carro de fogo com cavalos de fogo e que não foi mais visto169. Assinala o autor que se Elias foi 164 Alguns grupos protestantes concebem a ressurreição dos homens, após o Juízo, como uma renascimento apenas do corpo espiritual, como sugere Paulo (1 Cor., 15:44). 165 “A visão católica é de que a alma não pode retornar a Deus, pois nunca fez parte de Deus. “Não fazemos parte da substância divina, mas somos criaturas de Deus, escreve o teólogo católico Claude Tremontant. Quando os Patriarcas da Igreja definiram a alma como algo separado de Deus, tornou-se impossível para eles aceitar a idéia rencarnacionista de que a alma pode unir-se a Deus.”, cf. PROPHET, op. cit., p. 57. 166 Cf. BITTENCOURT, Estêvão Tavares. Crenças, religiões, igrejas & seitas: quem são?, pp. 103 e 104, in Coletânea de artigos publicados na revista “O Mensageiro de Santo Antonio”, Santo André, São Paulo, 1989-1995. 167 Ver sobre isso o capítulo específico, a seguir... 168 “Os reencarnacionistas, por outro lado, raramente interpretavam a Bíblia literalmente. Buscavam os símbolos ocultos. Para eles, o Éden não era um local histórico, mas um estado eterno em que as almas faziam parte de Deus. As almas, de alguma forma, perderam este estado e foram colocadas na Terra para recuperá-lo. Como o corpo humano é finito e fraco, os reencarnacionistas acreditam que as almas pudessem precisar de mais de uma vida para completar este processo. Para eles, a reunião com Deus caminhava de mãos dadas com a idéia de reencarnação. Os reencarnacionistas viam Jesus como um homem que nos mostrou a forma de nos unirmos a Deus. Os ortodoxos, ao contrário, viam Jesus como alguém completamente diferente de nós – para ser adorado, não emulado.”, cf. PROPHET, p. 58, op. cit. 169 Cf. BENITEZ, J. J. O OVNI de Belém, pp. 219 e 220, tradução de Elisabeth Soares, Rio de Janeiro, Editora Record, 1993, comentando o célebre trecho bíblico, 2 Reis: 2:11: “Indo eles andando e falando, eis que um carro de fogo, com cavalos de fogo, os separou um do outro, e Elias subiu ao céu num redemoinho.” 84 arrebatado por volta do ano de 850 a.C. e que não voltou a ser visto, o que ocorreu com ele? Poderíamos dizer que morreu? Por que Jesus, então, afirmou de modo taxativo, no episódio da “transfiguração” aos discípulos, que Elias havia voltado?170 Benitez chama atenção para a passagem bíblica em que Jesus afirma que Elias voltara na figura de João Batista, que nascera pouco antes do Nazareno171. Ora – pergunta o autor – se Elias havia sido arrebatado por um “carro de fogo” 850 anos antes e ninguém tornara a vê-lo, como poderia ter renascido às portas do século I. Elias tinha que ter morrido primeiro para nascer depois como antecessor do Mestre. O que seria isso: em termos claros “reencarnação” ou “voltar a encarnar”. Por onde andou Elias durante os 850 anos antes de reencarnar em João Batista? O mistério torna-se impenetrável e não há uma só pista no texto sagrado para resolver o problema e qualquer teoria a respeito, conforme Benitez, não teria qualquer base racional.172 Outro enigma na argumentação bíblica, desta vez aproveitado pelas escolas de mistério e pelos cristãos gnósticos (que acreditavam só ser possível a salvação através do conhecimento e não da fé), é justamente o período de silêncio no qual Jesus permaneceu entre 12 e 30 anos, intervalo de tempo explicado pelos especialistas do Ocidente como aproveitado na ajuda ao pai, José, em simples trabalhos de carpintaria. Essa conversa pra boi dormir é repetida por católicos e protestantes sempre admitindo que o que a Bíblia tem por norma focalizar era a vida pública do Mestre, o seu magistério dos trinta anos à morte na Cruz, os quarenta dias em que conviveu com os discípulos como ressuscitado e sua subida aos Céus. O resto da vida do Mestre pouco importaria, o que convenhamos é facilmente questionável e não dá para convencer ninguém, principalmente os que acolhem no coração o sentido especialíssimo da vida do Cristo e de sua condição de divisor da história humana. Existem tradições na Índia, na Caxemira e no Tibete de que Jesus passou a juventude na Índia, onde estudou o hinduísmo e o budismo, entrando em polêmica com sacerdotes e foi reverenciado pelo povo que intuitivamente o seguia. Apolônio de Tiana, sábio grego do século I, conta-nos que Jesus foi estudar com os brâmanes, inclusive tendo contato com as teses sobre reencarnação. O texto de Apolônio foi descoberto, pela primeira vez, em 1887 por um escritor russo, chamado Nicolas Novovitch. Mais tarde, dois outros homens fizeram a mesma descoberta – o Swami Abhedananda, um professor hindu, em 1922; e Nicholas Roerich, um antropólogo russo, em 1925. Cada um deles trouxe uma tradução diferente do texto173. Um ano depois de sua descoberta, Novovitch foi a Roma, onde mostrou seu texto a um cardeal cujo nome não foi por ele mencionado. O cardeal disse-lhe que o texto não era novidade, porque o Vaticano possuía mais de 63 documentos, vindos da Arábia, Egito, Índia e China, sobre as atividades de Jesus no Oriente.174 170 Cf. Mt., 17: 11, 12 e 13 e Mc., 9:13. Cf. Mt., 11:14. 172 Cf. Benitez, op. cit., p. 222. 173 Cf. PROPHET, op. cit., p. 93. 174 Idem, p. 94. 171 85 O fato de Jesus ter ido estudar fora do contexto da Palestina não lhe diminui a grandeza, mas sugere que se o imitarmos poderemos nos aperfeiçoar na busca do “Verbo Divino” e que, independente de nossa idade e circunstâncias da vida, podemos sempre caminhar em direção à divindade, como fez o Mestre175. A omissão bíblica sobre o período silencioso de Jesus também nos sugere que Cristo formulou ensinamentos ocultos a seus discípulos, a fim de prepará-los para pregar a todos os povos, o que só aconteceu, efetivamente, após a iluminação em Pentecostes176. No entanto, a Igreja católica preferiu substituir a iluminação dos primeiros cristãos pelo seu estabelecimento como ordenamento institucional e clerical177. Essa opção, que não existia no início, porque os cristãos eram todos iguais, fez surgir uma classe de profissionais da fé, zelosos por transmitir um sistema de concepções herdadas, dividindo a Igreja em três períodos distintos: O primeiro, o período “apostólico” (30-70), de agremiação religiosa livre “de pessoas vivendo em pé de igualdade”, democrático por excelência; O segundo, o período subapostólico (70-100), em que surgiram os quatro Evangelhos posteriormente considerados oficiais; e O terceiro, denominado período “pós-apostólico” (depois de 100), em que surgiu a Igreja como instituição rigidamente hierarquizada. No terceiro período, os anciãos, os mais velhos, também denominados “episcopoi” (quer dizer, “vigilantes”), assumiram a direção colegiada das comunidades religiosas locais, delegando-a, finalmente, para determinado ancião mais eminente, que veio a ser o “episcopos”, por excelência, isto é, o bispo, o vigilante da comunidade178. Como esses cristãos não viam contradição básica entre Igreja e sociedade, redefiniram a natureza da Igreja à luz dos conceitos romanos de hierarquia179. Para a Igreja, disciplinada e hierarquizada, o homem nasce intrinsecamente mau, em virtude de seu pecado de origem180. O homem, incapaz de governar-se a si 175 Idem, p. 97. Embora o episódio de Pentecostes seja festejado pelos católicos, não tem o mesmo impacto para a interpretação católica como a Santa Ceia. Já os Pentecostais consideram o episódio da vinda do Espírito Santo, em forma de línguas de fogo, sobre os apóstolos (At., 2: 3), como o ponto mais alto do Cristianismo, onde ele realmente começou, porque, logo depois desse evento, foram convertidas 3.000 pessoas e depois mais 5.000. No entanto, segundo Huberto Rohden, “não convém ao clero (católico) adotar o Pentecostes como a alma do Cristianismo, porque aqui não há privilégios nem monopólios, e por isso não há aumento de poder e prestígio para a sua classe.” (Cf. ROHDEN, op. cit., pp.77 e 78) 177 Segundo Alexandre Faivre, o termo grego “kleros” designava, originalmente, a “sorte” ou instrumento utilizado para tirar a sorte e, por extensão, o quinhão, legado ou posição que cabia a alguém, seja por sorteio, herança, conquista ou por um estatuto ou encargo social (cf. FAVRE, Alexandre. Os Leigos nas Origens da Igreja, Petrópolis, Editora Vozes, 1992, p. 20, apud. MARTINS, Pinheiro. Dos Apóstolos aos Bispos, Representações de Igreja no Cristianismo Primitivo, p. 16, Rio de Janeiro, Edições CELD, 1998). 178 Cf. GUIGNEBERT, Charles. El Cristianismo Antíguo, México, Fondo de Cultura Económica, 1988, pp. 128-146, apud. MARTINS, Pinheiro, op. cit., p. 18. 179 Cf. RENAN, Ernest. Os Evangelhos e a Segunda Geração Cristã, Porto, Lello & Irmão Editores, s/d, pp. 171-185, apud. MARTINS, Pinheiro, op. cit., p. 21. 180 Jean Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo e teórico político, um dos maiores expoentes do movimento iluminista francês, procurou romper com a tradição da Igreja, de considerar o homem intrinsecamente mau, por causa do pecado original, argumentando em seu livro célebre “O Contrato 176 86 mesmo, deveria submeter-se à autoridade da Igreja para obter finalmente a graça, mesmo que se sentisse injustiçado no mundo. Os hereges (desviados da verdade) deveriam ser corrigidos e forçados a aceitar a fé, porque a Igreja exigia obediência absoluta dos fiéis, escorada na confusão entre o seu poder espiritual e o poder dos Estados nacionais europeus. Já o cristianismo primitivo era fundamentalmente orientado para a ascensão aos céus, por causa do destino de Jesus que ao ser elevado se identificava com o Ser Divino. Ao denominar-se “Filho do Homem”, Jesus indicava que Ele também recebera tal poder ou fora transformado em Rei, descrevendo a visão mística na qual o Filho do Homem se transformava em Deus. Ao afirmar, “Eu e o Pai somos Um”181 e “ninguém vem ao Pai senão por mim”182, queria dizer, nenhum homem pode alcançar a união divina exceto identificando-se com o Cristo. Essa união mística – que nós também podemos experimentar – seria parte do ensinamento secreto de Jesus. 183 – QUADRO 2 – A BÍBLIA E A REENCARNAÇÃO REENCARNAÇÃO ARGUMENTOS BÍBLICOS A FAVOR REENCARNAÇÃO ARGUMENTOS BÍBLICOS CONTRA “...não adorarás [as imagens de escultura], nem lhes dará culto; porque eu, o Senhor, teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem, e faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos.” (Dt., 5: 9 e 10); “Não vos maravilheis disto, porque vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão: os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que tiverem praticado o mal, para ressurreição do juízo.” (Jo., 5: 28-29); “Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te conheci, e, antes que saísse da madre, te consagrei e te constituí profeta às nações.” (Jr., 1:5); “Assim o homem, quando dormir, não ressuscitará, até que o céu seja consumido, não despertará, nem se levantará de seu sono.” (Jó., 14: 12); “Quando vos disserem: Consultai os “Em verdade vos digo: entre os necromantes e os advinhos, que chilreiam nascidos de mulher, ninguém apareceu e murmuram, acaso não consultará o Social” (1762) que “o homem nasce bom, mas é a sociedade que o corrompe”. Ele se auto-considerava um cristão rebelado, criado na rígida ética protestante do século XVII, rejeitando a religião revelada. Fortemente censurado, tornou-se adepto de uma religião natural, em que o ser humano poderia encontrar Deus no próprio coração. 181 Jo., 10: 30. 182 Jo., 14: 6. 183 Cf. PROPHET, op. cit., pp. 266-267. 87 maior do que João Batista; mas o menor no reino dos céus é maior do que ele. Desde os dias de João Batista até agora, o reino dos céus é tomado por esforço, e os que se esforçam se apoderam dele. Porque todos os profetas e a lei profetizaram até João. E, se quereis reconhecer, ele mesmo é Elias, que estava por vir.” (Mt., 11: 11 a 14); povo ao seu Deus? A favor dos vivos se consultarão os mortos?” (Is., 8: 19); “Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus. Perguntou-lhe Nicodemos: como um homem pode nascer sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez? Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo: Quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é Espírito. Não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo.” (Jo. 3: 3 a 7); “Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos; esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso corpo mortal, por meio do seu Espírito, que em vós habita.” (Rom., 8: 11); “Os vossos mortos e também o meu cadáver viverão e ressuscitarão...” (Is., 26: 19); “Depois de dois dias, nos revigorará; ao terceiro dia, nos levantará e viveremos diante dele.” “Então, Jesus respondeu: De fato, (Os., 6: 2); Elias virá e restaurará todas as coisas. Eu, porém, vos declaro que Elias já veio, “...abriram-se os sepulcros e muitos e não o reconheceram; antes, fizeram com corpos de santos, que dormiam, ele tudo quanto quiseram. Assim, também ressuscitaram; e, saindo dos sepulcros o Filho do homem há de padecer nas depois da ressurreição de Jesus, entraram mãos deles. Então os discípulos na cidade santa e apareceram a muitos.” entenderam que lhes falara de João (Mt., 27: 52 e 53); Batista.” (Mt., 17: 11 a 13); “...tendo esperança em Deus, como “Chegou isto aos ouvidos do rei também estes a tem, de que haverá Herodes, porque o nome de Jesus já se ressurreição, tanto dos justos quanto de tornara notório, e alguns diziam: João injustos...” (At., 24: 15); Batista ressuscitou dentre os mortos, e, por isso, nele operam forças miraculosas. Outros diziam: É Elias; ainda outros: é “Portanto, assim como por um só homem profeta como um dos profetas. Herodes, entrou o pecado no mundo, e pelo pecado porém, ouvindo isto, disse: é João, a a morte, assim também a morte passou a quem mandei decapitar, que ressurgiu.” todos os homens, porque todos pecaram.” (Mc, 6: 14 a 16); (Rom., 5: 12); “ Por que, assim como em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo.” (1 Cor., 5: 12); “Doutra maneira, que farão os que se batizam por causa dos mortos? Se, “Disse-lhe Jesus: Eu sou a absolutamente, os mortos não ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ressuscitam, por que se batizam por causa ainda que morra, viverá; e todo o que deles?” (1 Cor., 15: 29); vive e crê em mim não morrerá, 88 eternamente.” (Jo., 11: 25 e 26); “Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, que amanhã morreremos.” (1 “Se a nossa esperança em Cristo se Cor., 15: 32); limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens.” (1 Cor., “Eis que vos digo um mistério: nem todos 15: 19); dormiremos, mas transformados seremos todos, num momento, num abrir e fechar “Porque é necessário que este corpo d’olhos ao ressoar a última trombeta. A corruptível se revista da trombeta soará, os morto ressuscitarão incorruptibilidade e que o corpo mortal se incorruptíveis, e nós seremos revista da imortalidade. E quando este transformados.” (1 Cor., 15: 51 e 52); corpo corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal se “E assim como aos homens está ordenado revestir de imortalidade, então se morrerem uma só vez, vindo, depois disso, cumprirá a palavra que está escrita; o juízo.” tragada foi a morte pela vitória. Onde (Hb., 9: 27); está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (1 Cor., 15: 53 e “Pois também Cristo morreu, uma única 54). vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no Espírito.” (1 Pedro 3: 18); “Guardai-vos no amor de Deus, esperando a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, para a vida eterna.” (Jd., 1: 21); “Os restantes dos mortos não reviveram até que se completassem os mil anos. Esta é a primeira ressurreição. Bemaventurado e santo aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre estes a segunda morte não tem autoridade; pelo contrário, serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com ele os mil anos.” (Ap., 20: 5 e 6); “Quanto, porém, aos covardes, aos incrédulos, aos abomináveis, aos assassinos, aos impuros, aos feiticeiros, aos idólatras e a todos os mentirosos, a parte que lhes cabe será no lago ardente como fogo e enxofre, a saber, a segunda morte.” (Ap., 20: 8). 89 No ambiente cultural do século I predominava a língua grega, assim como, hoje, temos o inglês como idioma universal. A influência grega chegou a Jerusalém, onde a aristocracia judaica vivia em casas de estilo grego. No século II, chegou-se mesmo a construir um anfiteatro e um ginásio com linhas e designers gregos. Séforis, uma importante cidade de trinta mil habitantes, onde falavam grego, desenvolveu-se a apenas cinco quilômetros – uma hora de caminhada de Nazaré – onde vivia Jesus184. O Mestre falava aos doutores em grego, aos romanos em latim e ao povo, em aramaico. Certamente, pôs-se também em contato com as crenças judaicas sobre a vida depois da morte185. Nos longos e difíceis séculos entre o tempo do rei Davi e o de Jesus, os israelitas foram conquistados várias vezes e absorveram muitas idéias de seus conquistadores. Tanto os judeus no exílio, como nos tempos da Palestina, aceitavam, sem dúvida, as idéias de recompensa e castigo, percebendo que nem sempre as boas obras eram recompensadas e que nem sempre os maus eram castigados. A idéia de reencarnação fazia parte do Judaísmo primitivo e nos tempos de Cristo o Judaísmo místico e rabínico eram uma coisa só, o que significa que os rabinos que fundaram o Judaísmo tradicional eram também místicos186. Se Jesus algum dia falou sobre a reencarnação e a união divina, deve ter absorvido idéias dos grandes mestres judeus da época. O historiador do século I, Flávio Josefo, conta-nos que os essênios (facção mística minoritária de judeus, em que Jesus aparentemente nasceu) levavam o mesmo tipo de vida que os seguidores de Pitágoras, matemático e filósofo grego que acreditava piamente na reencarnação e na metempsicose. Os essênios acreditavam que a alma era imortal e preexistente. Aceitavam também que a alma era separada do corpo – assinalava Josefo. As almas estariam “unidas aos seus corpos como se estivessem em prisões”, mas quando “libertadas das amarras da carne”, elas se regozijavam e se elevavam às alturas.” 187 Depois da destruição de Jerusalém pelos romanos no ano 70 e dos judeus mais uma vez terem se dispersado, os fariseus passaram a ser o centro do Judaísmo rabínico. Se Josefo estiver correto sobre a crença dos fariseus na reencarnação, tal crença com certeza fazia parte do Judaísmo pré-cristão. 188 Como os fariseus e essênios compartilhavam da crença, Jesus, quer tenha vivido só na Palestina ou tendo visitado o Oriente, deve ter absorvido a idéia da reencarnação, recolhida do misticismo judaico e que serviu de porta de entrada para o conceito de reencarnação no Cristianismo.189 As palavras “sinagoga” (lugar de adoração) e “Sinédrio” (corte suprema hebraica) têm origem grega. Já o vocábulo “Palestina” tem origem no latim, “Phalestina”, o que para os romanos era uma perfeita ironia, porque queria dizer popularmente: “lugar onde moram os filisteus”. Os romanos sentiam-se superiores aos judeus e queriam equipará-los aos que não professavam a sua fé num Deus único. 185 Cf. PROPHET, op. cit., pp. 74 e 75. 186 O misticismo que pressupõe um contato direto do homem com Deus pode ter sido interpretado como uma violação ao Primeiro Mandamento, revelado a Moisés, “não terás outros deuses diante de mim” e, por isso, os místicos corriam o risco de serem acusados de blasfêmia (cf. PROPHET, op. cit., p. 64). 187 Apud. PROPHET, op. cit., p. 68. 188 Idem, p. 69. 189 Idem, pp. 87 e 88. 184 90 Finalmente, o argumento que parece ser definitivo nos textos sagrados contra a reencarnação e repetido no catecismo romano, de que Cristo só morreu uma vez e assim todos nós o faremos, vindo depois disso o Juízo190, não pode ser entendido de maneira literal. E não seria melhor tal atitude porque se nos reportarmos aos milagres de ressurreição realizados por Jesus – no caso de Lázaro e da filha de Jairo, descritos na Bíblia –, não teriam os dois morrido no curso natural da vida, tendo assim falecido duas vezes?191 Portanto, não existe, de fato e em verdade, nenhum registro, nos textos dos Evangelhos e dos apóstolos, no Livro do Apocalipse ou nos textos apócrifos ou gnósticos qualquer menção de que Jesus tenha pessoalmente condenado, e de maneira categórica, a idéia de reencarnação. 192 Os argumentos científicos Não há nada que seduza mais o homem contemporâneo e descrente, aquele devotado à idolatria dos objetos e do bem-estar do capitalismo, do que ouvir argumentos baseados na ciência e que provem alguma coisa. Mesmo que se assinale que muitos cientistas se enganaram ou que suas teorias foram superadas com o tempo por outras, eis que o homem, cercado de idéias antiDeus, se sente mais protegido quando se depara com uma “verdade” científica. Tal verdade então torna-se uma evidência e acalma os ânimos. Nesse sentido, a fé como objeto de crença é elegantemente desprezada, em nome do bom senso do que é tangível ou, mesmo que invisível, possa ser explicado por idéias da física, da química e da biologia. Não adianta argumentar, por exemplo, como muitos estudiosos o fazem, que a idéia de reencarnação seria muito mais justa do que ressurgir em carne e osso após o Juízo, porque toda humanidade experimentaria uma segunda ou mais chances de consertar o próprio destino espiritual. Tal argumento possuiria apenas um apelo moral, mas sem confirmação científica, dado que a natureza por si é profundamente injusta, com os seus terremotos, enchentes e desastres naturais. Para a mentalidade moderna, a reencarnação parece, ainda, um tanto absurda. Sob implacável pressão da ciência materialista, nós nos identificamos quase totalmente com o corpo físico, de modo que a idéia de que uma parte de nós sobreviva à morte do corpo é difícil de engolir. Ainda mais complicado é imaginar um renascimento dessa parte num novo corpo físico. A imagem da alma deixando o corpo que morre e entrando num feto prestes a nascer parece particularmente incômoda, porque pressupõe uma alma existindo independentemente do corpo.193 No entanto, desde a popularização da física quântica, em fins do século XX, os modelos das partículas elementares vêm lançando luz sobre alguns argumentos que nos 190 Cf. Hb., 9: 27. Idem, pp. 107 e 108. 192 Idem, pp. 108 e 109. 193 Cf. “Física Quântica”, disponível em http://www.portaldareencarnacao.com/secoes.php?c=5. 191 91 aproximam da reencarnação. Provou-se que as partículas são estáveis, com duração de vida praticamente indefinida e contêm, dentro de si, um espaço-tempo de natureza especial. O tempo particular das partículas é diferente do tempo ordinário, também chamado de tempo da matéria ou entrópico194, o que implica dizer que “algumas dessas partículas encerram um espaço e tempo de Espírito, coexistindo com o espaço e o tempo no qual toda a Física, desde Aristóteles, tem se esforçado para descrever a Matéria e sua evolução.”195 Segundo o físico francês e Prêmio Nobel, Jean Charon, citado acima, as partículas espirituais são estáveis, ou seja, a Física constata que (salvo acidente excepcional que provoque sua desintegração) a duração da vida dessas partículas é comparável à duração da vida inteira do Universo. Vale dizer, todas as informações que, durante nossa vida humana, armazenamos nessas partículas espirituais entram na constituição de nosso corpo e vão sobreviver além de nossa morte corporal, praticamente pela eternidade. Se convencionamos chamar Deus ao princípio de eternidade, então o que acabamos de dizer nos permite afirmar que Deus, enquanto Espírito ligado ao princípio de eternidade, “existe” e, de resto, que cada um de nós é “consubstancial” com Deus.196 As partículas de nosso corpo, sendo eternas, datam praticamente do começo do mundo e o Espírito que chamamos “nosso” vive o que vive o próprio Universo: cada um de nós possui um “Eu” coextensivo à eternidade do tempo, no passado assim como no futuro. Assim, vivemos no plano espiritual aquilo que vive o próprio Universo.197 Mesmo os ateus, que consideram que percebemos o mundo porque ele existe, haverão de concordar que essa experiência que temos do mundo exterior só pode ser percebida através de pensamentos, isto é, Espírito. De acordo com Charon, precisamos nos livrar imediatamente, no entanto, da idéia de que a obediência estrita das partículas de matéria às leis puramente físicas seja um argumento contra um psiquismo eventual associado a elas.198 Ora, o que resta de nosso corpo após a morte? – pergunta certeiramente o físico francês. Ele argumenta que se pensarmos nas partículas elementares, tais como os prótons ou os elétrons, podemos dizer que toda a matéria do nosso corpo se conserva depois de nossa morte; a Física nos confirma que tais partículas são “estáveis”, isto é, tem praticamente uma duração de vida infinita e é dentro destas partículas “... os fatos que acontecem no nosso espaço ordinário, o espaço da matéria, obedecem a um famoso princípio chamado ‘segundo princípio da termodinâmica’, pelo qual os fenômenos físicos não podem se desenvolver fazendo decrescer sua entropia. Explicando sucintamente, isto quer dizer que a energia utilizável no espaço do nosso Universo diminui continuamente à medida que o tempo passa e que, num dado momento, teremos consumido toda a energia disponível no Universo [de modo que] nosso Universo da matéria está fadado, cedo ou tarde, a uma morte certa.”, cf. CHARON, Jean E. O Espírito, Este Desconhecido, pp. 30 e 31, tradução de Cristina Larroudé de Paula Leite, 2ª edição, São Paulo, Edições Melhoramentos, 1980. 195 Cf. CHARON, op. cit., p. 31. 196 Idem, p. 32. 197 Idem, pp. 33 e 34. 198 Idem, pp. 23 e 65. 194 92 microscópicas de nosso corpo vivo que é necessário buscar e entender o Espírito, o nosso Espírito.199 E ele continua: “... neste caso, nosso “Eu”, depois de nossa morte, não só não desaparecia mas, ao contrário, teria se multiplicado e continuaria até a eternidade sua aventura espiritual, participando ocasionalmente de outras existências vivas ou pensantes, por vezes bem longe de nosso berço terrestre, tendo o Universo inteiro por moradia.”200 Conforme Charon, não poderíamos entender o Universo de uma forma mecânica, como se as estruturas vivas fossem fabricadas por mero acaso. A ordem só pode nascer da própria ordem, isto é, é necessário que “alguém” reorganize os pedaços na ordem certa. Somente um espaço “ordenado” pode ser “ordenador” da Matéria e dar nascimento a estruturas e evoluções ordenadas dela mesma. Assim, o Espírito jamais poderá ser interpretado como uma “secreção da Matéria”, por mais complexa que esta seja. Atrás de cada obra-prima é necessário um arquiteto.201 A física moderna chegou a conclusões similares. A energia é sempre conservada. Quando um objeto físico queima ou apodrece, a energia, ou configuração da energia, ou informação contida naquele objeto físico não é destruída. Simplesmente passa para uma outra forma. Isso é na verdade o mesmo o que acontece em relação às almas. Uma alma é vida e energia, como declara a Torá: “[D'us] soprou uma alma viva em suas narinas.” De acordo com isso, vemos novamente que a soma total de encarnações de todas as gerações é realmente aquela de uma grande alma – Adam – que passa por muitos corpos. Em cada geração, e em cada corpo, assume uma forma diferente. No fim, qualquer mudança que ocorrer, ocorrerá nos corpos.202 Com a autoridade de prêmio Nobel, físico teórico e divulgador da física neognóstica, Charon adianta-se na questão da reencarnação sob o ponto de vista científico: É fato fundamental que a Morte não é o fim de nossa participação nos processos do Universo. A aventura espiritual do morto prossegue quando os elétrons de seu corpo, depois de terem permanecido mais ou menos nesse estado de sono profundo “renascem” participando da matéria de um outro ser organizado vivo, nos reinos do vegetal, do animal ou do Homem. Então é de alguma forma uma “reencarnação” do “Eu” em um novo ser vivo. No decorrer destas sucessivas vidas, nada da experiência espiritual anterior é esquecido.203 199 Idem, p. 78. Idem, p. 79. 201 Idem, p. 99. 202 Cf. Reencarnação de Almas, baseado num artigo de Rabi Avraham Brandwein, disponível em http://www.chabad.org.br/biblioteca/artigos/almas/home.html. 203 Cf. CHARON, op. cit., p. 110. 200 93 Quando as Escrituras nos apresentam, por exemplo, a gênese do mundo, anunciando que a luz foi criada “no começo”, não é notável aproximar esse ponto de vista daquele que os cosmologistas proclamam hoje, apoiando-se na Relatividade geral de Einstein, no que concerne ao “começo” do nosso Universo? Ele teria sido, nesta época longínqua, coberto por uma radiação eletromagnética de alta temperatura, o que na realidade significa que estava coberto de luz; como as Escrituras, nossos astrofísicos nos dizem também que a matéria só foi criada mais tarde, depois da luz.204 Isto quer dizer, finalmente, que deve haver alguma coisa de verdadeiro e profundo nas teorias da Reencarnação. Os elétrons, que pertencem aos seres vivos no seu nascimento, possuem níveis de informação vizinhos (senão idênticos). Este nível pode, sem dúvida, se elevar durante a existência desse ser vivo. Dependendo da maneira pela qual será feita esta experiência vivida, o nível informacional se elevará mais ou menos. Depois de um certo número de vidas assim vividas na mesma espécie viva, o nível informacional dos elétrons se tornará suficiente para que eles possam ser aceitos em uma espécie viva caracterizada por elétrons de nível informacional mais elevado. Enquanto os elétrons não tiverem atingido este nível, serão rejeitados e deverão viver ainda uma ou mais existências em uma espécie similar àquela que acabaram de deixar. Está claro, portanto, a utilidade de se esforçar por fazer crescer o próprio nível de informação durante cada existência vivida, visto que o meio essencial de progressão do psiquismo, isto é, também da consciência, tanto na escala do Universo inteiro como na do “eu” do elétron individual, é fazer crescer sempre mais a consciência do espaço do Espírito.205 E conclui Charon, na esteira de São Paulo: “Nossa profunda consciência graças a esta pluralidade das partículas eternas que a contêm, pertence a toda esta imensidão do tempo e do espaço. Morte contra a Natureza talvez tenha chegado a sua derrota!”206 204 Idem, p. 149. Idem, pp. 182 e 183. 206 Idem, p. 103. Comparar com a frase de São Paulo: Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (1 Co., 15: 53 e 54). 205 94 6º INTERVALO – A PROMESSA Fui capaz, então, pela primeira vez na vida, de reunir forças para além de meus limites, fazer uma real promessa a Nossa Senhora e Jesus, reais observadores, dignitários de meu sofrer. Prometi-Lhes que usaria de todas as minhas forças, de todos os talentos com que fui aquinhoado, para ajudar os outros. Afinal, ser cristão, na realidade, é descobrir o outro. Para ser mais racional e objetivo nessa ação, teria que ser mais determinado e sereno em minhas ações, já que, de certa forma, o meu voluntariado sempre fora esporádico e desconcentrado. Em troca, pedia-Lhes paz de espírito e enterrar em definitivo os velhos hábitos que estavam machucando meu peito e me fazendo descer vertiginosamente a ladeira de estima social. A Deus, inclusive, penso que possa pedir qualquer coisa, gratuitamente, porque é um costume meu ter visto várias pessoas baterem a porta em minha cara, negando-me boas oportunidades. E isto desde jovem, o que me obrigou a ser, de certa maneira, um trabalhador por conta própria, um empreendedor que colheu alguns êxitos. Por isso, agora, peço o colinho de Deus, porque me sinto fraco e lesionado. Nessa diáspora de sofrimento no deserto, rogo-Lhe meu Senhor que me carregue nos momentos de desespero e me ajude a contornar as pedras de tropeço e as rochas de ilusão no caminho, porque não sou profeta: não vejo as coisas de cima. Há seis anos, no fui viver na classe média, metida a aristocrata, da zona norte do Rio de Janeiro. O lema geral da vida desse tipo de classe era outro: “o importante é o resultado”. Não importam as tentativas, como prescrevia o poeta inglês Eliot, mas o ponto de chegada. Se você não é vencedor, então... fora! E o resultado veio, enfim, com a falência e a destruição de um sonho que empolgava toda a família: a empresa, que sustentava a todos, faliu. E com o resultado afundava também um titanic de esperanças... Nesse meu último casamento destroçado, convivia com uma mulher que fumava quase dois maços de cigarros por dia, homenageando os médicos tabagistas de seu passado: o pai, que morreu de um grave câncer no pulmão e o marido, do qual era viúva, que morreu lamentando os 70 mil cigarros que fumara, ao longo da profícua existência. Essa vontade resistente de repetir padrões e manter as tradições, mesmo que irracionais ou condenados a gerar uma destruição futura – eis aí uma das melhores teimosias da classe média. E, se enfim, meu Deus, o dinheiro tornou-se meu inimigo, assim como para toda a combalida classe média, porque irei gastar 18 horas do meu dia para cuidar dele e conservá-lo? Esse seria um vício sem remissão ou abstinência. Adorar o dinheiro é o mesmo que adorar o diabo. É aí, nesse vício, que ele se torna o maior vencedor! Creio firmemente que sob a ditadura do dinheiro tudo se transforma em prisão. E acho que aí começa o Cristianismo... 95 – 10 – A HISTÓRIA DA LUZ “A antiga iniciação repousava sobre uma concepção do homem mais sadia e ao mesmo tempo mais elevada do que a nossa. Nós separamos a educação do corpo da educação da alma e do espírito. Nossas ciências físicas e naturais, muito avançadas, fazem abstração da alma. Nossa religião não satisfaz as necessidades da inteligência. Nossa medicina não quer saber nem de alma, nem de espírito. O homem contemporâneo busca o prazer sem felicidade, a felicidade sem ciência, a ciência sem sabedoria. A antiguidade não admitia essa separação.” Édouard Schuré 96 A palavra mistério (em grego, “mysterion”: o que é conhecido só por iniciados) faz com que surja na mente, de modo instantâneo, a idéia de sobrenatural ou a mera lembrança de estados contemplativos, facilmente reconhecíveis no comportamento de monges, guias espirituais e santos, envolvidos de uma forma ou de outra na incessante busca de Deus. Tal imagem do mistério, corriqueira e vulgar, além de não mostrar toda a riqueza de significados do termo, leva muitos à confusão quanto ao alcance dos fenômenos místicos e de seus verdadeiros limites. O estabelecimento da confusão e do empobrecimento progressivo do significado da palavra pode ser justificado pela visão de mundo que costuma opor ciência e misticismo, materialismo e idealismo, realidade e metafísica como se fossem adversários irreconciliáveis. Para os partidários dessas divisões filosóficas estanques, que já fincou inclusive sólidas raízes culturais no mundo ocidental, o portador ou cultivador dos mistérios é classificado como um alienado irrealista, incapaz de interpretar o mundo e obter um sentido para a própria vida sem antes recorrer a teses de fundo teológico e transcendental. Místico, por conseguinte, seria aquele indivíduo que precisa sempre de uma instância além da Natureza para explicar os fatos sensíveis e verificáveis, bem como quaisquer acontecimentos não previstos pelas leis conhecidas. Existem até os que imaginam ser místico o que tem caráter apenas mítico, isto é, relacionado a fábulas, lendas e tradições ancestrais, ligando inadvertidamente o misticismo à mitologia. A própria língua portuguesa registra o cunho pejorativo emprestado a certas derivações da palavra, a ponto de o verbo mistificar equivaler, em uso corrente, aos verbos enganar, burlar e induzir a erro. Todavia, não é somente ao nível do significado que se combate a idéia de mistério na cultura ocidental. O principal argumento de seus opositores é que o comportamento dos que crêem nos mistérios sempre substituiu a falta de iluminação científica da humanidade através dos tempos. Quer dizer, do mesmo modo que o homem primitivo endeusava o trovão e o fogo, por não compreende-los, infelizmente também os homens ditos civilizados e evoluídos teriam procurado entender fatos inexplicáveis, lançando mão de doutrinas fantasiosas. Para tais críticos e descrentes, devemos abandonar a interpretação do desconhecido através do sobrenatural, que se assemelha ao pensamento primitivo, para acolher definitivamente a lógica da ciência e da verificação de fatos e hipóteses através da experiência. Outro fator relevante para a descrença no mundo ocidental pode ser percebido na freqüente confusão entre os fatos de natureza mística e os fatos religiosos. A revelação religiosa, apreendida pela fé, refere-se a um Deus uno e pessoal, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, mas que se encontra acima da Natureza por ser perfeito. Por sua vez, a Natureza, como instância criada, seria sujeita aos aperfeiçoamentos da evolução, caracterizando-se por definição como imperfeita. A consciência religiosa, em conseqüência, cultua o sobrenatural, gerando o comportamento religioso comum, que subordina a razão à fé e promove o retorno a Deus a partir da observância de um código moral construído através da própria crença. Esse é o procedimento básico adotado pelas religiões monoteístas, derivadas das tradições judaico-cristãs. 97 Já o misticismo não convive com o sobrenatural e sim com o mistério. Misticismo é, na verdade, a vivência e análise do mistério, daquilo a que só tem acesso o iniciado, isto é, o reino dos fatos inexplicáveis e das leis desconhecidas para o atual estágio de desenvolvimento da humanidade. A consciência mística procura apreender o que está além do atualmente real, quer no passado, quer no futuro. O comportamento místico, partindo da premissa de que Deus (do sânscrito “devas”, luz) está em toda parte e também dentro do homem, utiliza-se da introspecção e da razão para encontrálo. O Deus místico não está acima mas dentro da Natureza: é impessoal e se autoengendra no seio de sua Unidade, o Universo, palavra que vem do grego e significa “vertido do Um”. O mistério só permanece oculto ao não iniciado, àquele que por vários motivos não chegou ao domínio do verdadeiro conhecimento. E o verdadeiro conhecimento é sempre conservado e transmitido por uma minoria, por uma elite de iluminados avessa à publicidade, denominada ordem ou egrégora mística. A função primordial dessa elite é proteger o conhecimento de mãos ímpias ou mentes impuras, cujos objetivos censuráveis ou malignos poderiam pôr em risco a segurança e o futuro da humanidade. Tal prática é comparável à decisão de diversos governos que já possuem arsenais atômicos de impedir o acesso de organizações terroristas a suas armas estratégicas, porque isso poderia resultar na detonação indevida de armas nucleares táticas e em desastres que poriam em risco a estabilidade política mundial. Empreender, por outro lado, estudos sobre fenômenos inexplicáveis ou teorizar sobre leis ainda desconhecidas conduz, até sem querer, o pesquisador a conviver com a atmosfera do pensamento místico. Enquanto buscador do mistério, o homem coloca a intuição no mesmo plano da razão, sabendo que o caminho a seguir é aquele que o eu interior lhe indicar. Bohr, o famoso descobridor da estrutura do átomo, sonhou, por exemplo, com a imagem dessa estrutura e a desenhou ao despertar. Tal fato ocorreu após muitas pesquisas que, com o sonho, vieram a se confirmar: a estrutura sonhada ou intuída tornou-se real. Qualquer disciplina, por conseguinte, que adote a análise de fatos inexplicados e misteriosos para seu objeto, sem recusá-los mesmo que ainda não aceitos pela realidade científica comprovada ou pela mentalidade religiosa livremente aceita, pertencerá, sem dúvida, ao campo da reflexão mística. Entretanto, como vivemos numa sociedade capitalista sob furiosa idolatria pelo dinheiro, o que resulta, na prática, em procurar crer que Deus morreu há muito tempo, os guardadores do conhecimento arcano ficam cada vez mais cautelosos na conservação de sua sabedoria. Embora percebam os sinais de que a humanidade passa por grande perigo e é necessário desvelar alguns véus antes que seja tarde, os místicos sabem que poderão ser ridicularizados pelos bárbaros, cuja ciência imediatista e sensorial elegeu o deus da razão, o lado esquerdo do cérebro, passando a adorá-lo como único meio confiável de atingir o verdadeiro conhecimento. Ocorre que os adeptos das escolas de mistério não desprezam a razão mas a colocam no mesmo plano da intuição, o lado direito do cérebro, fazendo do círculo e do ponto as imagens básicas para a sua teoria do conhecimento. Ao contrário da ciência, que reparte a realidade, analisando-a por setores e campos diversos, o misticismo engloba todas as questões numa só teoria, denominada tradição arcana, da qual derivam, em razão das sistematizações humanas, as demais teorias... A ciência é diacrônica, isto é, modifica-se na medida em que o tempo passa; o misticismo é sincrônico, quer dizer, é sempre e estruturalmente o mesmo e o que se 98 alarga é a nossa visão sobre o próprio mistério. A ciência deveria ser, por definição, um modo de conhecimento exotérico, ou seja, mundano, apto a ser compreendido por qualquer leigo ou não-especialista que lançasse mão de suas faculdades racionais. No entanto, principalmente após o século XIX, a ciência dividiu-se em tantas especialidades e tornou-se tão complexa que passou a figurar como uma espécie de esoterismo, um conhecimento cujo acesso passou a ser reservado apenas aos adeptos, a cientistas e gênios peritos em suas respectivas áreas. Com efeito, a ciência ocupou o lugar do misticismo, como o esoterismo típico do século XX. E, a tal ponto, que nos acostumamos a vê-la como o primeiro referencial da verdade e do que existe. Em suma, é verdadeiro e existe somente o que pode ser estudado e demonstrado cientificamente. O resto, o que continua misterioso, não deve ser considerado muito importante... É nessa área de sombra, portanto, em que a ciência se recusa a penetrar, que o mistério encontra a razão de ser e se afirma como um meio de investigação importantíssimo para a constante sede de respostas do homem. E se torna consistente, na medida em que saibamos, de forma intuitiva, que o mistério existe e deve ser buscado. Ao contrário da ciência, o mistério não precisa esperar pelo futuro, por aperfeiçoamentos tecnológicos ou resultados espetaculares de pesquisa para ser compreendido. Os enriquecimentos trazidos ao pensamento místico decorrem da iluminação do passado e da compreensão do que há nele de verdadeiramente oculto. Uma história subterrânea Para o místico, a história não é ascendente, do menos para o mais, e sim um repositório ininterrupto de progresso e decadência das várias humanidades (ou “raças”) que habitaram o planeta. A pesquisa dessas civilizações, perdidas entre cataclismos geológicos, glaciações e dilúvios, remete-nos ao conceito de história subterrânea ou história mística, muito diferente da história factual e social, tão superficial quanto divinizada em nosso tempo. Os místicos preocupam-se, na verdade, com ondas civilizacionais, com vestígios de culturas não reconhecidas oficialmente, tentando fazer uma síntese sobre o significado da caminhada do homem sobre a Terra. Sabem, de antemão, que o planeta é um ser vivo e que a humanidade é uma experiência. Sabem que os avatares ou guias espirituais, que prenunciam ou concluem as Eras, são ligados entre si por um cordão invisível só percebido pelos iniciados e portadores da luz. Tal história paralela, em que se debruça o estudioso dos mistérios, é vivida por homens evoluídos, exatamente aqueles que detêm o verdadeiro poder e influenciam a sobrevivência e o destino do planeta. É como se a Terra fosse uma gigantesca nave azul cujos reais tripulantes, os que a dirigem pelos espaços do Universo, estivessem acima dos dirigentes episódicos das nações. Imagine-se o desempenho de seu trabalho silencioso, interferindo com a sorte de bilhões de pessoas que nem se dão conta disso? Tal é o grande paradoxo da vida humana: os que guiaram, antes as hordas primitivas e agora as massas inorgânicas dos povos, são sempre poucos; os que governam realmente as nações e seus órgãos de maior responsabilidade carregam sobre os ombros a cruz da consciência, enquanto a maioria – sempre inconsciente e 99 despreocupada – gasta o tempo nas lutas básicas da sobrevivência, do trabalho e da diversão, sem contar que gigantescas modificações históricas podem estar em curso. Na história subterrânea ou mística, não são as massas que se rebelam por si mesmas, mas as minorias esclarecidas que as dirigem e conhecem a missão e o destino da humanidade que vão transformar os cenários humanos. A interferência dos formuladores da história mística não é uniforme, nem se estabelece do mesmo modo nas diferentes épocas. Não é de seu interesse a ingerência vulgar na política dos homens, já que estes devem ter as mãos livres para construir as sociedades que quiserem, de acordo com o estágio de desenvolvimento científico e espiritual que alcançarem. Nesse sentido, o livre-arbítrio da humanidade deve consumir o carma coletivo, mesmo que isso possa contribuir para o aumento de sofrimento social ou destruição de civilizações. Não importa. O processo coletivo de aprendizado deve preservar ritmo próprio, a não ser que os atos humanos ponham em risco o equilíbrio do Universo. Nesse caso, entram em ação forças ocupadas em manter o planejamento cósmico na vigência do atual ciclo que está por terminar.207 E isto se dá pelo fato de que, pela primeira vez na história ocidental, o homem é capaz de se auto-destruir, levando consigo o próprio planeta. Tal possibilidade pode ser julgada demasiadamente perigosa pelos senhores do mundo208 que procurariam agir no sentido de deter o apocalipse, tão palpável no horizonte e confirmado pelas suspeitas de diversas religiões fundamentalistas. A pesadíssima missão desses senhores, tripulantes de nossa nave azul, seria instalar um poder teocrático, isto é, o reino de Deus sobre a Terra. Quer dizer, o objetivo da história mística seria a eliminação da própria história e de seu conjunto de guerras e conflitos pela anexação do planeta e de sua população à Unidade Cósmica. Essas idéias, aparentemente utópicas209 e que aparecem nos ensinamentos religiosos como lembranças vagas, poderão no tempo oportuno sensibilizar os homens comuns. Também era difícil para o grego antigo imaginar suas cidades-estado, separadas e guerreando entre si, um dia se unindo e formando um estado homogêneo. Do mesmo modo, para nós que vivemos no século XXI não é fácil acreditar na perspectiva de um mundo unificado e cooperador, vivendo cada vez mais próximo das leis divinas, anunciadas por antigos mestres da luz, também chamados “avatares”. A história mística é desenvolvida principalmente por seus membros, que representam o cume hierárquico da humanidade e são recrutados por merecimento entre os mais evoluídos adeptos das mais importantes e secretas ordens esotéricas do mundo, as chamadas Sociedades Secretas Superiores que, por sua vez, como numa espécie de Federação, compõem a chamada Fraternidade Branca. Essas organizações (se assim podem ser denominadas) têm caráter e abrangência mundial, congregando 207 As diversas religiões no planeta insistem em manifestar preocupações apocalípticas, em que a humanidade será julgada por acertos e erros num cenário de Juízo Final. Tal percepção, que não é privilégio do monoteísmo judaico-cristão demonstra que existe uma memória ou inconsciente coletivo preocupados com o destino da humanidade em termos de ciclos em que civilizações nascem, desenvolvem-se e morrem ao longo do tempo. 208 Segundo as tradições iniciáticas das escolas de mistério, os senhores do mundo seriam dirigentes de civilizações adiantadas que morariam por enquanto dentro da crosta terrestre, esperando o momento oportuno para ressurgir, repovoando a Terra. A existência de civilizações intraterrenas percorre as diversas tradições esotéricas da humanidade. 209 Utopia é uma palavra grega que significa “em lugar nenhum”. 100 místicos-mestres de quase todos os países, reunidos em número reduzidíssimo, inclusive para não despertar atenções perigosas. O trabalho dessas sociedades e do Alto Conselho só é conhecido hoje, em virtude do consentimento de seus membros. Eles permitiram que místicos menos evoluídos e alguns pesquisadores confiáveis pudessem encontrar vestígios do trabalho incessante dos senhores do mundo. Isto se deve à perspectiva palpável de nosso final de ciclo, percebido intuitivamente pelos religiosos e homens comuns, e que exige que alguns véus sejam retirados. Na verdade, tem-se multiplicado pelo mundo inteiro a literatura sobre a história mística e o trabalho de seus eventuais executores. O mistério dos ciclos da história Mas, afinal, como poderia ser narrada essa história? Será que ela poderia ser contada de modo compreensível como a comum história dos homens? Para responder a tais perguntas, deve-se entender, de início que a história mística não é uma narrativa diacrônica, estabelecida necessariamente do passado para o futuro, com acontecimentos encadeados ou uma evolução gradativa, do menos para o mais, como se o que vem antes fosse menos aperfeiçoado do que o que vem depois. Também não é uma adoração pura e simples do passado, como se ele pudesse conter todas as respostas para os dilemas humanos. A história mística seria, então, um depósito de conhecimentos secretos da humanidade, denominado tradição arcana, protegido e transmitido através dos ciclos de civilização ou “raças” que habitaram o planeta. A proteção e transmissão da tradição arcana esteve a cargo das mais importantes sociedades místico-secretas da Terra. Foram elas que, no devido tempo e com ciência perfeita dos rumos da humanidade, arquitetaram a vinda dos principais avatares ou portadores da revelação: Rama, Noé, Abraão, Buda, Akenaton, Moisés, Zoroastro, Cristo e Maomé. Cada um deles, de acordo com as próprias doutrinas, se comprometeu a cumprir o papel histórico de instrutores da humanidade, previsto por profetas e místicos evoluídos em escrituras e relatos, denominados sagrados. Os Upanishads, a Torah, os Vedas, o Bhagavad Gîtâ, a Bíblia e o Alcorão – são os principais livros sagrados desse ciclo da humanidade que ora está chegando ao fim. Antes do nosso, porém, houve outros ciclos contendo civilizações tão ou mais evoluídas que a presente e sobre elas só conhecemos vestígios, já que tais raças longínquas também foram destruídas por catástrofes210. Pelo menos aqui o conceito de raça não tem o significado pejorativo resultante das concepções dos nazistas, fascistas e de todos aqueles que produziram preconceitos raciais. Raça, para o místico, é o conjunto de homens evoluídos depositário do conhecimento secreto e não a errônea presunção de que um grupo de pessoas seja superior a outro pela cor da pele. O mito da superioridade racial – ao contrário do que muitos pensam – não está de acordo com velhas teorias místicas, mas de sua deformação posterior, tendo em vista os propósitos mesquinhos de ideologias materialistas, que, só no século XX, produziram centenas de milhões de mortos. 210 Temos vestígios comprovados, hoje, de raças extintas na Lemúria e na Atlântida. Este último, um continente afundado no mar, tem sua recordação afirmada no livro “A República” de Platão, que é considerado uma descrição da estrutura social daquela civilização perdida. 101 A Alemanha hitlerista, por exemplo, confundiu propositalmente os conceitos de raça (puramente teórico) e nação (de inegáveis ligações com a prática política), pretendendo que fosse “ariano” tudo o que era genericamente “germânico”. Com o objetivo de propagar o nazismo e mobilizar o povo alemão, os seguidores de Hitler transformaram essas idéias em dogmas, turvando a sua verificação científica e eliminando fisicamente os não-eleitos da fé “nazi”, incluindo aí diversas minorias européias, entre as quais os judeus e ciganos. Tais práticas fazem-nos recordar a máxima do escritor Aldous Huxley: “liquidai os que não concordam, e tereis a Utopia”. O advento do Homem Interior O resgate do homem interior é a pedra de toque da história mística. Através de seu desenrolar, o homem vai se preparando para compreender que Deus está dentro de si211 e que sua interioridade comunga da alma cósmica, resultante da soma de todas as almas espalhadas pelo Universo. Tal alma geral é organizada e construtiva, tentando tomar consciência de si através da evolução das diversas humanidades: planetárias, intra e extra terrestres. Em nossa época, anti-esotérica por excelência, os valores materialistas predominam e inspiram doutrinas sociais que não elegem a espiritualidade como prioritária, porque o que importa para elas é o reino da necessidade ou o homem puramente exterior. Para tal homem, com reivindicações cumulativas e intermináveis, a satisfação dos sentidos e o egoísmo acabam por levá-lo a um eterno sofrimento e até a considerar inútil a busca pela felicidade. Os resultados das diversas tentativas de reformar o ser humano “por fora” estão aí: exploração do homem pelo homem, predomínio de classes sobre classes e de nações sobre nações. As doutrinas que gritaram contra esse estado de coisas, recomendando a transformação dos costumes políticos através da violência ou da revolução, apenas conseguiram fundar ditaduras despóticas e regimes ateus. A prioridade ao homem interior, pelo contrário, típica de quem percorre a senda solitária dos místicos, quer a pacificação mundial por outros meios. Não por uma “pax armada”, comum às nações que só respeitam o falso poder, mas pela força construtiva do amor, energia extraordinária que poderia ser posta a serviço da humanidade. Parece ser, à primeira vista, mais um ideário fantasioso do que uma proposta consistente de salvação dos homens. Mas não é. Trata-se da forma mais genuína de mobilização das populações, já que as pessoas não se sentirão tão separadas umas das outras, caso sejam perfeitamente convencidas de que pertencem a uma alma comum. A história mística diluirá em seu devido tempo a história comum, estudada como lista de fatos e eventos, tornando-a obsoleta. O homem não vai mais ser lobo do homem, como falava o ilustre pensador político Thomas Hobbes, porque verá no próximo a própria imagem refletida no espelho. Como atacá-lo ou destruí-lo se ele se sente se opondo ou extinguindo a si mesmo, a própria vida? 211 Pretendemos evitar a controvérsia, pelo menos por enquanto, entre as religiões que advogam que Deus, o Ser Supremo, estaria separado de sua Criação, obviamente imperfeita, e a noção de Deus como partícipe de nossa natureza humana, na esteira do que diz a Bíblia: “Façamos o homem nossa imagem e semelhança” – princípio encontrado no Gênesis bíblico (cf. Gn., 1: 26 e 27). 102 Simultaneamente ao mergulho que fizer em seu reino interior, o místico procurará descer ao interior da Terra, onde estão escondidos e protegidos os remansos mais preciosos da espiritualidade do planeta. Sendo a Terra um organismo vivo, do mesmo modo que o homem, é certo que o místico buscará também os submundos terrestres, como extensão visível de sua ação iniciatória. Essa é a recomendação implícita no comportamento de grupos místicos antigos e dos grandes líderes das religiões recém-formadas que depois se transformaram em grandes sistemas morais. Os primeiros cristãos reuniam-se em catacumbas, os gnósticos, em cavernas, grutas ou castelos cheios de subterrâneos e passagens secretas, agindo também assim os alquimistas. Isso significa que o homem deve estudar os mundos ocultos abaixo da crosta, na medida em que pesquisa o próprio espaço interior. Não é por simples coincidência que nossa civilização, voltada para as exterioridades, preocupa-se fundamentalmente em explorar o espaço sideral, exterior à Terra, como se quisesse fugir da própria identidade espiritual, deixando o santuário e tentando estender uma colonização predatória e militarista a outros mundos212. A Terra como sede da vida humana Na verdade, o homem depende fundamentalmente do planeta Terra para sobreviver. Está submetido a seus ciclos, como um monge que não se sente bem ao deixar a casa, o monastério. Essa subordinação ao elemento-mãe (a Gaia) vem sendo contemporaneamente avaliada pela Ecologia, ciência que estuda os ciclos biológicos e sua interferência no meio ambiente, em que está contido o ser humano. Basta notar, nesse sentido, o longo período de treinamento e adaptação necessário para levar astronautas ao espaço, tencionando que fiquem por lá por uma duração de até dois anos. Temos o exemplo dos cosmonautas da estação orbital russa, a Soyuz, que tiveram de retornar ao solo terrestre antes desse prazo, em virtude dos efeitos enlouquecedores da ausência de gravidade sobre o organismo humano. Os objetivos militares da corrida espacial, que acompanharam a fase de Guerra Fria entre Estados Unidos e a extinta União Soviética, não conseguiram mascarar a dificuldade de nossa constituição física em se adaptar por longo tempo fora da morada divina (a Terra), vivendo no espaço exterior. Mesmo copiando as condições atmosféricas ideais (tempo, temperatura e pressão) e mantendo alguns costumes de trabalho e entretenimento nas condições que experimentamos na vida normal, nossas espaçonaves não permitem a cópia exata das vibrações terrestres familiares ao ser humano que, fora do seu ambiente, parece, até agora, não reunir meios de sobrevivência indefinida. O planeta, com certeza, é o prolongamento vivo de nossos pés e as experiências vividas fora da Terra assim o comprovam. Tal crença explica, em parte, o empenho dos místicos, preocupados com a pesquisa do homem interior, em se tornarem também buscadores dos subterrâneos e 212 Uma ilustração dessa tendência seriam os filmes de ficção científica de Hollywood que exibem uma ideologia interna de prevalecimento da tecnologia sobre a espiritualidade e exploram a transposição do poder conseguido pelos Estados Unidos, como superpotência militar, para o espaço exterior, através de espaçonaves em que se pratica e se defende o mesmo regime capitalista, competitivo e imoral, praticado na Terra pelo modo norte-americano de viver. 103 mistérios da velha Gaia, compreendendo que nela mesma se encontram o berço e a destinação da humanidade, termo, aliás, que vem do radical “húmus”, que significa “matéria orgânica” ou “terra vegetal”. É como se o planeta fosse mesmo uma nave, singrando o espaço sideral com consciência, dirigida de dentro e para dentro, tal como um imenso organismo cuja finalidade seria ser uma semente densa e encarnada da glória de Deus. Etapas da História Mística De acordo com a historia comum do Ocidente, como a conhecemos dos livros escolares e acadêmicos, não temos conhecimento preciso das civilizações situadas “antes do Egito”, ponto em que começa a história da humanidade fundada por Menés (cerca de 3.200 a.C.). Este primeiro “faraó” não era egípcio, mas fundou às margens do Nilo uma dinastia que misturava os pelasquis e os ários, formando uma nova etnia: a dos ários morenos. A primeira raça a habitar o Egito foi a “raça negra”, num período de 4 mil anos anterior a Menés (portanto a partir de 7.200 a.C.). Quando o Egito recebeu a sabedoria atlante, com todos os seus conhecimentos secretos veiculados através da Esfinge, sua transmissão fora realizada pelos negros. Durante 3 mil anos, eles mantiveram a sabedoria em segredo, o que os tornava superiores às demais raças existentes, inclusive os celtas, tornando-se, ao longo do tempo, escravagistas dos brancos. Os hiperbóreos, de onde surgiram os “arianos puros”, de cabelos ruivos e olhos azuis, vieram das regiões geladas do Pólo Norte, ocupando a Europa, um novo continente de florestas que emergiu do mar em virtude do término da glaciação, o que ocorreu a partir de 85 mil anos a.C.. Mesmo assim, o continente europeu continuaria gelado ainda por muito tempo, impossibilitando o surgimento de uma civilização. A ilha de Atlântida (entre a América do Sul e o Trópico de Câncer) tinha um clima excelente em virtude da corrente do Golfo, que ia até o México e , depois, desviava-se para o Norte, permitindo a formação do que foi chamado a “Atlântida Cálida”. Quando a Atlântida sucumbiu, não se sabe se por uma catástrofe nuclear ou pelo dilúvio de Noé213, os ventos da corrente do Golfo invadiram a Europa, degelando em definitivo o continente e permitindo que fosse habitado. Os hiperbóreos, então, desceram dos pólos para ocupar essas áreas novas, entrando em contato com os negros que, mediante a posse da sabedoria maior e arcana, dominavam os brancos, no período conhecido como “matriarcado das sacerdotisas druidas” (entre 10.000 e 8.000 a.C.). 213 Não existe datação confiável sobre o episódio bíblico do Dilúvio. Sabe-se que ocorreu entre 10.000 e 5.000 a.C., não havendo evidências da área precisa de inundação. A Bíblia refere-se somente ao fato de que a Terra era habitada por gigantes e que os filhos de Deus possuíam as filhas dos homens, que geraram varões valentes e de renome na antiguidade (Gn., 6:4). O Dilúvio ocorreu porque Deus “se arrependeu” de sua criação, porque a terra estava corrompida à vista de Deus e cheia de violência (Gn., 6: 5 a 12). A mitologia grega, com seus deuses que misturavam as figuras de homens e animais, seria uma lembrança das experiências biológicas realizadas entre os gigantes (homens de Deus) e os homens comuns. 104 O culto aos antepassados, através de sacrifícios, remonta a esse período, pois se acreditava que ao matar seres humanos eles automaticamente iriam levar informações aos mortos, fazendo evoluir a sua condição espiritual. Ser sacrificado pelas sacerdotisas naqueles tempos era uma honra, uma forma particular de transmitir as tradições arcanas, herdadas de muito longe. Na Europa, a raça branca estava subjugada ao império das druidesas, sacerdotisas que oficiavam na ilha de Sein. Revoltando-se contra o jugo das maquiavélicas pitonisas, os celtas demonstravam muito orgulho, desprezo pela morte e uma coragem difícil de se igualar. Contra eles, por conseguinte, as sacerdotisas resolveram enviar para “o país situado do outro lado da vida” os homens mais nobres e bravos, a fim de que pudessem levar mensagens aos antepassados. E viu-se, então, uma prática abominável: a elite dos celtas deixando-se matar, nas cerimônias de cada solstício religioso214, o que contribuiu para o aniquilamento dos chefes daquelas tribos. Foi necessário que surgisse Ram, o Reformador, um jovem hiperbóreo de cabelos ruivos, de pouco menos de vinte anos, para que começasse a haver resistência aos sacrifícios humanos (por volta de 7.500 a.C.). Ram ou Rama demonstrava em seus sermões ao povo uma inteligência transcendental, um conhecimento profundo, muito além do que o recebido pelos sacerdotes negros, tornando-se um perigo para a manutenção do poder da casta sacerdotal druida. Em conseqüência, foi condenado a morrer nos rochedos pelo Sínodo das Sacerdotisas de Sein. Tal condenação refletia um desejo de predomínio político, mas não propriamente representava racismo, porque naqueles tempos os brancos se misturavam a outras raças, sem quaisquer preconceitos, não havendo qualquer iniciativa de resguardar uma eventual “pureza” dos celtas e arianos indo-europeus. No entanto, para preservar seu povo e seguidores, Rama deixou o norte da Europa, buscando exílio no Oriente, onde estabelece as bases do Império Persa. Registrou, em sua passagem, diversos toponímicos: Ram, Ramayana, Hiram, Iram, etc. Em seu caminho, Rama invade a Índia e continua o seu caminho até o sul da África, instituindo o Reino Universal de Kutchar, a primeira forma de “sinarquia”215 do mundo, isto é, um regime político em que cada povo tinha um rei independente, com o império se reunindo como entidade supra-política em Kutchar, na Índia. Nas cordilheiras do Himalaia, Rama funda um mosteiro, com seus discípulos, num local que ele denominou “Paradese”, que quer dizer “recinto fechado do Senhor” e de onde, evidentemente, derivou-se a palavra “paraíso”. Rama chamou o lugar de Terra do Paraíso e lá os seus muitos seguidores aprendiam a ser reis e a governar o mundo. Com as medidas tomadas por Rama, a Terra viveu um período de paz e felicidade. A mulher deixou de ser a sacerdotisa druídica dos sacrifícios humanos para ser uma sacerdotisa do lar. Dessa transformação, surge a idéia de “família”, da sinarquia conjugal entre homem e mulher e, por fim, o que conhecemos por “família humana universal”. 214 Períodos de festas pagãs relacionadas com os dias mais longos (25 de junho) e noites mais longas (25 de dezembro) no Hemisfério Norte. 215 Sinarquia, na linguagem arcana, significa o governo político perfeito. 105 Rama afirmava a unidade de Deus, que chamava “a unidade de Yet”, doutrina herdada dos negros que, por sua vez, beberam da sabedoria Atlante. Tal unidade era composta por dois estados, um solar e, outro, lunar, macho e fêmea fundidos no estado angelical (“estesim” ou “puro”) de Deus. Rama não quis que anunciassem a sua morte, mas foi graças a ele que conhecemos os símbolos das constelações do céu e o as tradições arcanas e esotéricas transmitidas até hoje. A denominada “Idade de Ouro de Rama” durou, na Ásia, cerca de 3.500 anos! As tradições místicas, que acolhem francamente a idéia de reencarnação – tese aliás com plena acolhida no Oriente, como já vimos –, afirmam que Ram voltou a se encarnar como Krishna, depois como Zoroastro e Melquisedeque e, mais recentemente, como Cristo. Alguns místicos afirmam, ainda, que, no final dos tempos, ele retornará na figura de Maitréia... O estado paradisíaco promovido por Rama termina, no entanto, com o chamado Cisma de Hirshu (cerca de 3.700 a.C.). Hirshu era um dos príncipes do Império Kutchar e acreditava que o estado feminino de Deus era tão importante quanto o masculino, usando essa tese como justificativa ideológica para a restauração política do matriarcado druida e do antigo período de felicidade, promovido pela predominância anterior da raça negra. Para a realização desse intento, o príncipe ajudou a formar a primeira unidade bélica do mundo, a Babilônia de Semíramis, que buscava lutar e vencer as forças do Império. Na batalha que se seguiu foram mortos mais de 1.600 homens e os adeptos de Kutchar foram obrigados a obter refúgio fora da Índia. Desejando fugir à invasão da Índia pelos babilônios, o Império de Kutchar enviou Menés ao Egito, escolhendo aquele território como fiel depositária da antiga sabedoria. Lá, muito antes, Rama construíra as pirâmides (“py rama”), que eram observatórios astronômicos muito adiantados e que previam o futuro do mundo. Quando Menés, que não era egípcio e sim hindu, deslocou-se para o Egito, só fez desenterrar da areia aqueles grandes monumentos.216 Os ários, que invadiram o Egito anteriormente a Menés, começaram a se misturar com os hindus gerando a raça que redundou nos atuais árabes. Mais tarde, a sabedoria arcana foi recolhida pelos caldeus que se refugiaram no Egito e se tornaram escravos. Sob a influência de Melquisedeque, fazem parte da constituição das doze tribos que estão na origem do povo hebreu, em cujo seio nasceu Moisés, cujo nome significa “retirado das águas”, mas que, com a sua iniciação no deserto, ficou conhecido como “homem de areia”. A sociedade egípcia, tal como a conhecemos, também era uma organização sinárquica, em que os faraós tinham que prestar contas aos sumo-sacerdotes, líderes de castas que detinham o controle espiritual dos governos e das dinastias. Foi, no entanto, a tradição árabe que nos deu, a partir do século V, o conhecimento sobre o Egito, a Índia e a Grécia, permitindo ao ocidente compreender as civilizações greco-romana, dórica e etrusca. Daí surgirem, conforme as tradições místicas, a presença dos mistérios, que configuram, de certa maneira, a sociologia histórica de cada localidade. Assim, temos: 216 A História Mística renega a versão corrente da arqueologia ocidental de que as pirâmides foram construídas pelos faraós que as utilizavam como câmaras mortuárias. Segundo os místicos, elas já existiam antes da formação do império egípcio. 106 Mistérios de Rama (egípcios); Mistérios Órficos e dos Elêusis (gregos); Mistérios da Cabala (hebraicos); Mistérios Bíblicos ou Cristãos (gnósticos e cátaros) e Mistérios do Alcorão (muçulmanos). Nesse sentido, a sabedoria foi fragmentada numa espécie de “História da Luz”, participada desde a origem dos povos e das raças. Por conseguinte, temos, esquematicamente: – QUADRO 3 – A HISTÓRIA DA LUZ CIVILIZAÇÕES LOCALIDADES RAÇAS E POVOS LEMÚRIA (MÚ) OCEANO RAÇA VERMELHA (150.000(?)-12.000 a.C.) ÍNDICO (os “gigantes” do Gênesis HIPERBÓREA GROENLÂNDIA ÁRIOS PUROS (100.000-9.000 a.C.) (Era de Touro) ATLÂNTIDA OCEANO NÓRDICOS E (32.000-10.000 a.C.) ATLÂNTICO CELTAS CIVILIZAÇÃO CHINA E SUDESTE BRAMÂNICA ASIÁTICO RAÇA AMARELA REINO DE RAMA PÉRSIA, RAÇA NEGRA IMPÉRIO DE ÍNDIA E MATRIARCADO KUTCHAR ÁFRICA DRUIDA (7.500-3.700 a.C.) (Era de Áries) CISMA DE ÁSIA E RAÇA BRANCA HIRSHU ÁFRICA (Início do Patriarcado (3.700 a.C.) Hebreu) 107 EGITO NORTE DA ÁRIOS MORENOS (3.200-332 a.C) ÁFRICA GRÉCIA PALESTINA PATRIARCADO (1.200-323 a.C.) MEDITERRÂNEO HEBREU ROMA PENÍNSULA (Era de Peixes) (509 a.C- 476 a.D.) ITÁLICA CIVILIZAÇÃO PALESTINA E CRISTÃ JERUSALÉM JESUS CRISTO (4 a.C. até nossos dias) CIVILIZAÇÃO ÍNDIA E BUDA BUDISTA ÁSIA RAÇA AMARELA CIVILIZAÇÃO MECA/MEDINA MAOMÉ MUÇULMANA ARÁBIA SAUDITA (Ários Morenos) (570 a.D. até nossos dias) ORIENTE MÉDIO CIVILIZAÇÃO DA PLANETA “MAITRÉIA”(?) GRANDE FRATERNIDADE TERRA (Era de Aquário*) (563 a.C. até nossos dias) BRANCA * Conforme dados astronômicos, a Precessão de Equinócio de Aquário só decorrerá em 2.600 a.D., embora muitas seitas da Nova Era se posicionem no sentido de preparar o caminho do futuro avatar Maitréia... Segundo o renomado estudioso dos mistérios e historiador Édouard Schuré217, podemos esquematizar as civilizações humanas da seguinte forma: Atlântida; Cf. SCHURÉ, Édouard. Os Grandes Iniciados, Esboço da História Secreta das Religiões – RAMA, CRISNA, HERMES, MOISÉS, ORFEU, PITÁGORAS, PLATÃO, JESUS (3 vols.), tradução de Raul S. Xavier, Rio de Janeiro, Livraria Editora Cátedra, 1984. 217 108 Civilização Bramânica; Civilização Persa; Civilização Egípcia; Civilização Caldáica e Sumeriana; Civilização Grega; Civilização Romana; Civilizações Judaico-cristãs; Civilizações muçulmanas. 218 218 As civilizações caldáica e greco-romana correspondem, de acordo com Schuré, ao mundo célticogermânico e ao avanço da Raça Branca.Quanto à bibliografia básica para o estudo da História Mística, sugerimos os seguintes autores: Édouard Schuré, Fabre D’Olivet, Jacques Weiss, Madame Blavatsky, Ossendowski, Papus, René Guénon, Robert Charroux, Rudolf Steiner e Saint-Yves d!Alveydre. 109 – 11 – OS DOCES MISTÉRIOS CRISTÃOS “Quem fita o sol, deslumbra-se e quem persistisse em fitá-lo, cegaria. Assim sucede com os mistérios da religião: quem pretende compreendê-los deslumbra-se e quem se obstinasse em os perscrutar perderia totalmente a fé." Santo Agostinho 110 A excelência da história mística, desmentindo a teimosia da arqueologia tradicional, e antecipando o alvorecer do homem para muito mais cedo na superfície da Terra, põe-nos diante dos dois grandes grupos que predominaram com o tempo e dizem respeito mais de perto à história ocidental. A mistura das raças brancas e negras deu origem a dois povos distintos: de um lado, os semitas, que se formaram onde os colonos brancos se submeteram ao domínio dos povos negros, recebendo dos pais negros a iniciação religiosa. Aí teriam se originado os Egípcios, antes de Menés, os Árabes, os Fenícios, os Caldeus (sumérios) e os Judeus. De outro, as civilizações arianas, que foram formadas onde os brancos subjugaram os negros pela guerra ou pela conquista, daí se originando os povos Gregos, Etruscos, Iranianos e Hindus. Nesse ramo incluem-se também os povos brancos nômades e bárbaros, na Antiguidade: os Getas, os Sármatas, os Celtas e, mais tarde, os Germanos.219 Assim se explicaria, também, a diversidade fundamental das religiões e também a escrita entre essas duas categorias de nações pioneiras. Entre os semitas, onde primitivamente dominou a intelectualidade da raça negra, verifica-se, acima da idolatria popular, uma tendência ao monoteísmo – o princípio da unidade de Deus, oculto, absoluto, sem forma, que foi um dos dogmas essenciais dos padres da raça negra e da sua iniciação secreta. Entre os Brancos, vencedores ou que ficaram puros220, nota-se ao contrário, a tendência ao politeísmo, à mitologia, à personificação da divindade. Isso provém do seu amor à natureza e do apaixonado culto aos ancestrais.221 Segundo, Édouard Schuré, as correntes semítica e ariana são as responsáveis por todas as idéias, mitologias, religiões, artes, ciências e filosofias do mundo ocidental. Cada uma dessas correntes traz uma concepção oposta de vida, cuja reconciliação e equilíbrio seriam a própria verdade. A corrente semítica contém os princípios absolutos e superiores: as idéias de unidade, de universalidade, em nome da família humana. A corrente ariana, por sua vez, contém a idéia de evolução ascendente, em todos os reinos, terrestres e supraterrestres e, na aplicação, conduz à diversidade infinita de desenvolvimentos, em nome da riqueza e da natureza, das múltiplas aspirações da alma. O gênio semítico desce de Deus para o homem. O gênio ariano eleva-se do homem para Deus.222 Por outro lado, conforme afirma Zecharia Sitchin223, na Antiguidade, o rei era também o sumo sacerdote, o Estado tinha uma religião e um deus nacional, os templos eram sede do conhecimento científico e os sacerdotes, os cientistas. Há mais de um século, quando foi decifrada a escrita das tábulas descobertas nas ruínas da antiga Mesopotâmia (hoje, Iraque), percebeu-se que certos textos relatavam a história bíblica da Criação, um milênio antes de ser compilado o Velho Testamento. Foram encontrados textos da biblioteca de Assurbanipal, em Nínive (cidade famosa na 219 Cf. SCHURÉ, Édouard. Os Grandes Iniciados, op. cit., Vol. 1, p. 31. Note-se bem que aqui a noção de “pureza racial”, impossível do ponto de vista biológico, embora tenha sido uma crença nazista muito em voga na Europa e em terras norte-americanas no século XX, refere-se tão somente ao conceito de “respeito às tradições arcanas do passado”... 221 Idem, p. 31. 222 Idem, p. 32. Essa idéia de complementaridade e reconciliação de troncos ideológicos, que permeia a história mística, lembra-nos o princípio da unidade da Terra e da humanidade, que seria um estágio mais elevado do que a violência entre os desiguais e o separatismo religioso que promoveram tantas guerras e revoluções sangrentas na história do planeta. 223 Cf. SITCHIN, Zecharia. Gênesis Revisitado (1990, no original), 7ª edição, tradução de Evelyn Kay Massaro e Marcília Britto, São Paulo, Editora Best Seller, s/d. 220 111 Bíblia), que possuíam dialeto babilônico, tendo precedido o texto bíblico em cerca de mil anos.224 O relato bíblico da Criação, embora sendo um texto religioso, não diferia do antigo texto babilônico e usando a única fonte científica de seu tempo, os descendentes de Abraão – que era nascido de uma família real e sacerdotal de Ur, capital da Suméria (Caldéia) – o resumiram e fizeram dele a base da religião nacional, glorificando “Yahweh” “Yavé” ou “Jeová”, “o que está no céu e na Terra”.225 Baseados no conhecimento científico vindo da Assíria, os hebreus começaram a pregar o monoteísmo e a universalidade de Deus e resolveram o problema da dualidade do deus sumério (“Marduk”), forjando uma entidade singular e plural, ao mesmo tempo. O Deus único, eterno e onipresente deixava de ser ‘El” (ou “Eloah”), para ser “Elohim” (traduzido do hebraico literalmente por “Deuses”), uma divindade que falava com Abraão, Isaque, Jacó e Moisés como típico Senhor Celeste.226 Melquisedeque e Jesus Melquisedeque torna-se no Gênesis um personagem misterioso por excelência, a primeira figura bíblica a não fazer sacrifícios sangrentos como era costume nas religiões daqueles tempos, mas utilizando-se do pão e do vinho, antecipando o que viria a ser conhecido, muito mais tarde, como Eucaristia. Melquisedeque, rei de Salem (talvez seja a própria Jerusalém) e sacerdote do Deus Altíssimo, do hebraico “ElElyôn”, mandou trazer pão e vinho e abençoou Abrão, dizendo: “Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo que criou o céu e a terra! Bendito seja o Deus Altíssimo que entregou os teus inimigos nas tuas mãos! E Abrão deu-lhe o dízimo de tudo”227. Provavelmente os povos vizinhos de Salem (ao Sul de Betel) reverenciavam e respeitavam o rei sábio Melquisedeque, mas com toda certeza temiam o grande líder militar Abraão. Suas batalhas e conquistas tornaram-se conhecidas em toda aquela região, fazendo dele líder muito respeitado. No entanto, o patriarca possuía um problema familiar: sua esposa Sara era até então estéril e pretendendo dar um filho ao marido ofereceu a serva egípcia Hagar para que lhe gerasse o primeiro filho. Hagar então gerou Ismael, considerado pelos muçulmanos como o ancestral dos povos árabes. O texto bíblico informa que Abraão teria sido pai pela primeira vez aos oitenta e seis anos228. E, antes mesmo do nascimento de Ismael, surgiram conflitos entre Hagar e Sara229, culminando em sua fuga do acampamento de Abraão. O Islã também considera a existência e a relevância de Abraão (com o nome de Ibrahim) como sendo o ancestral dos Árabes, através de Ishmael. O Judaísmo, o Cristianismo e o Islã são por vezes agrupados sob a designação de “religiões abraâmicas”, numa referência à suposta descendência comum de Abraão. 224 Cf. SITCHIN, p. 48. Idem, pp. 50 e 51. As tradições contam que Terá, sacerdote sumério de Ur, era pai de Abraão. Cf. Gn., 11: 26. 226 Idem, p. 51. 227 Cf. Gn., 14:18-20. 228 Cf. Gn., 16: 16. 229 Árabes e judeus já brigavam, pois, desde aquela época... 225 112 Registre-se, ainda, que nesta época o famoso patriarca ainda se chamava “Abrão”, que quer dizer “pai elevado”. Só depois de Jahvé ter multiplicado sua descendência passou a chamar-se Abraão, que significa “pai duma multidão”. Por outro lado, o derramamento do vinho, como sacrifício, em vez de sangue é altamente significativo do ponto de vista alquímico: a união antiga do poder sacerdotal e do poder real, fraturada em determinado momento histórico e novamente reinstaurada com o advento de Cristo, Rei e Sacerdote, é-nos dada precisamente pelo vinho, síntese da água e do fogo, tal como o Sangue, sede do Espírito, é essência relacionada ao Fogo. Relembremos a afirmação de João o Batista, referindo-se a Jesus: “Eu batizovos com Água (…), mas aquele que vem depois de mim (...) batizar-vos-á com o Fogo do Espírito Santo”230. 231 Na epístola aos Hebreus do Novo Testamento estabelece-se uma analogia entre o rei de Salem e Cristo, sumo sacerdote da Ordem de Melquisedeque232. Aliás, o nome “Melquisedeque” é formado por duas palavras hebraicas, “maleki tsedeq”, que significam “rei de justiça”, ou “o meu rei é justiça”. Por sua vez Salem significa “paz”; portanto, a Ordem de Melquisedeque é a Ordem da Justiça e da Paz, e como Melquisedeque era simultaneamente rei e sacerdote, eis-nos perante uma época recuadíssima em que ainda não se havia criado a fratura entre o poder real (associado ao Fogo) e o poder sacerdotal (associado à Água).233 Melquisedeque servia como sacerdote antes do nascimento de Isaque, então não era descendente da tribo de Levi (um dos netos de Isaque). Era sacerdote aprovado por Deus, independente de linhagem. Este rei de Salem poderia ser o mesmo, conhecido na história suméria (onde viveu) como o Oanne (nome muito semelhante ao de Yohanes, um rei etíope). Diz-se que não teve ascendência nem descendência, o que resultou na mitologia de possuir características sobre-humanas, quase como semi-deus, alguém de enorme valor que instruiu os povos e lhes deu a civilização.234 Alguns teólogos cristãos acreditam que Melquisedeque teria sido uma aparição do Messias antes do nascimento. No Antigo Testamento há várias menções ao Anjo do Senhor que muitos creram ser aparições de Cristo antes de encarnar. No entanto, Melquisedeque poderia ter sido o aspecto terreno da pré-encarnação de Cristo em uma forma corpórea temporária. Outros teólogos, no entanto, acreditam que Melquisedeque representou apenas uma tipologia de Cristo, tratando-se, pois, de um acontecimento ou ensinamento que se relaciona com as realizações posteriores de Jesus. 230 Cf. Mt., 3: 11. Cf. MACEDO, Antonio. “Iniciação Feminina: Astrológica, Mágica, Alquímico-Hermética ou Cabalística?”, disponível em: < http://www.fraternidaderosacruz.org/if1.htm>. 232 Cf. Hb., 5: 6 e 10; 6: 20; 7: 11e 17. 233 Cf. MACEDO, idem, site citado. Não se esquecer de que existe uma similitude entre Salem (paz) e a saudação judaica “Shalom”, que significa a mesma coisa. 234 Ainda em Hebreus 7:3 lemos a respeito de Melquisedeque… “sem pai, sem mãe, sem genealogia, não tendo princípio de dias nem fim de vida”... e “o qual recebeu o ofício do sacerdócio”. Sem dúvida, esses atributos tais como "sem pai, sem mãe" ou como “sem genealogia, sem princípio de dias” caracterizam alguém com uma natureza sobrenatural. 231 113 Segundo Paulo, por exemplo, Cristo tornou-se eterno sumo-sacerdote da ordem de Melquisedeque por nomeação de Deus235, embora, avalie o discípulo, existam: “...muitas coisas que dizer e difíceis de explicar, porquanto vos tendes tornados tardios em ouvir. Pois, com efeito, quando devieis ser mestres, atendendo ao tempo decorrido, tendes, novamente, necessidade de alguém que vos ensine, de novo, quais são os princípios elementares dos oráculos de Deus; assim, vos tornastes como necessitados de leite e não de alimento sólido.”236 Quando o autor da carta aos Hebreus diz que Melquisedeque “permanece sacerdote perpetuamente” também não está dizendo que Melquisedeque fosse o próprio Jesus. O texto bíblico diz que ele “foi feito semelhante ao Filho de Deus”. A palavra semelhante significa parecido e não a mesma pessoa. Melquisedeque foi feito por Deus semelhante a Jesus quanto ao fato de não ter princípio nem fim (figurativamente falando) e, conseqüentemente, no aspecto sacerdotal. Portanto, a expressão “permanece sacerdote perpetuamente” refere-se à ordem sacerdotal de Melquisedeque cumprida na pessoa de Cristo. Com sua encarnação, morte e exaltação, Jesus tornou-se nosso eterno sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque. Por não existir registro da origem e do fim da vida do rei de Salem, seu sacerdócio é tido como superior ao sacerdócio levítico, como foi o de Jesus.237 Melquisedeque não poderia ser de natureza humana, pois o texto bíblico afirma que ele não tinha genealogia238 e os dias de sua existência não eram limitados, atributos próprios de um ser eterno e de natureza verdadeiramente angélica. É difícil interpretar, nesse sentido, o papel e o caráter de Melquisedeque, que assumiu forma humana quando apareceu a Abraão239. Alguns teólogos entendem que o rei de Salem era o próprio Cristo no Velho Testamento e chamam a isso “Parusia”. Contudo, para os protestantes, evangélicos e pentecostais, o fato de o texto deixar claro que Melquisedeque era uma figura tipológica (uma semelhança) de Cristo prova que ele não era o próprio Cristo, além do que, Melquisedeque seria o sumosacerdote do Velho Testamento, mas se tornou “obsoleto por causa de sua fraqueza e inutilidade”240, sendo definitivamente ultrapassado, no Novo Testamento, por Jesus241. Melquisedeque estava incapacitado de prover salvação e redenção para a humanidade, pois seu ministério era imperfeito. A ordem sacerdotal iniciada por ele, concluída em Jesus242, significa que o primeiro deu lugar ao segundo de forma definitiva. Em outras palavras, o primeiro concerto se tornou repreensível e, por isso, 235 Cf. Hb., 5: 5 a 10 e 7: 17. Cf. Hb., 5: 11 a 13. 237 Cf. Hb., em 7.3 e 7: 4 a 19 238 Cf. Hb., 7: 3. 239 Cf. Gn., 14: 18-20. 240 Cf. Hb., 7: 18. 241 Cf. 2 Co., 3: 16. 242 Cf. Hb., 7: 11. 236 114 rejeitado. O último foi aprovado, exaltado e glorificado, sendo Jesus por isso chamado de “fiador de superior aliança”.243 Uma coisa é certa – a personalidade violenta que Jeová revelou em várias ocasiões no Velho Testamento combina perfeitamente com o modo de agir de Melquisedeque, que veio ao encontro de Abraão para abençoá-lo logo após a matança de reis inimigos244. Se Jesus fosse Melquisedeque, como dizem alguns, jamais iria abençoar Abraão logo após tal episódio, porque o Filho de Deus não recompensaria assassinos nem homicidas. Da mesma forma, se Jesus fosse Melquisedeque, jamais receberia dízimo de um despojo que teve por preço o sangue daqueles reis. No entanto, Melquisedeque não teve qualquer escrúpulo em tomar parte dos frutos daquela missão245. O sacerdócio de Melquisedeque, assim como o sacerdócio levítico, foi por conseguinte temporário, enquanto o sacerdócio de Cristo se tornou perfeito e eterno, não por causa de sacrifícios exteriores, mas à custa de seu próprio sangue derramado. Após a ressurreição, Jesus: “... nos dias de sua carne, tendo oferecido, com grande clamor e lágrimas orações e súplicas a quem o podia livrar da morte e tendo sido ouvido por causa de sua piedade, embora sendo Filho, aprendeu a obediência, pelas coisas que sofreu e, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem...”246. Os sacerdotes levíticos eram fracos porque pecavam assim como os homens pelos quais eles faziam intercessão. Jesus, contudo, é santo, imaculado e separado dos pecadores. Ele não teve que fazer oferendas por si mesmo, como os sacerdotes levíticos tinham que fazer. De muitas maneiras, Jesus é verdadeiramente o sumosacerdote superior! Diferente dos sacerdotes levíticos, incapazes de continuar a servir por causa da morte, Jesus vive sempre para fazer intercessão por nós e foi feito sacerdote através do imutável juramento de Deus. Mas por que uma outra ordem de sacerdócio, além de Melquisedeque, seria necessária? A resposta é que o sacerdócio levítico não era adequado 247 nem a Jesus era permitido ser sacerdote segundo a ordem de Levi porque Ele era da tribo de Judá248. A lei de Moisés nada dizia sobre homens de Judá se tornarem sacerdotes e, assim, isso era proibido. O homem não deveria ir além do que Deus autorizou. Então, porque alguém haveria de querer voltar à Velha Lei e ao sacerdócio levítico se Jesus era um Sumo-Sacerdote superior? A resposta está em que Ele foi feito sacerdote pelo poder de uma vida infindável e não através de um mandamento carnal, como exigia a antiga Lei de Moisés.249 243 Cf. Hb., 7: 22. Cf. Gn., 14: 17-18 e Hb., 7:1. 245 Cf. Hb., 7:4. 246 Cf. Hb., 5: 7-9. 247 Cf. Hb., 7: 11 a 27. 248 Cf. Hb., 7: 13-14. 249 Cf. DVORAK, Allen. “Estudo Textual: Hebreus 7:1-28, Jesus: Um Sumo Sacerdote Superior”, disponível em: http://www.estudosdabiblia.net/heb6.htm. 244 115 O ambiente na Palestina É lógico que o Cristianismo provém da origem semítica e tem raiz na tradição hebraica que estamos rapidamente estudando. Após os vários cativeiros do povo judeu, vemos os descendentes hebreus subjugados na Palestina, sob a opressão do Império Romano. A Palestina era um país de muitas nações, de muitas línguas e muitos interesses, como já vimos. Na Cidade Santa (Jerusalém), havia algumas seitas dentro do tronco principal do Judaísmo, entre elas a que deu origem ao Cristianismo.250 As correntes religiosas da época eram diversas, podendo distinguir-se três amplas categorias de crença e observância religiosa: a religião tradicional da família e dos deuses comunitários; os assim chamados “cultos dos mistérios”, que tinham as suas raízes míticas em ritos locais de fertilidade; os que viviam em busca da realização humana e da felicidade por meio do estudo e da prática da sabedoria filosófica. As religiões que celebravam a natureza (arianas) estavam espalhadas por todo o Mediterrâneo, e as mais populares eram os cultos da Grande Mãe, ou de Ísis, no Egito, e o de Mithra na Pérsia. No Judaísmo, por sua vez, havia duas seitas principais que professavam idéias contrárias e alimentavam rancores recíprocos: A dos fariseus251: sacerdotes, escribas e leigos, que acreditavam e seguiam a Lei de Moisés. Eles colocavam a religião tradicional acima da política, sentindo que podiam viver com qualquer governo que não restringisse a liberdade religiosa. Eles aceitavam a Doutrina da Cooperação de Deus nos atos humanos, o livre arbítrio e a responsabilidade moral, e, principalmente, que o Messias restauraria a dinastia divina e livraria os judeus do domínio estrangeiro; A dos saduceus252: a nobreza e hierarquia mais alta dos sacerdotes, que não acreditavam na lei do retorno ou na ressurreição e sustentavam a crença de que havia um lugar na Terra para onde iam os mortos, sem julgamento. Negavam a existência de espíritos e anjos e não acreditavam na Providencia ou na Orientação Divina, tampouco que Deus pudesse atender às suas preces. Eles defendiam o livre arbítrio. Cf. OCCHIUCCI, VERA. “Doce Mistério da <http://docemistdavida.blogspot.com/2007/12/mistrios-cristos.html>. 250 Vida”, disponível em Fariseu, do hebraico, “parasch” que significa “divisão”, “separação”. Pretendiam ser os donos da verdade em matéria de teologia e o termo passou a ser sinônimo de hipocrisia e conduta diferente na prática do que se prega em teoria. Da virtude só possuíam a aparência e a ostentação, mas com isso exerciam grande influência, passando por santas criaturas; eis porque eram muito poderosos em Jerusalém. 252 Saduceus eram os adeptos de uma seita judia que se formou por volta de 248 a.C., assim nomeada devido a Sadoc, seu fundador, e, apesar de acreditarem em Deus, mantinham a crença de que o objetivo da vida era a satisfação dos sentidos e, ao contrário dos fariseus, não aceitavam as práticas exteriores do culto. 251 116 De acordo com Allan Kardec253, após o cisma das dez tribos, a Samaria tornouse a capital do reino dissidente de Israel, tornando-se uma das três divisões da Palestina sob o Império Romano. Herodes (73 a.C- 4 a.C.), que foi rei dos judeus, a partir de 40 a.C. e pai de Herodes Antipas, embelezou a região com suntuosos palácios para agradar ao imperador Augusto. Os samaritanos, que aos olhos do judeus eram considerados heréticos254, tinham aversão profunda aos reis de Judá255 e rejeitavam os livros acrescentados à lei de Moisés e, por isso, foram perseguidos e amaldiçoados. Os samaritanos constituíamse nos protestantes daquela época. Atualmente existem samaritanos em Nabulus e Jafa (cidades israelenses) e seguem as leis mosaicas com maior rigor que os outros judeus e só celebram casamentos entre eles.256 Os nazarenos formavam um grupo minoritário judeu que fazia votos de pureza perfeita por toda a vida, obrigando-se à castidade, à abstinência de bebidas alcoólicas e à conservação da cabeleira. Sansão, Samuel e João Batista eram nazarenos e esse nome passou a denominar os cristãos, por causa de Jesus de Nazaré.257 Já os publicanos eram os encarregados de cobrar os impostos e rendas de qualquer natureza em favor dos romanos e eram, por isso, odiados pelos judeus que os consideravam pessoas de má reputação.258 Os escribas, por sua vez, eram secretários dos reis de Judá e intendentes dos exércitos judeus. Mais tarde, designaram os doutores que ensinavam a lei de Moisés e partilhavam das idéias dos fariseus. Jesus fez grandes inimigos entre os escribas e fariseus, em razão de lhes desmascarar a hipocrisia.259 Havia ainda os essênios260, que tinham uma vida disciplinada e demonstravam mais afeição uns pelos outros. Rejeitavam os prazeres, que consideravam perniciosos, e acreditavam que a não submissão às paixões era uma virtude. Com freqüência rejeitavam o matrimônio, mas muitas vezes acolhiam os filhos dos outros enquanto estivessem em tenra idade e pudessem ser educados conforme os costumes essênios. Quando havia matrimônio, constituía-se entre duas pessoas que fossem compatíveis em todos os níveis de desenvolvimento e a aliança era supervisionada pelos Altos Iniciados e adeptos da seita essênia. Eram estudiosos de astrologia, numerologia, frenologia261 e do retorno dos indivíduos, as encarnações. Tratava-se de uma seita estabelecida para preparar o caminho para educar e treinar o Messias. 253 KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, tradução de Albetina Escudeiro Sêco, 1ª edição, Rio de Janeiro, CELD, 2000. 254 Herético, o mesmo que “herege”, significa aquele que professa doutrina contrária ao que foi definido oficialmente como objeto de fé. Todo aquele que contraria o cânone vigente, em geral imposto de força ou pelo poder político reconhecido, será considerado rebelde ou “herético”. 255 Judá era o reino formado pelas tribos de Judá e Benjamin e que ocupava a parte meridional da Palestina, constituído cerca de 931 a.C. e destruído em 586 a.C. Cristo era descendente das tribos de Judá. 256 Cf. KARDEC, op. cit., pp. 38 e 39. 257 Idem, pp. 39 e 40. Nazarenos e essênios eram praticamente a mesma coisa... 258 Idem, pp. 41 e 42. 259 Idem, p. 45. 260 Os essênios eram uma seita judia formada em 150 a.C., no tempo dos Macabeus. Eram celibatários, austeros e muito próximos aos hábitos dos primeiros cristãos, de onde veio a crença de que Jesus era adepto desse grupo específico. 261 Teoria que considerava a conformação do crânio como indicadora do caráter e das faculdades intelectuais dos indivíduos. Essa teoria, antes arte advinhatória, foi desenvolvida no século XIX por 117 Os essênios eram os últimos remanescentes da Fraternidade dos Profetas, organizada por Samuel e tinham dois centros importantes, um no Egito perto do Lago Moeris, e outro na Palestina, perto do Mar Morto. Os essênios dividiam-se também em dois grupos: Os Chefes de Família, que se casavam e moravam em casas nas vilas e cidades, como pessoas comuns, preparando-se por meio de estrita disciplina espiritual para a santidade da paternidade, com o objetivo de atrair egos evoluídos do mundo celeste, que desenvolveriam o trabalho da Ordem e de toda a humanidade; O grupo mais esotérico, que compreendia os Iniciados e que faziam votos de perpétua virgindade, e se mantinham imaculados no mundo, vivendo habitualmente em comunidades monásticas isoladas, onde podiam devotar a vida às coisas do espírito. Maria e José pertenciam à mais elevada ordem iniciática; daí o seu sacrifício, em sair para o mundo e filiar-se ao grau menor dos Pais de Família, ter sido muito maior. Era comum que uma mulher iniciada nas muitas tradições dos mistérios fizesse um apelo a uma alma mais elevada para recebê-la no útero e, dessa forma, dar à luz um profeta, um mestre ou um ser semidivino. A alma escolhida para uma missão divina, vem do mundo divino livre e conscientemente, e, para poder entrar na vida terrena, ela precisa de um veículo especial. Este é o chamado da mãe de elite, ela mesma uma iniciada, alguém que, pela capacidade moral e espiritual, pela pureza da alma e da vida, pelo elevado desenvolvimento dos seus sentidos, atrairia em seu sangue e carne a alma de um redentor ou profeta. Os Essênios não são mencionados no Novo Testamento e evitavam qualquer referência a si próprios e aos seus métodos de estudo e de adoração. Jesus, de acordo com a tradição Cristã esotérica, foi um Iniciado educado pelos Essênios até aos trinta anos de idade e alcançou um estado muito elevado de desenvolvimento espiritual. É possível que a sua educação haja sido conduzida entre os Essênios Nazarenos de Monte Carmelo, uma comunidade na zona da Galileia. Jesus teria vindo de uma longa tradição de profetas judeus, pessoas que haviam sido dedicadas ao seu Deus pelos pais. As pessoas dessa linhagem com freqüência eram citadas como “Emanuel”, o que significa “Deus no meio de nós”.262 Os ensinamentos ocultos de Jesus Se pudéssemos estudar, sob o prisma da psiquiatria contemporânea, a escolha dos discípulos por Jesus, chegaríamos a um terrível paradoxo: como o Filho de Deus, Mestre dos Mestres, pôde se cercar de doze indivíduos broncos, pescadores e trabalhadores artesanais semi-analfabetos para empreender a grande obra de salvação da humanidade? Lombroso, que tentava descrever o comportamento criminoso através de medidas antropométricas do crânio. Essa teoria foi posteriormente abandonada por não possuir comprovação científica. 262 Cf. OCCHIUCCI, site citado. 118 De fato, Ele agia como um arquiteto de novas relações sociais, estabelecendo modelos que virariam de cabeça para baixo o mundo da época. A condenação do individualismo e a valorização do próximo eliminavam, por seu turno, a formação de homens dignos de pena, que não fossem lúcidos, seguros e coerentes da própria fé. Jesus valorizava a tolerância e propunha que a cidadania e a solidariedade fossem apelos que viessem de dentro, não de fora. Conforme o psiquiatra Augusto Jorge Cury: “O objetivo dele não era reformar a religião judaica. Seu projeto era muito mais ambicioso. Cristo desejava causar uma profunda transformação no cerne da alma humana, uma profunda mudança na maneira de o homem pensar o mundo e a si mesmo.”263 Jesus, sem dúvida, era culto e instruído, embora não haja qualquer prova de que tenha escrito alguma coisa. Segundo Mark L. Prophet e Elizabeth Claire Prophet: “Os quatro Evangelhos acentuam que os doze escolhidos freqüentemente não compreendiam os seus ensinamentos, especialmente as importantes afirmações a respeito de sua morte e ressurreição. Somente após a ressurreição, quando o Senhor os censurou pela “incredulidade e dureza do coração” e depois “abrindo-lhes o entendimento” puderam compreender as Escrituras, e depois do Espírito Santo os ter iluminado, foram capazes de receber o manto do Senhor.”264 As referências de Cristo ao Antigo Testamento são evidentes em diversas passagens bíblicas, desde a repreensão a Satanás, no deserto, quando citou trechos do Deuteronômio, passando pelo confronto com os fariseus, saduceus e escribas, os letrados da época, que foram habilmente confundidos num debate, e em outras ocasiões em que Jesus citava Moisés e versículos do Êxodo265. Quando o jovem rico perguntou o que deveria fazer para alcançar a vida eterna, o Mestre mandou que observasse os dez mandamentos recebidos no Êxodo e cumprisse a ordem do Levítico “amarás o teu próximo como a ti mesmo.”266 Embora se possa presumir que boa parte do que Jesus disse tenha sido perdido267, Ele muitas vezes referiu-se a passagens bíblicas para ilustrar o pensamento e dizia claramente que não havia vindo para destruir a lei (de Moisés e dos profetas), mas para cumpri-la268. Ele foi enviado para transmitir a mensagem mais importante já confiada pelo Pai ao Filho – a mensagem de nossa salvação, mas é óbvio que certos ensinamentos foram deliberadamente mantidos em sigilo por Jesus e seus apóstolos, pois, como sabemos, eles realmente tinham uma doutrina secreta e pretendiam mantê-la assim.269 Existem várias passagens no Novo Testamento em que o Mestre aborda o caráter secreto de sua doutrina. Dentre elas: 263 Cf. CURY, Augusto Jorge Cury. Análise da Inteligência de Cristo, o Mestre dos Mestres, p. 220, São Paulo, Editora Academia de Inteligência, 1999. 264 Cf. PROPHET, Mark e PROPHET, Elizabeth Claire. Os Ensinamentos Ocultos de Jesus 1, p. 27, tradução de Roberto Argus, 3ª edição, Rio de Janeiro, Record: Nova Era, 1999. 265 Cf. PROPHET, op. cit., idem. 266 Idem, p. 28. Ver Mt., 19: 16-19; Ex., 20: 12-16 e Lv., 19: 18. 267 “Há, porém, ainda muitas coisas que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas uma por uma, creio eu que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos.”, cf. Jo., 21: 25. 268 Cf. PROPHET, op. cit., p. 28. Ver Mt., 5: 17 e 18. 269 Idem, p. 31. 119 “A vós vos é dado saber os mistérios do reino de Deus, mas aos que estão de fora todas estas coisas se dizem por parábolas. Para que, vendo, vejam, e não percebam; e, ouvindo, ouçam, e não entendam; para que se não convertam, e lhes sejam perdoados os pecados”270; “E com muitas parábolas semelhantes lhes expunha a palavra, conforme o permitia a capacidade dos ouvintes. E sem parábolas nunca lhes falava; porém tudo declarava em particular a seus discípulos”271; “Porque em verdade vos digo que muitos profetas e justos desejaram ver o que vós vedes e não o viram, e ouvir o que vós ouvis, e não o ouviram.272”; “O que vos digo às escuras, dizei-o a plena luz; e o que se vos diz ao ouvido, proclamai-o dos eirados273e, finalmente, “Tenho ainda muito que vos dizer, mas vós não podeis suportar agora; quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir.”274; E, finalmente, João, em seu “Evangelho espiritual” afirma o fato de que Jesus ensinou muito mais do que é evidenciado em seu próprio relato: “Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão descritos neste livro.”275 Os que ficavam de fora dos ensinamentos – e que não eram discípulos ou iniciados – eram também merecedores, mas não estavam absolutamente preparados como os apóstolos, os instruídos “sem véus”. A noção de ser cristão, no Cristianismo primitivo, não era somente uma simples adesão a uma Igreja, como hoje em dia. Pressupunha uma purificação de três anos, em que o adepto (chamado “Crestus”, homem bom e virtuoso) não participava dos principais rituais. Com o tempo decorrido, transformava-se o novo adepto em “catecúmeno”, quando então recebia o batismo (a imersão na água) e uma palavra de passe para entrar nos templos. Lembremos que os cristãos primitivos eram perseguidos e reuniam-se em catacumbas para não serem presos e precisavam de sinais particulares para obter a própria identificação sem correr perigo de vida... É fundamental anotar que o Cristianismo, de início, era mera seita judaica, como tantas outras, e assim permaneceria, pequena e insignificante, se não houvesse em 70 a.D. a destruição de Jerusalém e a formação da diáspora (a dispersão dos judeus pelo mundo). Esse fenômeno histórico provocou a reunião dos cristãos em pequenas comunidades para fugir à própria destruição pelos romanos e a seita inicial deixou de ser mero apêndice do Judaísmo para se transformar em enorme onda civilizacional. 270 Cf. Mc., 4: 10-12. Cf. Mc., 4: 33-34. 272 Cf. Mt., 13: 17. 273 Cf. Mt., 10: 27. 274 Cf. Jo., 16: 12-13. 275 Cf. Jo., 20: 30. 271 120 As instruções secretas de Jesus eram, pois, transmitidas como nas antigas tradições da história mística, ou seja, da boca para o ouvido276, numa interação pessoal entre o mestre e o discípulo, enquanto as parábolas permaneciam como doutrina pública, que se expandia em comunicações diretas com o povo a quem o Mestre habitualmente se dirigia para pregar277. Tão preciosa e invulgar naqueles tempos tornava-se a conversão a Cristo, que a palavra “cristão” só é citada por três vezes no Novo Testamento. O termo significava, à época, chegar a um nível de evolução muito alto, designando aquele que alcançava a “consciência crística” ou alguém que fora ungido pelos mistérios. A cena do Gólgota (da crucificação de Jesus) é o último termo da vida de Cristo, o selo último de sua missão, por isso o Mistério mais profundo do cristianismo. Apesar das lacerações do suplício, ele permanece o Messias. Ele perdoa os carrascos, consola o ladrão que conservou a fé… Para esvaziar o cálice, é preciso que atinja esse sentimento de solidão final que lhe fará dizer: “Pai, por que me abandonaste?”. Morto, Dele não resta senão o cadáver pendurado no madeiro, mas no mundo astral e no mundo espiritual resplandece o clarão de luz seguido de um golpe de raio. Num único salto, a alma de Cristo encontra a aura solar. E no Templo de Herodes, o véu esplêndido que esconde o tabernáculo rasgou-se de alto a baixo “no momento em que Jesus expirou”.278 A ressurreição de Cristo deveria ser a garantia da ressurreição das almas durante a vida, assim como a fé noutra existência. Essa fé não cresceu bruscamente nos apóstolos; ela deveria insinuar-se em seus corações como uma voz, convencendo-nos como um sopro de vida que se comunica. As aparições de Cristo são, por conseguinte, gradativas para produzir efeitos sempre maiores. Assim, a missão de Cristo deveria iluminar e ampliar a vida depois da morte, como havia iluminado e ampliado a vida sobre a Terra! Mas o essencial dessa missão era fazer entrar a certeza da ressurreição espiritual no coração dos Apóstolos, que deveriam difundir o pensamento de Cristo no mundo. Depois de ser ressuscitado, era preciso que Cristo ressuscitasse “neles” e “por eles”, e que esse fato pairasse sobre toda a história futura.279 No sepulcro, Ele bradou: “Maria!... Não me toques!... Vai e diz aos apóstolos que ressuscitei!”. Aos onze reunidos, a portas fechadas, Ele apareceu em uma casa em Jerusalém, dando a eles o encontro na Galiléia. No crepúsculo patético de Emaús, sanador divino das almas, reacendeu-lhes a fé; na praia do lago de Tiberíades, preparando Pedro e João para seu destino e, pela última vez sobre uma montanha da Galiléia, dizendo-lhes estas palavras supremas: “Ide e pregai o evangelho a todas as Ao contrário do que hoje chamamos vulgarmente de “comunicação boca a boca”. No mundo antigo não era assim, até porque transmissão boca a boca não é informação, é beijo... 277 O povo era comumente chamado de “criancinha” ou “pobre de espírito”, ou seja, não eram iniciados. 278 Cf. GADAL, Antonin. “A obra de um homem inspirado pelo Espírito”, disponível em: <http://www.gadal-catharisme.org/gnosis-iniciacao>. 279 Idem, site citado. 276 121 nações... E vede, eu estou convosco até o final dos tempos!”. Este foi o adeus solene do Mestre!280 Mais tarde, ainda uma vez, Cristo aparecerá de forma excepcional ao adversário Paulo, na estrada de Damasco, para fazer dele seu mais inflamado defensor: de uma clareza vitoriosa, desta visão e desta palavra fulgurante, brotará a missão do “apóstolo dos gentios” que converterá o mundo greco-latino e, daí, todo o Ocidente. Essa irradiação divina, prolongada pelo processo da “ressurreição espiritual” criou as primeiras comunidades cristãs, e isso lhes bastava. Para elas, todo o passado humano, todas as religiões, toda iniciação antiga, toda ciência adquirida da Ásia, do Egito e da Grécia, se confundiam com a decadência greco-latina; somente o Cristo existia.281 Assim, nos dois primeiros séculos certo número de comunidades cristãs conservou o antigo princípio da iniciação hierárquica e gradativa. É o que se chamava “a Gnosis”. A união com o Cristo era para eles um fenômeno místico, superior a todos os outros, uma realidade simultaneamente individual e coletiva. Mas tão logo foi imposto o “dogma de que a fé na igreja estabelecida substituía todo o resto”, o princípio da iniciação foi suprimido e a fé cega substituiu o “verdadeiro conhecimento”.282 A Fraternidade Universal estendia longe o seu templo do Espírito: os cátaros na Occitânia, os maniqueus na Ásia e na Bulgária, os rosacruzes no norte da Europa, os templários da Ásia Menor na Europa – propagaram um cristianismo purificado, um verdadeiro cristianismo apostólico. Mas a realeza francesa e o papa se aliaram para destruir o templo do Espírito: as cruzadas “dos albigenses”, a perseguição obstinada contra os cátaros por mais de cento e vinte anos, a destruição total dos templários, a aniquilação dos seus arquivos e dos instrumentos dos seus rituais, foram “vésperas sicilianas da monarquia absoluta contra o esoterismo cristão”.283 A Igreja primitiva Podemos aceitar as Escrituras canônicas284 como demonstração do que era acreditado na Igreja Primitiva a respeito do ensino de Cristo e de Seus seguidores 280 Idem. Idem. 282 Idem. 283 Idem. 284 Cânon é a relação oficial dos livros aceitos como Sagradas Escrituras; Evangelhos “sinóticos”, palavra que vem do grego “syn-opsis”, que significa “visão de conjunto”. Três dos quatro evangelhos – Mateus, Marcos e Lucas – são espantosamente similares quanto à linguagem, seqüência de eventos e pontos de vista que foram chamados de sinóticos, uma vez que estão vendo em conjunto os episódios da vida de Jesus Cristo. Várias semelhanças em conteúdo e estrutura fazem com que seja possível arrumar seus versículos em colunas paralelas, de modo a serem lidos juntos. O Evangelho de João, o Evangelho Espiritual, difere significativamente dos outros três. Cf. PROPHET, Os Ensinamentos Ocultos de Jesus 1, op. cit., p. 226. 281 122 imediatos, e ver o que elas dizem sobre a existência de um ensinamento secreto transmitido somente a uns poucos. Tendo visto as palavras postas na boca do próprio Jesus, e consideradas pela Igreja como de suprema autoridade, olharemos também para os escritos do grande apóstolo Paulo; então consideraremos as declarações feitas por aqueles que herdaram a tradição apostólica e guiaram a Igreja durante os primeiros séculos. Ao longo desta ininterrupta linha de tradição e testemunho escrito pode ser estabelecida a proposição de que o Cristianismo tinha mesmo um lado oculto. Veremos, ainda, que os Mistérios Menores de interpretação mística podem ser acompanhados através dos séculos até o início do século XIX. Embora, naquele período, já não houvesse Escolas de Misticismo reconhecidas como preparatórias para a iniciação depois do desaparecimento dos Mistérios, ainda assim grandes místicos, de tempos em tempos, alcançaram os degraus inferiores do êxtase por seus próprios esforços contínuos, auxiliados sem dúvida por Instrutores invisíveis.285 O Evangelho dá as explicações místicas alegóricas, aquilo que chamamos “Os Mistérios Menores”, mas o significado mais profundo diz-se ter sido dado somente aos iniciados. Algumas dessas explicações provavelmente foram ditas depois da morte de Jesus, quando Ele foi visto pelos discípulos “falando das coisas pertencentes ao Reino de Deus”286. Nenhuma dessas interpretações, entretanto, foi registrada publicamente, mas quem pode garantir que foram deixadas de lado ou esquecidas, e não preservadas como algo inestimável? Havia uma tradição na Igreja de que Ele visitou os apóstolos durante considerável período após Sua morte.287 Havia diversos nomes, além do termo “O Mistério”, ou “Os Mistérios”, usados para designar o círculo sagrado de Iniciados ou ligados à Iniciação: “O Reino”. “O Reino de Deus”, “O Reino dos Céus”, “A Vereda Estreita”, “A Porta Estreita”, “O Perfeito”, “O Salvo”, “Vida Eterna”, “Vida”, “O Segundo Nascimento”, “O Pequenino”, “A Criancinha”. O significado é tornado claro pelo uso destas palavras nos primeiros escritos Cristãos, e em alguns casos fora do círculo Cristão. Assim, o termo “O Perfeito” era usado pelos Essênios, que tinham três graus em suas comunidades: os Neófitos, os Irmãos, e os Perfeitos – sendo estes os Iniciados; e é empregado geralmente neste sentido nos antigos escritos. “A Criancinha” era o nome comum para um candidato recém-iniciado, isto é, aquele que recém teve seu “segundo nascimento”.288 Quando Jesus está se dirigindo a Nicodemos, Ele fala que “a não ser que um homem nasça duas vezes, não pode ver o Reino de Deus”, e este nascimento é dito BESANT, Annie, “O Cristianismo Esotérico Ou Os Mistérios Menores”, disponível em <http://www.hermanubis.com.br/LivrosVirtuais/LVOCristianismoEsoterico.htm>. 286 Cf. At. 1:3. 287 Cf. BESANT, site citado. 288 Idem. 285 123 como sendo aquele “da água do Espírito”289 ; esta é a primeira Iniciação; uma ulterior é a “do Espírito Santo e do fogo”290, o batismo do Iniciado em sua maturidade, assim como a primeira é a do nascimento, que o recebe como “uma Criancinha que entra no Reino”291. A ausência de familiaridade destas imagens entre os místicos Judeus é indicada pela surpresa demonstrada por Jesus quando Nicodemos se embaraçava com Sua fraseologia mística: “Tu és um mestre de Israel e não conheces estas coisas?”292. Um outro preceito de Jesus, que permanece como “um ditado rude” para seus seguidores, é: “Sede perfeitos, assim como vosso Pai no céu é perfeito”293. O Cristão comum sabe que possivelmente não conseguirá obedecer a este mandamento, cheio como está de fragilidades e fraquezas humanas, como poderia ser perfeito como Deus é perfeito? Vendo a impossibilidade da meta posta diante dele, o cristão discretamente a põe de lado e não pensa mais nisso. Mas vista como o esforço coroador de muitas vidas de melhoras constantes, como o triunfo do Deus interno sobre a natureza inferior, a meta parece então dentro do alcance. São Paulo a segue nas pegadas do Mestre e fala exatamente do mesmo sentido, mas com maior clareza, como poderia ser esperado a partir de seu trabalho organizador na Igreja.294 O conhecimento – ou, se preferirmos o termo, a suposição – de que a Igreja possuía tais ensinamentos ocultos lança uma torrente de luz sobre diversas passagens de São Paulo sobre si mesmo, e quando as reunimos, temos um perfil da evolução do Iniciado. São Paulo diz que embora ele já estivesse entre os perfeitos, os Iniciados – pois ele diz: “Que nós, portanto, que somos perfeitos, tenhamos esta mentalidade” – ele ainda não tinha “atingido”, não era inteiramente “perfeito”, não havia recebido do Cristo, o “alto chamado de Deus em Cristo”, “o poder de Sua ressurreição, e a companhia de Seus sofrimentos, sendo tornado conforme à Sua morte”; e estava tentando: “se por algum meio puder alcançar a ressurreição dos mortos”.295 O Cristianismo “Místico” Os Essênios são considerados os precursores do Cristianismo Esotérico. Do ponto de vista oculto, a tradição Cristã esotérica remonta a essa excelsa e devota Ordem que existiu na Palestina. No Cristianismo, também, especialmente no que se refere ao ponto central, o “Mistério do Sacrifício na Cruz”, temos de fazer distinção entre as concepções exotéricas (abertas a todos) e o conhecimento esotérico (somente permitido aos Iniciados). 289 Cf. Jo., 3: 3-5. Cf. Mt., 3: 11. 291 Cf. Mt., 18: 3. 292 Cf. Jo., 3: 10. 293 Cf. Mt., 5: 48. 294 Cf. BESANT, site citado, idem. 295 Cf. Fp., 8: 10-12, 14 e 15. 290 124 Uma contemplação exotérica do Cristianismo, acessível a todo o mundo, está contida nos Evangelhos. Lado a lado com tal contemplação, sempre houve um Cristianismo esotérico para aqueles que tinham vontade de preparar corações e mentes de forma adequada para a recepção de um Cristianismo mais profundo.296 As bases da doutrina cristã esotérica, que foram transmitidas por tradição oral, diferenciam-se dentro da comunidade cristã especialmente pelo fato de a reencarnação e o evolucionismo constituirem-se nos pontos-chave. Assim como as demais vertentes cristãs, considera-se a Bíblia e, especialmente os Evangelhos como fontes de autoridade dos mistérios de Deus, mas a Bíblia não é considerada a “palavra de Deus” nem deve ser interpretada literalmente, ou considerada à prova de erros. Outras Escrituras, que não foram incluídas na Bíblia, também são amplamente consideradas, entre as quais os evangelhos considerados apócrifos297. Cristo é visto como líder da humanidade e governante do Sistema Solar, sendo onipresente assim como Deus, e por isso tendo uma centelha dentro de cada forma vivente (o chamado “Cristo Interno”298). É considerado também a única entidade à qual o homem deve se dirigir, rejeitando-se portanto o culto a santos e imagens. Os cristãos esoteristas defendiam que não há inferno ou paraíso, ou, pelo menos, que não fossem eternos. Cada pessoa pagaria por aquilo que praticou, na exata proporção. A todos seria concedida a oportunidade de reencarnação, para o aperfeiçoamento do caráter; e a salvação seria dada a toda a humanidade – alguns em mais tempo, outros em tempo menor. O Cristianismo esotérico seria, então, a vertente do Cristianismo composta pelas escolas de mistérios, constituindo o que se conhece como a sua parte mística. Não existem sacerdotes profissionais em sua hierarquia. As escolas geralmente compõem-se de um ou mais instrutores, mas não ministram qualquer tipo de sacramento. O único sacramento reconhecido seria a chamada iniciação299, que não 296 Cf. STEINER, Rudolf. “Cristianismo Exotérico e Esotérico”, Sociedade Antroposófica, [5], 1922. 297 Apócrifos são chamados os evangelhos que apesar de atribuídos a um autor sagrado, não são aceitos como canônicos. Na antiguidade, designavam obras de uso exclusivo de seitas ou escolhas iniciáticas de mistério. Mais tarde, adquiriram o significado de livros de origem duvidosa. Hoje, a Igreja Católica reconhece como parte da tradição, os Evangelhos Apócrifos de Tiago, Matheus, O Livro sobre a Natividade de Maria, o Evangelho de Pedro e o Armênio e Árabe da Infância de Jesus, além dos evangelistas “aceitos”. A maior parte destes textos apareceu nos séculos II e IV e atualmente são considerados “apócrifos”. Na realidade, a única diferença entre eles e os quatro Evangelhos Canônicos resume-se ao fato de que “não foram inspirados por Deus”. 298 Cf. Lc., 17: 20-21: Sendo questionado pelos Fariseus sobre quando viria o reino de Deus, Ele lhes respondeu, "O reino de Deus não virá com sinais a serem observados; nem eles dirão, 'Hei-lo, aqui está!' ou 'Hei-lo acolá' veja, o reino de Deus está dentro de vós." 299 Etimologicamente a palavra “iniciação” vem do latim “in-ire”, ou seja, ir para dentro; donde: “ïn-iter”, ou seja, ingresso, en-caminhamento. Iniciação é o processo que coloca alguém na condição de entrar num novo estado de vida, numa comunidade; no plural latino: “initia”, inícios. A iniciação pode ser compreendida também como “intro-ducere” = conduzir para dentro, intro-dução. 125 ocorre dentro das escolas, mas, segundo afirmam os cristãos esoteristas, seria processo de ordem espiritual, no qual o indivíduo a ser “iniciado”, por meio de exercícios de ordem espiritual, conseguiria colocar-se em contato direto com os mundos suprafísicos, podendo vê-los e senti-los.300 Fala-se aqui da própria sabedoria de Deus em mistério, mesmo a sabedoria oculta, que Deus ordenou antes que o mundo existisse, a qual nem os príncipes deste mundo conhecem. As coisas daquela sabedoria estão além do entendimento dos homens, mas Deus as revela por Seu Espírito, Suas coisas íntimas ensinadas pelo Espírito Santo, coisas espirituais a serem discernidas somente pelos homens espirituais, em quem está a mente de Cristo. Como um “mestre-construtor” (um outro termo técnico nos Mistérios) Ele deixou as fundações...301 Deus é o Ser inominável e supra-essencial, acima da própria bondade. Daí a ‘teologia negativa’, que sobe da criatura até Deus retirando um após outro todos os atributos determinados, e que nos conduz para mais perto da verdade. O retorno para Deus é a consumação de todas as coisas e a meta indicada pelo ensino cristão. O Cristo histórico é, pois, um Ser glorioso pertencente à grande hierarquia que guia a evolução da humanidade, e que veio para dar um novo impulso à vida espiritual do mundo; para restabelecer os ensinamentos internos e indicar novamente a antiga senda estreita; para proclamar a existência do “Reino dos Céus”, da iniciação que admite àquele conhecimento de Deus que é a vida eterna; e para admitir uns poucos a este Reino que seriam capazes de ensiná-lo a outros. Em torno da Figura gloriosa reuniram-se os mitos que O ligaram à longa linhagem dos predecessores, os mitos que em alegorias contam a história de todas as vidas que à d'Ele se assemelham, pois elas simbolizam a obra do Logos302 no Cosmos e a mais elevada evolução da alma humana individual.303 Chegamos ao portal secreto dos Mistérios, e erguemos uma ponta do véu que esconde o santuário. O Cristo Místico, então, é dual – o Logos, a Segunda Pessoa da Trindade, descendo na matéria, e o Amor, ou segundo aspecto do Espírito Divino em desenvolvimento no homem. Um representa os processos cósmicos acontecidos no passado e é a raiz do Mito Solar; o outro representa um processo ocorrido no indivíduo, o estágio conclusivo de sua evolução humana, e acrescentava muitos detalhes ao Mito. Ambos contribuíram para a história do Evangelho, e juntos formam a imagem do “Cristo Místico”. Os Mistérios Femininos Parte da função dos verdadeiros Mistérios Cristãos era resgatar o Feminino Divino. O equilíbrio entre o masculino e o feminino em cada pessoa. Só atingindo esse Cf. HALL, Manly Palmer. “Os Ensinamentos Secretos de Todas as Eras” [6], 1928, Philosophical Research Society. 301 Cf. BESANT, site citado. 302 “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (cf. Jo., 1: 1). Os iniciados chamam a isso o Logos ou a “Palavra Perdida”, que iniciou a Criação... 303 Cf. BESANT, idem. 300 126 equilíbrio é que a criança divina interior poderia nascer. O Feminino simboliza a alma desperta e iluminada, o único tipo de alma no qual o divino em nós pode surgir. O aspecto Amor-Sabedoria enfatizado nos ensinamentos de Cristo Jesus é o Princípio Feminino em que se manifesta a verdadeira iluminação e em que o Reino do Céu é alcançado. O Amor é o principal aspecto do Feminino.304 Nas Escrituras, há parábolas e ensinamentos em que aparecem as mesmas imagens e símbolos, demonstrando que Cristo estava ensinando algum aspecto do eterno Feminino. Em alguns relatos sobre o nascimento de Jesus, a Sagrada Família está numa gruta, e não no estábulo. A parábola da noiva. A festa de bodas em Caná. É a Sabedoria Materna que nos ajuda a recuperar a criança e o Cristo falou muitas vezes em crianças.305 Poderíamos declarar como mistérios femininos: A Anunciação a Maria, feita pelo Arcanjo Gabriel, de que ela daria à luz Jesus, manifestando a visão glorificada e a iluminação que decorrem do equilíbrio entre o masculino e o feminino; A Imaculada Concepção (Imaculada Conceição), em que o poder espiritual da nova visão é impresso no corpo; O Nascimento Sagrado, em que se manifesta a vontade criativa de Deus, o despertar vivo de um novo poder; A Apresentação no Templo (a circuncisão), em que o aspirante é direcionado à vida espiritual; A Fuga para o Egito, em que o aspirante é levado a um período de introspecção em contato com o mundo exterior (o Oriente); Os Ensinamentos no Templo, em que o iniciado exibe a sabedoria, por meio da fusão do coração e da mente; O Batismo pela Água, em que a iniciação se abre à visão plena, com total compreensão e discernimento, a ponto de enfrentar a tentação que viria a seguir; A Tentação, em que o iniciado demonstra toda a coragem e o discernimento espiritual, conseguindo se livrar do pecado que tentou Eva no paraíso.306 Nas Sagradas Escrituras, a presença do eterno feminino é sutil, formando um pano de fundo coerente para os ensinamentos de Jesus. O feminino expressa-se em três aspectos (como nas três pessoas da Santíssima Trindade): na virgindade, na maternidade e na mulher sábia. São três as mulheres que primeiro sabem da encarnação de Jesus (Ana, Maria e Isabel), representando os três degraus do desenvolvimento profético. São também três mulheres, “por coincidência”, a testemunhar a ressurreição de Jesus, demonstrando sabedoria e suprema coragem (Maria Madalena, Maria, mãe de Jesus e Joana). OCCHIUCCI, Vera. “Doce Mistério da Vida”, site citado. Idem. 306 Cf. OCCHIUCCI, Vera., site citado. 304 305 127 O aspecto intuitivo, feminino, tornou-as mais sensíveis ao poder oculto dos eventos. Isso fica ainda mais evidente quando os apóstolos se negam a acreditar na história que elas contam. O aspecto masculino não pode ver com tanta clareza – é o que se deduz dos textos... Joana era casada com alto oficial da corte de Herodes e abandona o marido para seguir novo caminho, deixando a antiga energia masculina para afirmar a própria sabedoria feminina. Salomé, a mulher de Zebedeu, apresenta os dois filhos a Jesus para que se tornassem discípulos do Mestre. Maria, mãe de Marcos, abriu a casa em Jerusalém para Jesus e seus discípulos e foi em sua casa que se realizou a Última Ceia, o símbolo dinâmico da energia feminina atuando através do serviço ao próximo. Marta e Maria de Betânia, a primeira uma pessoa prática, refletindo uma expressão exterior do feminino, e a outra, idealista, simbolizando o interior, foram necessárias e, portanto, sempre mostradas juntas, assim como juntas viajaram com José de Arimatéia, ajudando-o a levar o cálice do Graal para novos países. Verônica, por sua vez, que aparece quando Cristo Jesus está carregando a cruz para o Gólgota e enxuga o rosto Dele, deixando-o impresso no pano, simboliza a energia etérica humana que tem de se tornar mais sensível para que a energia do Cristo se expressasse. Só então a verdadeira visão é recuperada. As Escrituras nos falam sobre três mulheres que presenciaram a morte de Jesus, e não há menção de homens celebrando a força que provém das energias femininas da vida. Isso é evidenciado também na negação de Pedro. A expressão masculina de amor não foi suficiente para suportar as pressões do mundo exterior. O amor feminino interior era sempre suficiente e mais forte. É normal nos perguntarmos porque tantas mulheres nas escrituras têm o nome Maria. No nível mais esotérico, esse fato tem grande importância, pois nos chama a atenção para o significado dos Mistérios Femininos. Este nome tem dois significados predominantes: “myrrh” (mirra) ou, se remontarmos à sua origem, “do mar”. O elemento água, o mar, para simbolizar o Divino Feminino. Toda a vida surge no mar. O Grande Oceano do Divino dá nascimento ao universal. Das águas da vida vem o novo ser. O fato de depararmos com o nome Maria, várias vezes deveria incitar-nos o desejo de pesquisar essa questão mais a fundo. Pode ser um nome adotado por um iniciado e que reflete as energias reverenciadas e honradas por aquela pessoa. Ainda temos, no caminho para o Gólgota, quando Jesus fala com um grupo de mulheres em prantos, depois de cair pela segunda vez, o que simboliza o reconhecimento e a tristeza pela degradação do Feminino Divino, mas também indica que é preciso extrair força do Feminino, já que o caminho completo da iniciação estava se abrindo.307 Maria, mãe do Cristo, era, sem dúvida, a mais alta iniciada. Tanto Maria quanto José eram padrões típicos da expressão espiritual do feminino e do masculino 307 Idem. 128 por meio dos mistérios menores do caminho iniciático. Maria passou por Grandes Iniciações, a saber: A iniciação pela água: que envolve um trabalho sobre as emoções, o que significa que quando as nossas águas emocionais estão controladas, abre-se a visão espiritual, o que na vida de Maria foi indicado pelo episódio iniciático da Anunciação; A iniciação pelo ar: que envolve controle e iluminação consciente da mente. Trata-se da Cristificação da mente pela qual se transcende o tempo e o espaço. Ela desperta o “poder do Verbo”. Tal iniciação foi representada na vida de Maria pelo episódio iniciático de Pentecostes; A iniciação pelo fogo: que envolve o domínio dos aspectos do desejo da alma. O fogo pode ser criativo e destrutivo. Pode inspirar ou queimar. Essa iniciação requer que se aprenda a controlar as forças interiores do nosso fogo criativo, a Kundalini, para que a mais elevada expressão de luz possa se manifestar. Isso foi representado na vida de Maria pelo episódio iniciático da Imaculada Concepção (Imaculada Conceição); e A iniciação pela terra: que envolve o processo de transmutação dos átomos físicos de energia através da energia espiritual. É o domínio sobre tudo o que seja meramente físico. Isso foi simbolizado na vida de Maria pelo episódio iniciático da Assunção. Esse aspecto de Maria, como a Grande Iniciada, configura-se por todo o “Caminho da Cruz”. Ela era a única capaz de caminhar ao lado de Jesus por todo o trajeto do Gólgota. Era a única capaz de trilhar esse caminho no seu nível mais elevado e verdadeiro. Ainda temos a sua comunicação com a hierarquia angélica durante a vida. Cristo move-se de um Logos Solar externo para um Logos Planetário interior. Maria move-se de um protótipo Feminino interior para a presente energia Divina exterior. Com o nascimento dos Mistérios de Cristo, começa o processo de troca de polaridade na expressão da energia.308 O Mitraísmo Segundo os ateus e céticos, o Cristianismo nada mais seria do que uma seita derivada do Judaísmo separatista e do Mitraísmo, uma invenção religiosa greco-persa cujo avatar nasceu de uma virgem a 25 de dezembro, o solstício de inverno, no calendário Juliano. Sendo uma divindade solar, Mitra seria adorado aos domingos (“Sunday” é domingo, “dia do Sol”, em inglês) e esse deus era identificado com outra divindade grega, Hélios, que mantinha um halo de luz sobre a cabeça. O líder do culto, chamado Papa, governava de um "mithraeum" (um palácio) na Colina Vaticano em Roma. Uma característica proeminente no Mitraísmo seria uma grande chave, necessária para destrancar os portões celestiais pelos quais se acreditava 308 Idem. Esse texto adaptado foi um dos mais belos e significativos que encontrei e para mim é uma honra transcrevê-lo quase na íntegra, adaptando-o à estrutura deste livro... 129 passarem as almas dos defuntos. Parece que as “chaves do Reino”, seguradas pelos Papas como sucessores de Pedro, derivavam da adoração à Mitra, não a um messias palestino. Os padres mitraicos vestiam “miters”, um adorno para a cabeça especial do qual o chapéu do bispo cristão foi derivado. O nome latino para tal chapéu, “mitra”, recebeu uma grafia latina aceitável para “Mithra”! Os mitraístas consumiam comida sagrada (“Myazda”) que era completamente análoga ao serviço eucarístico católico (presente no ritual da Missa). Como também os cristãos celebravam a morte reconciliada de um salvador, que ressuscitou num domingo. Naqueles tempos, um século antes de Cristo, o grande centro principal da filosofia Mitraica ficava em Tarso – justamente a cidade natal de São Paulo, hoje território a sudeste da Turquia.309 O clero mitraico envolveu-se ativamente na astrologia do culto que era conhecido como “Magi” (“magoi” em grego), e seus sacerdotes são representados usando toucas “Phrygian” (pseudo-persas) como se supunha serem usadas por Mitra. Alguns destes Magos, percebendo que a Era de Mitra estava prestes a terminar (e que a precessão dos equinócios passaria a Peixes em alguma época durante o primeiro século da Era Cristã), teriam deixado os seus centros de culto na Phrygia e Cilícia, o que é agora sudeste oriental da Turquia, de cidades tais como Tarso, para ir para Palestina e ver se podiam localizar não só o Rei dos Judeus, mas o novo Senhor do Templo, o senhor da nova Era de Peixes (considerava-se que o signo de Peixes tinha conexões especiais com os judeus). É significativo – segundo as correntes céticas – que as antigas representações da visita dos Magos ao menino Jesus (incluindo a gruta em Belém) os mostravam usando toucas Phrygian (Mitraicas). Os Magos mencionados no Segundo Capítulo do Evangelho de Mateus eram sacerdotes – astrólogos mitraicos, provavelmente exploradores que procuravam o Novo Senhor do Templo que iria reger a “Nova Era de Peixes”.310 O texto grego foi mal entendido com respeito ao ponto de origem dos Magos e onde eles estavam quando viram a estrela que motivou sua viagem. A versão do Rei Jaime conta-nos que “os homens sábios do leste viram a estrela no leste.” As traduções modernas, porém, tendem a dizer que os homens sábios viram “sua estrela alçando”. A palavra grega para “leste” pode ser também o nome de um lugar – Anatólia. Anatólia poderia significar a península inteira da Ásia Menor (a área chamada Turquia, agora), ou uma província particular da Phrygia. Então parece que em Mateus 2: 1-2 deve-se de fato ler: “Tendo Jesus nascido em Belém da Judéia, em dias do rei Herodes, eis que vieram uns magos do Oriente [Anatólia] a Jerusalém. E perguntavam: Onde está o recém-nascido Rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela no Oriente [em Anatólia] e viemos para adorá-lo.” Cf. ZINDLER, Frank R. “Como Surgiu Jesus?”, disponível em: <http://www.str.com.br/Atheos/jesus.htm>. 310 Idem. É necessário assinalar que Mitra e Maitréia, o grande avatar que se espera na Era de Aquário (astronomicamente fixada para o ano 2.600 a.D.) tem a mesma raiz etimológica... 309 130 Esta visita palestina dos Magos poderia ter sido o catalisador que ativou vários grupos judeus – e talvez alguns grupos não judeus – a pensar que o Messias311 que eles esperavam já tinha vindo e não tinha sido notado. Para que isto não pareça muito forçado, deveria ser notado que até mesmo em nossa própria época sofisticada notícias da “segunda vinda de Cristo” são de ocorrência regular. Não é irracional supor que em algum lugar, agora mesmo, exista algum pequeno culto que acredite que Jesus já teria voltado à terra.312 Enquanto a referência a um ramo de Jessé parecerá obscura aos leitores modernos, não teria sido obscura aos antigos Judeus tais como aqueles que compuseram os Manuscritos do Mar Morto (descobertos em 1947) nem teria sido oculto aos primitivos cristãos. De acordo com o pai da igreja Epifânio, que nasceu em Chipre em 367 e escreveu um tratado contra os “hereges”, os Cristãos eram chamados de Jesseanos originalmente, justamente por causa dos laços messiânicos com Jessé e a casa de Davi.313 A releitura dos Mistérios Alguns grandes doutores da Igreja construíram notável metafísica, mesclando os sistemas de Platão e Aristóteles com o Cristianismo. No entanto, faltava a eles aquilo que o espírito moderno exige, o conhecimento da natureza e a idéia da evolução psíquica. Mas os sábios iniciados guardavam e conservavam piamente o essencial dos mistérios: a Gnosis velava, dia após dia, por um crescimento sempre maior do círculo dos grandes pensadores e dos sábios. A Idade Média viveu por isso uma história de esplendor e fraternidade espiritual.314 No entanto, é forçoso reconhecer que na medida em que o Cristianismo reforçava os laços políticos e institucionais com as nações européias em formação, na medida em que se expandia e se tornava “popular” e “oficial”, descaracterizou-se das origens, embora super-protegido pela armadura ortodoxa da Igreja católica. As doutrinas do Cristianismo estavam naquela altura tão firmemente estabelecidas que a Igreja poderia encarar até uma interpretação simbólica ou mística sem ansiedade, mas tal não aconteceu. O clero preferiu firmar-se como poder social e terreno, ao lado da realeza e da aristocracia, como um “Segundo Estado”, entre o Primeiro (os aristocratas) e o Terceiro (o povo). É certo que no Cristianismo havia espaço para os ignorantes, mas ele não foi preparado apenas para eles, mas também para atingir os mais sábios, espertos, engenhosos e sutis. O nome “Jesus de Nazaré” originalmente não era um nome, mas um título que significava (O) Salvador, (O) Ramo. Em Hebraico estes teriam sido Yeshua Netser. A palavra ‘Yeshua' significa 'salvador' e ‘Netser” significa 'broto,' 'ramo,' ou 'galho' - uma referência a Isaias 11:1, o qual pensava-se predizer um messias (lit., 'o ungido') da descendência de Jessé (o pai do Rei Davi): "Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um renovo.” E Jessé significava, em hebraico, “presente de Deus”... 312 Idem. 313 Idem. 314 Os que vêem ainda a Idade Média como uma Idade das Trevas estão muito atrasados em termos das modernas descobertas da historiografia. Ler sobre isso o historiador Henri Pirenne entre outros medievalistas europeus famosos... 311 131 Aliás, como observa a teósofa Annie Besant, as religiões são ofertadas ao mundo por homens sábios, com o propósito de estimular a evolução humana. Mas os homens não estão todos no mesmo nível de evolução, a evolução poderia ser figurada como uma escala progressiva, com homens em todos os estágios. Os mais altamente evoluídos estão muito acima dos menos evoluídos, tanto em inteligência como em caráter; as suas capacidades de entender e de agir também variam em cada estágio. Portanto, é inútil dar a todos o mesmo ensino religioso: aquilo que ajudaria o homem intelectualizado seria inteiramente impossível de entender para o estúpido, enquanto que aquilo que lançaria o santo em êxtase deixaria o criminoso inabalado315. E a mesma autora assim sintetiza: “As religiões do mundo são marcadamente semelhantes nos ensinamentos principais, na existência de Fundadores que apresentam poderes sobrehumanos e extraordinária elevação moral, nos preceitos éticos, no uso de meios para entrar em contato com os mundos invisíveis, e nos símbolos pelos quais expressam as crenças principais. Esta similaridade, chegando em 316 muitos casos até a identidade, prova uma origem comum.” O Cristianismo, por ter se misturado tão profundamente ao poder temporal, foi esquecendo com o tempo o ensino místico e esotérico, como também perdendo, a partir do século XVI, o poder de sedução entre as pessoas mais altamente educadas e refinadas. Essa divisão chegou a tal ponto que, num período materialista como o século XIX, multidões de pessoas inteligentes e de alta moralidade se desviaram da Igreja católica, porque os ensinamentos que recebiam lá ultrajavam sua inteligência e chocavam seu senso moral. É inútil pretender que o agnosticismo, disseminado naquela época, tenha raízes na falta de moralidade ou na deliberada perversidade da mente de pessoas soberbas. Qualquer um que estudasse com cuidado o fenômeno logo admitiria que homens de poderoso intelecto foram levados para fora do Cristianismo pela crueza das idéias religiosas apresentadas, as contradições nos ensinamentos das autoridades eclesiásticas, nas concepções sobre Deus, o homem e o universo, que nenhuma inteligência treinada poderia chegar a admitir.317 Nem pode ser dito que qualquer tipo de degradação moral esteja na raiz da revolta contra os dogmas da Igreja. Os rebeldes não eram ruins demais para a religião. Ao contrário, foi a religião que ficou ruim demais para eles. A rebelião contra o Cristianismo popular foi devida ao despertar e crescimento da consciência; foi a consciência que se revoltou, assim como a inteligência, contra ensinamentos desonrosos tanto para Deus quanto para o homem, que representavam o Pai como um tirano, e o homem como sendo essencialmente mau, obtendo a salvação por submissão escrava.318 315 Cf. BESANT, site citado. Idem. 317 Idem. 318 Idem. 316 132 Embora saibamos de diversas classificações sobre os mistérios cristãos, o ensino popular da Igreja estabeleceu novas demarcações, completamente distantes das antigas escolas iniciáticas. Assim, de acordo com o Catecismo Romano: “A palavra grega “mysterion” foi traduzida para o latim por dois termos: “mysterium” e “sacramentum”. Na interpretação popular, o termo “sacramentum” exprime mais o sinal visível da realidade escondida da salvação, indicada pelo termo “mysterium”. Neste sentido, Cristo mesmo é o mistério da salvação, porque “não existe outro mistério de Deus a não ser Cristo”. Sua obra, expressa por sua humanidade santa e santificante, é o sacramento da salvação que se manifesta e age nos sacramentos da Igreja (que as Igrejas do Oriente denominam também “os santos mistérios”). Os sete sacramentos (o Batismo, o Crisma (a confirmação), a Eucaristia, a Penitência, a Unção dos Enfermos, a Ordem e o Matrimônio) são, por sua vez, os sinais e os instrumentos pelos quais o Espírito Santo difunde a graça de Cristo. A Igreja contém, portanto, e comunica a graça invisível que ela significa. É neste sentido analógico que ela é chamada também de “sacramento”.319 O mesmo Catecismo estabelece nove mistérios “oficiais”, deduzidos de trechos das Sagradas Escrituras. São eles: o Mistério da Criação, o Mistério da Existência do Mal, o Mistério da Fé, o Mistério da Igreja, o Mistério da Salvação Humana, o Mistério da Unidade da Igreja, o Mistério de Cristo, o Mistério de Deus e, por fim, o Mistério do Homem.320 Quer dizer, os antigos mistérios iniciáticos do cristianismo primitivo transformaram-se em sacramentos, sinais visíveis manipulados por um clero muito bem treinado na preservação das coisas sagradas. Esses professores do povo eleito passaram a dividi-los em dois grupos fundamentais: “as coisas encobertas, que pertencem ao Senhor nosso Deus e as reveladas, que pertencem a nós e a nossos filhos para sempre.”321 Traduzindo, é Deus quem classifica os mistérios em duas partes: aqueles que só Ele sabe a resposta, e aqueles que são revelados para nós e para os nossos descendentes para toda a eternidade. Os mistérios que pertencem a Deus dizem respeito à salvação do homem através de Jesus Cristo. Os mistérios que pertencem a nós e aos nossos filhos são aqueles que dizem respeito ao domínio que o Criador colocou sobre nós para a pesquisa e o entendimento das leis que regem a Criação. E envolvem uma noção de progresso: há duzentos anos, por exemplo, ninguém imaginava um meio próprio de se voar através de uma máquina. Hoje isso é comum. Voar foi um mistério que se desvendou com o tempo. Agora é uma coisa revelada que pertence a nós e às gerações futuras para sempre. 319 Cf. Constituição Apostólica Fidei Depositum para a publicação do Catecismo da Igreja Católica, redigido depois do Concilio Vaticano II. 320 Idem. 321 Cf. Dt., 29: 29. 133 Dentre os muitos mistérios que são do conhecimento exclusivo de Deus existem três que estão diretamente ligados a nós e à nossa condição espiritual. O primeiro deles é Lúcifer322. Deus revela Lúcifer como um ser majestoso (sua vestimenta era de pedras preciosas) e santo (sua habitação era no monte santo de Deus)323. Era considerado acima de todos os outros anjos, perfeito nos caminhos dele, enquanto aos outros anjos Deus atribuía imperfeições324. Como pode um ser tão especial, criado acima dos outros anjos, e vivendo numa atmosfera onde não se conhecia rebelião ou pecado contra Deus, tornar-se o maior pecador de toda a História? Como podemos imaginar que Deus Todo-Poderoso criasse um lugar tão horripilante como o Inferno, que na Idade Média era considerado um subterrâneo em que as almas penadas e perdidas sofreriam toda a sorte de torturas físicas, e que os eleitos de Deus ficariam deliciados assistindo a esses suplícios do Paraíso? De fato, tal mistério é difícil de entender. Segundo o teólogo Yves Congar325, o mal não é uma coisa, não é uma entidade absoluta. O mal não é um ser, é uma privação, “um buraco” no ser: “É essa razão porque não pode haver mal absoluto. O mal não existe senão nas coisas que, em si, são boas. Por mais desgraçados que sejamos, o fato é que existimos, e o fato de existir é sempre um bem. Um crime não realiza a sua maldade moral e social senão em ações positivas que, como tais (por exemplo, o golpe de uma faca, enquanto tal) são boas e podem ser notavelmente boas. Nem sequer o demônio é exceção, pois também ele, enquanto criatura angélica, tem bondade e beleza. Mas é mau, não enquanto é criatura, mas enquanto não é o que deveria ser.”326 Aliás, conforme outro teólogo, o protestante Philip Yancey327, o mal será vencido e Deus nos reunirá numa terra restaurada a uma condição semelhante ao seu estado original: “Neste mundo, por enquanto, Deus nos permite sofrer o mal. Prédios desmoronam, placas tectônicas movem-se, vírus proliferam, pessoas más recorrem à violência. Pelo que conhecemos do caráter de Deus, nenhuma dessas coisas reflete sua vontade intencional. E para quem crê nas promessas “Lúcifer” em grego significa “portador da luz”. “Satã” vem do hebraico, significando “oponente”, “acusador”; ao ser traduzido para o grego, Satã virou “diabolos” que quer dizer “caluniador”. Já a palavra “demônio” advém do grego “daimon”, que é sinônimo de “deus” em grego arcaico. Seis vezes a palavra “demônio” aparece na Ilíada e 11 vezes, na Odisséia. Tais demônios não encarnavam nem o bem nem o mal, eram apenas seres sobrenaturais. 323 Cf. Ez. 28: 13-18. 324 Cf. Jó., 4: 18. 325 Cf. CONGAR, Yves. “O Problema do Mal”, in Deus, O Homem e o Universo (vários autores), op. cit., p. 692. 326 Cf. CONGAR, op. cit., p. 692. 327 Cf. YANCEY, Philip. O Deus (in)visível: como se relacionar com um Deus que não podemos ver, ouvir e tocar, p. 258, tradução de Yolanda M. Krievin, São Paulo, Editora Vida, 2001. 322 134 dele, elas também não refletem sua vontade última. Até então, porém, coisas ruins inevitavelmente acontecerão durante nossos dias no planeta Terra.”328 No que é completado pelas palavras de Agostinho, quando afirmou: “Deus julgou melhor realizar o bem a partir do mal do que não sofrer nenhum mal.”329 Nesse sentido, Lúcifer, embora seja um mistério acima de nosso entendimento, não deixa de ser previsível dentro da própria Criação divina, que está acima de nossa compreensão. O segundo mistério seria o casal adâmico: Adão e Eva. Em Gênesis 1: 26-27 é informado que eles foram criados à imagem de Deus e conforme a semelhança d’Ele. Em Salmos 8: 4-5 é adicionada a revelação de que a raça humana também fora criada um pouco menor que o próprio Deus. E em Gênesis 2: 15-17 é revelado que Adão e Eva foram criados imortais. Como puderam, então, os primeiros pais pecarem contra Deus, quando não havia nenhuma evidência de maldade neste planeta? O pecado original com o qual todos nascemos é a privação da santidade e justiça originais. O pecado introduziria no mundo uma quádrupla ruptura: a ruptura do homem com Deus, consigo mesmo, com os demais seres humanos e com toda a criação. Produto destas rupturas, a conseqüência do pecado original seria a debilitação da natureza humana, que ficou submetida à ignorância, ao sofrimento, à morte e à inclinação ao pecado (que seria uma perda de relacionamento normal com Deus). O homem, tentado pelo Diabo, deixou morrer no coração a confiança no Criador e, abusando da liberdade, desobedeceu ao mandamento de Deus. Foi nisto que consistiu o primeiro pecado do homem. Todo pecado, daí em diante, passou a ser uma desobediência e uma falta de confiança na bondade de Deus. Neste pecado, o homem optou por si mesmo contra Deus, contrariando as exigências de seu estado de criatura e conseqüentemente do próprio bem. A doutrina do pecado original é, por assim dizer, “o reverso” da Boa Notícia de que Jesus é o Salvador de todos os homens, de que todos têm necessidade da salvação e de que a salvação é oferecida a todos graças a Cristo. A Igreja, que tem o senso de Cristo, sabe perfeitamente que não se pode atentar contra a revelação do pecado original sem atentar contra o mistério de Cristo.330 O terceiro mistério é Jesus Cristo. O apóstolo João afirma que Jesus é o meio pelo qual Deus fez a Criação, tanto a física como a espiritual331. O próprio Jesus fala da sua pré-existência e santidade332. A pergunta aqui é: Como pode Jesus nunca ter pecado contra Deus? 328 Idem. Apud. YANCEY, idem, p. 277. Agostinho lançou as bases do “existencialismo cristão” ao decretar em suas célebres “Confissões” que “ser é um bem”... 330 Cf. Catecismo Romano, site citado. 331 Cf. Jo., 1: 1-4. 332 Cf. Jo., 8: 46 e 58. 329 135 As Escrituras são firmes em afirmar em Hebreus 4:15 que Ele foi tentado em tudo como nós o fomos, porém não pecou. Elas também afirmam que Ele suou algo parecido com gotas de sangue caindo sobre a terra. Seria um suor mais grosso, como o sangue é? Ou teria sido suor misturado com sangue? Não importa o detalhe! O importante aqui foi a agonia jamais experimentada por outra pessoa333. E a mais impressionante das revelações acerca de Jesus: “Aquele que não conheceu pecado, ele (Deus) o fez (Jesus) pecado por nós; para que fôssemos feitos justiça de Deus.” Este é o terceiro mistério que não podemos entender! Como pode, então, o Filho de Deus, sabendo tudo o que iria acontecer com ele, determinar não ceder às tentações que sofreu, permanecer sem pecado, ir à cruz, receber em sua vida os pecados da humanidade inteira (desde Adão até o último ser humano a nascer) e, assim, tornar-se pecado (não pecador), para que nós fôssemos feitos justiça de Deus? Jamais alcançaremos a profundidade de tal mistério. Para completar esse quadro de informações tão difíceis para o homem contemporâneo e que revestem o Cristianismo de extensa dimensão de dificuldade, poderíamos falar do mais intrincado de todos os mistérios: a existência de Deus, uno e trino, conforme o doce mistério da Santíssima Trindade. 333 Cf. Lc., 22: 44. 136 – 12 – OS VÉUS DA TRINDADE “O maior mal do homem é a inquietude pelas coisas que ele não pode saber.” Blaise Pascal “O que não se vê, venera-se mais.” Tácito 137 Segundo nos lembra o teólogo espanhol católico Inácio Larrañaga334, Deus não se veste com cores nem cheira a perfumes, não tem peso nem altura e, por conseguinte, não pode ser apreendido por nossos sentidos vulgares. E por não poder ser detetado pelos sentidos, Deus não pode passar pelo laboratório da mente e ser submetido a uma análise e síntese por nossa limitada inteligência. Se na mente não há nada que não tenha passado previamente pelos sentidos (o que, aliás, é um “prato cheio” para os materialistas), Deus não pode ser objeto direto da inteligência, mas objeto de fé. Deus, então, é alguma coisa transcendental, acima do próprio conhecimento humano e não é para ser “compreendido”, mas para ser “entendido no vital”.335 Frei João De La Cruz, grande místico e santo da Igreja, referia-se a Deus como algo que precisa “ser caçado”. Se não é possível caçarmos a Deus através dos sentidos, então o Pai é mistério, não como segredo ou coisa misteriosa vulgar, mas algo inacessível à inteligência comum, um ser que não podemos ver “face a face”. Henri de Lubac, teólogo católico francês, chama nossa atenção para esse busca singular e tão especial realizada pela criatura: “Em todos os sentidos, Deus é totalmente diferente. (...) Mesmo que a lógica nos obrigue a afirmar que Deus existe, seu mistério continua inviolado. Nossa razão não chega até ele. (...) Nosso espírito já afirma que aquele que é alcançado pela dialética e pela representação, está além de toda representação e dialética. E essa afirmação, passando das trevas para a luz e da luz para as trevas, permanece sempre em pé.”336 Por isso, o verdadeiro crente entrega-se na escuridão e só então começa a entender o mistério e cultivar a certeza. Há um ditado alemão que bem o diz: “ao pé do farol é tudo escuro”. Assim é a nossa relação com Deus. Larrañaga comenta a nossa precária percepção de Deus, que nos obriga a buscar referências “limitadas” que nos aproximem d’Ele. Indo por um caminho direto, utilizamos o conceito de “pessoa”, transferindo o conteúdo dessa palavra para o ser divino. Deus é “pessoa”, mas, ao mesmo tempo, outra coisa diferente, que não é exatamente “pessoa”. Numa palavra: Deus é absolutamente distinto de nossas idéias, conceitos e preconceitos, representações e imagens. Todas as palavras que conhecemos para nomear Deus são usadas no negativo: “in-finito, in-visível, in-menso, in-compreensível, in-criado, in-nomeado”. As palavras não o contém, isto é, o Senhor é muito maior, mais admirável e magnífico do que possamos conceber, sonhar, desejar e imaginar. Como é o Incomparável, só pode ser assumido na fé e o ato de fé consiste em acolher o mistério na escuridão da noite. Frei João da Cruz observa: 334 Cf. LARRAÑAGA, Inácio. Mostra-me Teu Rosto, op. cit. Idem, pp. 83 e 84. 336 Apud. LARRAÑAGA, op. cit., p. 84. 335 138 “Aquele que deverá juntar-se em uma união com Deus não deverá ir entendendo mas crendo... porque por mais que possamos entender de Deus, estaremos infinitamente longe Dele.”337 É nesse contexto de dificuldade inicial, relacionado com a nossa quase impossibilidade de percepção de Deus que tentamos, pé ante pé, despir os véus impenetráveis do mistério da Santíssima Trindade. Pois ele é tão intrincado e difícil que gera limites de separação entre várias escolas, denominações e seitas do Cristianismo. A tentativa de sua explicação ou solução gerou santidades na Igreja primitiva (principalmente no movimento patrístico (dos séculos I ao IV), discussões acadêmicas na Idade Média européia (no movimento chamado “escolástico” dos séculos XI e XII), bem como gerando munição intelectual para os ateus contestarem a religião cristã (nos séculos XIX e XX). Talvez esse segredo mais importante da fé cristã seja revelado por Jesus quando afirma que Ele e o Pai são uma só Pessoa338. O Pai, o Filho e o Espírito Santo seriam, então o único Deus – não três deuses, como era fácil de entender no mundo pagão – mas a mesma natureza divina, desdobrada em Três Pessoas realmente distintas. Como bem afirma Dennis Covington339, “o mistério não é a ausência de significado, mas a presença de mais significado do que podemos compreender”. Assim, a Santíssima Trindade demonstra, em primeiro lugar, que embora nos lancemos na difícil tarefa de compreensão do Mistério, somos limitados e percebemos que ele constantemente nos supera mesmo que desejemos manter a fé viva e operativa. Imaginemos a grande dificuldade que o ser humano tem de compreender um Ser Invisível de maneira racional, com as circunstâncias limitadoras do mundo material, que geram a dúvida e a desconfiança? Agora, compliquemos mais ainda, colocando mais duas Pessoas, o Filho e o Espírito Santo, dispostos num mesmo plano e como diz tecnicamente a Teologia, “consubstanciais ao Pai”? Podemos comparar este Mistério com o sol: ele está no céu e produz luz e calor; a luz e o calor não são distintos do sol. A Trindade é algo parecido: o Filho e o Espírito Santo são iguais em natureza ao Pai, mas são um só Deus. O Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus. Três pessoas e um único Deus. Todas as coisas criadas foram feitas por Deus, Uno e Trino. Deus criou o mundo, ainda que a criação seja atribuída ao Pai; Deus realizou a Redenção, ainda que só a segunda Pessoa – O Filho – se fez homem e morreu na cruz; Deus nos santifica, ainda que a santificação seja atribuída ao Espírito Santo. Assim, pois, quando agradecemos a Deus tudo o que fez por nós e em nós, temos de agradecer a Deus Pai, a Deus Filho e a Deus Espírito Santo340. 337 Apud. LARRAÑAGA, op. cit., pp. 85 e 86. Cf. Jo., 10: 30. 339 Apud. YANCEY, p. 89. 340 A palavra grega aplicada ao Espírito Santo, “parakletos”, significa “alguém que fica ao lado”, como um advogado de defesa. O Espírito Santo nos ajudaria em nossa fraqueza, porque não sabemos orar. 338 139 De acordo com Yancey, o Pai é santo, assustador e merecedor de nossa adoração. É o Princípio Transcendente da Sabedoria, o Ser Majestoso que deseja contato com a humanidade falha; o Filho é o maior Amigo do homem e deve ser seguido por ele pelo resto da vida num novo estágio de intimidade e o Espírito Santo, por sua vez, seria o Consolador do homem, Deus vivendo dentro do homem (como aliás é reivindicado pelas seitas gnósticas e esotéricas). No mundo invisível, que tanto nos leva à descrença e ao medo, três pessoas podem ser Deus: a Idéia (o Pai); a Expressão (o Filho, na história e na vida humana) e o Reconhecimento (o Espírito Santo como máxima energia espiritual que nos conforta).341 Aqui na Terra sabemos que Deus está em nossa alma em estado de graça e que a vida cristã é uma luta constante para evitar o pecado. Se formos fiéis e nos esforçamos por amar a Deus cada vez mais, Ele nos concederá a maior coisa que poderíamos desejar: vê-Lo face a face, tal como Ele é. O grande prêmio do céu consiste em ver a Deus: contemplar, louvar, amar e gozar por toda a eternidade da Trindade. Toda a grandeza, toda a beleza, toda a bondade de Deus volta-se sobre as pobres criaturas que somos cada um de nós. No céu, conforme ensina a Igreja católica, “veremos” a Santíssima Trindade. No monte Sinai, Moisés pediu para ver o rosto de Deus e o Senhor lhe respondeu que nenhum homem poderia vê-Lo sem morrer. Não obstante, no céu, a alma terá a possibilidade de perceber o que Moisés quis ver na Terra: a majestade de Deus. No entanto, como lembra Yancey, para ver como Deus é, basta simplesmente olhar para Jesus, cujo passo final foi a revelação criativa de Deus na fruição de Pentecostes, quando o Pai estabeleceu residência nos seres humanos. O mesmo Espírito, que na Criação pairava sobre as águas e na face do abismo, é reconhecido quando “desce sobre nós”, como ato divino da Criação, atingindo o ponto de maior beleza e altitude.342 Deus nos ama de maneira incrível: criou-nos por amor, perdoou nossos pecados morrendo por nós e vive em nossa alma em estado de graça, preparando-nos um novo lugar: o céu eterno. Deixou-nos a Igreja e os Sacramentos para que possamos facilmente saber o que temos de fazer e viver sempre como bons cristãos, sendo cada vez mais santos343. Temos de corresponder a tanto amor e a vida cristã precisa ser um constante louvor à Trindade Santa. Então, o Espírito passa a fazer parte de nós e, com isso, Deus torna-se uma presença viva, permeando tudo o que vemos e fazemos. Cf. YANCEY, pp. 146 e 147. 341 Cf. YANCEY, pp. 117 a 139. 342 Cf. YANCEY, p. 119. 343 Um outro preceito de Jesus que permanece como "um ditado rude" para seus seguidores é: "Sede perfeitos, assim como vosso Pai no céu é perfeito" (Mt., 5: 48). O Cristão comum sabe que possivelmente não conseguirá obedecer a este mandamento; cheio como está com as fragilidades e fraquezas humanas, como poderá ser perfeito como Deus é perfeito? Vendo a impossibilidade da meta posta diante dele, o cristão discretamente a põe de lado, e não pensa mais nisso. Mas vista como o esforço coroador de muitas vidas de melhoras constantes, como o triunfo do Deus interno sobre a 140 O termo “Trindade” não se encontra na Bíblia, pois é o nome dado pela igreja cristã à doutrina que define a personalidade de Deus na Bíblia, onde Deus é: o Pai, o Filho e o Espírito Santo344. Por isso, aqueles que professam este dogma se referem a Deus como Uno e Trino. Ainda segundo os defensores da doutrina trinitária, ao longo da Bíblia há várias passagens que revelam a natureza divina da Trindade, e até a personalidade de cada uma das três pessoas divinas: Um dos exemplos mais referidos é o relato sobre o batismo de Jesus, em que as chamadas “três pessoas da Trindade” se fazem presentes, com a descida do Espírito Santo sobre Jesus, sob a forma de uma pomba, e com a voz do Pai Celeste dizendo: “Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo”; na fórmula tardia de Mateus: “Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”; no que concerne à divindade de Deus-Filho, referem-se, por exemplo, a sua onisciência, onipotência, a sua onipresença, ao fato de perdoar os pecados e ser dador da vida em íntima unidade, porém diferenciando as pessoas: “Eu e o Pai somos um”. Contudo, mais do que estas simples passagens isoladas, a afirmação da plena divindade de Jesus é o resultado da reflexão, na Fé, sobre a sua missão redentora contida nas Escrituras – pois a sua personalidade divina e humana nunca foi seriamente posta em descrédito pela igreja cristã seja ela católica ou protestante; no que concerne à divindade do Espírito Santo, os trinitarianos reportam-se, por exemplo, à passagem bíblica que o chama de Deus em Atos, a sua onisciência, a sua onipotência, a sua onipresença e sobretudo ao fato de ser Espírito “de” verdade e “de” vida, prerrogativas que, tais como as apresentadas para Deus-Filho, segundo a Bíblia são única e exclusivamente divinas. A primeira formulação dogmática do pensamento teológico cristão trinitário, no que concerne à relação entre cada uma das três Pessoas divinas, foi postulada como um artigo de fé pelo credo de Nicéia (proclamado em 325, no Concílio de Nicéia), mas, embora a Igreja anuncie e ensine o mistério da Santíssima Trindade com base em citações bíblicas, desencoraja uma profunda investigação no sentido de querer decifrálo. Santo Agostinho esforçou-se exaustivamente por compreender e desvendar este enigma. Após muito tempo de reflexão e trabalho, chegou à conclusão de que nós, devido à nossa mente extremante limitada, nunca poderíamos compreender e assimilar plenamente a dimensão (infinita) de Deus somente com as nossas próprias forças e o nosso raciocínio. Concluiu que a compreensão plena e definitiva deste grande enigma natureza inferior, nos Mistérios aquelas virtudes são adquiridas. Cf. BESANT, Annie, “O Cristianismo Esotérico Ou Os Mistérios Menores”, site citado. 344 Conforme nos explica Jacques Maritain: “O Espírito Santo é a Alma da Igreja, porque é o princípio primeiro de sua vida; habita no fundo do coração de seus membros “vivos”; inspira e dirige, ele, o Espírito do Cristo, o comportamento deste grande Corpo através da história humana.”, in A Igreja de Cristo, a Pessoa da Igreja e seu Pessoal, p. 28, tradução da Abadia de Nossa Senhora das Graças, Rio de Janeiro, Livraria Editora Agir, 1972. 141 só é possivel quando, na vida eterna, nos encontrarmos no Paraíso com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. As três pessoas da Santíssima Trindade estabelecem uma comunhão e união perfeitas, formando um só Deus, e constituem um perfeito modelo transcendente para as relações interpessoais: O Pai, a primeira pessoa da Trindade, é considerado como o pai eterno e perfeito. É atribuído a esta pessoa divina a criação do mundo; O Filho procede do Pai e é eternamente consubstancial (pertencente à mesma natureza e substância) a Ele. Não foi criado pelo Pai, mas gerado na eternidadade da substância do Pai. Encarnou-se em Jesus de Nazaré, assumindo assim a natureza humana: a Ele é atribuída a redenção (salvação) do mundo; O Espírito Santo, procedendo do Pai e do Filho, personaliza o Amor íntimo e infinito de Deus sobre os homens, tornando-os unidos num só Corpo e é considerado como o puro nexo de amor. Atribui-se a esta pessoa divina a santificação da Igreja e do mundo com os seus dons. Jesus Cristo ensinou inclusive que nenhum pecado é maior que aquele contra o Espírito Santo345. Críticas à doutrina da Trindade346 Várias denominações cristãs e outras religiões, como o Islã e o Judaísmo, discordam da doutrina da Santíssima Trindade, isto é, da afirmação de que o Único Deus revela-se em três pessoas divinas distintas. A “visão unicista” de Deus entende “haver apenas um Único Deus”, a Pessoa Divina de Jesus Cristo, que se teria manifestado como Deus Pai na criação, Deus Filho na Redenção e Divino Espírito Santo nos dias atuais. Ou seja, um Deus Único em três manifestações temporais. Alguns movimentos que, embora não sejam reconhecidos como cristãos pelas grandes denominações afirmam que a Trindade é fruto da importação de conceitos religiosos pagãos347, e ainda uma fabricação teológica da Igreja romana, no Século IV. A este respeito, porém, é hoje consensual entre os especialistas em História das Religiões que em especial nas religiões egípcias e no hinduísmo não encontramos a afirmação da subsistência de um Deus em três Pessoas distintas, mas tão só a reunião de três deuses distintos ou de três avatares, respectivamente.348 Quanto à datação da doutrina da Trindade como tendo surgido somente no século IV, as práticas sacramentais e os escritos cristãos dos três primeiros séculos – sobretudo Orígenes, Teófilo de Antioquia, Justino, Hipólito e Tertuliano, na opinião de 345 Cf. Mt., 12: 31-32. Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Cr%C3%ADticas_%C3%A0_doutrina_da_Trindade. 347 Os cultos antigos receberam a denominação pejorativa de “pagãos” (“pagani”, plural de “paganu”, “morador do campo”), por ter como foco de resistência à nova religião o povo dos campos, longe das cidades e das zonas de comércio e ensino. 348 Cf. PUECH, Henri-Charles. “Histoire des Religions”, Konemann Verlag, 1999. 346 142 muitos, são testemunhos suficientes para se ser ter uma posição de grande cautela, senão mesmo de rejeição, quanto à veracidade dessa afirmação349. Na opinião destes últimos, se a formulação dogmática da referida doutrina só foi postulada no decorrer dos grandes concílios ecumênicos do referido século IV, crêem que a crença pode ter sido firmada anteriormente, reportando-se a sua gênese aos próprios escritos do Novo Testamento. Outro ramo entende haver “um Deus e um Senhor”, nas figuras de Jesus Cristo como Senhor dos Exércitos e de Deus, o Pai Criador e sustentador do Universo. Segundo os defensores desta ideia, há vários textos bíblicos indicando a existência de somente um único Deus. Estes ainda defendem que os textos bíblicos não tratam diretamente da adoração a uma Trindade pelo que esta deveria ser dirigida somente a um Deus único. As Testemunhas de Jeová e os Adventistas rejeitam o dogma da SantíssimaTrindade como tendo um sentido anti-bíblico, ou seja, pagão. Argumentam que existe apenas um só Deus verdadeiro, considerado o Deus Todo-poderoso. As Testemunhas, por seu turno, argumentam que a nação de Israel não acreditava na Trindade, que era popular entre babilônios e egípcios. Para eles, o plural do nome em hebraico, Elohim, é o plural majestático ou de excelência. Não dá a idéia de pluralidade de pessoas. As Testemunhas (também auto-denominadas “Torres da Vigia”) explicam que o idioma grego não possui ‘plural majestático ou de excelência’. Assim, os tradutores do hebraico para o grego teriam empregado “ho-theos” (Deus, no singular) como equivalente a “Elohim”. Afirmam que quando Jesus responde aos Escribas sobre o principal dos mandamentos, exclama: “Ouve, ó Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor!350, em que se emprega o singular em grego. O Filho de Deus é encarado como “ser Divino”, poderoso ou “Deus”. Não o consideram como sendo o Deus Todo-poderoso, mas uma pessoa distinta Dele, sendo “a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a Criação”351. Aquele que mais tarde se tornou verdadeiramente homem, o Jesus de Nazaré, chamado de Cristo (Messias), teria uma existência pré-humana como filho “Unigênito”, por ter sido o único criado diretamente de Jeová-Deus e sendo o seu porta-voz. Na sua existência pré-humana, as Testemunhas crêem que Ele era o Arcanjo Miguel, o principal ou líder dos anjos de Deus e que teve papel importante na Criação, como mestre-de-obras ou arquiteto de Deus352. Assim, Jesus enquanto humano, jamais deu consideração à idéia de ser igual ao Pai, o Deus Todo-poderoso. O próprio Jesus Cristo terá deixado bem claro a ideia de que “o Pai é maior do que eu”353. Após a sua ressurreição e ascensão ao Céu, 349 Cf. ELIADE, Mircea. "Traité d'histoire des religions", 2004. Cf. Mc., 12:29, onde se reproduz uma resposta de Jesus em que Ele citou o mesmo preceito inscrito em Deuteronômio 6:4. 351 Cf. Cl., 1: 15. 352 Cf. Pv., 8: 30. 353 Cf. Jo., 14: 28. 350 143 continuou lealmente sujeito ao Pai e Deus Todo-poderoso, pois “a cabeça de todo homem é o Cristo; por sua vez, a cabeça da mulher é o homem; por sua vez, a cabeça do Cristo é Deus”354. No fins dos tempos, Ele seria designado juiz e governante do Reino Messiânico e, no término do seu reinado, “quando todas as coisas lhe tiverem sido sujeitas, então o próprio Filho também se sujeitará Àquele que lhe sujeitou todas as coisas, para que Deus seja todas as coisas para com todos.”355 Entendem, ainda, que o Espírito Santo não é uma Pessoa Divina. É apenas a força ativa que procede de Deus. Crêem que a personificação do Espírito Santo, encontrada em alguns versículos bíblicos, não provam que seja uma divindade, mas apenas figura de linguagem. Argumentam que em parte alguma das Escrituras se dá um nome pessoal ao Espírito Santo, mas nos dão o nome pessoal do Pai-Jeová e do Filho-Jesus Cristo. Citam Atos 7: 55, 56, que relata que Estêvão recebeu uma visão do céu, onde viu “Jesus em pé à direita de Deus”, mas não diz ter visto o Espírito Santo.356 Por sua vez, os pioneiros adventistas disseram que a doutrina da Trindade foi trazida para a Igreja Católica ao mesmo tempo em que a adoração de imagens, e que a celebração da guarda do Domingo não é mais do que a doutrina dos persas remodelada. A Trindade seria um louvor à guarda do domingo, chegando-se ao ponto de James White afirmar, em 1855, que a doutrina da Trindade acabava com a personalidade de Deus e de seu Filho, Jesus Cristo. Disse ainda que os grandes reformadores, se tivessem continuado, não teriam deixado nenhum vestígio das falsas doutrinas, inclusive a Trindade (1856). Outro fundador adventista, J. N. Andrews incluiu a crença na Trindade entre as doutrinas espúrias que compunham o vinho de Babilônia (1855) e D. W. Hull, por seu turno, afirma que tal doutrina foi invenção do “homem do pecado” usando como referência a passagem bíblica II Tessalonicenses, Capítulo 2 (1859). Uriah Smith, outro pioneiro que atuou na presidência da Conferência Geral dos Adventistas do Sétimo Dia, e também como editor chefe da Review and Herald por mais de cinquenta anos, disse: “O Espírito Santo é o Espírito de Deus e o Espírito de Cristo, sendo o Espírito o mesmo quando se fala de Deus ou de Cristo. Mas com relação a este Espírito, a Bíblia emprega expressões que não podem harmonizar-se com a idéia de que seja uma pessoa, tal como o Pai e o Filho.” (Review and Herald, 1890) 354 Cf. 1 Co., 11: 3. Cf. 1 Co., 15: 28. 356 Embora o texto bíblico ateste que Estêvão estava “cheio do Espírito Santo” (cf. At., 6: 55), antes de ser apedrejado até a morte, sob o consentimento de Saulo (que na época perseguia os cristãos, antes da revelação no caminho de Damasco). 355 144 Já William White, filho de Ellen Gould White, era contrário a essa doutrina e dizia que muitas pessoas se utilizavam dos escritos de sua mãe para interpretações errôneas. Segundo Ellen G. White, o Pai e o Filho empenharam-Se na grandiosa e poderosa obra que tinham planejado – a criação do mundo. A Terra saiu das mãos do Criador extraordinariamente bela. Depois que a Terra foi criada, com sua vida animal, o Pai e o Filho levaram a cabo Seu propósito, planejado antes da queda de Satanás, de fazer o Homem à própria imagem. Eles tinham operado juntos na criação da Terra e de cada ser vivente sobre ela. E agora, disse Deus a Seu Filho: “Façamos o Homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. (Gênesis 1:26)”.357 – QUADRO 4 – A BÍBLIA E A TRINDADE ARGUMENTOS BÍBLICOS A FAVOR DA TRINDADE ARGUMENTOS BÍBLICOS CONTRA A TRINDADE “E eis uma voz dos céus, que dizia: Este é o “No princípio, criou Deus os céus e a meu Filho amado, em que me comprazo.” (Mt., terra.” (Gn., 1: 1); 3: 17); “Por isso vos declaro: todo pecado e blasfêmia serão perdoados aos homens; mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada. Se alguém proferir alguma palavra contra o Espírito Santo, não lhe será isso perdoado, nem neste mundo nem no porvir.” (Mt., 12: 3132); “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da Terra do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de mim.” (Ex., 20: 2-3); “Ouve, ó Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR.” (Dt., 6: “Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: 4); Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas “O SENHOR me possuía no início de as nações, batizando-os em nome do Pai, do sua obra, antes de suas obras mais Filho e do Espírito Santo.” antigas. (...) Quando ele preparava os (Mt., 28: 18-19); céus, aí estava eu; (...) então, eu estava com ele e era seu arquiteto...” “... e o Espírito Santo desceu sobre ele em (Pv., 8: 22, 27 e 30); forma corpórea como pomba; e ouviu-se uma voz do céu: Tu és o meu Filho amado, em ti me “Assim diz o SENHOR, Rei de Israel, comprazo.” (Lc., 3: 22); seu Redentor, o SENHOR dos Exércitos: Eu sou o primeiro e eu sou “Todo aquele que proferir uma palavra contra o último, e além de mim não há 357 Cf. WHITE, Ellen G. História da Redenção, p. 20. A passagem bíblica referida, Gn. 1: 26 não menciona a comunicação direta entre Deus e seu Filho nessa época, portanto tal afirmação não é bíblica, representa, na verdade, uma “fantasia psíquica” da autora. 145 o Filho do Homem, isso lhe será perdoado; Deus.” (Is., 44: 6) mas para o que blasfemar contra o Espírito Santo, não haverá perdão.” “O SENHOR será Rei sobre toda a (Lc., 12: 10); terra; naquele dia, um só será o SENHOR, e um só será o seu nome.” “Porque o Espírito Santo vos ensinará, (Zc., 14: 9); naquela mesma hora, as coisas que deveis dizer.” “Respondeu Jesus: O principal é: (Lc., 12: 12); Ouve, ó Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor!” “E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro (Mc., 12: 29); Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco, o Espírito da verdade, que o mundo “No princípio era o Verbo, e o Verbo Não pode receber, porque não no Vê, nem o estava com Deus, e o Verbo era Deus. conhece; vós o conheceis, porque ele habita Ele estava no Princípio com Deus. (...) convosco e estará em vós.” (Jo., 14: 16-17) E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e “... mas o Consolador, o Espírito Santo, a vimos a sua glória, glória como do quem o Pai enviará em Meu nome, esse vos unigênito do Pai. (...) Ninguém jamais ensinará todas As coisas e vos fará lembrar de viu a Deus; o Deus unigênito, que está tudo O que vos tenho dito.” (Jo., 14: 26); no seio do Pai, e quem o revelou.” (Jo., 1: 1, 2, 14 e 18); “Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da “Disse-lhe Jesus: Mulher, podes crerverdade, que dele procede, esse dará me que a hora vem, quando nem neste testemunho de mim.” (Jo., 15: 26); monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. (...) Mas vem a hora e já chegou, “Tenho ainda muito que vos dizer, mas vós em que os verdadeiros adoradores não o podeis suportar agora; quando vier, adorarão o Pai em espírito e em porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a verdade; porque são estes que o Pai toda verdade; porque não falará por si mesmo, procura para seus adoradores. Deus é mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos espírito; e importa que os seus anunciará as coisas que hão de vir.” (Jo., 16: adoradores o adorem em espírito e em 12-13); verdade.” (Jo., 4: 21, 23 e 24); “E, comendo com eles, determinou-lhes que não se ausentassem de Jerusalém, mas que “Ouvistes que eu vos disse: vou e esperassem a promessa do Pai, a qual, disse volto para junto de vós. Se me ele, de mim ouvistes. Porque João, na verdade, amásseis alegrar-vos-íeis de que eu vá batizou com água, mas vós sereis batizados para o Pai, pois o Pai é maior do que com o Espírito Santo, não muito depois desses eu.” dias. Então, os que estavam reunidos lhe (Jo., 14: 28); perguntaram: Senhor, será este o tempo em que restaures o reino a Israel? Respondeu- “E a vida eterna é esta: que te lhes: Não vos compete conhecer tempos ou conheçam a ti, o único Deus épocas que o Pai reservou pela sua exclusiva verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem autoridade; mas recebereis poder, ao descer enviaste.” sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas (Jo., 17: 3); testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia, a Samaria e até aos confins da 146 terra.” (At. 1: 4-8). “Recomendou-lhe Jesus: Não me detenhas; porque ainda não subi para “Então, disse Pedro: Ananias, por que encheu meu Pai, mas vai ter com os meus Satanás teu coração, para que mentisses ao irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai Espírito Santo, reservando parte do valor do e vosso Pai, para meu Deus e vosso campo? (At., 5: 3); Deus.” (Jo., 20: 17); “Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus. Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte.” (Ro., 8: 1-2); “... e disse: Eis que vejo os céus abertos e o Filho do Homem, em pé à destra de Deus.” (At., 7: 56); “Porque, ainda que há também alguns “Digo a verdade em Cristo, não minto, que se chamem deuses, quer no céu ou testemunhando comigo, no Espírito Santo, a sobre a terra, como há muitos deuses e minha própria Consciência;” (Ro., 9: 1); muitos senhores, todavia, para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas “Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; as coisas e para quem existimos; e um porque o Espírito a todas as coisas prescruta, só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são até mesmo as profundezas de Deus. Porque todas as coisas, e nós também, por qual dos homens sabe as coisas do homem, ele.” (1 Co., 8: 5 e 6); senão o próprio espírito que nele está? Assim, também as coisas de Deus, ninguém as “Quero, entretanto, que saibas ser conhece, senão o Espírito de Deus. Ora, nós Cristo o cabeça de todo homem, e o não temos recebido o espírito do mundo e sim homem, o cabeça da mulher, e Deus, o o Espírito que vem de Deus, para que cabeça de Cristo.” (1 Co., 11: 3); conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente.” (1 Co., 2: 10,11, 12); “No Senhor, todavia, nem a mulher é “Por isso, vos faço compreender que ninguém independente do homem, nem o que fala pelo Espírito de Deus afirma: homem, independente da mulher. Anátema, Jesus! Por outro lado, ninguém pode Porque, como convém a mulher do dizer: Senhor Jesus!, senão pelo Espírito homem, assim também o homem é Santo. Ora os dons são diversos, mas o nascido da mulher; e tudo vem de Espírito é o mesmo. (...) A manifestação do Deus.” Espírito é concedida a cada um visando a um (1 Co., 11: 11-12); fim proveitoso. (...) Mas um só e o mesmo Espírito realiza todas essas coisas, “Porque todas as coisas sujeitas distribuindo-as, como lhe apraz, a cada um, debaixo dos pés. E, quando diz que individualmente.” todas as coisas lhe estão sujeitas, (1 Co., 12: 3, 7 e 11) certamente, exclui aquele que tudo lhe subordinou. Quando, porém, todas as “Ora, o Senhor é o Espírito; e, onde está o coisas lhe estiverem sujeitas, então, o Espírito do Senhor, aí há liberdade.” (2 Co., próprio Filho também se sujeitará 3: 17); àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em “A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de todos.” (1 Co., 15: 27-28); Deus, e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós.” “Ele é a imagem do Deus invisível, o 147 (2 Co., 13: 13); “... para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele, (...) acima de todo principado, e potestade, e poder, e domínio, e de todo nome que se possa referir não só no presente século, mas também no vindouro.” (Ef., 1: 17 e 21); primogênito de toda a criação.” (1 Co., 1: 15); “Exorto-te, perante Deus, que preserva a vida de todas as coisas, e perante Cristo Jesus, que diante de Pôncio Pilatos fez a boa confissão, que guardes o mandato imaculado, irrepreensível, até a manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo; a qual, em suas épocas determinadas, há de ser revelada pelo bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores; o único que possui imortalidade, que “... não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador, a fim de que, justificados por graça nos tornemos seus herdeiros, segundo a habita em luz inacessível, a quem esperança da vida eterna.” (Tt., 3: 5, 6 e 7); homem algum jamais viu, nem é capaz de ver. A ele honra e poder eterno. “Assim, pois, como dizo Espírito Santo: Hoje, Amém.” se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso (1 Tm., 6: 13, 14, 15 e 16); coração como foi na provocação, no dia da tentação no deserto, onde os vossos pais me “Bendito o Deus e Pai de nosso tentaram, pondo-me à prova, e viram as Senhor Jesus Cristo, que, segundo a minhas obras por quarenta anos.” sua muita misericórdia, nos regenerou (Hb., 3: 7-10); para uma viva esperança, mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os “Foi a respeito desta salvação que os profetas mortos.” indagaram e inquiriram, os quais profetizaram (1 Pe., 1: 3); acerca da graça a vós outros destinada, investigando, atentamente, qual a ocasião ou “Ao vencedor, fá-lo-ei coluna no quais as circunstâncias oportunas, indicadas santuário do meu Deus, e daí jamais pelo Espírito de Cristo, que neles estava, ao sairá; gravarei também sobre ele o dar de antemão testemunho sobre os nome do meu Deus, o nome da cidade sofrimentos referentes a Cristo e sobre as do meu Deus, a nova Jerusalém que glórias que os seguiram. A eles foi revelado desce do céu, vinda da parte do meu que, não para si mesmos, mas para vós outros, Deus, e o meu novo nome.” (Ap., 3: ministravam as coisas que, agora, vos foram 12); anunciadas por aqueles que o Espírito Santo enviado do céu, vos pregaram o evangelho, “... e clamavam em grande voz, coisas essas que anjos anelam prescrutar.” (1 dizendo: Ao nosso Deus, que se Pe., 10: 11 e 12); assenta no trono, e ao Cordeiro, pertence a salvação.” (Ap., 7: 10); “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: ao vencedor, dar-lhes-ei que se “Então me mostrou o rio da água da alimente da árvore da vida que se encontra no vida, brilhante como cristal, que sai paraíso de Deus. (...) Quem tem ouvidos, ouça do trono de Deus e do Cordeiro. (...) o que o Espírito diz ás igrejas: O vencedor de Nunca mais haverá qualquer nenhum modo sofrerá dano da segunda morte. maldição. Nela estará o trono de Deus 148 (...) Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito e do Cordeiro. Os seus servos o diz servirão, contemplarão a sua face, e na sua fronte está o nome dele. Então, às igrejas; Ao vencedor, dar-lhes-ei do maná já não haverá noite, nem precisam escondido, bem como lhe darei uma pedrinha eles de luz branca, e sobre essa pedrinha escrito um nome novo, o qual ninguém conhece, exceto aquele de candeia, nem da luz do sol, porque que o recebe. (...) Quem tem ouvidos, ouça o o Senhor Deus brilhará sobre eles, e que o Espírito diz às igrejas.” (Ap., 2: 7, 11, reinarão pelos séculos dos séculos.” 17 e 29); (Ap., 22: 1, 3, 4 e 5). “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas. (...) Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas. (...) Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas.” (Ap., 3: 6, 13 e 22). A expressão “Espírito Santo”358, completa ou com os termos separados, é mencionada 260 vezes nas páginas do Novo Testamento. O Espírito Santo, como vimos, é o Consolador divino, enviado por Deus para habitar conosco. Sua presença e atuação em nossa vida é como um Fogo, um agente de purificação que destrói todo o pecado. Nas principais correntes do Cristianismo, o Espírito Santo é uma pessoa da Trindade, consubstancial ao Pai e ao Filho. Nas igrejas Unitárias, nas Testemunhas de Jeová, e em outras denominações cristãs que não aceitam a doutrina da Santissíma Trindade, o Espírito Santo seria somente uma força ativa, uma energia que procede de Deus, mas não uma “pessoa” Divina. Para a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, conhecida popularmente como “Mórmons”, o Espírito Santo seria um personagem de espírito, terceira pessoa da Deidade, no entanto separado e distinto do Pai e do Filho. Os Cristãos crêem que é o Espírito Santo que conduz as pessoas à fé em Jesus Cristo e aquele que lhes dá a capacidade para viver uma existência verdadeiramente cristã. Ele é descrito como “ajudador”, guiando-os no caminho da verdade. O “Fruto do Espírito” (isto é, o resultado da sua influência) é “amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade”359. Ele também concede dons A palavra hebraica presente na Bíblia para espírito é “ruwach”, que significa vento, fôlego, inspiração; o substantivo é feminino e assim conhecido no Cânticos dos Cânticos, o mais antigo hinário cristão. A palavra grega para espírito, “pneuma”, não tem gênero gramatical e o Espírito Santo é traduzido para o masculino apenas em línguas como o Latim, suas derivações e o Inglês. 359 Cf. Gl., 5:22. 358 149 (habilidades) aos cristãos, tais como profecia, línguas e conhecimento, embora alguns acreditem que isto apenas tenha ocorrido nos tempos do Novo Testamento. Os movimentos Pentecostal e Neo-pentecostal, porém, colocam ênfase nas obras do Espírito Santo, em especial nos dons, acreditando que estes são até hoje concedidos. Os Pentecostais crêem que é Jesus quem batiza com o Espírito Santo e que isto se evidencia pelo falar línguas estranhas. Uma parte minoritária dessas Igrejas afirma que esse é o verdadeiro sinal do Cristianismo numa pessoa, ou seja, que até o fiel ter experimentado esse batismo não pode ter certeza plena da própria salvação. O Espírito Santo trabalharia como nos bastidores de um filme, como colaborador que não precisa aparecer ou ser evidenciado pelo resultado exterior. Alguém que não se importa em ser comentado, que deixa a glória da obra para Outro e que trabalha, dia e noite sem parar, para o bem de todos. Alguém sempre pronto a ajudar, a orientar, que vai dizendo ao cristão o que fazer em momentos de dúvida, medo e temor360. Esse Alguém existe, e, embora não possamos vê-Lo, é real, tão real como o vento que agita as águas. Quando O conhecemos, nos apaixonamos, pois Ele é extremamente atencioso, e doce, é Alguém com quem você pode se abrir e contar em toda e qualquer situação.361 Por fim, podemos trazer à luz uma última controvérsia, sutil, mas não menos importante, que divide católicos e protestantes. Os primeiros consideram que a obra do Espírito Santo continua sendo executada em nossos dias, apesar da pós-modernidade. Conforme o movimento carismático “Canção Nova”, o Espírito Santo é necessário em nossos dias, colocando o fenômeno de Pentecostes como uma necessidade vital e cotidiana, mantendo a coragem e a intrepidez da missão confiada pelo Senhor: “evangelizar até os confins do mundo.”362 Por outro lado, para os protestantes, o Espírito Santo não apenas guiou os apóstolos para toda a verdade, mas confirmou a palavra que proferiram por meio dos milagres. Esses milagres limitaram-se, todavia, ao período apostólico. Quando a revelação da vontade de Deus se completou e foi escrita (antes de 70 d.C.), a palavra já tinha sido confirmada363 e cada sinal ou milagre necessário foi registrado364. A palavra está completa e não há necessidade de haver sinais miraculosos hoje365. 360 Nesse sentido, o teólogo Philip Yancey comenta que a Bíblia contém 365 mandamentos que dizem: “Não tema”, a ordem mais repetida na Bíblia, para nos lembrar diariamente que enfrentaremos dificuldades que podem naturalmente causar medo. Cf. YANCEY, op. cit., p. 75. 361 Cf. GONÇALVES, Luiz, disponível em: http://oespiritosanto.blogspot.com/. 362 Cf. FIUZZA, Geraldo André. “Promessa do Espírito Santo Em nossos dias, precisamos de um Pentecostes diário”, Comunidade Canção Nova, disponível em: http://www.cancaonova.com/portal/canais/especial/pentecostes/2005/0_apr_010.php. 363 Cf. Hb., 2: 3-4. 364 Cf. Jo., 20: 30-31. 365 Cf. JENKINS, Ferrell. “O Espírito Santo no Propósito de Deus”, disponível em: http://www.estudosdabiblia.net/a13_22.htm. 150 De qualquer forma, necessário ou não ao mundo de hoje, o teólogo Philip Yancey, já citado, explica que jamais conseguiu fazer qualquer exibição pública de êxtase espiritual (como Martin Luther King e outros), mas concorda que vários autores do Novo Testamento falam sistematicamente em “espírito de Cristo” ou “Espírito”, de tal sorte que quando deseja visualizar o Espírito de Deus, busca a Jesus, “em quem o invisível assume um rosto”. Yancey afirma que O Mestre “nunca fez lavagem cerebral em ninguém”, deixando espaço aos indivíduos para livre-escolha ou rejeição de seus argumentos. E assinala, não sem alguma emoção acusatória, para si mesmo: “Da mesma forma, qualquer transformação que Deus opere na pessoa não acontecerá pela força exterior da coerção, mas pelo Espírito, que opera no interior, convocando a nova vida, transformando de dentro para fora. (...) O Espírito Santo oferece um progresso lento e firme em direção ao objetivo que Deus sempre desejou: a reconstrução gradual do meu ego caído.”366 366 Cf. YANCEY, op. cit., PP. 167, 168 e 169. 151 7º INTERVALO – O OMBRO ESTRAÇALHADO Vivi, por 46 anos, na zona sul do Rio de Janeiro e por mais 6 na classe média aristocrática e metida da zona norte daquela cidade. Ao lado de minha cama de casal, ouvia o som das metralhadoras e fuzis do tráfico, porque vivia num bairro mediterrâneo e bucólico, cercado por favelas com donos e chefetes diferentes. O medo imperava, mas como a munição é “cara”, em algum momento da madrugada o tiroteio acabava e sobrevinha cruel silêncio. Como o Rio de Janeiro ficou violento e essa condição passou depressa, como numa transfusão de sangue, para a cabeça das pessoas! A universalidade das drogas, os fuzis, as facções, as milícias, a completa ausência do Estado nas regiões mais pobres, na educação e saúde (o dinheiro também é inimigo do Estado porque ele nunca tem verba para nada, a não ser para obras supérfluas e superfaturadas) – são o pano de fundo do horror que acomete os cidadãos, acovardados em suas casas, protegidos parcialmente por grades, vendo os bandidos à solta cada vez mais ferozes e encharcados de cocaína para facilitar as suas ações sub-animalescas e demoníacas. Mata-se por qualquer coisa, o menor motivo vira um festival de balas e execuções... Esse estado de convulsão e guerra deixa sem saída os cidadãos, que, no íntimo, se perguntam: "quando será a minha vez, meu Deus?" Pois a minha vez chegou, precedida pelo término litigioso de um casamento. Que eu fiz mal, lógico que fiz. Deveria ser moderado e não perder a razão. Fui louco e muito me arrependo disso. Ela, como sempre, creditou o meu comportamento aos maus modos facilitados pela bebida. Ficou com feridas na alma... Quando ajudava a colocar minha mudança no caminhão, dentro ainda do edifício da mulher que pretendia deixar, sentado, conversando calmamente com o chefe da portaria, eis que surge um indivíduo jovem e moreno que não consegui identificar, pedindo meu nome, que eu confirmei e que me deu sem qualquer motivo ou discussão um soco na boca e esmagou meu ombro com o cabo de seu fuzil. Em silêncio se retirou, como veio, um fantasma satânico que se recolheu nas sombras. Desconfiei na hora sobre a origem da agressão, mas jamais consegui identificar o mandante. Só sei que naquele bairro bucólico da zona norte do Rio de Janeiro não tinha inimigos identificados, além de ser uma espantosa coincidência ser violentamente agredido após uma briga interrompida com minha ex-mulher. Quem foi o mandante daquele ultraje contra mim, que me condenou a quase perder os movimentos do braço direito? De qualquer maneira, fiquei, naquela altura, com o lado direito semi-morto: o pau-mandado sabia o que estava fazendo. E tenho de aceitar, agora, meu destino e esperar que Jesus, o Nazareno, cure a ferida física e abrande meu estupor espiritual. Dirão os ingênuos: recorra à Justiça. Redargüirei, então, com veemência: sou brasileiro, não desisto nunca, mas não creio em Justiça para esse escritor. Não vou criar caso, mesmo tendo testemunha, porque não vou envolver em problema meu (uma 152 agressão gratuita e sem motivo) um pobre coitado que ganha dois salários mínimos. Além do que há as juras de morte e ajustes de contas de que provavelmente não escaparia. Por isso, jamais porei novamente os pés naquele lugar. Mas não guardo raiva de quem mandou fazer isso em mim nem do próprio executor. Só penso que não merecia a intensidade da truculência e a audácia e covardia de se agredir um homem sentado e conversando distraidamente. Compreendo, porém, que a raiva se amplifica e que infunde em seu portador – aliás, como qualquer droga – uma sensação de poder. Que Deus cuide do destino de quem mandou fazer isso contra mim. Ele não sabe o que realmente fez, o que é tomar morfina para não sentir dor... Concluí ter vivido no seio de uma família louca como um agregado, não passava disso. E como agregado, nem tinha o respeito de um José Dias, o simpático interlocutor de Bentinho, em Dom Casmurro. O RENASCIMENTO Agora estou renascendo das cinzas de mim mesmo: não preciso mais rezar dentro de um banheiro, para que não zombem de mim. Não preciso fugir para a pracinha que contém uma Igreja e entrar nela, escondido, para orar e meditar. Não preciso mais escutar as bobagens sobre o Código da Vinci, de que Jesus era casado com Maria Madalena, que os apóstolos eram sodomitas e que todo padre é homossexual e pedólatra. Chega! Agora estou livre para rezar quantas “ave-marias” e “pai-nossos” desejar sem ser molestado ou censurado. Afinal, ainda não vivemos num país de constituição ateísta. Minhas crenças, antes vividas às escondidas, estão palmilhando uma primavera de liberdade. Meu Deus, pode mostrar o Seu rosto... Recomeçarei minha vida com a curiosidade e a persistência das crianças. O que receber da vida e dos amigos agradecerei e redistribuirei no que couber. Tenho por princípio que o que me sobra não me pertence. A esta altura, sei que vou passar por delicada cirurgia, por volta de 7 de agosto de 2008 [na verdade, fui operado a 15 de agosto]. E, depois, sofrerei longo período de fisioterapia. Meu braço ficou todo preto e inflamado, mas hoje [30 de julho] a inflamação cedeu e isso é bom sinal. As dores são lancinantes e quase não me deixam dormir (fui obrigado até a dormir sentado por uma semana!), o que faço à prestação, ao longo dos dias em que a maioria do tempo fico completamente só. As radiografias “encantaram” todos os ortopedistas a que consultei (haja dinheiro), que elogiaram a minha persistente disposição para enfrentar a dor. Nunca imaginei que ela pudesse ser capaz de aproximar tanto um homem afastado de Deus para tão perto Dele. Era apenas um ser racional, que via o mundo de maneira objetiva. Só fugia da realidade cruel ao me embebedar. Hoje, mudei meu modo de ver e não tenho mais vergonha de pedir ajuda a meu Pai e sentir os impulsos da fé, num modo bem simples de ser.Não tenho mais vergonha de me converter... 153 Concluí os exames de “risco cirúrgico” e estou preparado, espiritualmente para a operação. Que a espada de São Miguel, flamejante, guie as mãos do cirurgião e eu abra os olhos e, com o tempo, recupere os movimentos. Não sou um homem consagrado, mas não me sinto mais uma ovelha desgarrada. Começo a renascer das cinzas, com a ajuda de Deus, de Nossa Senhora e do Mestre Jesus, no que serenamente dispuserem e decretarem para o meu caso. O chefe de cirurgia do hospital, em que irei me operar, afirmou a um emissário meu, após rever as radiografias, que se fosse um trabalhador braçal, obrigatoriamente teria de me aposentar, tal a gravidade da agressão. Enfim, encontro-me entrevado do lado direito, com repercussões para as costas. O osso úmero foi destruído e estou impedido de trabalhar. Não é que Deus e seus amigos e aliados me protegeram, porque não fui atingido na cabeça? Se o cabo do fuzil tivesse pegado no crânio, talvez não pudesse dirigir mais esse relato a vocês. Estaria fora da sociedade do conhecimento e jamais poderia continuar a escrever os inflamados artigos que muitos os que me acompanharam virtualmente conhecem. Como já disse, estou só, numa cidade pequena e nem preciso anotar aqui as minhas saudades imensas do mar de Copacabana. Em compensação, não ouço o resfolegar das metralhadoras e só escuto de longe as velhas notícias corriqueiras de violência. Aqui não existem balas perdidas... O escritor toma hoje vários remédios para dor, vitaminas contra a anemia e faz uma super-alimentação calórica, sob o olhar benevolente de seus anjos, para esperar a cirurgia. O DILEMA DA CRIATURA Cometi muitos pecados ao longo da vida e deposito aos pés de Jesus o meu sincero pedido de perdão. Espero, vivamente, resgatar os males que produzi, tão logo possa e esteja bem. O meu carma, tenho certeza, solenemente irei cumprir, embora jamais tenha passado por tão delicada cirurgia. Como afirmei, ao contrário do meu feitio, tudo o que relatei aqui é revestido de puro caráter pessoal. O que me aconteceu, em parte pode ser também creditado à atual mentalidade de violência e confronto, que afeta várias cidades brasileiras, de agredir ou atirar primeiro, num conflito neurótico e permanente que leva aos resultados trágicos que temos assistido. A violência pela violência, o olho por olho também são vícios. No fim, como disse Gandhi, todos ficam cegos... Felizmente, estou vivo. Sou vítima dessas circunstâncias, mas lembro dos especialistas em vitimologia que às vezes opinam nesses casos, nas delegacias: “você deu bobeira”. Foi a “minha vez” e eu era, sem dúvida, o homem errado no momento errado... 154 Que Deus prodigalize na forma de milagres e ajudas a todos aqueles que, de bom grado e coração, me auxiliaram nesse momento terrível de dor e sofrimento. Sei que muitos trarão calor com orações e acolhimento. E os resultados práticos de tanto sofrimento só entenderei realmente no futuro. Esse é o dilema da criatura, antes forte e soberba e agora fraca e quase derrotada procurando finalmente a mão forte de Deus... 155 – 13 – UM MURO DE VIRTUDES “Os fanáticos sonham com os que forjam um paraíso para a sua seita.” John Keats “O mais frio puritano não pode sair sem encontrar influências inexplicáveis.” Ralph W. Emerson 156 A história das religiões não é uma caminhada irracional, sem rumo como um feixe de surpresas. Vemos, de forma curiosa, um caminho geográfico a ser marcado e seguido. Se Adão era moreno ou negro, tostado pelo sol da África367, nosso ponto médio ou meio do céu, os apelos religiosos, no entanto, acompanharam os movimentos celestes, aproveitando o caminho natural do Leste longínquo, ao nascente, para o Oeste selvagem e desconhecido, ao poente. Tivemos o xintoísmo, no Japão, com o incensado culto aos antepassados; o bramanismo e o budismo na China, com a interpretação do sofrimento humano e a senda para a sua inevitável superação; o hinduísmo, que reverberava o caminho da formação do Universo e o lugar do homem como expressão mais nobre; o monoteísmo egípcio de Akenaton, que amava o deus solar; a adoração judaica do Deus indizível, exigente e vingador, e o amor intransferível por Alá, na bela concepção do Islã dos muçulmanos. Na Palestina surgiram também vários profetas e o maior deles, Jesus, ápice da história humana, tratou de unir o amor de Deus ao próximo, numa sinfonia de esperanças para todos os povos da Terra. Do Oriente Médio, onde surgiu, o Cristianismo se espalhou para os confins do mundo. Conquistou o Império Romano, as suas possessões mediterrâneas e os bárbaros que lhe herdaram os territórios. A Idade Média representou o momento máximo de aprofundamento da religiosidade e da moral, embora a convivência do culto popular e institucional com os poderes do tempo medievo haja desviado a pureza de muitos propósitos. O renascimento europeu, nos séculos XV e XVI, com a fixação de estados nacionais, repercutiu o Cristianismo para as terras do Novo Mundo, conquistado pelas mãos das monarquias católicas de Portugal e Espanha, que levaram a tecnologia cristã oferecida às Américas e, de volta, à África e às Índias. Índios e negros foram submetidos à força ao império de Cristo, muitas vezes despreparados para encarar e consumir os novos estágios civilizatórios. É interessante anotar a extraordinária observação do escritor e prêmio Nobel mexicano, Octávio Paz, sobre o contato da cultura cristã com o Novo Mundo. Ele ensinou que as tribos indígenas daquelas paragens, bem como os negros africanos escravizados, tinham a maior dificuldade em absorver as noções da eucaristia, porque eram povos que não tiveram contato pessoal com o trigo e o vinho, as matérias básicas da culinária celestial servida aos apóstolos por Cristo.368 O geneticista norte-americano, Dr. Spencer Wells, afirmou em seu livro “The Journey of man”, “A Jornada do homem”, que as características físicas diferenciadas entre raças decorreram de 30 mil anos apenas para cá, de que somos uma grande família e que todo DNA humano provém de um único ancestral que viveu na África há 60 mil anos. (cf. THOMAS, David. “O verdadeiro Adão viveu na África”, in Jornal O GLOBO, 25/12/2002, p. 19. 368 “Tanto o novo quanto o antigo Testamento fazem assíduas alusões a parreiras – o que reflete uma religião nascida no mundo mediterrâneo. A principal metáfora do cristianismo está ligada à vinicultura e a um de seus produtos: o vinho. O mistério da eucaristia e transubstanciação consiste na transformação do vinho em sangue divino, e do trigo em carne divina. Os missionários tiveram dificuldades colossais para explicar isso a povos sem nenhuma intimidade com o vinho e o pão de trigo na América – embora os conceitos de mutação e metamorfose lhes fossem familiares. Eram-lhes impossível aceitar o cristianismo, porque lhes faltavam as noções concretas do vinho e do trigo.” (cf. PAZ, Octavio. “Edith Piaf entre os pigmeus”, in Jornal do Brasil, Caderno Idéias, p. 5, 19/09/1987. 367 157 O desenvolvimento do capitalismo europeu trouxe o Iluminismo, forma de pensar que repudiava os dogmas católicos, e, com ele, o protestantismo, uma forma de justificação do desejo do homem de alcançar a prosperidade material sem, ao mesmo tempo, esquecer de Deus. E os huguenotes perseguidos pela conservadora Igreja católica francesa tiveram que emigrar para as terras do Novo Mundo. Do mesmo modo, os ingleses protestantes, alguns empobrecidos sob o impacto da Revolução Industrial (1750-1850) e outros, insatisfeitos com os rumos do Anglicanismo dos descendentes de Henrique VIII em eterna guerra contra o Papado – conformaram uma nova civilização na Costa leste e na região então chamada “Nova Inglaterra” do futuro Estados Unidos. Era o Extremo Ocidente finalmente conquistado para as hostes cristãs, em pleno século XVIII, enquanto se alicerçavam os princípios e valores de independência das “13 colônias” na Revolução Americana (1776), que, por sua vez, se sedimentaram com a Revolução Francesa (1789) e seus famosos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Foi, sem dúvida, o espírito protestante que edificou a grande nação norteamericana e sua democracia durável e exemplar. No entanto, na medida em que decrescia o poder da Igreja católica, na Europa, confrontada com o livre exame protestante e o cientificismo do século XIX, operava-se uma revolução surda em terras norte-americanas, onde os ex-colonos libertados protestavam também contra o afastamento das idéias primitivas do Cristianismo e pensavam na releitura da Bíblia em termos mais literais. Assim como os “Founding Fathers”, os mestres construtores da pátria política, os norte-americanos pretendiam restaurar as bases religiosas de sua nação, tentando reencontrar pretensos alicerces cristãos para eles perdidos pelo materialismo reinante. Surgia uma nostalgia dos tempos heróicos da Palestina e da predisposição dos primeiros apóstolos em evangelizar os incultos. A teoria da predestinação de Calvino, que praticamente inspirou o espírito de conquista daquelas novas terras, e o empreendedorismo do “american way of life” não repercutiram bem no coração desses religiosos puritanos, ortodoxos e inflexíveis, que desejavam um diálogo mais profundo entre os patriotas da nova nação e o Deus eterno e todo-poderoso. Os “ramos” fundamentalistas É interessante anotar as datas de nascimento e morte desses religiosos-pioneiros norte-americanos: William Miller (1782-1849), fundador da denominação adventista, um camponês nascido de pais batistas; Joseph Smith (1805-1844), fundador e “profeta” da denominação “mórmon”, filho de família metodista; e Charles Taze-Russel (1852-1916), fundador da denominação Testemunhas de Jeová, nascido de família presbiteriana. 158 É curioso que três personagens, provenientes de famílias das classes médias do interior dos Estados Unidos, se tornaram reformadores radicais num pequeno espaço de 134 anos. E isso aconteceu num intervalo de tempo que enfatizava o século XIX, justamente o período mais conturbado de descrença, racismo e materialismo do mundo ocidental, representado por filósofos como Marx, Nietzsche e Comte. Naquele século, predominou a ciência sob o modelo newtoniano, que privilegiava o método experimental, as dimensões tridimensionais da matéria e as leis da gravidade entre os corpos celestes, enfim, o modo de ver o mundo que servia aos propósitos da Revolução Industrial e, depois, ao chamado industrialismo “de segunda onda”...369 Os astrólogos e espíritas costumam comentar, curiosamente, que Deus reúne algumas pessoas especiais em certos momentos da história humana para gerar progresso para a humanidade. Assim, tivemos indivíduos ilustres no Renascimento, capazes de impulsionar a arte e as ciências; os iluministas franceses, responsáveis pelo avanço do saber, da filosofia e da ciência política fora do controle ideológico da Igreja católica e, mais recentemente, grandes físicos, que modificaram no século XX a forma newtoniana de ver o mundo e o funcionamento das leis universais, além de cineastas famosos, que praticamente no mesmo momento do início do século XX desenvolveram a arte do cinema e aperfeiçoaram a cultura audiovisual tal como a conhecemos hoje. A construção da nação norte-americana, como símbolo permanente do Extremo Ocidente, carecia, porém, de uma interpretação espiritual. E os religiosos mencionados, preocupados com a pureza das palavras do Cristo decidiram revoltar-se contra os preceitos reformistas dos protestantes, desejando um retorno ao passado e às origens. Nesse sentido, tornaram-se “protestantes dos protestantes”370, recusando-se a aceitar as teorias que fundaram a nova nação sob o espírito do capitalismo, da competição e da opressão tolerada do homem pelo homem. Essas denominações, adventistas, mórmons e testemunhas de Jeová, embora discordantes em vários graus de doutrina, tinham em comum, na origem, quatro pilares 369 Conforme a terminologia do futurólogo Alvin Toffler, as sociedades tradicionais eram sociedades de Primeira Onda, baseadas na transmissão dos conhecimentos por tradição e na agricultura artesanal; as sociedades de Segunda Onda, que aprofundaram a Revolução Industrial até o aperfeiçoamento da linha de montagem e da administração científica por Henry Ford, que predominaram até a década de 70 do século passado; e, por fim, as sociedades de Terceira Onda, que se constituem a partir da valorização da cibernética, da informática, da energia nuclear e do conhecimento como valor agregado para produzir o desenvolvimento hegemônico de alguns países sobre a humanidade. 370 Segundo o teólogo católico Estêvão Bittencourt, “As novas idéias que surgiram no decorrer da Idade Média, chagaram ao seu auge na Reforma protestante no século XVI. Esta proclamou a Bíblia como única autoridade decisiva em matéria de fé e de costumes; cada crente é livre para interpretá-la segundo “o livre exame” ou a sua intuição subjetiva. Tais princípios haviam de esfacelar o Cristianismo; logo três reformadores (Lutero, Zvínglio e Calvino) fundaram três novas modalidades de Cristianismo no século XVI; por sua vez, as comunidades reformadas foram reformadas e reformadas sucessivamente, derivando-se deste processo centenas de denominações protestantes independentes umas das outras, porque dependentes da inspiração subjetiva do respectivo fundador. Ademais os princípios da Reforma protestante fazem violência à própria Escritura, porque a desligam da Tradição oral, que lhe é anterior e sem a qual a Bíblia não pode ser devidamente entendida, conforme II Tessalonicenses 2,5s.15; II Tessalonicenses 3,6...” (cf. “A Igreja Proibiu a Leitura da Bíblia?”, disponível em: http://www.geocities.com/apologeticacatolica/leitbib.html. 159 coesos: o repúdio ao livre exame da Bíblia, o milenarismo, o ódio indisfarçável à Igreja católica e a intolerância racial. O interior das terras norte-americanas era percebido como a América profunda e sulista. Essa parte do país tornou-se conhecida pelas preferências políticas conservadoras e a intolerância racial entre brancos e negros. De um lado, ricos fazendeiros, comerciantes abastados e capitães de indústria, e suas famílias; de outro, uma população camponesa e urbana de negros e pobres, sem tradições políticas e amparos assistenciais ou legais – compunham uma surda luta de classes que começou na Guerra da Secessão (1861-1865) e só terminou, do ponto de vista da igualdade civil e jurídica puramente formal, em meados do século XX, quando em 1954 a Suprema Corte americana restaurou, parcialmente, os direitos civis. Tais práticas costumeiras de separação e racismo precisavam de argumentos religiosos para subsistir, conquistando corações e mentes por todo o país. Eram preferências, ditas “morais e místicas”, que necessitavam de justificativas bíblicas para chamar adeptos, mesmo que isso entrasse em rota de colisão com o próprio espírito da Constituição norte-americana. Havia também a necessidade vital de reestruturar uma sociedade manchada por costumes degradados, a violência e o amor ao dinheiro acima de todas as coisas e até do próprio Deus, o que parecia a esses puritanos e ortodoxos práticas permitidas e estimuladas pelos protestantes de então. O repúdio ao livre exame O primeiro pilar a ser contestado seria a política de livre exame do conteúdo da Bíblia, defendida por protestantes tradicionais (das vertentes luterana e calvinista) e pelos pentecostais e metodistas. O livre exame, que afinal de contas popularizou o texto sagrado, que só podia ser conhecido antes por uma elite adestrada no latim, no grego e no hebraico – tornou-se um pecado em si mesmo para os fundamentalistas. Adventistas e Testemunhas de Jeová compartilhavam o repúdio veemente àqueles que discutiam o texto bíblico como se pudesse ser “interpretado” à luz das fraquezas humanas. Compenetravam-se da convicção de que “os outros religiosos”, caindo em pecado, olhavam a Palavra de Deus como “uma estorinha”, retirando do texto o que satisfizesse os seus ocultos propósitos.371 A doutrina do livre exame aparece, historicamente, como uma forma de oposição obstinada ao mandonismo e controle da Igreja católica sobre os cidadãos, à influência do clero sobre alguns mandatários de estados europeus, bem como aos maus costumes morais das autoridades eclesiásticas, devidamente denunciados por Lutero. 371 A esse respeito, é interessante anotar que em outras religiões, como no Islamismo, a simples noção de “livre exame” é por si mesma um pecado. O grande teólogo islamita At-Tabari (839-923), por exemplo, um doutor tradicional em história universal e grande comentador do Alcorão, afirmava no final do século IX: “todo aquele que utiliza apenas seu próprio julgamento para tratar do Alcorão, mesmo que alcance nesse ponto a verdade, incorre em erro pelo simples fato de o haver tratado por seu único critério. (...) Todo aquele que trata da religião segundo sua conjetura profere contra Alá aquilo que não tem conhecimento”. (cf. BLACHÈRE, Régis. O Alcorão, p. 79, tradução de Heloysa de Lima Dantas, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1969. 160 Por conseguinte, em suas origens, o livre exame seria uma espécie de punição política a uma hegemonia religiosa indesejável, não propriamente um mandamento invencível deduzido diretamente do exame do texto sagrado. Como explica Fernanda Carminati Azevedo, A “sola scriptura”, isto é, a Bíblia como a única fonte de fé, e o “livre exame”, interpretação individual da Bíblia, constituem-se nos fundamentos da reforma protestante. E acentua: “Eis os três cavalos de batalha do reformador Lutero: a justificação pela fé sem as obras; a Bíblia como única fonte de fé, interpretada segundo o livre exame do crente e a negação de intermediários (a Igreja) entre Deus e o crente.”372 A grande contradição do livre exame, segundo a mesma autora, é afirmar que o crente, de forma individual, tem a assistência do Divino Espírito Santo, que o ilumina para uma correta interpretação das Escrituras; mas como pode haver tantas interpretações diferentes? O Espírito Santo estaria mentindo ou existem muitas verdades? E já no tempo de Lutero havia tantas ramificações que ele próprio disse: “Há tantos credos quantas cabeças há”.373 Os protestantes asseveram que a autoridade da Bíblia deriva do fato de ser ela a Palavra de Deus. O seu testemunho é interno e evidente, mesmo que os homens assim não o creiam. Ela não depende do nosso testemunho para ter autoridade; ela é o que é. Não é a Igreja que autentica a Palavra por sua interpretação, como a Igreja romana sustentou em diversas ocasiões. É a Bíblia que se autentica a si mesma como Palavra de Deus possuidora de autoridade e nos ilumina para que a interpretemos corretamente. Entendem os protestantes que sem as Escrituras não poderíamos ter um conhecimento correto e salvador de Jesus Cristo, como bem observou Calvino (15091564): “Ora, já que, em razão de sua obtusidade, de modo nenhum pode a mente humana chegar até Deus, salvo se assistida e sustentada por sua Sagrada Palavra. A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura; portanto, quando houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único), a Bíblia apresenta a melhor interpretação a respeito dos seus ensinamentos...”.374 A Reforma não somente retomou o estudo e o ensino das Escrituras, como também recuperou a antiga e esquecida forma de lê-la, abrindo o seu estudo para todos. Com isso, iniciando com uma reforma espiritual, ela gerou uma revolução em todas as áreas do saber e, conforme assinalou, em 1921, o erudito evangélico Grescham Cf. AZEVEDO, Fernanda Carminati. Apostolado Sociedade Católica: “Sola Scriptura” e livre exame. Disponível em: http://www.sociedadecatolica.com.br/modules/smartsection/item.php?itemid=399, desde 05/11/2008. 373 Idem. 374 Cf. João Calvino, As Institutas, I.6.4, apud. COSTA, Herminsten Maia Pereira, “Livre exame e livre interpretação”, Revista Expressão, Século 21 – Atualidades, A igreja em seu contexto, Lição 07, pg. 2835, Ed. Cep. 372 161 Machen (1881-1937): “A Reforma do século 16 foi baseada na autoridade da Bíblia e colocou o mundo em chamas.”375 A “Sola Scriptura”, pregada por Lutero, isto é, tudo o que eles crêem está na Sagrada Escritura, explica o porquê de o protestantismo ter se formado mil e quinhentos anos depois de Jesus, porque, como sabemos, nos primeiros anos da Igreja os apóstolos anunciavam oralmente o que Jesus os havia ensinado e que o Espírito Santo os recordou “e só depois escreveram”. Tal doutrina, anexa ao livre exame do crente, anula a necessidade da interpretação da Igreja e até a necessidade de existir da própria Igreja, fato percebido ainda mais marcadamente na rejeição da necessidade de intermediários entre Deus e o crente.376 Em contrapartida, os teólogos católicos afirmam que de nenhum modo a Igreja romana impediu o povo de ler os textos sagrados. Estêvão Bittencourt, por exemplo, contesta a afirmação de que a Igreja católica não desejava que o povo lesse a Bíblia por ser, de acordo com a sua visão, vaga e destituída de documentos. Por toda a Antigüidade, o Livro Sagrado era recomendado à leitura dos cristãos e São Jerônimo, no início do século V, é um dos mestres que melhor representam essa atitude pastoral. Na Idade Média apareceram correntes dualistas e heréticas que se valiam da Bíblia para apoiar concepções errôneas. No século XIX multiplicaram-se as Sociedades Bíblicas protestantes, cuja finalidade era difundir a Bíblia em traduções das línguas comuns. Compreende-se que, na base dos princípios adotados no século XVI, a Igreja se opusesse a tais iniciativas, consideradas como perigosas para a correta interpretação da fé cristã. Nesse sentido, o Concílio de Trento (1543-65) tomou medidas que preservaram os fiéis católicos dos males acarretados pelas proposições dos reformadores, declarando autêntica (isenta de erros teológicos) a Vulgata latina, tradução devida a São Jerônimo (ano 420) e muito difundida entre os cristãos. A rejeição do princípio do livre exame da Bíblia, proibindo-se edições da Bíblia sem o nome do autor responsável pela edição, estimulou inclusive o reflorescimento dos estudos bíblicos nos colégios, conventos e mosteiros.377 Eis porque pareceu oportuno à Igreja romana reservar o uso da Bíblia a pessoas de sólida formação cristã nos séculos em que as heresias pretendiam apoiar no texto sagrado as suas proposições perturbadoras.378 Assim, quanto ao tema do livre exame estabelecem-se controvérsias muito sutis entre católicos e protestantes, a ponto de um mesmo trecho da Bíblia servir para justificar os argumentos dos dois lados: ele está em Atos, capítulo 17, nos versículos 10 e 11 e poderia muito bem ser chamado, como num filme, de “caso Beréia”. Eis o trecho: 375 Idem. Cf. AZEVEDO, Fernanda C., site citado. 377 Cf. Bittencourt, Estêvão, “A Igreja Proibiu a Leitura da Bíblia?”, disponível em: http://www.geocities.com/apologeticacatolica/leitbib.html. 378 Idem. 376 162 “Naquela mesma noite, os irmãos encaminharam Paulo e Silas para Beréia. Quando lá chegaram, dirigiram-se para a sinagoga dos judeus. Estes eram de sentimentos mais nobres do que os de Tessalônica. Receberam a palavra muito prontamente, consultando diariamente as Escrituras, para ver se tudo estava certo.” Segundo Alexandre Semedo, o “caso Beréia” é, extremamente, interessante. Cantado e decantado pelos protestantes para provar que os primeiros cristãos acreditavam no sola scriptura e praticavam o livre exame, apegam-se ao mesmo tempo, quase que desesperadamente, na tentativa de dar, a estes “dois dogmas”, uma base bíblica. Ocorre, no entanto, que os de Beréia foram muito nobres não pelo livre exame que, na visão protestante, teriam praticado. Ao contrário, foram nobres “por receberem a palavra muito prontamente”, ou seja, por terem se submetido, sem maiores resistências, ao magistério oral de São Paulo. Aqui, de forma muito nítida, percebe-se o erro protestante ao limitar a Palavra de Deus ao texto bíblico. Semedo explica: “Lucas diz que, não obstante terem recebido a palavra, pesquisaram as escrituras. São dois termos usados de maneira distinta. Por livre exame não se deve entender outra coisa senão que o Espírito Santo nos concede, a cada um de nós, Seu auxílio imprescindível, quando lho pedimos com fé, para que possamos entender as Escrituras. Deus não faz acepção de pessoas, e nesse sentido não se pode conceber que o auxílio do Espírito Santo seja dado a uma minoria, e negado à grande maioria.”379 Os apóstolos só escreveram o que era essencial, e entre estas coisas essenciais é registrada a necessidade de outras fontes de fé, reportando-se à transmissão oral, isto é, à Sagrada Tradição. Eis aqui uma grande incoerência da doutrina pseudo-reformada: eles não querem a Igreja, mas pode haver Bíblia sem Igreja? Não, a Igreja não só transmitiu a Escritura, mas a formou como a vemos. A Igreja é anterior ao Novo Testamento, e foi Ela quem formou o cânon do Antigo Testamento, como o temos hoje. Foi a Igreja quem constituiu a Bíblia, e não a Bíblia quem constituiu a Igreja.380 E uma outra questão faz-se absolutamente necessária: sem a Igreja, a Bíblia se esfacela, pois quem me faz acreditar na Escritura, que não a Tradição e o Magistério? O Corão, o livro sagrado dos mulçumanos, também diz ser a palavra de Deus, no entanto, porque os protestantes não crêem nele? Acreditamos na Bíblia, porque toda a tradição apostólica, que nos liga direto a Cristo, leva-nos a acreditar na tradição escrita, isto é a Bíblia. Os planetas na galáxia do protestantismo giravam em torno de um sol, chamado insubmissão: a maior 379 Cf. SEMEDO, Alexandre. “Apostolado Veritatis Splendor: Luterano defende o Livre Exame”, disponível em http://www.veritatis.com.br/article/787, desde 10/02/2003. Nesse sentido ver Lc., 11: 4352. 380 Cf. AZEVEDO , Fernanda, site citado. 163 bandeira de Lutero não foi sua doutrina, nem suas teses pretensiosas, mas o horror ao papado e a toda a autoridade por ele constituída.381 Com quem ficar? Com a opinião própria do crente ou com a Bíblia? Como explicar que Deus deixaria o mundo ao “livre exame”, em que cada um seguiria sua cabeça e justificaria as próprias opiniões? E onde ficaria a frase de João: “Haja um só rebanho e um só pastor” (Jo., 10: 16). Basta folhear os Atos dos Apóstolos e verificar que a Igreja, desde o começo, seguia a um só pastor, isto é, o sucessor de Pedro (o primeiro Papa). Outra contradição do livre exame é o fato de existirem tantas igrejas protestantes, todas se dizendo inspiradas pelo mesmo “espírito santo” e cada uma pregando uma doutrina diversa da outra. Não é essa também uma forma dos protestantes protestarem também contra seus próprios protestos?382 – QUADRO 5 – A BÍBLIA E O LIVRE EXAME A ARGUMENTOS BÍBLICOS A FAVOR DO LIVRE EXAME ARGUMERNTOS BÍBLICOS CONTRA O LIVRE EXAME “Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei.” (Sl., “Naquela hora, exultou Jesus no Espírito 119: 18); Santo e exclamou: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque “Examinais as Escrituras, porque julgais ocultaste estas coisas aos sábios e ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas instruídos e as revelastes aos pequeninos. que testificam de mim.” (Jo., 5: 39); Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado.” (Lc., 10: 21); “E logo, durante a noite, os irmãos enviaram Paulo e Silas para Beréia; ali “Ai de vós, intérpretes da lei! Porque chegados, dirigiram-se à sinagoga dos tomastes a chave da ciência; contudo, vós judeus. Ora, estes de Beréia eram mais mesmos não entrastes e impedistes os que nobres que os de Tessalônica; pois estavam entrando.” (Lc., 11: 52); receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias “Quando vos levarem às sinagogas e para ver se as coisas eram, de fato, perante os governadores e as autoridades, assim.” (At., 17: 10-11); não vos preocupeis quanto ao modo por que respondereis, nem quanto às coisas “E, assim, a fé vem pela pregação, e a que tiverdes de falar. Porque o Espírito 381 382 Idem. Idem. 164 pregação pela palavra de Cristo.” (Rm., Santo vos ensinará naquela mesma hora 10: 17); as coisas que deveis dizer.” (Lc., 12: 1112); “Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior “Respondeu Jesus: Se alguém me ama, número possível. (...) Tudo faço por causa guardará a minha palavra; e meu Pai o do evangelho, com o fim de me tornar amará, e viremos para ele e faremos nele cooperador com ele.” morada. (...)mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu (1 Co., 9: 19 e 23); nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho “Outra razão ainda temos nós para, dito.” (Jo., 14: 23e 26); incessantemente, dar graças a Deus: é que, tendo vós recebido a palavra que de "Filipe aproximou-se e viu que o eunuco nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes lia o profeta Isaías, e perguntou-lhe: não como palavra de homens e sim como, Porventura entendes o que estás lendo? em verdade é, a palavra de Deus, a qual, Respondeu-lhe: Como é que posso, se não com efeito, está operando eficazmente em há alguém que mo explique? E rogou a vós, os que credes.” (1 Ts., 2: 13); Filipe que subisse e se sentasse junto dele." (At., 8: 30-31); “Toda Escritura é inspirada por Deus e “...e nos mandou pregar ao povo e útil para o ensino, para a repreensão, testificar que ele é quem foi constituído para a correção, para a educação na por Deus, Juiz de vivos e de mortos. Dele justiça, a fim de que o homem de Deus todos os profetas dão testemunho de que, seja perfeito e perfeitamente habilitado por meio de seu nome, todo aquele que para toda boa obra.” nele crê recebe remissão de pecados.” (2 Tm., 3: 16-17); (At., 10: 42-43); “Ora, a mensagem que, da parte dele, “E logo, durante a noite, os irmãos temos ouvido e vos anunciamos é esta: enviaram Paulo e Silas para Beréia; ali que Deus é luz e não há nele treva chegados, dirigiram-se à sinagoga dos nenhuma.” judeus. Ora, estes de Beréia eram mais (1 Jo., 1: 5). nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim.” (At., 17: 10-11); “Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o seu próprio espírito, que nele está? Assim, também as coisas de Deus, ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus. (...)Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.” (1 Co., 2: 11 e 14); “[nós vos exortamos] a que não vos 165 demovais de vossa mente, com facilidade, nem vos perturbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola, como se procedesse de nós, supondo tenha chegado o Dia do Senhor. Ninguém, de nenhum modo, vos engane, porque isso não acontecerá sem que primeiro venha a apostasia e seja revelado o homem da iniqüidade, o filho da perdição.” (2 Ts., 2: 2-3); “Assim, pois, irmãos, permanecei firmes e guardai as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa.” (2 Ts., 2: 15); “E o que de minha parte ouviste através de muitas testemunhas, isso mesmo transmite a homens fiéis e também idôneos para instruir a outros.” (2 Tm., 2: 2); “pois, com efeito, quando devíeis ser mestres, atendendo ao tempo decorrido, tendes, novamente, necessidade de alguém que vos ensine, de novo, quais são os princípios elementares dos oráculos de Deus; assim, vos tornastes como necessitados de leite e não de alimento sólido. (...) Mas o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que, pela prática, têm as suas faculdades exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o mal.” (Hb., 5: 12 e 14); “...se, todavia, fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, sendo argüidos pela lei como transgressores.” (Tg., 2: 9); “Quem entre vós é sábio e inteligente? Mostre em mansidão de sabedoria, mediante condigno proceder, as suas obras.” (Tg., 3: 13); “...sabendo, primeiramente, isto: que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque jamais 166 qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo.” (2 Pe., 1: 20-21). Mas se sabemos que os cristãos fundamentalistas condenam de antemão o livre exame, poderíamos assegurar que suas teses, nesse tema, seriam favoráveis à igreja católica e romana? Claro que não. Os fundamentalistas (adventistas, mórmons e testemunhas de Jeová) não aceitam as teses protestantes porque desejam ser ainda mais radicais do que eles na maneira de compreender o Livro Sagrado. Essa postura decorre da percepção mesma do que significa ir à raiz, ao fundamento das coisas. Fundamentalismo “é um movimento que objetiva voltar ao que é considerado princípio fundamental (ou vigente na fundação) da religião”. O fundamentalista acredita nos próprios dogmas como verdade absoluta, indiscutível, sem abrir-se, portanto, ao diálogo religioso. Por este motivo, o fundamentalismo revela-se como fonte de intolerância, na qual o outro é analisado sob a ótica de ameaça, símbolo do mal, que pode fragilizar as “muralhas de verdade”, construídas pelo fundamentalista em seu discurso.383 A formação de uma identidade separada é julgada necessária por causa da percepção de que a comunidade religiosa perdeu a habilidade de se definir, julgando que os fundamentos da religião foram perdidos por negligência ou desatenção, configurando ato de separatismo ou divergência em termos estranhos impróprios e hostis à própria religião.384 Os grupos fundamentalistas são fundados com o objetivo de manter e guardar fiel e rigidamente os princípios religiosos ditos desnaturados e forçar uma aproximação interna com o mundo moderno atendendo aos referidos princípios fundamentais. Especificamente, refere-se a qualquer enclave religioso que intencionalmente resista à identificação com o grupo religioso maior do qual diverge, por ter-se desviado ou corrompido pela adoção de princípios alternativos hostis ou contraditórios à identidade original.385 Isso não é privilégio da religião cristã que tomada em seu conjunto de denominações é a mais importante do mundo386. No Islã, existe, porém, uma diferença 383 Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Fundamentalismo_religioso. Idem. 385 Idem. 386 Com cerca de 2,13 bilhões de adeptos, o cristianismo é hoje a maior religião mundial, adotada por cerca de 33% da população do mundo. É a religião predominante na Europa, América, Oceania e em grande parte de África e partes da Ásia. O censo do IBGE, realizado no ano 2000, mostrou nova configuração religiosa no Brasil com o surgimento de vários movimentos e dezenas de conversões de evangélicos a algum novo tipo de seita. O Brasil é o segundo país no mundo em Testemunhas de Jeová e o maior em número de espíritas/católicos. É o país com o maior número de Adventistas e onde o 384 167 entre sunitas (tradicionais) e xiitas (fundamentalistas), grupos que divergem quanto à interpretação do Alcorão e da Suna Sagrada. A Suna ou “Imitação do Profeta” e o Alcorão, o Livro Sagrado, são os fundamentos da tradição islâmica e a Suna representa para os adeptos da Lei Islâmica o mesmo que o Talmude judaico, para o Pentateuco (os cinco livros de Moisés que compõem a Torá e uma parte do Antigo Testamento).387 Os sunistas são tradicionalistas e ortodoxos388, conservando um respeito profundo pela Vulgata oficial (“uthmaniana”), que seria o cânon ou corpus de doutrina codificado pelo califa Uthmân (644-656) e seus seguidores, mas que não eliminou os muitos “leitores do Alcorão”, dentre os quais o movimento cismático dos “xiitas”, que foi de início combatido, mas sobreviveu politicamente. Conforme assegura Regis Blachère: “...admitiu-se desde os primórdios, por volta do século VIII, provavelmente, que a Vulgata poderia ser recitada com variantes intercaladas, as “qirâ’at” ou “leituras”. (...) Essa multiplicidade de “leituras” não é, pois, encarada como deficiência ou imperfeição da Vulgata. Como era de se esperar, dessa lassidão ou afrouxamento se aproveitou a exegese de tendência intelectualista ou xiita. (...) Os sectários xiitas exploraram o ressentimento dos que admitiam ter a Vulgata sofrido retoques deliberados, supressões destinadas a minimizar a importância de Ali (genro de Maomé) e de sua família no seio da Comunidade; tais alegações eram baseadas em pontos de vista partidários, muitos dos quais chegavam a ofender a correção gramatical, fato esse que, somado a sua feição extremada, lhes restringia o alcance, não atingindo senão os meios xiitas.”389 Percebe-se que as controvérsias entre os islamitas são muito parecidas com o ambiente efervescente do cristianismo primitivo já descrito. O Alcorão, aliás, acompanha muito de perto a trama bíblica, mas condensa os seus momentos num vigor mais apelativo e profético. Exibe-se a atividade de Moisés, Jesus e Maria, que aparecem de forma um pouco diferente do que são narrados nos Evangelhos sinóticos, e de Abraão, que é mostrado como um personagem da época, que diverge do próprio pai. Os politeístas são condenados como ímpios ou iníquos (a “Via Reta” contra a “Via Tortuosa”) e Maomé surge como profeta “admoestador”, que repreende com benevolência, proclamando a unicidade de Alá390. Mormonismo é uma das religiões que mais cresce, além de Brasília ter se tornado a capital mundial do esoterismo. 387 Cf. BLACHÈRE, Regis., op. cit., p. 88. 388 A palavra Sunismo deriva do termo sunna, que significa costume e, por extensão, “costume do Profeta”; portanto, costume servindo para definir a norma moral, cultural e jurídica, o que mostra o quanto é difícil deixar de expor as nuances sutis entre a ortodoxia sunita e de outras seitas muçulmanas (cf. BLACHÈRE, op. cit., pp. 80 e 81). 389 Idem, pp. 22 e 73. 390 “Ele é Alá, único. Alá o Singular. Ele não gerou nem foi gerado. A Ele ninguém é igual.” (Alcorão CXII). Cf. BLACHÈRE, op. cit., pp. 34, 37 e 38. 168 Sábado ou Domingo? Assim como os xiitas representam hoje no mundo islâmico a divergência fundamentalista, religiosa e partidária, também os fundamentalistas cristãos exerceram, nos Estados Unidos, desde o século XIX e, depois, se espalhando pela terra, o papel de adeptos inflexíveis do que consideravam a pura doutrina de Jesus. Um dos fundamentos inquestionáveis era o da inspiração verbal da Bíblia, seguindo-se daí a sua infalibilidade e impossibilidade de erro, cuja autoridade se estendia não só ao domínio religioso mas a todos os campos do saber: científico, histórico e filosófico. Seja qual for, no entanto, o juízo que se faça sobre a modernidade e sua crise, é necessário reconhecer conquistas humanas irrenunciáveis: precisamente a leitura histórico-crítica dos textos sagrados, a separação das Igrejas e do Estado, da religião e da política, os direitos humanos, a ciência e a razão crítica. Apesar das constantes tentações restauracionistas e até pró-fundamentalistas, são valores que também a Igreja Católica reconheceu no Concílio Vaticano II (1962-1965), superando, no essencial, os conflitos que durante 300 anos manteve com os tempos modernos. A globalização comercial, a migração de grandes massas humanas, a rapidez dos transportes e da comunicação, os intercâmbios culturais têm levado a uma fragmentação cultural e religiosa dentro de comunidades tradicionalmente unidas pela hegemonia de uma cultura ou de uma religião. A possibilidade de perder a segurança enraizada em uma cultura e em uma religião é muito grande e as reações fundamentalistas freqüentes. Se a vocação universalista no passado levou a visitas discretas ou agressivas de missionários a outros territórios, hoje todos os crentes em qualquer lugar devem vigiar as próprias atitudes de domínio espiritual. A conquista de espaços de presença pode alimentar a competição e acirrar polêmicas e chegar aos excessos da intolerância e do fanatismo. Na situação internacional atual, às correntes fundamentalistas opõem-se os métodos políticos da negociação e ao fundamentalismo religioso é proposto o caminho do ecumenismo e do diálogo inter-religioso, inclusive como novos modelos de ação missionária para religiões que entendem seu credo como universal. Os fundamentalistas acreditam que a sua causa é de grave e cósmica importância e vêem a si mesmos como protetores de uma única e distinta doutrina, modo de vida e salvação. A comunidade, compreensivel e preponderantemente centrada num modo de vida religioso em todos os aspectos, é o compromisso dos movimentos fundamentalistas, e atrai não apenas os que compreendem a distinção, mas também outros insatisfeitos e os que julgam que a dissidência é distintiva, sendo vital à formação de suas identidades religiosas. O muro de virtudes fundamentalista que protege a identidade do grupo é instituído não só em oposição a religiões estranhas, mas também contra os modernizadores e reformistas. 169 Os fundamentalistas não se consideram propriamente “protestantes” ou “evangélicos” por possuirem com esses ramos grandes divergências teológicas. Nesta categoria estão enquadradas, a Igreja Adventista do Sétimo Dia, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Mórmons) e as Testemunhas de Jeová, entre outras denominações. Quanto a esta última, embora afirme ser cristã, também não se considera parte do protestantismo. As testemunhas aceitam a Jesus como criatura de natureza divina, seu líder e resgatador, rejeitando, no entanto a crença na Trindade e ensinando que Cristo é o filho do único Deus, Jeová, não crendo que Jesus é Deus. Os adventistas, por sua vez, são muito ativos nas obras assistenciais, investindo maciçamente em programas sociais, mantendo hospitais, casas de repouso e de recuperação de viciados. Zelam pela escolha da alimentação, cultivam um pensamento de prosperidade material e são combatentes contra todos os vícios em geral. Dão ênfase às publicações, às escolas e ao “evangelismo”. Por causa disso, muitos vêem o adventismo como uma religião cristã igual às outras com a única diferença de guardar o sábado. No entanto, o adventismo não pode ser considerado como uma denominação cristã devido ao fato de misturar muitas verdades bíblicas com erros doutrinários, como julgam teólogos protestantes de variadas tendências. Embora falem a respeito de Jesus Cristo e preguem algumas verdades cristãs, as formulações adventistas destoam grandemente das doutrinas básicas do Cristianismo. Eles se acham donos da verdade absoluta e se consideram como a última igreja de que fala a profecia bíblica; por isso, não conseguem trabalhar em harmonia com as demais e trabalham ativamente para conseguir adeptos de outras denominações.391 William Miller é reverenciado entre os adventistas como profeta e fundador, embora ele próprio não observasse de início o sábado como dia de descanso sagrado, porque sua família pertencia à Igreja Batista. A Igreja Adventista do Sétimo Dia só foi oficialmente organizada em 1860, depois de já haver recebido outros nomes. Embora considerem a Bíblia como autoridade doutrinária, os adventistas asseguram, ainda, que Deus inspirou Ellen White na interpretação das Escrituras e nos conselhos exibidos em seus livros392. No adventismo, como em outras seitas fundamentalistas, aliás, verifica-se que os escritos de seus fundadores continuam sendo sustentáculos doutrinários, independentes da Bíblia. Eles ensinam que os cristãos devem observar o Sábado393 como o dia de repouso, e não o Domingo. Crêem que os que guardam o Domingo são, na verdade, 391 Aliás, esse trabalho de cooptação de fiéis, ou seja, retirar de outras seitas os adeptos e convertê-los à denominação que interessa, quer dizer “a nossa”, é típico trabalho fundamentalista de convencimento. Não conheço ninguém que, em algum momento da própria vida, não haja se defrontado na rua com pregadores que seguram bíblias nas esquinas e distribuem folhetos coloridos. 392 O livro “O Grande Conflito”, considerado a obra prima da Sra. White, é recomendado largamente pela seita. Já foi editado em mais de 30 línguas com uma vendagem superior a dois milhões de exemplares. Entre outras obras, as mais importantes são: Vida de Jesus, Patriarcas e Profetas, Veredas de Cristo, O desejado de Todas as Nações. 170 discípulos da besta e representantes do Anticristo. A senhora White ensina que a observância do Sábado é o selo de Deus. O selo do Anticristo seria o oposto a isto, ou seja, a observância do Domingo394. O Sábado seria uma parte do pacto especial entre Deus e Israel395. O próprio Moisés explicou que esse era um memorial de sua libertação da terra do Egito. Ao repousar de seu trabalho semanal, os judeus deveriam recordar como Deus lhes havia dado o repouso da dura servidão do Egito396. No entanto, protestantes e católicos guardam o domingo, contrariando frontalmente a postulação central adventista. Segundo as denominações protestantes397, a palavra profética previa a chegada de uma “Nova Aliança”398 e o fim do Sábado399, que se cumpriu em Jesus400. O texto de Colossenses 2: 16-17 deita por terra todas as teses dos adventistas e Paulo parece que fala diretamente para eles quando escreve aos Gálatas, tratando de livrá-los dos enganos dos que queriam fazê-los guardar a lei judaica, ressaltando que a salvação não é pelas obras da lei, mas pela fé em Cristo. O apóstolo faz questão de mencionar a observância de certos dias como parte da escravidão da lei401 e, em outra parte, afirma que Cristo é o fim da lei402. Do ponto de vista católico, por sua vez, ressalte-se que a palavra hebraica “shabbath” significa “sete” e “repouso”, de modo que qualquer sétimo dia (na seqüência dos dias do ano) consagrado ao repouso é sábado. Os cristãos deslocaram de um dia a observância do repouso ou do sétimo dia, porque foi no dia posterior ao sábado – ou no domingo – que o Senhor Jesus ressuscitou dos mortos, apresentando ao mundo a nova criatura. O teólogo Estêvão Bittencourt assinala, neste sentido, o princípio: “Observemos que esse deslocamento se deve aos próprios apóstolos403e ao próprio Deus, colocando a ressurreição de Cristo no dia seguinte ao sábado, 393 Cf. Ex., 20: 8-11. Não esquecer que o dia sagrado dos muçulmanos é a Sexta-Feira. Bom mesmo é que são sete os dias da semana, o que permite que cada religião escolha o seu dia. De minha parte, acho que todos os dias são santificados e merecem o mesmo respeito. Utilizar um dia exclusivo é para mim um fato completamente secundário e não contribui para nossa evolução espiritual, além de ser uma “verdade muito forçada” opor o sábado ao domingo. Na verdade, são dias irmãos e muito fraternos... 395 Cf. Ez., 20: 10-13. 396 Cf. Dt., 5: 12-15. 397 Cf. http://www.planetaevangelico.com.br/religioes/princadv.htm. 398 Cf. Jr. 31: 31-33. 399 Cf. Os., 2: 11: “Farei cessar todo o seu gozo, as suas Festas de Lua Nova, os seus sábados e todas as suas solenidades.” 400 Cf. Cl., 2: 16-17: “Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo.” Por essa razão, o Sábado não aparece nos quatro preceitos de Atos 15: 28-29: “Pois pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor maior encargo além dessas coisas essenciais: que vos abstenhais das coisas sacrificadas a ídolos, bem como do sangue, da carne dos animais sufocados e das relações sexuais ilícitas; destas coisas fareis bem se vos guardardes. Saúde.” 401 Cf. Gl., 4: 3-11. 402 Cf. Rm., 6: 14: “Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei e sim da graça.” E Rm., 10:4: “Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê.” 403 Cf. At., 20: 7: “No primeiro dia da semana, estando nós reunidos com o fim de partir o pão, Paulo, que devia seguir viagem no dia imediato, exortava-os e prolongou o discurso até meia-noite.”; 1 Co., 16: 2: “No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua 394 171 dando a entender que o dia do Senhor, por excelência, ou o sábado dos cristãos, deveria ser deslocado de um dia.”404 Para católicos e protestantes, enfim, guardar o sábado é questão 405 secundária , mas para os adventistas não, é uma questão de salvação ou perdição: a guarda do Sábado é o sinal que separa sua igreja, verdadeira e única, das falsas igrejas, naturalmente “as outras”. Os adventistas têm uma rede hospitalar muito boa, um serviço social de excelente qualidade e procuram até viver uma vida cabível a qualquer cristão. Infelizmente, suas doutrinas distorcidas e, por se considerarem a “última igreja” da profecia bíblica, os qualificam como um movimento fora da ortodoxia. Discutir religião com um fundamentalista é perda de tempo. Durante a Idade Média (nos séculos XI e XII), os doutores escolásticos, nas universidades recémcriadas na Europa, reuniam-se para discutir temas bíblicos, cada um de um lado da tribuna, defendendo os próprios argumentos, tencionando chegar à verdade. No mundo atual, no entanto, existe uma tendência de “estar sempre certo” e de procurar por fazer prevalecer de qualquer modo os seus argumentos, em alguns casos derramando o sangue do próximo. Assim procedem os fundamentalistas, quando procuram convidar à discussão sempre desejando “converter o outro ao próprio pensamento”. Como não possuem (ainda) o poder de mandar matar o oponente através do braço do Estado (como em outros tempos o fez a Inquisição católica), é certo que os adventistas procurarão convencer o interlocutor, principalmente o protestante e o evangélico, da necessidade de guardar o sábado406, mas esses procuram rebater os argumentos, citando, como sempre estamos vendo neste livro, argumentos contrários à intenção anterior, geralmente afirmando passagens do Novo Testamento407. Muitos adventistas abandonaram a seita, porém, por não concordarem com a valorização dos escritos de Ellen White, colocados no mesmo nível que os escritos prosperidade e vá juntando, para que se não façam coletas quando eu for.” E Ap. 1: 10: “Achei-me em espírito no Dia do Senhor, e ouvi, por detrás de mim, grande voz, como de trombeta...” 404 Cf. BITTENCOURT, Estêvão. Crenças, religiões e seitas, quem são?, op. cit., p. 45. 405 Cf. Rm., 14: 5 e 6: “Um faz diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias. Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente. Quem distingue entre dia e dia para o Senhor o faz; e quem come para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e quem não come para o Senhor não come e dá graças a Deus.” 406 Vão citar 1 Jo., 2 :4: “Aquele que diz: eu o conheço e não guarda os seus mandamentos é mentiroso, e nele não está a verdade.” E Ap., 14: 12: “Aqui está a perseverança dos santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus.” 407 Cf. Jo., 13: 34-35: “Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros.”; Rm., 13: 8 e 10: “A ninguém fiqueis devendo coisa alguma exceto o amor com que vos ameis uns aos outros; pois quem ama o próximo tem cumprido a lei. (...) O amor não pratica o mal contra o próximo; de sorte que o cumprimento da lei é o amor.”; Gl. 2: 16: “...sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois, por obras da lei, ninguém será justificado.” e 1 Jo. 3: 23: “Ora o seu mandamento é este, que creiamos em nome de seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, segundo o mandamento que nos ordenou.” 172 bíblicos, retornando à velha crença de Lutero de uma só escritura, infalível e única fonte da fé, e do livre exame das questões teológicas. O Milenarismo408 No princípio do século XIX também houve um despertamento de interesse pela segunda vinda de Cristo (também chamada “parusia”) entre os cristãos. Guilherme Miller, pastor batista no estado de Nova Iorque, dedicou-se ao estudo detalhado das escrituras proféticas, convencendo-se de que a passagem bíblica do profeta Daniel (8: 14) se referia à vinda de Cristo para “purificar o santuário”409. Calculando-se forçosamente que cada um dos 2.300 dias representasse um ano, tomou como ponto de partida a carta de regresso de Esdras e seus compatriotas a Jerusalém (em 457 a.C.), chegando à conclusão de que Cristo voltaria à terra em 1843. Tal “exercício profético” ocorreu em 1818.410 Por um quarto de século, Miller proclamou a mensagem a cristãos de diferentes Igrejas. O interesse dos crentes em relação à profecia era crescente e o número deles ia de cinqüenta a cem mil pessoas preparando-se para o fim do mundo. Muito crentes doaram as lavouras e se prepararam para “receber o Senhor” no dia 21 de março de l843. Chegou o dia e o evento esperado não aconteceu. Miller revisou os cálculos, descobrindo “um erro de um ano”. Tal correção ocorrer no dia 21 de março de l844. Ao chegar a data também nada aconteceu. Uma vez mais novo cálculo indicou que seria o dia 22 de outubro de mesmo ano. Porém essa previsão também falhou.411 Um dia depois “da grande desilusão”, Hiram Edson, fervoroso discípulo e amigo íntimo de Miller, teve outra “revelação”: nela compreendeu que Miller não estava equivocado em relação à data, mas sim em relação ao local. Disse que Cristo havia entrado no dia anterior no santuário celestial, não no terrenal, para fazer uma obra de purificação ali. Edson partilhou com outros membros de seu grupo as “boasnovas”. Outros dois grupos se uniram a essa nova revelação: um dirigido por Joseph Bates, que dava ênfase à guarda do Sábado, e outro, dirigido por Hellen White, que dava ênfase aos dons do Espírito.412 O adventismo é, pois, o ressurgimento do farisaísmo do primeiro século. Os legalistas judeus perturbaram e perseguiram Jesus, os apóstolos e as igrejas gentílicas da época. Os dois erros básicos que levaram os adventistas a desenvolver outros “Crença de que a segunda vinda de Cristo à Terra se daria no ano 1000, quando então teria início o Reino de Deus na Terra, que duraria mil anos e seria um período de paz, felicidade e justiça social. Qualquer movimento político-religioso que se caracteriza pela crença na salvação iminente e coletiva deste mundo, e que surge geralmente em decorrência de uma situação de crise e dominação”. O mesmo que “quilianismo”, ou seja, “crença no fim do milênio como ocasião de grandes catástrofes e de transição para uma época de paz, felicidade e justiça”. (Cf. Aulete, Dicionário Digital) 409 “Ele me disse: Até duas mil e trezentas tardes e manhãs; e o santuário será purificado.” (cf. Dn., 8: 14). 410 Cf. http://www.planetaevangelico.com.br/religioes/princadv.htm. 408 411 412 Idem, site citado. Idem, site citado. 173 desvios, desde o início, foram: profetizar o dia da volta de Cristo e considerar Ellen White como profetisa. As revelações da autora influenciaram muito a formação das doutrinas adventistas e seus abundantes escritos contribuíram grandemente para a expansão da seita. Ela e o esposo espalharam amplamente ensinos proféticos e doutrinários por meio de revistas e livros, considerados pelos seguidores como “inspirados” por Deus. Tais mensagens produziriam efeitos no mesmo nível da Bíblia, que citam apenas para comprovar o que ensinam, buscando versículos ou passagens isolados.413 Os adventistas consideram que Jesus entrou no santuário celestial no ano de 1844 e agora estaria cumprindo a obra de expiação. Tal doutrina, a expiação incompleta e contínua, seria uma distorção das Escrituras, num esforço para justificar as previsões errôneas de Miller. Não se pode duvidar da sinceridade dos que creram em tal “revelação” de Hiram Edson, porém ela não concorda com as Escrituras. A Bíblia ensina que Jesus penetrou no santuário celestial ao ascender ao céu e não no ano de l844.414 Normalmente, as crenças de uma seita ou religião baseiam-se em motivos muito fortes relacionados a experiências de seus fundadores, ou livros escritos e interpretados por eles. Nesse caso, os escritos dos fundadores tornam-se regra de fé e prática. Por exemplo, os adventistas ensinam que Satanás seus demônios, e todos os maus serão aniquilados e completamente destruídos. A Senhora White diz que a teoria do castigo eterno seria “uma das doutrinas falsas que constituem o vinho das abominações da Babilônia”. Segundo a autora, os adoradores do Anticristo seriam, na verdade, atormentados “e o fumo de seu tormento sobe pelos séculos dos séculos”, o que sugere aniquilação. Jesus Cristo, porém, usou a palavra “eterno” para referir-se à duração das bênçãos dos salvos e os tormentos dos perdidos. Além disso, Ele não se referiu à expressão “aniquilação eterna”, mas a “castigo eterno”.415 Segundo o teólogo católico Estêvão Bittencourt, a crença num reinado milenar de Cristo sobre a terra tem suas raízes na literatura apocalíptica judaica. O texto do Apocalipse que se refere a esse reino milenar, escrito por João, o Evangelista, deve ser lido sob a luz de seu próprio Evangelho416. Ora, naquela passagem do Evangelho, Jesus fala de duas ressurreições: a primeira se dá imediatamente (“já veio...”); a segunda é 413 Idem, site citado. Cf. Hb., 6: 19,20; 8: 1-2; 9:11-12, 23-26 e 10: 1-14. Idem, site citado. 415 Cf. Mt 25.46: “E irão estes para o castigo eterno, porém, os justos, para a vida eterna.” Ver, também, Mc 9: 43,44; Ap. 14: 11 e 20: 2,7 e 10; consultar, ainda, o site http://www.solascripturatt.org/Seitas/Advent7Dia-PlanetaEv.htm. Idem, site citado. 416 Ou seja, “Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre esses a segunda morte não tem autoridade; pelo contrário, serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com ele os mil anos.” (Ap., 20: 6) deve ser compreendido à luz de: “Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão. Porque assim como o Pai tem vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo. E lhe deu autoridade para julgar, porque é o Filho do homem. Não vos maravilheis disto, porque vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão; os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que tiverem praticado o mal, para a ressurreição do juízo.” (Jo., 5: 25-29). 414 174 futura; a passagem da morte para a vida dá-se pelo batismo e pela graça santificante (é a ressurreição primeira) e a outra ocorrerá nos fins dos tempos, quando os corpos ressuscitarão, para que o homem – em corpo e alma – possua a sua sorte eterna (ressurreição segunda). O intervalo entre as duas, de mil anos, não é uma medida, mas sim um simbolismo, que significa, conforme os antigos, bonança, abundância e viver, desde já, a Vida Eterna.417 Continua o autor, observando que a crença adventista de que as almas adormecem, com a morte, e se tornam inconscientes na outra vida, equivale à crença judia no “cheol”, região subterrânea onde se encontrariam inconscientes os bons e maus418, o que demonstra a ênfase que dão às proposições do Antigo Testamento, que foram superadas e reformuladas pelo Novo Testamento, que ensina que, logo após a morte o homem encontra a sorte definitiva, com os bons vendo a Deus face a face419. Os adventistas ensinam que as almas dos justos dormem até a ressurreição e o juízo final, baseando esse “sono da alma”, o estado de silêncio, inatividade e inconsciência na justificativa bíblica que está no Eclesiastes (9: 5), que afirma: “os mortos não sabem coisa nenhuma”. O contexto dessa passagem demonstra, entretanto, que o autor do versículo estava falando sobre a relação dos mortos com a vida terrena e não sobre o estado da alma depois da morte420. Provas bíblicas da consciência da alma depois da morte acham-se nas palavras de Paulo quando diz que ao deixar o corpo estaria com o Senhor421, o que relembra, por fim, o episódio da crucificação de Jesus em que assegura a um dos malfeitores que estavam sendo sacrificados com Ele: “hoje estarás comigo no paraíso”422. O fim do mundo não se encontra a cada esquina Outra doutrina sobre o milenarismo, das mais curiosas, é a desenvolvida pelas Testemunhas de Jeová. O fundador da seita, Charles Taze-Russel (1852-1916), jovem comerciante norte-americano, nascido em família presbiteriana, ora baseando-se em textos de Daniel e Ezequiel, em 1874, predisse a vinda de Cristo para 1914, acompanhado dos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó e dos profetas da fé. Naquela data se daria a Batalha do Armagedon423, na qual Deus aniquilaria os maus e daria início ao reino milenar de Cristo sobre a Terra, repleto de bonança e paz. As Testemunhas afirmaram, ainda, que a vinda de Cristo que todos os cristãos aguardam, ocorreria, porém, de forma invisível. Sim! Eles afirmam que Cristo 417 Cf. BITTENCOURT, Estêvão, Crenças, religiões, igrejas e seitas, op. cit., pp. 44 e 45. Cf. Sl., 87: 11-13 e Is., 38: 18. 419 Cf. Fp., 1: 21-23; 2 Cor., 5: 6-10 e 1 Jo., 3: 1-3. Cf. BITTENCOURT..., idem. 420 Cf. Ec., 5: 4-10. 421 Cf. Fp., 1.23,24 2 Co 5; 1-8. Veja também Lc.,16: 19-31. No monte da transfiguração, Moisés não estava “silencioso, inativo e totalmente inconsciente”, enquanto falava com Cristo, cf. Mt., 17: 1-6. Veja, ainda, Ap., 6: 9-11. 422 Cf. Lc., 23: 42-43. Muitos teólogos liberais afirmam que essa frase também significa que o primeiro santo do Cristianismo era um ladrão... 423 Cf. Ap., 16: 16. Do grego, “Armageddon” ou “Harmagedon”, do hebraico “har Meguido”, “monte Megiddo” na região da Galiléia. Segundo o livro do Apocalipse (16: 14-16), cenário da batalha decisiva entre o Bem e o Mal, que ocorreria no Juízo Final. 418 175 retornou, porém, de forma invisível e, por isso, ninguém conseguiu vê-lo; Ele se encontraria agora reinando sobre a terra.424 Independente desse reinado invisível, o anúncio de Russel não se cumpriu para o entendimento da maioria dos que se juntaram à seita, forçando o fundador a recalcular o ano de 1918 para início do reino milenar. A morte, em 1916, poupou-o de novo desengano. Russell sondava as Escrituras através da tradução inglesa, pois não conhecia o grego ou o hebraico. Assim, leu o texto de Levítico (28: 16), que no original em hebraico diz: “Se, apesar disso, não me ouvirdes, punir-vos-eis sete vezes mais pelos vossos pecados”, com a tradução inglesa que interpretava “seven times more” como “sete tempos ou períodos” ao invés de “sete vezes”.425 “Para Russel – assinala Bittencourt –, um tempo equivalia a um ano simbólico, ou seja a 360 anos (em vez de 360 dias), sete tempos seriam então 2.520 anos. Como esse período começou em 606 a.C. (quando Nabucodonosor começou a ameaçar Jerusalém, dando início à chamada “era dos gentios”), 606 anos haviam decorridos no início da era cristã, e restavam 1914 anos após o nascimento de Cristo para se ter o fim da “era dos gentios” e a segunda vinda de Cristo (2520 – 606 = 1914). Era com base nesses cálculos que Russel predizia o fim dos tempos para 1914.”426 Seu sucessor, Joseph Franklin Rutherford (1869-1942) recalculou a Batalha do Armagedon para 1925 e como nada do que foi predito aconteceu, ele decidiu não fazer mais profecias. Como era de se esperar, novamente passou o ano e Abraão, Isaac e Jacó não ressuscitaram o que desestabilizou o corpo governante da seita. Afinal, o fim do mundo não ocorreu... O fiasco foi tamanho que o próprio presidente das testemunhas de Jeová precisou reconhecer que passou por ridículo quando suas previsões do fim não se cumpriram – fato marcante para os fiéis que consideraram o gesto um “exemplo de humildade”. Nova tentativa foi realizada, porém, em 1941, obtendo-se o mesmo resultado. Infelizmente, para os adeptos, o mundo não acabou... Em 1968, porém Nathan Knorr, outro presidente da seita, afirmou pela revista Despertai! que o dia do Armagedon aconteceria em 1975, segundo seu cálculo particular sobre a cronologia bíblica: “Adão foi criado no outono de 4026 a.C., donde se segue que em 1975 se completariam seis mil anos da existência do gênero humano. Esses seis mil anos seriam seguidos do reino milenar de Cristo, paralelo ao descanso sabático, em que o Senhor Deus entrou após os seis dias da criação do mundo.”427 424 Cf. BITTENCOURT, Estêvão, op. cit., p. 67 e ARRÁIZ, José Miguel, “Os Testemunhas de Jeová e 1914”, tradução: Carlos Martins Nabeto, disponível em: http://www.apologeticacatolica.org/. 425 Cf. BITTENCOURT, op. cit., p. 70. 426 Idem. Essa datação forçada nem levava em conta a percepção, hoje corrente, de que Cristo nasceu, sob o reinado de Tibério, entre 8 e 4 a.C., o que atrapalha de novo os “cálculos” da seita. Nesse sentido, concordamos em que a Bíblia não pode ser lida como uma “estorinha”, nem manipulada no mesmo sentido... 427 Cf. BITTENCOURT, op. cit., p. 68. 176 Em 1977, interrogado pela Revista Time sobre o não cumprimento da profecia, respondeu que a contagem deveria ser alterada, pois o sétimo dia só começou após a criação de Eva, posterior à de Adão, considerando-se que este intervalo de tempo, não revelado pelo Senhor Deus, impede que se possa afirmar quando começará o sétimo milênio da humanidade ou o reino milenar de Cristo.428 Uma das colunas básicas da seita fundamentalista seria esse ensinamento sobre o Armagedon e o fim daquilo que denomina “o atual sistema das coisas”. Ao longo da História, suas crenças caracterizam-se por imaginar que o fim encontra-se próximo de cada esquina, e o anunciaram reiteradamente para 1914, 1918, 1925, 1941 e 1975. Mas O pior de tudo são as conseqüências psicológicas de tal comportamento teórico na vida dos adeptos. Matrimônios foram adiados, filhos deixaram de ser concebidos e hábitos simples do cotidiano, como ir a festas, comemorar aniversários e namorar passaram a ser evitados, vistos com censura por parecerem idolatria. Além disso, na vida concreta, as Testemunhas são contrárias a várias instituições da sociedade e consideram as instituições políticas como ampla organização satânica. Não celebram o Natal, não admitem a oferta de presentes, não são favoráveis à caça e a pesca e não aceitam as transfusões de sangue, porque a vida consiste no sangue e este pertence apenas a Deus!429 Ainda que qualquer pessoa com um pouco de senso comum possa se perguntar como é que Cristo está reinando invisivelmente desde 1914, se a cada dia prosperam no mundo coisas muito negativas como guerras, assassinatos, roubos etc., os adeptos criaram uma resposta engenhosa: "Porém, talvez você pergunte: se Cristo começou a governar em 1914, por que pioraram as condições na Terra? Porque, todavia, existia Satanás, o inimigo invisível da humanidade. Satanás teve acesso ao céu até 1914. Porém isso mudou quando o Reino de Deus foi estabelecido em 1914. 'Ocorreu uma guerra no céu' (Revelação, 12: 7). Satanás e seus demônios foram vencidos e lançados à Terra, produzindo efeitos catastróficos na humanidade. A Bíblia predisse: 'Ai da terra e do mar, porque o Diabo desceu até vocês, possuindo grande ódio, sabendo que tem um curto espaço de tempo!' (Revelação 12: 12)".430 E continuam no mesmo entusiasmo: “A proximidade do Reino de Deus hoje significa o fim dos divididos sistemas políticos, religiosos e comerciais da atualidade. Significa que será introduzido um novo governo justo para todas as pessoas obedientes da humanidade. Você pode escolher a vida eterna sob este arranjo de 'novos céus e uma nova 428 Idem. Idem, p. 70. 430 ARRÁIZ, José Miguel, “Os Testemunhas de Jeová e 1914”, tradução: Carlos Martins Nabeto, disponível em: http://www.apologeticacatolica.org/. 429 177 terra' (2Pedro 3: 13; João 17: 3). Sim! Você pode chegar a ver esta Nova Ordem prometida, juntamente com os sobreviventes da geração de 1914...”431 A Batalha do Armagedon, travada entre Cristo e seus inimigos, dividiria os vencedores em duas categorias: a primeira, denominada “classe consagrada ou vitoriosa” seria um pequeno rebanho, limitado a 144 mil eleitos, recrutados entre as Testemunhas de Jeová e que subiriam aos céus sem precisar mais das necessidades terrenas. Como a seita já ultrapassou a um milhão de adeptos, deve ter motivos de ansiedade para saber quem realmente fará parte deste número seleto. A segunda categoria, os “Jonadabs” serão deixados na carne e no sangue, porém, em ambiente de paz, livres de opressão, da doença e da morte, adotando a Terra como eterna morada. Quanto àqueles que não conseguirem superar a prova final, serão aniquilados juntamente com o diabo e todos os seus anjos.432 Contra a incontável quantidade de publicações em que as testemunhas de Jeová afirmam que Cristo falou de sua presença invisível, é preciso que sejam lidos integralmente os capítulos 24 e 25 do Evangelho de Mateus, onde Jesus jamais se refere à sua presença como “invisível”. Cristo responde aos discípulos, narrando os acontecimentos que ocorreriam antes de sua vinda (guerras, terremotos, fomes), que as testemunhas de Jeová erroneamente interpretam como sinal de que Ele já estaria presente entre nós de forma invisível. As próprias palavras de Cristo descartam qualquer vinda “invisível”, além do que o apóstolo Paulo, num texto muito claro, mostra como ocorrerão os fatos no final dos tempos: "Eis o que vos declaramos, conforme a palavra do Senhor: por ocasião da vinda do Senhor, nós que ficamos ainda vivos não precederemos os mortos. Quando for dado o sinal, à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, o mesmo Senhor descerá do céu e os que morreram em Cristo ressurgirão primeiro. Depois nós, os vivos, os que estamos ainda na terra, seremos arrebatados juntamente com eles sobre nuvens ao encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor. Portanto, consolai-vos uns aos outros com estas palavras"433 A mensagem de Cristo é que estejamos sempre preparados, pois não sabemos nem o dia, nem a hora. O fim do mundo não se encontra em cada esquina. Recordemos que, ainda que o mundo viesse a acabar daqui a 4 mil anos, o nosso “fim do mundo” ocorre quando nos chega a morte e precisamos prestar contas a Deus. Como não sabemos quando ocorrerá, o melhor é estar sempre alerta: Cf. “1914... A Geração que não Passará, w84 15/5 4-7 [versão em espanhol]), apud. ARRÁIZ, José Miguel, idem, site citado. 432 Cf. BITTENCOURT, op. cit., p. 69. 433 Cf. 1 Ts., 4: 15-18. 431 178 “Sabei, porém, isto: se o senhor soubesse a que hora viria o ladrão, vigiaria sem dúvida e não deixaria forçar a sua casa. Estai, pois, preparados, porque, à hora em que não pensais, virá o Filho do Homem”434 Um ódio indisfarçável Se os fundamentalistas caracterizam-se como protestantes dos protestantes e reformistas dos reformistas, restauradores que pretendem ser da pureza doutrinária do Cristianismo, não poderiam deixar de combater, com espírito não quieto ou terno, a Igreja católica e romana, considerando-a não praticante dos verdadeiros mandamentos de Deus (Antigo Testamento) e do Cristo (Novo Testamento). Uma das maiores disputas entre católicos e protestantes é, sem dúvida alguma, quanto ao uso das imagens sagradas pela Igreja. Desde o princípio, a Igreja católica sempre defendeu seu uso, ao contrário da esmagadora maioria das igrejas protestantes que prefere encarar o problema como insulto ao mandamento divino que proíbe a confecção de imagens435. Nesse particular, as testemunhas de Jeová acusam diretamente a Igreja católica de idolatria, de adorar ídolos e imagens, como na época do paganismo.436 Mesmo com o mandamento acima, repetido em Deuteronômio (5: 8), podemos perceber que os israelitas eram inclinados à idolatria, tendo-se em vista que eram escravos no Egito onde, mesmo mantendo a fé, assimilaram muitos costumes religiosos dessa nação, como prova a passagem do bezerro de ouro, onde este é confeccionado em virtude de uma simples demora da parte de Moisés437. Isto justifica a existência de um mandamento contra a idolatria: Israel estava cercada de nações pagãs, politeístas e idólatras; cultuavam-se o sol, os astros, os crocodilos, os reis, os gatos, etc. O verdadeiro povo escolhido devia se afastar de tudo isso pois era monoteísta (adorava a um Deus único, indizível e vingativo).438 Esse episódio demonstra perfeitamente o que vem a ser um ídolo: um substituto do verdadeiro Deus para o qual são atribuídos poderes e são oferecidos sacrifícios. Por conseguinte, o milagre da fuga do Egito foi atribuído ao objeto que tinha a imagem de um bezerro de ouro. Notemos também como esse bezerro passa a substituir o verdadeiro e único Deus assim como também lhe são oferecidos os sacrifícios devidos a Deus.439 434 Cf. Lc., 12: 39-40, apud. ARRÁIZ, site citado. “Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.”, cf. Ex 20: 4. 436 A palavra “ídolo”, em grego, significa “imagem”, “estátua”, isto é, reprodução de alguma coisa ou pessoa. 437 É o célebre episódio de confecção do bezerro de ouro narrado em Ex., 32: 1-5: como Moisés demorava para descer do Monte Sinai, os hebreus fugitivos do Egito não tardaram a confeccionar um bezerro em ouro, a quem cultuaram como se fosse o verdadeiro Deus. 438 Cf. Cf. NABETO, Carlos Martins. Apostolado Veritatis Splendor: “A Bíblia condena o uso de Imagens? Deus permite a fabricação de imagens”, disponível em: http://www.veritatis.com.br/article/4478. Desde 02/08/1999. 439 Cf. NABETO, idem, site citado. 435 179 O ídolo requer uma substituição de Deus, recebendo poderes especiais que ele realmente não possui. Enquanto a destruição de uma imagem440 lembra algo fora dela, não destruindo o que representa, a destruição de um ídolo implica na destruição da falsa divindade.441 No entanto, conforme explica o teólogo católico Carlos Martins Nabeto, basta folhearmos a Bíblia para encontrar passagens onde as imagens são condenadas. Ora, a Igreja católica é a única Igreja que possui ligação direta com os tempos apostólicos e que ficou responsável pela guarda da fé, em especial das Sagradas Escrituras. Certamente, se quisesse mesmo agir contra a Palavra de Deus, adulteraria a Bíblia nessas passagens que condenam as imagens. O livro da Sabedoria – não reconhecido como Inspirado pelos protestantes, mas apenas pelos cristãos católicos e ortodoxos – condena a idolatria como nenhum outro livro do Antigo Testamento442. Não seria mais fácil para ela fazer como os protestantes e repudiar o citado livro? Não o fez simplesmente porque a Bíblia deve ser lida dentro de seu contexto e de forma completamente imparcial. Dessa forma, não há como negar que a própria Bíblia também defende o uso de imagens. Como compreender essa “curiosa contradição”, já que o texto do Êxodo, já citado acima, parece ser tão contundente? O mesmo Deus, no mesmo livro do Êxodo em que proíbe que sejam feitas imagens, manda Moisés fazer dois querubins de ouro e colocá-los por cima da Arca da Aliança443. Manda-lhe, também, fazer uma serpente de bronze e colocá-la por cima duma haste, para curar as mordidas das serpentes venenosas444. Manda, ainda, a Salomão enfeitar o templo de Jerusalém com imagens de querubins, palmas, flores, bois e leões445 e, ao mesmo tempo, proíbe que se façam imagens, de duas uma, ou Deus é profundamente contraditório ou fazer imagens não é idolatria!446 A imagem é muito mais do que uma simples escultura: na verdade é qualquer coisa que permite excitar a nossa vista, pouco importando se é uma escultura, um desenho, uma pintura, um objeto. A destruição de imagens, também chamada “iconoclastia” aconteceu em vários períodos da história ocidental e oriental, não tendo relação somente com a religião, mas também com os costumes políticos. 441 Cf. NABETO, idem, site citado. 442 Cf. Sb., capítulos 13 a 15. Esse é o mais longo texto bíblico sobre a idolatria. “Vivendo em meio aos pagãos de Alexandria, o povo judeu era continuamente tentado a participar dos cultos idolátricos, que faziam parte da própria cultura grega. O autor, criticando essa idolatria inerente ao paganismo, procura preservar a fé no Deus verdadeiro, que age na história para produzir a vida. (...) A tônica é que os ídolos não podem fazer nada a favor do homem, porque este é que os fabrica. O sucesso dos empreendimentos humanos não deve ser atribuído aos ídolos, mas à providência de Deus, que age apesar dos ídolos. (...) trocar o serviço ao Deus vivo e libertador pelo culto aos ídolos mortos tem consequências trágicas para a vida humana. Tanto a pessoa como a sociedade se tornam escravas da mentira e da corrupção em todos os níveis. Por trás de cada vício há sempre um ídolo. (...) O aspecto diabólico da idolatria consiste em explorar a boa vontade e ingenuidade do povo para fins lucrativos. Em nome do dinheiro, os fabricantes de ídolos não receiam manipular Deus, a verdade, a justiça e o amor.” (Cf. Bíblia Sagrada, Edição Pastoral, pp. 893 a 895, notas de rodapé, São Paulo, Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 1990). 443 Cf. Ex., 25: 18 a 20. 444 Cf. Nm., 21: 8-9. 445 Cf. 1 Rs., 6: 23-35 e 7: 29. 446 Cf. NABETO, idem, site citado. 440 180 Logo, uma pintura de Michelangelo é uma imagem da mesma forma que o desenho do tio Patinhas e o busto do Duque de Caxias também o são, de modo que não importa se a imagem está em “segunda dimensão” (podendo ser representada num plano x-y) ou em “terceira dimensão” (representada no plano x-y-z), mas que ela excite a vista e, por conseqüência, a imaginação, que é a capacidade de conceber abstratamente aquilo que é concreto, real.447 É inegável o poder de persuasão da imagem: a TV (imagem) não suplantou o rádio (palavra)? São Paulo não se converteu ao Evangelho graças à visão resplandescente de Cristo no caminho de Damasco? Quantos homens também não se converteram por um simples olhar para uma imagem ou crucifixo mudos no interior de uma igreja? Até mesmo a Bíblia afirma que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus448. Vemos, assim, que o velho ditado “uma imagem vale mais do que mil palavras” é mais do que verdadeiro: é uma realidade.449 Ídolo não é – e jamais foi! – sinônimo de imagem. Logo, o que a Bíblia condena é a idolatria, a substituição de Deus por uma criatura, isto é, o uso negativo da imagem que poderia resultar numa falsa compreensão das pessoas sobre Deus. Se o uso for positivo, aproximando as pessoas do verdadeiro Deus, então seu uso é justificado e permitido. A imagem simplesmente ajuda a criar um clima favorável à oração e é um meio eficaz de evangelizar principalmente os pobres e iletrados, aqueles mesmos atingidos e estimados pelos protestantes quando difundiram a prática do livre exame. As imagens sempre foram usadas por Jesus e pelos apóstolos como instrumentos eficazes e reveladores da realidade invisível: para anunciar o Reino de Deus usaram imagens de lírios, pássaros, sal, luz, etc., coisas que estimulavam a compreensão do abstrato através de imagens retiradas do mundo concreto. São Paulo também nos ensina que o Deus invisível tornou-se visível em Jesus Cristo450. As catacumbas cristãs também apresentam, nas mais diversas formas (esculturas, pinturas e desenhos) imagens bíblicas como a multiplicação dos pães, o Bom Pastor, Noé e o dilúvio, a Virgem Maria, etc.451 Os cristãos orientais (ortodoxos) também devotam grande respeito às imagens, as quais chamam de ícones. Os ícones gregos e russos são tidos como os mais belos da iconografia cristã. Também os mosaicos gregos e latinos são exemplos de imagens da arte cristã a serviço da evangelização. Aliás, o uso catequético das imagens sempre foi defendido pelos doutores da Igreja principalmente para ensinar a fé cristã às crianças e analfabetos, porque a figura muda sabe falar nas paredes das igrejas e muito ajuda.452 447 Idem, site citado. Cf. Gn., 1: 26-27. 449 Cf. NABETO, idem, site citado. 450 Cf. Cl., 1: 1-15. 451 Cf. NABETO, idem, site citado. 452 Idem. 448 181 A partir do momento em que se crê e se adora um Deus único passa a ser contraditório e impossível oferecer o mesmo grau de adoração para qualquer outro ser (material ou imaterial) sem cair no pecado da idolatria. No entanto, mesmo assim, no século XVI, a Reforma Protestante retomou a luta contra as imagens e passou a arrancar e destruir as imagens sacras. Alguns historiadores indicam Martinho Lutero como o responsável por tal violência, ao combater o culto aos santos. Entretanto, tomando contato com livros luteranos, parece que a versão tradicional não condiz mais com a realidade, já que os luteranos parecem não se posicionar mais contra o uso das imagens.453 O pensamento simbólico é o pensamento religioso propriamente dito. Na linguagem simbólica expressa-se a experiência do espiritual. Quando essa forma de pensamento não-conceitual deixa de ser usada ou é ridicularizada, produz-se a destruição de uma das disposições religiosas do ser humano. Ao se destruir ou abolir as imagens, destrói-se o elemento que deixa o que é cristão transformar-se em sentimento. A imagem provoca e confirma o pensamento simbólico, sem o qual não se pode imaginar a religiosidade viva. Observando imagens religiosas, aprende-se a sentir simbolicamente. A melhor forma de introduzir crianças no mundo de concepções cristãs é através de imagens. Quando aprendemos a ver a imagem apenas como “ídolo”, destruímos a percepção para o pensamento simbólico. Quando o ser humano não é mais capaz de pensar e de ver símbolos em uma tradição cristã viva, sua consciência religiosa fica perdida ou esclerosada.454 No início, Lutero tinha dificuldades com as imagens e afirmava que seria melhor que não existissem e, por isso, na Reforma se expressou a convicção de que somente a palavra havia de vencer. Para o mundo da Reforma, que tomava o cristianismo primitivo como norma e exemplo, não podia haver lugar para a imagem. O século XVI não mais entendeu a linguagem das imagens e, por isso, as destruiu, produzindo consequências caóticas e cegueira. Com a retirada das imagens do interior das igrejas protestantes destruiu-se o pensamento simbólico tão constitutivo para o Cristianismo.455 Imagem não é apenas escultura: muito pelo contrário, abrange também pinturas, gravuras, desenhos e quaisquer outras formas que estimulem a visão. Desta forma, uma imagem – principalmente a imagem religiosa – encerra um sentido muito mais profundo do que o próprio objeto. Ela, sem precisar necessariamente fazer uso da palavra, consegue falar e sensibilizar as pessoas com muito mais facilidade que ótimos oradores, pois carrega uma linguagem própria que nem sempre precisa excitar nossos ouvidos. É, portanto, inconcebível que as mesmas igrejas que atacam as imagens sacras, defendidas pelos católicos, distribuam folhetos, Bíblias e estudos bíblicos ilustrados, quer para crianças, quer para adultos – pois senão também estarão desobedecendo o 453 Idem. Idem. 455 Idem. 454 182 mandamento divino, expresso no Êxodo, como as seitas fundamentalistas muitas vezes dizem que os católicos afrontam...456 A própria Bíblia é uma imagem: as palavras impressas sobre o papel nada mais são do que símbolos gráficos que excitam os olhos, resultando na imaginação responsável pela compreensão do texto. Os fotolitos em off-set e as matrizes digitais com que hoje se fabricam os livros, entre os quais o próprio Livro Sagrado, também são imagens impressas que têm de ser aproveitados pelo olhar. Tanto é assim que os cegos para tomar posse dessas imagens devem usar o artifício da linguagem em Braille, expressas por relevo tátil, para “ver” o texto. Na verdade, a Bíblia é a imagem impressa da Palavra de Deus. Assim sendo, aquele que acusa o católico de idólatra, demonstra grande falta de conhecimento religioso por não saber a diferença entre adoração e veneração. A Igreja católica, em perfeita sintonia com a Bíblia, condena tudo o que for ídolo – seja material ou imaterial – pois, como falso deus, tem a pretensão de ocupar o lugar reservado exclusivamente ao Deus Vivo, Criador e Salvador da Humanidade. O culto cristão de imagens não é contrário ao primeiro mandamento que proíbe os ídolos. Conforme o Concílio de Nicéia, “quem venera uma imagem, venera nela a pessoa que nela está pintada”. A honra prestada às santas imagens é uma “veneração respeitosa”, e não uma adoração, que só compete a Deus: “O culto da religião não se dirige às imagens em si como realidades, mas as considera em seu aspecto próprio de imagens que nos conduzem ao Deus encarnado. Ora, o movimento que se dirige à imagem enquanto tal não termina nela, mas tende para a realidade da qual é imagem”.457 – QUADRO 6 – A BÍBLIA E AS IMAGENS ARGUMENTOS BÍBLICOS A FAVOR DAS IMAGENS ARGUMENTOS BÍBLICOS CONTRA AS IMAGENS “Farás também um propiciatório de ouro puro; de dois côvados e meio será o seu comprimento, e a largura de um côvado e meio. Farás dois querubins de ouro; de ouro batido os farás, nas duas extremidades do propiciatório; um querubim, na extremidade de uma parte, e o outro, na extremidade da outra parte; de uma só peça com o propiciatório fareis “Não farás para ti imagens de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não as adorarás, nem lhes darás culto; porque eu sou o Senhor, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem...” (Ex., 20: 4-5); 456 Idem. Cf. São Tomás de Aquino, S.Th. 2-2,81,3,ad 3. Dentre os documentos disponíveis da Igreja a Carta Apostólica “Duodecim Saeculum” celebra o 12º século da realização do Segundo Concílio de Nicéia, que tratou sobre a veneração das imagens, apud. NABETO, idem, site citado. 457 183 os querubins nas duas extremidades dele. Os querubins estenderão as asas por cima, cobrindo com elas o propiciatório; estarão eles de faces voltadas uma para outra, olhando para o propiciatório. Porás o propiciatório em cima da arca; e dentro dela porás o Testemunho, que eu te darei. Ali, virei a ti e, de cima do propiciatório, do meio dos dois querubins que estão sobre a arca do Testemunho, falarei contigo acerca de tudo o que te ordenar para os filhos de Israel.” (Ex., 25: 17-22); “Fez também dois querubins de ouro; de ouro batido os fez, nas duas extremidades do propiciatório. Um querubim, na extremidade de uma parte, e o outro, na extremidade da outra parte; de uma só peça com o propiciatório fez os querubins nas duas extremidades dele. Os querubins estendiam as asas por cima, cobrindo com elas o propiciatório; estavam eles de faces voltadas uma para a outra, olhando para o propiciatório.” (Ex., 37: 7-9); “Então, disse o SENHOR a Moisés: Vai, desce; porque o teu povo, que fizeste sair do Egito se corrompeu e depressa se desviou do caminho que lhe havia ordenado; fez para si um bezerro fundido, e o adorou e lhe sacrificou, e diz: São estes, ó Israel, os teus deuses, que te tiraram da terra do Egito. Disse mais o SENHOR a Moisés: tenho visto esse povo, e eis que é povo de dura cerviz. Agora, pois, deixa-me, para que se acenda contra eles o meu furor, e eu os consuma; e de ti farei uma grande nação.” (Ex., 32: 7-10); “Não fareis para vós outros ídolos, nem vos levantarei imagem de escultura nem coluna, nem poreis pedras com figuras na vossa terra, para vos inclinardes a ela; porque eu sou o SENHOR, vosso Deus.” (Lv., 26: 1); “Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima no céu, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra” (Dt., 5: 8); “As imagens de escultura de seus deuses “Moisés levantou o tabernáculo, e pôs as queimarás; a prata e o ouro que estão suas bases, e armou as suas tábuas, e sobre elas não cobiçarás, nem os tomarás meteu, nele, as suas vergas, e levantou as para ti, para que não te enlaces neles; suas colunas.” (Ex., 40: 18); pois são abominação ao SENHOR, teu Deus.” (Dt., 7: 25); “Disse o Senhor a Moisés: Faze uma serpente abrasadora, põe-na sobre uma “Removeu os altos, quebrou as colunas e haste, e será que todo mordido que a deitou abaixo o poste-ídolo; e fez em mirar viverá. Fez Moisés uma serpente de pedaços a serpente de bronze que Moisés bronze e a pôs sobre uma haste; sendo fizera, porque até àquele dia os filhos de alguém mordido por alguma serpente, se Israel lhe queimavam incenso e lhe olhava para a de bronze, sarava.” (Nm., chamavam Neustã.” 20: 8-9); (2 Rs., 18: 4); “Sejam confundidos todos os que servem a imagens de escultura, os que se gloriam de ídolos; prostrem-se diante dele todos os deuses.” (Sl., 97: 7); “Mandou, pois, o povo trazer de Silo a arca do Senhor dos Exércitos, entronizado entre os querubins, os dois filhos de Eli, Hofni e Finéias, estavam ali com a arca da Aliança de Deus.” (1 Sm., 4: 4); “Por que diriam as nações: Onde está o Deus deles? No céu está o nosso Deus e 184 “Dispôs-se e, com todo o povo que tinha consigo, partiu para Baalim de Judá, para levar de lá para cima a arca de Deus, sobre a qual se invoca o Nome, o nome do SENHOR dos Exércitos, que se assenta acima dos querubins.” (2 Sm., 6: 2); No Santo dos Santos, fez dois querubins de madeira de oliveira, cada um da altura de dez côvados. Cada asa dum querubim era de cinco côvados; dez côvados havia, pois, de uma a outra extremidade de suas asas. Assim, também era de dez côvados o outro querubim; ambos mediam o mesmo e eram da mesma forma. A altura dum querubim era de dez côvados; e assim a do outro. Pôs os querubins no mais interior da casa; os querubins estavam de asas estendidas, de maneira que a asa de um tocava numa parede, e a asa do outro tocava na outra parede; e as suas asas no meio da casa tocavam uma na outra. E cobriu de ouro os querubins. Nas paredes todas, tanto no mais interior da casa como no seu exterior, lavrou, ao redor, entalhes de querubins, palmeiras e flores abertas.” (1 Rs., 6: 23-29); “Assim, fabricou de madeira de oliveira duas folhas e lavrou nelas entalhes de querubins, de palmeiras e de flores abertas; a estas, como as palmeiras e os querubins, cobriu de ouro.” (1 Rs., 6: 32); “Fez também de bronze dez suportes; cada um media quatro côvados de comprimento, quatro de largura e três de altura; e eram do seguinte modo; tinham painéis, que estavam entre molduras, nos quais havia leões, bois e querubins; nas molduras de cima e de baixo dos leões e dos bois, havia festões pendentes.” (1 Rs., 7: 25-29); “Na superfície dos seus apoios e dos seus painéis, gravou querubins, leões e palmeiras, segundo o espaço de cada um, tudo faz como lhe agrada. Prata e ouro são os ídolos deles, obra das mãos de homens.” (Sl., 115: 2-4). “Infelizes também são aqueles que depositam sua esperança em coisas mortas, e que invocam como deuses as obras de mãos humanas: coisas de ouro e prata, trabalhadas com arte, figuras de animais, ou uma pedra sem valor, obra de mão antiga. (...) Sim, porque Deus odeia tanto o idólatra como a idolatria. A obra será castigada com o seu autor. Por isso, o julgamento atingirá também os ídolos das nações. Porque, entre as criaturas de Deus, eles se tornaram abomináveis, escândalo para as almas dos homens, e armadilha para os pés insensatos. (...) A invenção dos ídolos foi o começo da prostituição e a descoberta deles introduziu a corrupção na vida. Eles não existiam no princípio, e não existirão para sempre. Entraram no mundo por causa da vaidade dos homens e por isso o seu fim rápido já está decretado. (...) A adoração de ídolos sem nome é princípio, causa e fim de todo o mal. De fato, os idólatras entregam-se a divertimentos até o delírio, ou profetizam a mentira, ou vivem na injustiça, ou perjuram com facilidade. Colocando sua confiança em ídolos sem vida, eles não esperam castigo nenhum por terem jurado falso. (...) Não nos extraviamos com a invenção humana de uma arte pervertida, nem com o trabalho estéril dos pintores, que pintam suas imagens com várias cores. Elas despertam a paixão dos insensatos, que ficam entusiasmados com a forma inerte de uma imagem morta. Aqueles que fazem, desejam e adoram os ídolos, são amantes do mal e dignos da esperança que os ídolos trazem. (...) De fato, eles consideram como deuses todos os ídolos dos pagãos. Os olhos desses ídolos não os ajudam a ver, nem o nariz a respirar o ar, nem os ouvidos a ouvir, nem os dedos das mãos a apalpar, e seus pés são incapazes de caminhar. Porque foi um homem que 185 com festões ao redor.” (1 Rs., 7: 36); “Puseram os sacerdotes a arca da Aliança e do Senhor no seu lugar, no santuário mais interior do templo, no Santo dos Santos, debaixo das asas dos querubins. Pois os querubins estendiam as asas sobre o lugar da arca e, do alto, cobriam a arca e os varais.” (1 Rs., 8: 6-7); os fez. Quem os modelou foi um ser que recebeu a respiração por empréstimo. Nenhum homem pode plasmar um deus que lhe seja semelhante, pois sendo mortal, suas mãos ímpias só podem produzir um cadáver. O homem é melhor que os objetos que ele adora. O homem, pelo menos, tem vida; mas os ídolos jamais o terão.” (Sb., 13: 10; 14: 9-13, 27-29; 15: 4-6, 15-17)* “No espaço em cima da porta, e até ao templo de dentro e de fora, e em toda a parede em redor, por dentro e por fora, havia obras de escultura, querubins e palmeiras, de sorte que cada palmeira estava entre querubim e querubim, e cada querubim tinha dois rostos, a saber, um rosto de homem olhava a palmeira de uma banda, e um rosto de leãozinho, para a palmeira de outra banda; assim se fez pela casa toda ao redor. Desde o chão até acima da entrada estavam feitos os querubins e as palmeiras, como também pela parede do templo. As ombreiras do templo eram quadradas, e, no tocante á entrada do Santo dos Santos, era esta da mesma aparência.” (Ez., 41: 17-21); “E se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, se revestiu de glória, a ponto de os filhos de Israel não poderem fitar a face de Moisés, por causa da glória do seu rosto, ainda que desvanescente, como não será de maior glória o ministério do Espírito! (...) Porque, se o que se desvanecia teve sua glória, muito mais glória tem o que é permanente. Tendo, pois, tal esperança, servimo-nos de muita ousadia no falar. E não somos como Moisés, que punha véu sobre a face, para que os filhos de Israel não atentassem na terminação do que se desvanecia. Mas os sentidos deles se embotaram. Pois até ao dia de hoje, quando fazem a leitura da antiga aliança, o mesmo véu permanece, não lhes sendo revelada que, em Cristo, é removido.” (2 186 Co., 3: 7-8 e 11-14); “...e sobre ela [a arca da aliança], os querubins de glória, que, com a sua sombra, cobriam o propiciatório. Dessas coisas, todavia, não falaremos, agora, pormenorizadamente.” (Hb. 9: 5). * O Livro da Sabedoria não é considerado canônico e não está presente nas Bíblias protestantes. No entanto, o seu conteúdo é o mais longo texto bíblico contra a idolatria, que é um ponto inegociável justamente para os protestantes. Os católicos que fazem imagens de santos, anjos, de Nossa Senhora e Cristo, além de seus artistas, escultores e pintores haverem reproduzido muitas cenas importantes da vida cristã, repudiam de forma categórica os ídolos, sem, contudo, misturá-los com as imagens que servem desde os primeiros séculos à pedagogia católica. Tal atitude contribuiu, inclusive, para que não fossem impedidas as pesquisas que redundaram no desenvolvimento da fotografia e do cinema. O aspecto diabólico da idolatria, contudo, consiste em explorar a boa vontade e ingenuidade do povo para fins lucrativos, o que é facilmente percebido no mundo contemporâneo com a valorização excessiva de artistas, cantores e atores, elevados à categoria de “mega-stars” e postos na mídia como objetos de adoração de grupos de fãs e cultores de seus trabalhos que, em muitos casos, são equiparados a Deus. O exemplo mais notório foi o de John Lennon, guitarrista do grupo “The Beatles” que, no auge da fama e exposição externa, disse que os quatro músicos eram mais famosos do que Jesus Cristo. Desse momento em diante, os Beatles nunca mais tiveram a mesma popularidade, o grupo se separou e, mais tarde, o próprio John Lennon morreu assassinado. Para nosso interesse, todavia, resta anotar o grande paradoxo de ser um livro católico, rejeitado pelos protestantes e evangélicos, o que mais defende a doutrina que mais radicalmente adotam: o repúdio à idolatria. A acusação de idolatria serve como pretexto de condenação aos católicos em quase tudo, mas o que mais ressalta aos olhos é a indisposição que protestantes e fundamentalistas têm contra a veneração de Maria, como mãe de Jesus e intercessora (não mediadora) dos homens. A diferença é sutil, muito tênue, mas não é superficial, é substancial. Toca os corações de muitos grupos como divisor de águas. As testemunhas de Jeová acusam os católicos de adorar a Maria, o que, segundo eles, é condenado em Êxodo 20: 3: “Não terás outros deuses diante de minha face”. No entanto, o ensino oficial católico sempre assinalou que a adoração pertence somente a Deus e nenhuma criatura (incluindo Maria) mereceria tal feito. Qualquer católico que colocasse Maria no mesmo nível de Deus seria culpado de violar o Primeiro Mandamento e pecar. O credo de Nicéia, nesse sentido, fixou o 187 balizamento: “creio em um só Deus” e, por conseguinte, a doutrina do politeísmo é repudiada, o que impede a adoração de Maria, que não é uma deusa.458 Maria deve ser venerada da mesma maneira com que Deus a honrou. Deus a escolheu para ser a mãe de Seu Filho e enviou o anjo Gabriel para anunciar que o Senhor estava com ela e que ela havia sido grandemente abençoada459. Nenhuma mulher, antes ou desde então, foi tão privilegiada por carregar o Filho de Deus460. Sendo assim, não é uma simples mulher como várias seitas protestantes e as Testemunhas querem entender. Carregar o Filho de Deus a colocou totalmente em outra categoria. Na verdade, ela se tornou a primeira cristã da história, respondendo ao anjo que era a serva do Senhor e que se fizesse nela tudo conforme a sua Palavra461. Na mensagem do anjo, ela recebeu a Palavra de Deus e deu vida a Jesus, para o mundo, através do Espírito Santo. O “ente santo” que haveria de nascer também seria chamado “Filho de Deus” e Maria fielmente ouviu a palavra, manteve-a em seu coração e obedeceu462. Através da intercessão de Maria, Jesus realizou o primeiro milagre em Caná463 e, naquela ocasião, as palavras dela aos servos aplicam-se a nós até hoje: “Fazei o que Ele (Jesus) vos disser”. Aliás, ao abordar a mãe com a expressão “mulher, isto compete a nós?”, não queria dizer de maneira agressiva “isto não é da sua conta”, mas “não se preocupe, tudo vai dar certo”. É o que provavelmente Jesus pensava no momento em que procedeu ao milagre da transformação de água em vinho a seu pedido!464 A utilização da palavra “mulher”, naqueles tempos, não implicava em qualquer desrespeito genérico – equivalendo hoje em dia ao termo “Senhora”, embora se utilizem comumente passagens bíblicas para interpretar uma atitude de menosprezo à mãe, por parte de Jesus: “Portanto, qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe.”465; “Ora, aconteceu que ao dizer Jesus estas palavras, uma mulher, que estava entre a multidão, exclamou e disse-lhe: Bem-aventurada aquela que te concebeu, e os seios que te amamentaram! Ele, porém, respondeu: Antes, bemaventurados os que ouvem a Palavra de Deus e a guardam!466. Jesus está realmente dizendo aos ouvintes para imitar a sua mãe, porque ela guardou a Palavra de Deus. Jesus também ensinou a necessidade de desprendimento da família pelo amor de Deus, mas ao colocar Deus acima de sua família não pretendia Cf. KENNESON, Claude. “Por que os Católicos honram Maria” – uma resposta às Testemunhas de Jeová”, tradução de Edigar Limeira, fonte: http://www.catholicxjw.com/honormary.html. 459 Cf. Lc., 1: 28-30. 460 Cf. Gl., 4: 45. 461 Cf. Lc., 1: 31-33, 35. 462 Cf. Lc., 2: 19, 45 e 51. 463 Cf. Jo., 2: 1-11. 464 Cf. KENNESSON, site citado. 465 Cf. Mc., 3: 35. 466 Cf. Lc., 11: 27-28. 458 188 praticar nenhum desrespeito. O mesmo Jesus também disse: “Honra a teu pai e a tua mãe.”467 Se o próprio Deus fora o primeiro a honrar Maria, enviando-lhe um anjo, porque seria errado, ou anti-bíblico, fazer o mesmo? Ao compreender o próprio papel no contexto da vida do Filho, “pois, desde agora, me proclamarão bem-aventurada todas as gerações”468, ela pressente o papel na história e recebe dos católicos o nome significativo de “Virgem Maria Abençoada”, como advogada469 dos homens e mãe da Igreja. No entanto, os protestantes destacam uma pretensa “mariolatria” como uma das teses mais polêmicas do catolicismo, como se nomeando com tal expressão o culto à Maria ele fosse automaticamente despojado de significado e importância para os cristãos. Colocar Maria como uma mulher qualquer e chutar em público a sua imagem, como o fez um pastor da Igreja universal, só exibe um ranço terrível de ódio e intolerância, completamente incompatível com o espírito pós-moderno do século XXI. Ainda mais quando sabemos que grupos evangélicos brasileiros radicais – desses que afundam no mar os barcos dedicados à Iemanjá, com ofertas de seus fiéis para o Ano Novo – direcionam projetos de lei na Câmara dos Deputados tencionando eliminar o dia 12 de outubro como feriado nacional dedicado à Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil. Essas funestas iniciativas servem somente como pano de fundo para a verdadeira intenção de desbancar o poder majoritário da Igreja católica em nosso meio, mais por inveja do que por virtuosos motivos bíblicos. Os Mórmons De outro lado, temos as seitas fundamentalistas que adotam outras bíblias para “aprofundar” as informações contrárias à Igreja romana. Tal é o que acontece com a Igreja dos Santos dos Últimos Dias – SUD, conhecida popularmente como “Igreja Mórmon”. O “Livro de Mórmon”470, que possui 620 páginas de doutrina, é uma espécie de bíblia alternativa, um texto coadjuvante que procura oferecer uma história sagrada revista, que começa com os descendentes e discípulos de José do Egito e termina mostrando a “história de um eventual transporte dos judeus até as terras americanas” do Extremo Ocidente. Seria uma forma de explicar espiritualmente a conturbada colonização dos Estados Unidos, unindo os seus habitantes a uma provável origem no Egito, na Mesopotâmia e Palestina. Uma espécie de “elo perdido” que conta uma estória 467 Cf. Mt., 15: 4. Cf. Lc. 1: 48. 469 Advogada, do latim, “ad-vocare” , aquele que fala pelo outro... 470 Cf. “O Livro de Mórmon”, publicado por “A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias”, Salt Lake City, Utah, EUA, Printed in Brazil, 11/2006, Intellectual Reserve, Inc., 1997. 468 189 completamente inverossímil, fruto da imaginação fértil do fundador da seita, o “profeta” Joseph Smith (1805-1844). Comparativamente, poderíamos comparar o Livro de Mórmon a esses filmes de Hollywood que procuram estilizar os temas principais da Bíblia com roteiros coadjuvantes, originados na imaginação de novelistas de apelo popular. O controvertido personagem Smith, como sempre ocorre com os fundadores fundamentalistas, surgiu de uma família protestante e, desde cedo, mostrou-se propenso a inventar estórias maravilhosas: desde criança teve educação que misturava superstição, ignorância e pobreza. A mãe era dada inclusive a constantes visões e abrigava a crença na magia... Em 1820, o jovem Joseph teve uma visão em que dois anjos lhe deram a ordem de não se filiar a crença religiosa alguma, porque o seu destino seria restaurar “a Igreja cristã primitiva”. Numa segunda visão, em 1822, “foi visitado” por outra figura fulgurante, o anjo Moroni, que lhe deu a conhecer a existência de placas de ouro ocultas, nas quais estava escrita a história espetacular do povo de Deus na América. Finalmente, em 1827, o mesmo anjo o levou a encontrar as famosas placas, após haver cavado o cume da colina Cumorah. O texto da mensagem era atribuído pelo anjo a um rei chamado “Mórmon” (daí o nome que foi dado à Igreja e seus seguidores posteriormente). O documento, redigido em “língua egípcia reformada” foi, depois, traduzido, graças a duas pedras (Urim e Tumim) cedidas pelo anjo ao profeta, com a intenção de que ele compreendesse o texto.471 Em 1829, Joseph Smith e Oliver Cowdery disseram ter recebido uma visita de João, o evangelista, que lhes concedeu o sacerdócio de Arão. Nisso um batizou o outro. No dia 6 de Abril de 1830, Joseph Smith e mais cinco homens jovens organizaram a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Durante a reunião, Joseph Smith recebeu uma revelação, sendo designado “vidente, profeta e apóstolo de Jesus Cristo”, e desde então passou a ser chamado de O Profeta. Smith afirmava que quem ousasse lançar um olhar sobre as placas de ouro morreria imediatamente. Por isso, colocava-se atrás de uma cortina e de lá ditava a tradução das placas a um secretário, um modesto camponês chamado Martin Harris. Em junho de 1829 estava terminada a tradução inglesa do Livro de Mórmon, a qual foi impressa e publicada em 1830. Sem demora (aliás não é motivo de surpresa acontecer) o anjo arrebatou as placas, de sorte que jamais foram vistas pelo público.472 A Igreja Mórmon foi fundada em 6 de abril de 1830 em Fayette, Nova Iorque, por Joseph Smith e alguns de seus seguidores. As doutrinas do Mormonismo provocaram a desaprovação de cristãos e ateus da época, o que fez com que lutassem contra a seita desde o início. Antes de se mudarem para Utah, a história Mórmon foi infestada de conflitos e a denominação mudou a sede várias vezes. Até que 471 472 Cf. BITTENCOURT, Estêvão. Crenças, religiões & seitas, o que são?, op. cit., p. 63. Idem, op. cit., p. 63. 190 encontraram paz relativa em Utah e começarem a expandir a Igreja internacionalmente até ser como é hoje. Nessa época a poligamia, defendida pela seita, tornou-se mais conhecida. Alguns poucos começaram a praticá-la em segredo para evitar grandes perseguições. Esse assunto é um dos mais controversos na história Mórmon. Muitos membros que se recusaram a aceitar tal doutrina deixaram a Igreja e começaram a persegui-la. Os rumores de estranhas práticas sexuais entre os adeptos apenas intensificou o ódio contra os seguidores do profeta. Smith foi acusado e preso várias vezes como agitador, desordeiro, pregador de falsas doutrinas e polígamo. Segundo um historiador ele teve 48 esposas... Em junho de 1844, um ex-Mórmon publicou a única edição do jornal Nauvoo Expositor. Ele atacou “o profeta” em relação à poligamia e muitos outros pontos, pedindo que ele fosse enforcado. Joseph Smith, prefeito de Nauvoo, e o conselho da cidade decidiram que o jornal representava grave ameaça à segurança do local e ordenou que fosse fechado. Em 1844, foi preso sob a acusação de imoralidade, falsificação e outros delitos. O xerife do condado enquadrou Joseph Smith na acusação de incitar revolta e o profeta se rendeu com um pedido expresso do governador Ford. No dia 27 de junho de 1844, o povo enfurecido invadiu a prisão onde Smith e alguns outros membros estavam presos Após ser atirado da janela, tendo percebido que ele ainda vivia, quatro homens colocaram-no sentado e o fuzilaram, matando-o, junto com o seu irmão Hyrum Smith. Os inimigos dos Mórmons pensaram que a religião acabaria após a morte do profeta e seus adeptos voltariam para o lugar de onde vieram, mas Brigham Young assumiu a liderança da seita, juntamente com os outros doze apóstolos, e eles ficaram. A perseguição foi retomada e a escritura de Nauvoo, revogada, em janeiro de 1845. Os líderes da seita, antes da morte do fundador, já se referiam às Montanhas Rochosas como lugar ideal para demarcar o próprio território. Decidiram-se, então, por ir para o Oeste, sob o comando de Brigham Young e, em fevereiro de 1846, a primeira companhia dos pioneiros Mórmons cruzou o Rio Mississipi. A sua sede, hoje, fica situada no estado de Utah (que foi fundado pelos mórmons), nos Estados Unidos da América, na cidade de Salt Lake City. Os Mórmons não entendem as suas doutrinas como heresias, mas como restauração de vários pontos do Evangelho. O Livro de Mórmon, que abrange um período limitado, que vai de 600 A.C., até cerca de 400 D.C., ensina, por exemplo, que há um único Deus, que é Espírito, e imutável de eternidade a eternidade473. Próximo do fim de sua vida, todavia, como relatado em Ensinamentos do Profeta Joseph Smith, ele anunciou: “nós temos imaginado e suposto que Deus era Deus desde toda a eternidade. Eu irei refutar esta idéia... Ele uma vez já foi homem como nós”. Os atuais deuses mórmons, portanto, são muitos, em vez de um só como criam antes, nao são espírito e não são imutáveis como o próprio Livro de Mórmon ensina474. 473 474 Cf. Alma 11:26-31; 2 Néfi 31:21; Mórmon 9:9-11,19 e Moroni 7:22; 8:18. Cf. Ensinamentos do Profeta Joseph Smith, p. 336. 191 Além disso, o Livro de Mórmon insiste, plagiando o que já está na Bíblia, que toda a humanidade tenha que nascer outra vez , isto é, eles precisam ser mudados de seu estado carnal e decaído, caso contrário eles não poderão de modo algum herdar o Reino de Deus. O livro proclama ainda uma necessidade de tornar-se uma nova criatura por ter nascido espiritualmente de Deus e por ter experimentado essa poderosa mudança em seus corações475. No entanto, o mormonismo moderno passou a enfatizar que o batismo na água feito pela igreja Mórmon é indispensável para receber o novo nascimento, o que é totalmente inaceitável do ponto de vista bíblico. Ninguém pode nascer de novo sem batismo (McConkie, Mormon Doctrine, p. 101). No próprio Livro de Mórmon, entretanto, o batismo é desnecessário para crianças e para Gentios (os que estão sem lei) porque para tal é inútil476. Novamente, o Livro de Mórmon declara que há somente dois destinos para a humanidade: felicidade eterna ou miséria eterna. Aqueles que morrem, rejeitando a Cristo, recebem tormento eterno, sem uma segunda chance após a morte. Eles são “lançados no fogo, de onde eles nao retornam” e “vão para um lugar preparado para eles, o lago de fogo.”477 Ao contrário de tudo isso, o Mormonismo de hoje passou a crer que qualquer um pode usufruir de algum nível de glória, e que aqueles que já morreram podem ser resgatados da “prisão” quando os vivos realizam batismos por procuração em favor deles. Todas as tentativas dos Mórmons de estabelecer seu Livro como uma produção antiga nao tem tido grande peso diante do amontoado de evidencias de que se trata realmente de uma peça de ficção do século XIX. O Livro de Mórmon contém a história de três migrações do Velho Mundo para o Novo Mundo, mais especificamente das regiões do Oriente Médio para o continente Americano. Dois livros demonstraram, no entanto, a origem humana do Livro. O primeiro deles consiste de dois manuscritos, escritos por volta de 1922, pela Autoridade Geral Mórmon e apologista Brigham H. Roberts. É surpreendente saber que este defensor da fé Mórmon argumentava implacavelmente que Joseph Smith teria sido, ele mesmo, o autor do Livro de Mórmon. A família de Roberts tem agora permitido exames sérios destes dois manuscritos que têm estado em sua posse desde sua morte, em 1933. Eles têm sido publicados por intelectuais Mórmons478. Roberts observa que o relato do livro sobre os antigos Americanos está em conflito com o que é conhecido a partir de recentes investigações científicas. O Livro de Mórmon os representa como pertencendo a uma cultura da Idade do Ferro, enquanto 475 Cf. Mosiah, 27:24-28 e Alma 5:14. Cf. Moroni, 8:11-13 e 20-22. 477 Cf. 3 Néfi 27: 11-17; Mosiah 3: 24-27; 2 Néfi 28: 22-23 e Alma 34: 32-35. 478 Cf. Studies of the Book of Mórmon, University of Illinois Press, 1985. 476 192 a arqueologia tem mostrado que eles haviam avançado apenas para a Idade da Pedra Polida, quando da chegada do homem branco.479 A situação – descobriu Roberts – complicou-se mais ainda pelo fato de o Livro de Mórmon declarar que os primeiros colonos chegaram ao Novo Mundo quando ele era inabitado. Os Jareditas vieram para aquela parte onde o homem nunca tinha estado480 e lutaram entre si até a sua extinçao. Os Nefitas, igualmente, vieram para uma terra escolhida entre todas as outras481. Já que a chegada do último grupo é dita como tendo sido em mais ou menos 600 d.C., não haveria tempo suficiente para o desenvolvimento dos 169 ramos conhecidos de linguagem no Novo Mundo, cada um deles com vários dialetos. Até hoje a Arqueologia atual nao tem descoberto nada que contrarie as colocações de Roberts. Havendo mostrado que o livro está em desacordo com o conhecimento científico recente, Roberts apresenta em seu segundo manuscrito, “Um Estudo do Livro de Mórmon”, que ele combina com o conhecimento comum, aquilo que se conhecia, normalmente, no começo do século dezenove, sobre os índios americanos. Esta crença incluía muitas idéias erradas de que eles seriam descendentes das Tribos Perdidas de Israel e que teriam desenvolvido, em algum momento no passado, um alto grau de civilização. Este conhecimento comum foi bem sintetizado, quase na forma de um livro de bolso, num livro do Reverendo Ethan Smith. Este trabalho, View of the Hebrews (Uma Visão sobre os Hebreus), estava impresso em sua segunda e ampliada edição cinco anos antes do Livro de Mórmon ser publicado. Além disso, foi publicado na mesma cidade pequena onde Oliver Cowdery vivia. Cowdery era um primo de Joseph Smith Jr. e seu assistente na produção do Livro de Mórmon. Numa análise ao longo de aproximadamente 100 páginas, Roberts mostra que o livro de Ethan Smith contém praticamente a “base do plano” do Livro de Mórmon482, indicando que Joseph Smith plagiara a história fictícia de Ethan, não sendo, portanto, a revelação de um anjo. Ambos os livros apresentam os nativos da América como Hebreus que vieram do Velho Mundo. Alegam ter havido uma parte desmembrada do grupo civilizado e que se degenerou para uma condição selvagem. A porção selvagem teria destruído completamente a única civilizada após longas e terríveis guerras. Ambos os livros atribuem ao ramo civilizado uma cultura da Idade do Ferro. Os dois representam estes colonizadores do Novo Mundo como outrora havendo tido um Livro de Deus, uma compreensão do evangelho e a figura de um messias branco que os havia visitado. Ambos consideram os Gentios Americanos como tendo sido escolhidos por profecia para pregar o evangelho aos índios que eram remanescentes dos antigos Hebreus Americanos. Roberts faz perguntas incomodas 479 Idem, Studies, pp. 107-112, op. cit. Cf. Éter, 2: 5. 481 Cf. 2 Néfi, 1:5-11. 482 Cf. Studies, pp. 151, 240-242, op. cit. 480 193 concernentes a este e outros paralelos que ele encontrou: Pode tão numerosos e surpreendentes pontos de semelhança e sugestivo contato ser mera coincidência?483 Como seu terceiro ponto principal, Roberts estabelece o fato (usando exclusivamente fontes Mórmons) de que Joseph Smith tinha imaginação suficiente para ter produzido o Livro de Mórmon. Ele descreve a criatividade de Smith como sendo tão forte e variada quanto a de Shakespeare, e nao deve ser dado a suas histórias mais crédito do que o que pode ser dado às do bardo inglês484. Roberts aponta para a impossibilidade da jornada de três dias de Lehi de Jerusalém até a costa do Mar Vermelho, uma viagem de 170 milhas a pé, com mulheres e crianças junto. Ele cita seu desembarque na América, a terra escolhida entre todas as outras, onde eles inexplicavelmente encontraram animais domesticados — “vacas, bois, asnos, cavalos, cabras, cabras monteses”485. Roberts encontra uma repetição amadorística do mesmo enredo da história, mudando apenas os personagens. O Livro tenta exceder os milagres da Bíblia e apresenta algumas incríveis cenas de batalhas. Em um momento, 2060 adolescentes lutaram em guerras por um período de mais de 4 a 5 anos sem que nenhum deles tenha sido morto486. Isto levou Roberts a perguntar: “Tudo isto é uma história coerente... ou trata-se de um conto maravilhoso de uma mente imatura, inconsciente do quanto ele está exigindo da credulidade humana quando pede que homens aceitem sua narrativa como uma história verídica?”487 De fato, o Livro de Mórmon depende da cultura e da forma de pensamento da época em que foi escrito no que diz respeito ao conteúdo e estilo. H. Michael Marquardt demonstra, por sua vez, através de evidência muito forte, que a Bíblia na versão do Rei Tiago (uma das traduções mais bem aceitas e usadas em inglês) foi usada na composiçao do Livro de Mórmon. A parte que supostamente teria sido escrita durante o período do Velho Testamento é literalmente temperada com frases e citações da tradução do Rei Tiago do Novo Testamento (ele lista 200 exemplos). Até as profecias que aparecem nesta parte apresentam as mesmas palavras que são usadas no Novo Testamento da Bíblia. Eis alguns dos muitos paralelos, indicando plágio: “João, o Batista, por exemplo, é predito para vir e preparar o caminho para Um que é mais poderoso do que eu” (1 Néfi 10: 8/Lucas, 3: 16); “De quem nao sou digno de desatar a correia dos sapatos” (1 Néfi 10: 8/João, 1: 27); 483 Cf. Studies, p. 242, op. cit. Cf. Studies, p. 244. 485 Cf. 1 Néfi, 18:25. 486 Cf. Alma, 56-58. 487 Cf. Studies, p. 283, op. cit. 484 194 “Semelhantemente, haverá um rebanho e um Pastor” (1 Néfi 22:25/Jo o 10:16) e “uma fé e um batismo” (Mosiah 18:21/Efésios, 4: 5). E mais, a vida e o ministério de Alma no período do Velho Testamento do Livro de Mórmon são virtualmente uma cópia da vida do apóstolo Paulo. Até as mesmas expressões tipicamente paulinas são encontrados nos lábios de Alma: fé, esperança e caridade (Alma 7: 24/1 Coríntios 13: 13), o poder de Cristo para a salvação (Alma 15: 6/Romanos 1:16), sem Deus no mundo (Alma 41: 11/Efésios 2: 12) etc. A doutrina de Smith consiste de dois elementos: a pluralidade de esposas e o matrimônio espiritual. O ensinamento dos Mórmons é bem sutil para defender a poligamia. Eles dizem que existem almas pré-existentes desde a eternidade e estão aguardando por um corpo que lhe sirva de tabernáculo. Por isso, seria um dever de todo mórmon providenciar corpos infantis para abrigar as almas. Na eternidade, as mulheres casadas com mórmons serão as senhoras, e as não casadas serão as servas. Desta forma a poligamia visa libertar o maior número de mulheres possível. Se a primeira esposa consentir, não há adultério, dizem os mórmons. Segundo esta seita, Jesus foi polígamo, pois se casou com Maria Madalena, Marta e Maria, irmãs de Lázaro. Na revista Defesa da Fé de Novembro de 2002, saiu um artigo intitulado “Um Jesus estranho”, em que relata sobre a morte de Rulon Jeffs, presidente da Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, em Los Angeles, Estados Unidos. Ele morreu deixando 19 ou 20 esposas, cerca de 60 filhos e centenas de netos. Mais de 5 mil seguidores acompanharam o funeral e seu caixão foi levado por pelo menos 33 de seus filhos. 488 A Igreja mantém registros cuidadosos de seus membros, incluindo informações sobre a árvore genealógica; estas informações são importantes devido à crença na possibilidade da salvação dos antepassados, através do batismo feito pelos seus descendentes. A salvação só poderá ser alcançada se os antepassados aceitarem o Evangelho no “mundo espiritual”, lugar onde o espírito dos mortos aguardam a ressurreição. Os Mórmons acreditam que o livro foi escrito por profetas antigos que registraram sua fé nas palavras do Senhor. Um profeta do Livro de Mórmon escreveu: “E falamos de Cristo, regozijamo-nos em Cristo, pregamos a Cristo, profetizamos de Cristo, e escrevemos de acordo com nossas profecias, para que nossos filhos saibam em que fonte procurar a remissão de seus pecados.”489 488 A Bíblia ensina, ao contrário, que Jesus Cristo aprovou o casamento monogâmico (Mt. 19:5-9), e considerou adultério olhar com más intenções para uma mulher (Mt. 5:28). Os líderes da igreja devem ser por excelência monogâmicos (1 Tm. 3:2). O crente deve ser esposo de uma só mulher (Ef. 5:24-33; Rm. 7:2,3; 1 Co. 7:39). E a Bíblia também assevera que na eternidade não há casamento (Mt. 22:29,30; Mc. 12:25; Lc. 20:35). 489 Cf. 2 Néfi, 25: 26. 195 O tema principal do livro envolve os descendentes de um profeta chamado Leí que, por sua vez, era descendente do personagem bíblico Manasses490. Néfi e Lamã são filhos de Leí e figuram como personagens principais no início do livro. Néfi é o filho mais íntegro de Leí, enquanto que Lamã é descrito como alguém de má índole. Devido ao seu comportamento transgressor, Lamã e seus seguidores são amaldiçoados com a pele escura. A maioria dos mórmons crê que os americanos nativos eram descendentes dos lamanitas de pele escura. Pesquisas de DNA, no entanto, têm apresentado sérios desafios à reivindicação mórmon de que os nativos americanos tenham sido descendentes de colonizadores hebreus que teriam vindo para a América por volta da época em que Jerusalém fora capturada pela Babilônia, centenas de anos antes de Cristo. A página introdutória do Livro de Mórmon declara ser a obra “um resumo do registro do povo de Néfi e também dos Lamanitas, remanescentes da casa de Israel”. Mas diversos antropólogos, biólogos e geneticistas desafiaram esta suposição ao longo dos anos, mas certamente nenhum deles alcançou maior notoriedade do que a que tem recentemente usufruído Thomas Murphy – Presidente do Departamento de Antropologia da Faculdade de Lynn Wood, em Washington (EUA). O que tornou suas declarações tão intrigantes é o fato de ele ser também membro da igreja Mórmon. Murphy insiste que o Livro de Mórmon é o “livro mais correto da face da Terra”, mas é incorreto quando declara que os americanos nativos são descendentes de judeus. Em 2002, Murphy empenhou um trabalho analítico sobre “A origem, genealogia e genética dos lamanitas” e concluiu que “os resultados das pesquisas de DNA não oferecem qualquer apoio para a tradicional crença mórmon sobre as origens dos americanos nativos”.491 Murphy destaca que “as pesquisas de DNA foram substanciadas por evidências arqueológicas, culturais, lingüísticas e biológicas que apontam de forma esmagadora para uma origem asiática dos americanos nativos”. Comentando sobre o Simpósio de Sunstone (um evento anual que reúne estudantes mórmons liberais) na cidade de Salt Lake, em agosto de 2002, Murphy interrogou: “Diante das descobertas, o que nós, mórmons, devemos fazer? Temos um problema. Nossas crenças não são validadas pela ciência”. Tal conclusão o levou a ser convocado à presença de autoridades mórmons para uma reunião disciplinar. Mas, devido a um grande clamor dos membros da igreja, em 8 de dezembro de 2002, seu julgamento foi adiado sem a agenda de uma outra data definida.492 Embora Murphy represente a ameaça principal contra a fidelidade mórmon “ortodoxa”, ele não está sozinho em suas conclusões. Em sua pesquisa, menciona Michael Crawford, biólogo e antropólogo da Universidade de Kansas. “Não há sequer a mínima evidência de que as tribos perdidas de Israel trilharam caminho em direção 490 Cf. Alma, 10: 3. Cf. MCKEEVER, Bill. “Ciência Desafia História Narrada no Livro de Mórmon”, tradução de Elvis Brassaroto, disponível em: http://www.icp.com.br/73materia2.asp. 492 Idem. 491 196 ao Novo Mundo”, disse Crawford. “É uma grande história, desacreditada por uma descoberta desagradável”. O geneticista Bryan Sikes, da Universidade de Oxford, e a geneticista russa, Miroslava Deremko, também compartilham de conclusões semelhantes. Murphy conta, ainda, com o respeito do geneticista Scott Woodward, da Universidade de Brigham Young, que está entre os que acreditam haver pouca esperança de estabelecer uma conexão entre os americanos indígenas e os judeus.493 Diante de toda essa confusão, muitos mórmons começam a ter dificuldades em aceitar a declaração introdutória do Livro de Mórmon sobre a suposição de os “judeus” lamanitas serem os principais ancestrais dos índios americanos. Agora, estudantes e apologistas mórmons insistem que as pessoas mencionadas no Livro de Mórmon devem ter encontrado outros grupos já residentes na América antes de eles chegarem, e que por meio de casamentos mistos os traços genéticos tornaram-se indecifráveis. Esta teoria, conhecida como “vento genético”, assume que os colonizadores lamanitas permaneceram sempre como um grupo relativamente pequeno. Entretanto, Spencer Kimball pregou em uma mensagem em uma conferência, em abril de 1947, que os Nefitas e os Lamanitas podiam ser numerados em centenas de milhões de pessoas que viveram nos dois continentes americanos.494 Talvez mais prejudicial de tudo seja a maneira como o Livro de Mórmon confunde a Velha e a Nova Aliança. O livro enfatiza que antes da vinda de Cristo os fiéis guardavam a lei de Moisés, mas também estabeleciam igrejas, ensinavam e praticavam o batismo cristão e agiam de acordo com doutrinas e eventos do Novo Testamento495. Ora, é bíblica e historicamente comprovado que o conceito de igreja foi trazido por Jesus, e só faz sentido com Ele. As primeiras igrejas foram fundadas pelos apóstolos, e isso nao existia no Velho Testamento. O desdobramento gradual dos temas teológicos tão evidentes na Bíblia estão completamente ausentes no Livro de Mórmon. Na Bíblia a Velha Aliança é tirada para estabelecer a Nova Aliança As primeiras igrejas foram fundadas pelos apóstolos, e isso nao existia no Velho Testamento. O desdobramento gradual dos temas teológicos tão evidentes na Bíblia estao completamente ausentes no Livro de Mórmon. Na Bíblia a Velha Aliança é tirada para estabelecer a Nova Aliança496. O Livro de Mórmon rompe esta ordem divina e mistura as alianças e suas ordenanças, usando linguajar típico do reavivalismo497 protestante e idéias contemporâneas da época de Smith. Tudo isso faz com que o Livro de Mórmon seja visto como se fosse portador de uma mensagem mais simples e mais contextualizada do que a Bíblia, mas somente para alguém que tem quase nenhum ou nenhum conhecimento das Sagradas Escrituras. 493 Idem. Idem. 495 Cf. 2 Néfi 9: 23 e Mosiah 18: 17. 496 Cf. Hb., 10: 9. 497 Reavivalismo é o movimento cristão, que surgiu nos Estados Unidos, que prega o despertar da fé religiosa com palavras e emoções em reuniões fervorosas caracterizadas por sermões, testemunhos públicos e cantos. 494 197 Entretanto, um exame cuidadoso deste Livro de Mórmon, cuja teologia tem sido, em grande parte, negligenciada pela própria Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, prova que realmente é uma peça de ficção sobre os primórdios da América. Através dos textos tomados emprestados da Bíblia e do material contemporâneo, e sua imitação do estilo de linguagem da Bíblia King James, constituiu-se num poderoso atrativo para os sedentos de novidades em religião daquele tempo. Uma avaliação cuidadosa, no entanto, mostra claramente que nao é, em nenhum sentido, uma revelação autêntica de Deus. Por fim – e o que é mais grave – os Mórmons citam a “Igreja dos Gentios” como abominável: “E disse-me o anjo: Estas são as nações e os reinos dos gentios. E aconteceu que vi entre as nações dos gentios a formação de uma grande igreja. E disseme o anjo: Vê a formação de uma igreja que é a mais abominável de todas as igrejas, que “mata os santos de Deus, sim, tortura-os e oprime-os e subjugaos com um jugo de ferro e leva-os ao cativeiro. E aconteceu que vi essa grande e abominável igreja; e vi que o diabo era o seu fundador. E vi também ouro e prata e sedas e escarlatas e linho finamente tecido e toda espécie de vestimentas preciosas; e vi muitas meretrizes. E falou-me o anjo, dizendo: Eis que o ouro e a prata e as sedas e as escarlatas e o linho e as vestimentas preciosas e as meretrizes são os desejos dessa grande e abominável igreja.”498 Mais adiante, denunciam que o patrimônio sagrado dos judeus (o Antigo Testamento) foi usurpado por essa grande Igreja, que sonegou textos preciosos: “E depois de transmitidas dos judeus aos gentios pela mão dos doze apóstolos do Cordeiro, vês a formação daquela grande e abominável igreja que é mais abominável que todas as outras igrejas; pois eis que tiraram do evangelho do Cordeiro muitas partes que são claras e sumariamente preciosas; e também muitos convênios do Senhor foram tirados. (...)... depois de haver o livro passado pelas mãos de grande e abominável igreja, foram suprimidas muitas coisas claras e preciosas do livro, que é o livro do Cordeiro de Deus. (...) ... por causa dessas coisas que foram suprimidas do evangelho do Cordeiro, um grande número tropeça, sim, de tal maneira que Satanás tem um grande poder sobre eles.”499 Asseveram, ainda, que só existem duas igrejas: a do Cordeiro de Deus (a deles, naturalmente) e a igreja do diabo (a dos outros): “E aquele grande abismo que foi cavado para eles por aquela grande e abominável igreja, fundada pelo diabo e seus filhos a fim de que ele pudesse levar para o inferno as almas dos homens (...). (...) Olha e vê aquela grande e abominável igreja, que é a mãe das abominações, cujo fundador é o diabo. E disse-me ele: Eis que não há mais do que duas igrejas: uma é a do Cordeiro de Deus e a outra é a igreja do diabo; portanto, quem não pertence à igreja 498 499 Cf. 1 Néfi, 13: 3-8. Cf. 1 Néfi, 13: 26, 28 e 29. 198 do Cordeiro de Deus faz parte daquela grande igreja, que é a mãe das abominações; e ela é a prostituta de toda a Terra.”500 Ora, o texto continua, afirmando que a igreja do diabo é muito grande e domina todas as águas, nações, tribos línguas e povos, enquanto a igreja do Cordeiro de Deus era pequena em razão da iniqüidade da prostituta revelada a Néfi. E essa igreja seria um ramo da oliveira que representava a Casa de Israel e a restauração dos judeus nos últimos dias.501 Os Mórmons, desejosos de prosperar no Extremo Ocidente, acolhem a teoria da prosperidade, afirmando: “Se guardares meus mandamentos prosperareis na terra; mas se não guardares meus mandamentos, sereis afastados de minha presença.”502 A história Mórmon começa com uma miraculosa visão de um jovem fazendeiro em 1820 e hoje resulta em uma igreja mundial com mais de doze milhões de membros e mais de 50 mil missionários que convertem cerca de 250 mil pessoas por ano em todo o mundo. Sob a liderança do atual Presidente, Gordon B. Hinckley, a Igreja Mórmon aumentou o número de templos em todo o mundo para trazer suas bênçãos ao maior número possível e aumentar a capacidade de realizar as ordenanças para a salvação dos mortos. Existem atualmente mais de 120 templos em operação em todo o mundo. Desde a Segunda Guerra Mundial a Igreja Mórmon tem visto um rápido crescimento. Em 1947 o número de membros da Igreja era de um milhão. Em 1997 esse número era de dez milhões. Antes de morrer, Joseph Smith transferiu as chaves da autoridade da seita aos apóstolos escolhidos por ele. Com isso houve uma disputa por chefia que acabou dividindo a seita em cinco grupos. Daqueles grupos hoje existem três grandes dissidências. No Brasil, eles chegaram, em 1935, na cidade de Campinas. A intolerância racial A última dificuldade da história Mórmon tem sido a sua expansão internacional. Hoje, a Igreja está presente em mais de 160 países e possui quase treze milhões de membros, dos quais mais de metade estão fora dos Estados Unidos (dados oficiais de Abril de 2007). Com a adição de tantas culturas diferentes para uma Igreja fundada por americanos com raízes na Europa ocidental, muitos passos foram tomados para simplificar os programas da Igreja para a base do evangelho, o qual acomoda todas as culturas e povos. O movimento para os Direitos Humanos nos Estados Unidos e o crescimento do número de membros na África estava colocando pressão nos líderes Mórmons para reconsiderar a política de prevenir os Mórmons negros de portar o sacerdócio na Igreja Mórmon. O Presidente Spencer W. Kimball “já estava orando sobre o assunto” a um determinado tempo quando em 1978 “anunciou a revelação” 500 Cf. 1 Néfi, 14: 3, 9-10 Cf. 1 Néfi, 14: 11-12; 15: 12 e 19. 502 Cf. 2 Néfi, 1: 20. 501 199 permitindo todos os homens dignos a portar o sacerdócio e de partilhar de suas bênçãos (Declaração Oficial 2).503 Os membros negros da Igreja Mórmon não podiam portar o sacerdócio até o ano de 1978. Entretanto, o que se segue também é verdadeiro. A Igreja Mórmon (cujo nome oficial é A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias) não é uma igreja racista. Desde o seu começo, a Igreja pregava os direitos iguais, indiferente da raça do membro. O fundador e primeiro profeta da Religião Mórmon, Joseph Smith, disse o seguinte a respeito da escravidão: “Faz o meu sangue ferver dentro de mim refletir sobre a injustiça, crueldade e opressão de pessoas que controlam pessoas. Quando essas coisas cessarão sua existência e a constituição e a lei novamente terão o controle das regras?”504 Mais tarde, Joseph Smith veio a se candidatar a presidente, tendo o programa anti-escravidão como um de seus planos de governo. Ele não via nenhuma diferença entre negros e brancos a não ser escravidão e a falta de escravidão. De fato, ele disse: “[Negros] vieram para o mundo como escravos tanto mentalmente quanto fisicamente. Mude sua situação para com os brancos e eles serão exatamente como eles.”505 Portanto, a Igreja recusa tratar os negros como propriedade desde o começo. Foi pedido aos proprietários de escravos que se filiavam a Igreja para dar àqueles escravos o direito de escolher a liberdade. Depois que a Igreja se mudou para Utah, eles removeram as palavras “livre”, “branco” e “masculino” da constituição de requerimentos para votar. Foi então permitido aos Mórmons negros votar antes mesmo dos negros dos Estados Unidos. Infelizmente eles perderam esse direito quando Utah se uniu aos Estados Unidos.506 Mas embora os negros fossem membros da Igreja desde o começo, eles não podiam portar o sacerdócio ou receber a plenitude das ordenanças dos Templos Mórmons senão até 1978. Por quê? Isso não é bem claro. Em nenhum tempo o Senhor baniu especificamente os membros negros do sacerdócio, mas Ele também não ordenou que fosse dado a eles (os membros negros) quando eles não o portavam. “Devemos ser bastante cautelosos” – dizem os Mórmons – “ao tentar entender o porquê isso existiu, embora pessoas sempre tenham as suas teorias. Por exemplo, alguns acreditam que os negros não podiam portar o sacerdócio por causa da poderosa atmosfera racista que existia nos Estados Unidos naquela época e que os outros membro da Igreja não estavam 503 Cf. http://www.igrejamormon.org/o_crescimento_da_igreja. Cf. Joseph Smith. História da Igreja. 5:217-218. 505 Cf. Joseph Smith. Carta do Profeta para John C. Bennett – Na correspondência dos Bennetts Contra Escravidão. História da Igreja, 4:544. 506 Cf. http://www.igrejamormon.com/mormons_negros. Times and Seasons, vol. 1 número12, out. 1840. 504 200 preparados, mas não se sabe ao certo. Sem as palavras do Senhor referente aos porquês da questão, nós não podemos ter certeza.”507 Novamente, os negros puderam receber o sacerdócio em 1978, especificamente no dia 8 de junho. O então Presidente da Igreja, Spencer W. Kimball, pensou bastante sobre os membros negros da Igreja e o sacerdócio. Ele perguntou ao Senhor se os Mórmons negros poderiam portar o sacerdócio e receber todas as bênçãos que outros membros da Igreja tinham. A resposta do senhor foi a seguinte: “todo membro do sexo masculino digno da Igreja pode ser ordenado ao sacerdócio sem restrição de raça ou cor”508 Os Mórmons negros hoje podem portar o sacerdócio e participar das ordenanças dos templos Mórmons.509 A Igreja Mórmon – dizem os seus partidários – não é uma instituição racista. Isso não quer dizer que os membros ou até mesmo os líderes jamais tenham dito coisas que são racistas ou que não tenham tido idéias racistas. A Igreja Mórmon, como toda igreja ou grupo de pessoas, é cheio de seres humanos falhos. E os líderes e membros da Igreja Mórmon foram, em um grau maior ou menor, produtos do seu tempo, ou seja, cresceram com idéias existentes de suas épocas. Eles não estavam imunes de acreditar em coisas que outras pessoas de seu tempo acreditavam – e o mundo do século dezenove e metade do século vinte era plenamente racista. Mas precisamos nos lembrar que a Religião Mórmon é professada por pessoas imperfeitas – e que a Igreja em si nunca professou oficialmente essas idéias racistas e professa contra elas hoje em dia. Hoje em dia existem três templos Mórmons na África e a Igreja tem centenas de milhares de membros negros naquela região. Presidente Gordon B. Hinckley redeclarou que nos precisamos amar uns aos outros, apesar das diferenças: “Que não haja nenhuma animosidade entre vocês, mas apenas amor, indiferente de raça, e indiferente de circunstancias. Que possamos amar uns aos outros como o Senhor gostaria que fizéssemos”.510 No entanto, esse “pedido de desculpas da seita”, transcrito do próprio site oficial, não nos convence. Segundo Natanael Rinaldi511, entre as seitas norte-americanas que ensinavam serem os negros pessoas sob maldição pela condição da sua pele, apontam-se, entre outras, As Testemunhas de Jeová, os Adventistas do Sétimo Dia e os Mórmons, mas por motivo de honestidade intelectual o autor admite hoje essas seitas não persistem em tal ensino preconceituoso contra os negros. Do meu ponto de vista é claro que essa liberalização foi feita em troca de fiéis e dízimos, porque interessa a essas seitas fazer o caminho de volta, do Extremo Ocidente 507 Idem. Cf. Doutrina & Convênios. Declaração Oficial 2. 509 Idem, mórmons negros..., site citado. 510 Cf. Gordon B. Hinckley, “Pensamentos Inspiradores”, Ensign, junho 2004, 3. 511 Cf. RINALDI, Natanael. “As seitas e o Preconceito Racial”, http://www.iepaz.org.br/iepaz.org.br/sh_57.asp.htm. 508 disponível em: 201 (das Terras americanas) para o Oriente, passando pela África e nações de predomínio das raças negras, que possuem condições de sofrimento e miséria suficientes para ouvirem novos apelos espirituais. Ou seja, após o colonialismo europeu, que cessou praticamente em meados do século XX, agora os colonizadores do Ocidente querem a subordinação dos fiéis africanos e de Terceiro Mundo (considerados antes cidadãos de segunda classe) a credos fundamentalistas. O preconceito racial hoje é considerado crime, mas nem sempre foi assim, ressalta Rinaldi. O preconceito racial contra os negros era comum nos Estados Unidos e ainda hoje existe de modo mais reservado. Mas houve tempo em que as seitas provindas dos Estados Unidos sustentavam essa discriminação aqui no Brasil. Os mórmons preferiam fazer suas pregações entre os moradores de Santa Catarina, onde predominavam brancos louros, filhos de imigrantes alemães e italianos.512 Até 1978 os negros mórmons não podiam exercer o sacerdócio. Derrubada a lei que proibia os negros pertencerem ao sacerdócio, tal aconteceu porque o templo, inaugurado em 1978, em São Paulo, não podia ser visitado pelos brasileiros sob a alegação de que todo brasileiro tinha em suas veias sangue de parentes negros.513 O que se deve considerar, também, é que para manterem esse erro racial por vários anos de sua existência, as seitas mencionadas sempre alegaram revelações especiais de Deus nesse sentido. Paradoxal é que a Bíblia defende a igualdade entre os seres humanos todos criados por de Deus.514 É incrível que certos líderes religiosos atribuem essa orientação para a prática do preconceito racial ao próprio Deus através de pessoas especialmente designadas aqui na Terra. Os adventistas, por exemplo, manifestam-se como tendo respeito absoluto à Bíblia, fazendo declarações de que ela é a Palavra de Deus. No entanto, reconhecem que uma única pessoa é responsável pela interpretação do Livro Sagrado. Ela é considerada como única pessoa sobre quem repousa o “espírito de profecia”. Algumas declarações encontradas em livros publicados por Ellen Gould White, com aprovação da própria igreja, revelam sua autoridade divina. “Nos tempos antigos, Deus falou aos homens pela boca de seus servos e apóstolos. Nestes dias Ele lhes fala por meio dos TESTEMUNHOS DO SEU ESPÍRITO. Não houve ainda um tempo em que mais seriamente falasse ao seu povo a respeito de sua vontade e da conduta que este deve ter.” (o maiúsculo é nosso) 515 512 Idem, site citado. Idem, site citado. 514 “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se arrasta sobre a terra. Criou, pois, Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” (Gn., 1: 26,27). Pedro, quando entrou em casa de Cornélio, declarou: “Reconheço por que Deus não faz acepção de pessoas.”(At 10: 34) Por outro lado, lemos em 1 Sm 16: 7 que “o Senhor não vê como vê o homem, pois o homem vê o que está diante dos olhos (a cor da pele) porém o Senhor olha para o coração.” 515 Cf. Testemunhos Seletos, vol. II, p. 276, 2ª edição, 1956. Cf. RINALDI, site citado. 513 202 A igreja adventista vangloria-se de ser remanescente em virtude de possuir o “espírito de profecia” na pessoa de Ellen G. White. Seria uma igreja segregacionista como foi a profetisa? Obedece essa igreja essa orientação segundo “esclarecimento dado da parte do Senhor”?: “Em resposta a indagações quanto à conveniência de casamento entre jovens cristãos de raças branca e preta, direi que nos princípios de minha obra esta pergunta me foi apresentada, e o esclarecimento que me foi dado da parte do Senhor foi que esse passo não devia ser dado; pois é certo criar discussão e confusão.”... “Que o irmão de cor se case com uma irmã de cor que seja digna, que ame a Deus e guarde os Seus mandamentos. Que a irmã branca que pensa em unir-se em matrimônio a um irmão de cor se recuse a dar tal passo, pois o Senhor não está dirigindo nessa direção.”516 E continua em outra passagem, a “profetisa”: “Mas há uma objeção ao casamento da raça branca com a preta. Todos devem considerar que não têm o direito de trazer à sua prole aquilo que a coloca em desvantagem; não têm o direito de lhe dar como patrimônio hereditário uma condição que os sujeitariam a uma vida de humilhação. Os filhos desses casamentos mistos têm um sentimento de amargura para com os pais que lhes deram essa herança para toda a vida”.517 Parece, pelo que escreveu a Sra. White, que ser negro é: Estar em desvantagem em relação aos brancos; Carregar um patrimônio hereditário inferior; Viver uma vida de humilhação; Ser amargurado por ser negro; Viver proibido de se relacionar com um parceiro branco. Na Bíblia, ao contrário, o negro sempre foi respeitado por Deus. Na hora da crucificação, o escolhido para ajudar o Senhor, com a sua cruz, foi um negro518; quando o profeta Jeremias agonizava em um poço, Deus usou outro negro para ajudálo519; Salomão, por sua vez, recebeu a Rainha de Sabá, que era negra e Jesus Cristo elogiou a sabedoria do grande rei de Israel520. Assim, vemos como o negro é importante para Cristo, sem contar que o Salvador da humanidade tinha em sua genealogia pessoas de cor negra521. O Senhor ama a todos, pois assim nos diz a Palavra: 516 Cf. Mensagens Escolhidas, vol. 2, p. 344. Cf. EG White, Mensagens Escolhidas - vol.2; Editora Casa Publicadora, Sto. André- SP; 1985, pp. 343 e 344 518 Cf. Mc., 15: 21. 519 Cf. Jeremias, capítulo 38. 520 Cf. 1 Rs., 10 e Mt., 12: 42. 521 Cf. Mateus, capítulo 1. 517 203 “Pois em um só Espírito fomos todos nós batizados em um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos quer livres (quer negros); e a todos nós foi dado beber de um só Espírito.”522 Por conseguinte, não importa a cor da pele, por que “somos um em Cristo Jesus”, mas jamais poderíamos ser um se nos puséssemos em concordância com o que afirma a “profetisa” Sra. White.523 O fundador do mormonismo, Joseph Smith, por seu turno, reconhecia que também tinha o “espírito de profecia”. Tinha consciência de sua veia profética ao escrever: “Se qualquer pessoa me perguntar se eu sou um profeta, não o negarei, já que estaria mentindo se o fizesse; pois, segundo João, o testemunho de Jesus é o espírito de profecia. Portanto, se declaro ser testemunha ou mestre, e não tenho o espírito de profecia, que é o testemunho de Jesus, sou uma falsa testemunha; porém, se sou um mestre ou testemunha verdadeira, devo ter o espírito de profecia, e isso é o que constitui um profeta.”524 Por muito tempo os mórmons ensinaram que todas as pessoas de descendência negra eram inferiores e amaldiçoadas por Deus por causa dos pecados cometidos antes do próprio nascimento: “Pois eis que o Senhor amaldiçoará a terra com muito calor e a sua esterilidade continuará para sempre; e uma cor negra desceu sobre todos os filhos de Canaã, de modo que foram desprezados dentre todos os povos. E Enoque também viu os remanescentes do povo que eram os filhos de Adão; e eram uma mistura de toda a semente de Adão, exceto a de Caim, pois a semente de Caim era negra e não tinha lugar entre eles.”525 Posteriormente os descendentes dos Israelitas, por causa da sua rebelião e iniqüidade, foram amaldiçoados com a pele negra. São chamados de Lamanitas: “E ele fez cair a maldição sobre eles, sim, uma dolorosa maldição por causa de suas iniqüidades. Pois tinham endurecido seus corações contra ele de tal modo que pareciam de pedra; e por serem brancos, notavelmente formosos e graciosos, e para que não seduzissem a meu povo; o Senhor Deus fez com que sua pele se tornasse escura.”526 Contra essas percepções dos Mórmons, é interessante notar que José (do Egito) era hebreu, sendo redundante dizer que era negro e bisneto de Abraão, que também era negro, da tradição suméria. José casou-se com uma egípcia chamada Asenate ou Asenet. Sendo assim, seus filhos, Efraim e Manasses, eram negros e egípcios. Nisto está presente a incoerência dos Mórmons: eles se dizem seguidores de uma tribo de Israel que vivia na América e foi visitada por Jesus Cristo com certeza absoluta. Tal afirmação, porém, é infundada: “não foi nenhuma tribo dos filhos de Israel (a visitá522 Cf. 1 Co., 12: 13. Cf. RINALDI, site citado. 524 Cf. Ensinamentos do Profeta Joseph Smith , p. 263. 525 Cf. MOISÉS, 7: 8, 22 – A Pérola de Grande Valor, edição 1997, pp. 23,25. 526 Cf. 2 Néfi, 5: 21, O Livro de Mórmon, pp. 81, edição 1951. 523 204 los, na América), mas um delírio do escritor do livro porquanto todas as tribos de Israel eram negras.”527 Os Mórmons criaram a sua igreja e teologia centradas no equívoco, na discriminação racial, no desconhecimento bíblico e histórico. Já as Testemunhas de Jeová se vangloriam do trabalho de porta em porta, alegando que cumprem a ordem de Jesus Cristo “E este evangelho do reino será pregado no mundo inteiro, em testemunho a todas as nações, e então virá o fim.”528 Usam uma Bíblia alternativa, conhecida como “Tradução do Novo Mundo” e nela se lê, distorcendo-se o Evangelista: “E estas boas novas do reino serão pregadas em toda a terra habitada, em testemunho a todas as nações; e então virá o fim.”529 A partir de que data essas chamadas “boas novas” passaram a ser publicadas de porta em porta? A partir de 1914. E nesse ano foi empossado os homens do Corpo Governante também conhecido como “o escravo fiel e discreto” a quem Jesus encarregou de dar “alimento espiritual” a todas as Testemunhas de Jeová. Dizem elas: “Jeová Deus proveu também sua organização visível, seu “escravo fiel e discreto”, composto dos ungidos com o espírito, para ajudar os cristãos em todas as nações a entender e a aplicar corretamente a Bíblia na sua vida. A menos que estejamos em contato com este canal de comunicação usado por Deus, não avançaremos na estrada da vida, não importa quanto leiamos a Bíblia.”530 Sob a orientação espiritual desse canal de comunicação usado por Deus para fazer valer sua vontade soberana para com os homens, escreveu-se o seguinte sobre os negros: “Embora seja verdade que a raça branca apresenta algumas qualidades de superioridade sobre qualquer outra, devemos lembrar que há amplas diferenças dentro da mesma família caucasiana (semita e ariana); e devemos recordar também que algumas das qualidades que deram a este ramo da família humana sua proeminência no mundo não são aquelas que se possam chamar de admiráveis em todos os aspectos... O segredo da maior inteligência e aptidão dos caucasianos deve ser, sem dúvida, a mistura de sangue entre seus vários ramos; e isto foi evidentemente forçado em grande parte por circunstâncias sob controle divino.”531 Um comentário escrito no livro “A Verdade Sobre as Testemunhas de Jeová”, na p. 195, diz o seguinte sobre o texto citado: “Será que ficou bem claro? O que este artigo defende não é a que a mistura das raças contribuiu para a maior inteligência e aptidão de todos, não. O que ele diz é que a mistura entre os diversos ramos da raça caucasiana (branca) 527 Cf. RINALDI, site citado. Cf. Mt., 24: 14. 529 Cf. RINALDI, site citado. 530 Cf. A Sentinela, 1-8-1982, p. 27. Idem, site citado. 531 Cf. A Sentinela (em inglês) de 15 de julho de 1902, pp. 215-216. 528 205 aprimorou as qualidades dos próprios caucasianos. E por “circunstâncias sob controle divino”!” Lê-se mais no citado livro, mesma página e página seguinte: “Em 1929, a Sociedade ainda não havia se livrado de seu preconceito, insinuando que os negros foram feitos para servir e, como ensinavam os filósofos do racismo, eles (os negros) são mais felizes assim.” “Acredita-se de modo geral que a maldição proferida por Noé sobre Canaã deu origem à raça negra. É certo que quando Noé disse:”Maldito seja Canaã, um servo dos servos é o que ele será de seus irmãos” ele delineou o futuro da raça de cor. Eles foram e são uma raça de servos, mas agora na alvorada do século XX, estamos todos passando a ver que este assunto da servidão em sua verdadeira luz e a descobrir que a única verdadeira alegria da vida está em servir aos outros, não em comandá-los. Não há no mundo um servo tão bom quanto a um bom servo de cor, e a alegria que ele obtém em prestar um serviço fiel é uma das mais puras alegrias do mundo.”532 Depois de expor com pormenores esse preconceito contra os negros, a elite da Sociedade Torre de Vigia, conhecida mundialmente como o seu “Corpo Governante” já mencionada, ainda estava esperando uma promoção da parte de Deus como se fora fiel dentro da incumbência recebida do Senhor Jesus, em 1914, e inspecionada por ele mesmo, em 1919. Escreveu o “escravo fiel e discreto”, no livro “Aproximou-se o Reino de Deus de Mil Anos”, p. 354: “O Senhor Jesus declarou feliz o ‘escravo fiel e discreto’ por causa do que o aguardava como recompensa por fazer o que seu amo lhe mandou fazer. Recebe uma promoção, com maiores responsabilidades para com o amo, a quem é tão fiel.” Como os ensinos humanos são transitórios, esses grupos sectários recorrem à Bíblia para justificar os fracassos doutrinários. Entretanto, a Bíblia é muito clara ao nos prevenir contra as mudanças doutrinárias muito freqüentes nas seitas proféticas como as indicadas: “Filho meu, teme a Jeová e ao rei. Não te metas com os que estão a favor duma mudança. Porque o seu desastre surgirá tão repentinamente, que da extinção daqueles que estão a favor duma mudança quem se aperceberá?”533 “E Jeová prosseguiu, dizendo-me: “Falsidade é o que os profetas estão profetizando em meu nome. Não os enviei, nem lhes dei ordem, nem falei com eles. Falam-vos profeticamente duma visão falsa, e de adivinhação, e duma coisa que nada vale, e a da ardileza de seu coração.”534 532 Cf. A Idade de Ouro, antigo nome de DESPERTAI, de 24 de julho de 1929, p. 702. Cf. Pv., 24: 21-22, TNM. 534 Cf. Jr ., 14: 14, TNM. 533 206 Não foi sem razão que Jesus nos avisou solenemente: “Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados em ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores.”535 Não poderia deixar de assinalar, no caso das testemunhas de Jeová, um depoimento de uma ex-adepta brasileira, Eva Coutinho, que estampou na internet a sua opinião sobre a seita, sofrendo inclusive diversas perseguições: “Fui Testemunha de Jeová durante toda a vida, engolindo um cristianismo tipicamente manipulador e cruel. Há 3 anos saí por questionar muitas coisas. Fui pressionando todos os “superiores” em busca de respostas, que não obtive, daí resolvi sair. Hoje em dia, acho que a religião é o mal da humanidade porque cada religião vai dizer que ela é a verdade. Se o catolicismo fosse verdade, todo o Oriente estaria condenado? Acho que não é por aí. Estou numa fase neutra. Não penso muito se deus existe, embora ainda acho que sim, se existem forças superiores. Acredito no bem-estar atual, respeitar as outras pessoas, ser honesta... Acho que sou um pouco confucionista. Mas só sou confucionista porque ele veio antes de mim, senão, eu seria “evanista”, seguindo minha opinião e de mais ninguém (mas Confúcio teve as mesmas idéias séculos atrás...).”536 O Fundamentalismo Católico No momento específico em que estamos vivendo, na primeira década do século XXI, o que é mais próximo da idéia de fundamentalismo seria a ação política dos muçulmanos xiitas, que tentam restaurar, através dos talibãs no Afeganistão, dos aiatolás no Irã e dos rebeldes iraquianos, sírios e palestinos, uma teocracia nos moldes da Idade Média do século VII, com a atmosfera espiritual imediatamente posterior ao arrebatamento de Maomé, em Jerusalém. O ódio à Israel rebrilha nos noticiários, como uma constante de luta e dissabor, numa guerra sem fim contra os primos, que descendem do mesmo tronco, Abraão, de onde provêm os próprios islamitas. Segundo o Cardeal Joseph Ratzinger, hoje sagrado Papa Bento XVI: “...o Islã, tão seguro de si mesmo, atua há muito tempo sobre o Terceiro Mundo como algo mais fascinante que um cristianismo dividido em si mesmo.”537 Os judeus, por seu turno, também são divididos entre radicais ortodoxos e rabinos, que compõem o movimento sionista de retorno à Terra Santa e os judeus da diáspora, espalhados pelo mundo e divididos em múltiplas nacionalidades. Há, ainda, judeus anti-sionistas e judeus que não professam a religião judaica, quer porque 535 Cf. Mt., 7: 15. Cf. COUTINHO, Eva, apud. PAPOV, Rynaldo. “Denúncia Grave Contra Testemunhas de Jeová”, rynaldop em yahoo.com.br, Quarta, Junho 2005, disponível em: http://lists.indymedia.org/pipermail/cmi-brasil-audio/2005-June/0609-qh.html. 537 Cf. RATZINGER, Joseph. O Fundamentalismo Islâmico, disponível em: http://www.acidigital.com/islam/fundamentalismo.htm. 536 207 abraçaram outra religião, quer por serem ateus ou agnósticos. Existem tanto fora como dentro de Israel e tomam geralmente posição contra a atuação do governo israelita. De acordo com Rogério Antunes538, existem algumas componentes históricas do Judaísmo que constituem uma base ideal para uma atitude de cunho fundamentalista: O direito de sangue, que se prende ao próprio fundamento da nação hebraica, considerando-se que não é judeu quem quer, nem tampouco quem pratica a respectiva religião, mas sim aquele que seja filho de mãe judia. Este, portanto, é um conceito inerente ao de nação étnica, de onde a legitimidade de ser judeu; Outro fator remete-nos à predestinação da nação judaica como o “povo eleito” por Deus para continuar, segundo os Textos Bíblicos, o Seu projeto na Terra; A terceira componente resulta da promessa que terá sido feita a Abraão de ser concedida ao povo judeu a terra de Israel, onde hoje se encontra o Estado com o mesmo nome. Com base nestes aspectos, desenvolveu-se entre os judeus um crescente complexo de superioridade e de coesão interna, fortalecida pela impossibilidade de estranhos se tornarem judeus e pelo acentuar das suas características próprias, em oposição aos “outsiders”, aos outros. Esse sentimento de unidade foi sendo aprofundado em função das variadíssimas injustiças de que os judeus foram sendo vitimas ao longo dos séculos.539 Embora o termo “fundamentalismo”, por tudo o que já dissemos, imponha uma noção pejorativa de conflito, intolerância e morbidez fanática, em sua origem inglesa ele era aplicado com orgulho para distinguir os puros dos protestantes “liberais”, que deturpavam a verdadeira fé cristã540. De acordo com Antonio Flávio Pierucci, a receita de fé fundamentalista, que emerge numa declaração da igreja presbiteriana em 1910, era constituída por cinco pontos fundamentais: a veracidade absoluta da Bíblia; o nascimento virginal de Jesus; a ressurreição física de Jesus; a autenticidade de seus milagres, prova de sua divindade; a expiação dos pecados pelo sacrifício de Cristo tornando desnecessária a expiação pelas obras. Quando o reverendo Curtis Lee Laws, editor do jornal batista Watchman Examiner, utilizou o termo fundamentalism em 1920, o nome foi honrosamente Cf. ANTUNES, Rogério. “Os Fundamentalismos Religiosos”, Centro de Investigação e Análise em Relações Internacionais, Portugal, disponível em: http://www.ciari.org/investigacao/fundamentalismos_religiosos.htm. 539 Idem, site citado. 540 Cf. PIERUCCI, Antônio Flávio. “Criacionismo é fundamentalismo. O que é fundamentalismo?”, disponível em: http://www.comciencia.br, Atualizado em 10/07/2004. 538 208 incorporado por seus colegas batistas e presbiterianos como algo que traduzia bem o empenho deles de irem à luta pelos fundamentos da fé contra o protestantismo liberal.541 O objetivo básico era defender o princípio da plena inspiração divina da Bíblia. Para os fundamentalistas, a Bíblia foi totalmente inspirada por Deus, tintim por tintim, em todas as particularidades e minudências. E observa: “Estando escrito no Livro Sagrado, não há o que discutir: assim pensa o fundamentalista protestante (e, por extensão, o judeu fundamentalista em relação à Torá, o muçulmano fundamentalista em relação ao Alcorão, o católico fundamentalista em relação aos dogmas pontifícios e conciliares promulgados em latim). A palavra escrita por inspiração divina, em vez de ser o ponto de partida para especulações intelectuais, discussões doutrinárias e controvérsias teológicas, deve ser tratada e reverenciada como o tira-dúvidas último, o tira-prosa nas discussões.”542 É curioso notar que antes de ser fundamentalista é preciso ser monoteísta. O muçulmano pode ser fundamentalista, o judeu, o protestante, até mesmo o católico. Já o hindu ou o taoísta, dificilmente. Para o adepto do candomblé ou da umbanda, religiões sem livro sagrado, é impossível ser fundamentalista. São três religiões, todas surgidas no Oriente Médio, tendo como origem o mesmo profeta Abraão, que supõe que a verdade, assim como a divindade, é uma só, a verdade é una, não havendo nem podendo haver outras verdades além dela. Não deixa de ser interessante observar como o fundamentalismo, por excelência um movimento do século XX, adentra com todo viço e vigor no século XXI, dotando de extrema visibilidade as características de resistência e reação contra a cultura científica e a política secularizada, produzidas e difundidas mundo afora pelo Ocidente moderno.543 Hoje, no mundo muçulmano, os diversos grupos fundamentalistas são políticoreligiosos, não somente religiosos. São todos eles partidários de um retorno ao texto do Alcorão para aí, na fonte, beber os referenciais religiosos, morais, sociais e políticos do renascimento da era muçulmana, do “islã como cultura total”. Eis aí, nessa escolha da conquista do poder do Estado como escala obrigatória na rota de um projeto civilizador total, uma outra dimensão na qual o ativismo islâmico revigora seu coração justamente e, com isso, partilha esta característica própria do integrismo religioso: a de implementar a verdadeira religião em todas as esferas da vida. Como a palavra integrismo advém do termo integridade, que atua como genérica noção religiosa, o fenômeno do que poderíamos chamar de “ultra-rigorismo integrista” ultrapassa, na verdade, o reino das crenças institucionalizadas e pode atingir 541 Idem, site citado. Idem, site citado. 543 Idem, site citado. 542 209 até os comportamentos individuais de consumidores. Os desejáveis cuidados com a saúde, a alimentação, a ecologia etc. não estão isentos do perigo fundamentalista. O integrismo católico Para esse tipo de consciência, todos os fundamentalismos do momento, sejam quais forem as religiões ou as seitas, são iguais em suas predicações de racismo e sexismo, num novo tipo de conjugação financeira e moral que leva ao recrutamento de jovens nas regiões mais pobres do mundo para fins obscuros, às vezes inconfessáveis. É o dízimo que o atraso mental faz pagar à consciência moderna. Conforme Lázaro Curvêlo Chaves544, em todas as formas de fundamentalismo ocorre uma busca de tornar o eu e o ego absolutos. Diz-se “eu tenho razão”, “sou dono da verdade”, “você, se pensa diferente de mim, não tem razão.” A marca da globalização de cima para baixo promovida pelos norte-americanos é o não reconhecimento do outro. E complementa: “... e, como todo o fundamentalismo, não aceita argumentações racionais voltadas à viabilização de um diálogo. Se lhes dizemos: “ninguém é dono da verdade, somos, na melhor das hipóteses, buscadores da verdade”, respondem coisas como “a verdade é Cristo e, quem tem Cristo no coração somente vive, fala e pratica a verdade”, ou seja, uma vez que, segundo aquela visão “a salvação não está nas obras, mas na fé”, pode-se praticar o que se quiser desde que a “profissão de fé” esteja dita.”545 Sobre o fundamentalismo no contexto da Igreja católica, a professora Brenda Carranza546, assinala que os elementos de identificação são o Papa, a mariologia, os sacramentos, a eucaristia e a intercessão dos santos, ressaltando, também, que para entender o fundamentalismo da Igreja Católica Romana há que se entender o incômodo causado pelo movimento de renovação carismática, que estabelece uma relação com Deus sem mediação, o que elimina o centro do poder simbólico e concreto: “não preciso de padre, não preciso da igreja”.547 Ocorre que o cerne da diferença entre as três grandes religiões monoteístas vem a ser a existência do Papa na Igreja católica548. É esse dirigente supremo que força os fundamentalistas a ter uma postura completamente diversa das encontradas nos demais setores das denominações e seitas cristãs, porque ele é pólo aglutinador de 544 Cf. CHAVES, Lázaro Curvêlo. “Reflexões sobre o Fundamentalismo”, Revista Espaço Acadêmico, Ano I, nº 6, novembro de 2001, disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/006/06lazaro.htm. 545 Idem, site citado. Doutora em ciências sociais, professora-pesquisadora convidada pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, in MENDES, Haroldo. “Evangélicos e católicos discutem fundamentalismo religioso”, Seminário Fundamentalismo Hoje. Promovido pelo Fórum Ecumênico Brasil (FE-BRASIL), disponível em: http://www.primeiraigrejaipu.org.br/noticias/noticiasecumenicas/261-evangelicos-e-catolicos-discutem-fundamentalismo-religioso547 Idem, site citado. 548 Nem muçulmanos nem judeus têm um líder máximo para falar pessoalmente em nome de todos os que se ligam às respectivas organizações religiosas. 546 210 concordância entre vários setores e ordens do corpo eclesiástico, além de cumprir papel disciplinador pela infalibilidade em questões de ordem religiosa e dogma. É por isso que o fundamentalismo católico procura, em primeiro lugar, encontrar argumentos para discordar do Papa em assuntos fundamentais, como se ele não fosse suficientemente duro e conservador no que tange às práticas religiosas. Segundo Rogério Antunes549,A Igreja Católica conhece, nesse sentido, um novo movimento ultra-conservador designado de Integrismo Católico, cujo principal mentor foi o Arcebispo Marcel Lefebvre. Em sua obra “Acuso o Concílio”, o autor expôs os problemas e os inimigos que ameaçavam a Igreja Católica, ou seja, os movimentos que em conjunto a pretenderiam destruir: o modernismo e o liberalismo. De acordo com Lefebvre, o Concílio do Vaticano II teria constituído uma conspiração dos mentores desses movimentos político-filosóficos para conseguir a aprovação de um conjunto de reformas que colocariam em perigo a sobrevivência da Igreja mediante a introdução de graves erros no Catolicismo. Dentre tais erros considerava o fato de a Igreja monárquica passar a colegial por direito divino, através da consagração dos Bispos; o primado do Pontífice ficaria esvaziado de conteúdo, na medida em que o Bispo de Roma seria reconhecido apenas como um “primus inter pares” e já não como o único vigário de Cristo. Por outro lado, o Arcebispo considerava que teriam sido introduzidas modificações de caráter protestante na Igreja Católica Apostólica Romana, designadamente: na liturgia, com o abandono do latim e com a aproximação a celebrações de tipo protestante, assim como no sacerdócio e no sistema hierárquico da Igreja; na substituição do rigor moral referenciado a disposições formais, pela aferição remetida à consciência individual dos fieis; na Bíblia com a sua versão de caráter ecumênico; no catecismo e respectivo ensino, e mesmo no próprio Direito Canônico.550 Mediante estas constatações, considerava Lefebvre e os conservadores da Igreja Católica que esta passava a deixar de ser católica e tornava-se virtualmente protestante. E, desse modo, passava a ser necessário o retorno ao tradicionalismo e conservadorismo que haviam caracterizado a doutrina, ou seja, era aconselhado aos crentes que desobedecessem à Igreja tal como ela se apresentava: reformulada após o Concílio do Vaticano II.551 O Concílio do Vaticano II (1962-1965) foi uma reunião de bispos com o objetivo de adaptar a Igreja católica aos imperativos do mundo moderno, tentando Cf. ANTUNES, Rogério. “Os Fundamentalismos Religiosos”, Centro de Investigação e Análise em Relações Internacionais, Portugal, disponível em: http://www.ciari.org/investigacao/fundamentalismos_religiosos.htm. 549 550 551 Idem, cf. ANTUNES, site citado. Idem, site citado. 211 atualizá-la. Parece dele derivar, sem dúvida, o começo da discórdia entre conservadores e progressistas dentro da Igreja. Foi o Concílio convocado pelo Papa João XXIII e terminado por Paulo VI. Com cerca de 2.500 bispos presentes, vindos dos quatro cantos do mundo, votou-se, em Roma, uma bateria de decisões que renovou profundamente o perfil da Igreja e a prática dos fiéis: o direito da pessoa humana à liberdade religiosa; os valores contidos em outras religiões, porque chamaram os fiéis ao diálogo com elas, de forma especial, com o judaísmo, que tanto sofreu com o antisemitismo cristão; Os bispos não mais definiriam a Igreja como uma estrutura hierárquica, mas como um conjunto de crentes iguais entre si; A primazia do papa ficou inalterada, mas os bispos, clérigos e laicos foram convidados a se engajar mais na vida e na missão da Igreja; A colegialidade foi representada pela internacionalização da cúria romana, o governo central. No entanto, o indicador mais visível da mutação católica é mesmo a reforma litúrgica. A renegação do latim, em benefício das línguas vernáculas, desperta a oposição do monsenhor Lefebvre e de uma minoria tradicionalista. Mas estes contestaram, na verdade, o espírito de abertura e reforma do concílio. Resultou que este Concílio não teve a liberdade de resolver três questões ainda sem resposta: a autoridade papal, o casamento dos sacerdotes e os divorciados que voltem a se casar. Acabrunhado com as propostas feitas durante o Concílio, Lefebvre escreveu, em 1964, um artigo intitulado: “Para permanecer bom católico, será preciso tornar-se protestante?” Este título já manifesta bem como o autor, em sua perspectiva muito pessoal, via na marcha do Concílio a influência do liberalismo e do subjetivismo que caracterizam o protestantismo. Nos anos imediatamente posteriores ao Concílio (1966-1970), Lefebvre foi exprimindo sempre mais os seus receios em artigos e homilias repetitivas, cuja lógica era mais aparente do que real: as questões complexas eram por demais simplificadas. O apelo à tradição da Igreja era constante; tratava-se, porém, de uma tradição curta, que começava no século XVI (Concílio de Trento, réplica ao protestantismo), destituída de ampla visão da história da Igreja. Em junho de 1970 escrevia Lefebvre: “Realizou-se na Igreja um perigoso desvio para o protestantismo e o modernismo”. Integristas versus Vaticano II À primeira vista, a liberdade religiosa, proclamada pelo Concílio do Vaticano II na Declaração Dignitatis Humanae, pode parecer suspeita aos olhos da fé católica. É 212 isto que impressionou Lefebvre. Na verdade, porém, a liberdade religiosa que a Igreja propugna deve ser assim entendida: Todo indivíduo tem, em consciência, a obrigação de investigar o problema religioso e responder-lhe conscientemente: “Cada qual tem o dever e, por conseguinte, o direito de procurar a verdade em matéria religiosa, a fim de chegar por meios adequados a formar prudentemente juízos de consciência retos e verdadeiros” (Dignitatis Humanae nº 3). Outro tema que suscitou as apreensões do bispo francês foi o do Ecumenismo. Este fora entendido pelo Concílio do Vaticano II como movimento de restauração da unidade, entre os cristãos separados, dentro da única Igreja fundada por Cristo e entregue ao pastoreio de Pedro, conforme outro documento do Encontro: “A reintegração da unidade entre todos os cristãos é um dos objetivos principais do Sagrado Sínodo Ecumênico Vaticano II. O Cristo Senhor fundou uma só e única Igreja. Todavia muitas comunidades cristãs se apresentam aos homens como sendo a herança verdadeira de Jesus Cristo” (Unitatis Redintegratio n° 1). O autêntico sentido do ecumenismo tem sido deturpado pelo falso irenismo (= pacifismo), de que fala o Concílio. Assim, por exemplo, há quem afirme: “O ecumenismo não é o esforço da Igreja Católica para trazer de volta os cristãos que dela saíram. Esta era a noção vigente antes do Concílio do Vaticano II... Ecumenismo é o esforço de aproximação entre as várias confissões cristãs em direção à perfeição de Cristo”.552 Esta noção, que não necessita de referência a Pedro e à Igreja Católica como portadora dos meios de salvação, é falha e ilusória, segundo as correntes integristas. Contra ela podem insurgir-se os fiéis católicos em geral; o mesmo, porém, não se diga em relação ao texto conciliar. Lefebvre, conforme sua índole pessoal combativa, esperava do Concílio do Vaticano II a condenação de “todos os erros contemporâneos”, que, no entender dele estavam ligados aos cismas entre cristãos. Ora, já que o Concílio não proferiu a condenação sobre tais correntes (julgando que as poderia combater de outro modo), concluiu o arcebispo que o Concílio lhes fez concessões demais. O papa João XXIII, em 1965, como resultado do Concílio Vaticano II, divulgou uma famosa declaração, a Nostra Aetate, na qual procura relativizar o papel dos judeus no episódio da Paixão de Cristo. Em um de seus trechos mais significativos, o documento afirma: “Ainda que as autoridades judaicas, com seus sequazes, tenham determinado a morte de Cristo, o que se passou durante a sua paixão não se pode atribuir nem indistintamente a todos os judeus de então nem aos judeus de nosso tempo. Ainda que a Igreja seja o novo povo de Deus, não devemos 552 Cf. Frei Leonardo Martin e Frei Sergio Calixto Valverde, em "O Estado de São Paulo", 1/06/88). 213 apresentar os judeus nem como rejeitados por Deus nem como malditos, como se tais qualificações constassem da Sagrada Escritura.”553 Basta lembrar da Inquisição para entender a gravidade desse reconhecimento do Vaticano e também do que se segue em outra passagem da Nostra Aetate: “A Igreja reprova todas as perseguições contra quaisquer homens que sejam, não esquecendo o patrimônio que ela tem em comum com os judeus, e movida não por motivos políticos, mas pela caridade religiosa do Evangelho, deplora os ódios, as perseguições e todas as manifestações de anti-semitismo que, seja quem for, dirigiu contra os judeus em qualquer época.”554 Agora, a Igreja Católica volta-se para as elites da sociedade, através de movimentos como o Opus Dei e Legionários de Cristo, que representam o integrismo e ganham terreno rapidamente no Ocidente religioso. Infelizmente, a Espanha é um dos países que melhor acolhe estes dois movimentos, depois da Itália. Através de bons colégios e de faculdades, os adeptos do Opus Dei e dos Legionários de Cristo penetraram e atuaram na sociedade de forma inequívoca. Cada dia se tem mais notícias destes movimentos e das personalidades que participam ativamente neles, pensando em recristianizar o mundo, dentro de uma visão de pureza religiosa inatingível. Seria divina tal pretensão? Grandes cabeças clericais e laicas acharam que não. Vale citar o jesuíta Teilhard de Chardin, notável teólogo, que declarou guerra a essa linha de crença. Em 1928, numa carta a um amigo, ele afirma que sua tomada de posição é “de uma vez para sempre” porque o integrismo excluiria do Reino de Deus as enormes “potencialidades de ordem social, moral, filosófica etc. que se agitam por toda parte, à nossa volta”. Na verdade, o próprio João Paulo II, que antecedeu o atual, parecia imbuído do mesmo santo horror aos integrismos de toda ordem, tanto que, em 1984, excomungou o cardeal francês e toda a sua corte eclesial, famosos pelas posições integristas e pela desobediência ao Vaticano. No entanto, as manifestações integristas não conseguiram passar mesmo de um plano teórico, ao contrário dos fundamentalismos islâmico e judaico: “Este tipo de atitude, na medida em que apela ao rigoroso cumprimento das tradições católicas, não deixando espaço de manobra para diferentes interpretações ou práticas do Catolicismo, acaba por constituir um exemplo de integrismo, e daí a sua referência como moderna manifestação de fundamentalismo religioso, ainda que a sua prática não constitua uma ameaça, enquanto tal, para a segurança e estabilidade internacionais.”555 Cf. STYCER, Maurício. “Em Nome de Deus”, in http://cartacapital.com.br/2004/03/1325. Idem, cf. STYCER, artigo citado. 555 Cf. ANTUNES, site citado. 553 554 214 Conforme o teólogo católico Odilon Moura556: “A posição integrista assemelha-se à farisaica dos tempos de Cristo. Não se veja, entretanto, neste relacionamento, conotação com a atitude moral dos fariseus, isto é, hipocrisia, mas somente sua posição interpretativa da lei, rígida e ininteligente. O erro fundamental do integrismo é os seus sequazes não distinguirem entre o que é essencial e o que é acidental na doutrina, na liturgia e na pastoral.” Por isso, o integrismo não distingue entre tradição divina – a Palavra de Deus transmitida aos homens – e tradição eclesiástica, doutrinas teológicas, costumes dos católicos, ritos litúrgicos etc., de origem humana e transmitida aos católicos. Enquanto a tradição divina é eterna, imutável, da qual o Magistério Eclesiástico é depositário, conservador, intérprete e esclarecedor, a tradição eclesiástica pode ser conservada ou abolida, modificada ou interpretada, e até criada, pelo mesmo Magistério. Entre os fariseus também as “tradições dos homens” identificavam-se com a Lei.557 A teologia da libertação Se considerarmos, entretanto, o Papa como o centro contemporâneo das divergências dentro da Igreja, uma espécie de poder moderador e o integrismo como o movimento de rebeldia à sua direita, encontramos a tendência chamada “progressismo” como a facção que se situa à sua esquerda, procurando instaurar uma nova teologia, intitulada “teologia da libertação”. Conforme assinala o professor Marcio Anatole de Sousa Romeiro558, se deixarmos de lado os primeiros anos da Igreja católica, quando cidades como Antioquia, Constantinopla e Jerusalém tiveram forte influência na consolidação do Cristianismo, pode-se dizer que os estudos teológicos sempre mantiveram vínculos profundos com a Europa, em geral, e com Roma em particular, que não por acaso é o centro do catolicismo latino. Fato extraordinário foi o aparecimento, na América Latina, por volta da segunda metade do século XX, de um movimento teológico que ficou conhecido como Teologia da Libertação. Ele se inscreve no contexto tanto dos preparativos como dos desdobramentos do famoso Concílio Ecumênico Vaticano II quando os católicos tentaram restabelecer o diálogo com a cultura moderna.559 556 Cf. MOURA, Odilon. “Integrismo e progressismo”, disponível http://salterrae.org/2008/07/27/integrismo-e-progressismo-por-d-odilao-moura-osb/. em: 557 Idem, MOURA, site citado. Cf. ROMEIRO, Marcio Anatole de Sousa. (Professor de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da PUC-SP), in “Teologia da Libertação”, apenas uma experiência marginal?, disponível em: http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=852. 558 559 Idem, cf. ROMEIRO, site citado. 215 Para situar o surgimento da Teologia da Libertação é preciso ter consciência de que mesmo na Europa, nos anos que antecederam o Concílio, havia forte apelo em favor da renovação dos métodos pelos quais a Igreja se fazia presente no mundo. É neste contexto que ações junto aos operários, aos camponeses, às mulheres, aos jovens não somente se consolidaram como também ganharam o mundo, servindo inclusive de base para se propor um modelo mais próximo dos pobres. Aliás, o próprio termo Igreja dos Pobres não é estranho para alguns bispos e teólogos que tiveram papel fundamental no Concílio. De volta para as respectivas dioceses, os bispos trataram de implantar as deliberações conciliares. Na América Latina crescia a consciência de que o principal problema a ser enfrentado não era de ordem filosófica (como o ateísmo, por exemplo), mas de ordem econômica e, conseqüentemente, política (a pobreza). Em outras palavras, alguns setores da Igreja descobriram que a injusta pobreza estrutural, na qual estavam mergulhadas as sociedades latino-americanas, era afronta ao amor de Deus e, portanto, a vivência da religião exigia a transformação da sociedade.560 “O ponto central e original da Teologia da Libertação foi a opção preferencial pelos pobres. (...) Enquanto teologia, isto é, como reflexão sobre Deus, a Teologia da Libertação aceitou o desafio de revelar este mesmo Deus a partir do lugar social do pobre, o que não significa de forma alguma uma santificação romântica deste último, nem muito menos uma resignação frente a pobreza na qual vivem grandes segmentos da população brasileira.”561 Segundo Gonçalves562, a Teologia da Libertação nasce na América Latina e Caribe num contexto histórico bem definido. Três ordens de fatores marcam e explicam sua gênese e seu desenvolvimento: Primeiramente, numa perspectiva sócio-econômica e política, grande parte dos países latino-americanos e caribenhos sofria sob o peso da ditadura militar; Acrescida da dependência econômica em relação ao Primeiro Mundo, os regimes de exceção contribuíram poderosamente para agravar as desigualdades sociais que se verificaram no interior dos países periféricos do Terceiro Mundo, bem com entre estes e os países centrais. Nesse estado de coisas, opressão política e dívidas sociais crescentes constituíam duas faces da mesma moeda. As nações subdesenvolvidas, embora formalmente independentes, na verdade viviam sob a égide de uma nova colonização, ou melhor, jamais haviam saído dela.563 Foi nesse contexto que surgiu a Teologia da Libertação, formulada em 1968 – mesmo ano do Conselho de Medellín –, proveniente do envolvimento cristão nos movimentos sociais no continente sul-americano. Dentre seus ideólogos, encontram-se o missionário belga Joseph Comblin, o presbiteriano brasileiro Rubem Alves, o 560 Idem. Idem. 562 Cf. GONÇALVES, Alfredo J. “Gênese, Crise e Desafios da Teologia da Libertação”, disponível em: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=28241.) 563 Idem, GONÇALVES, site citado. 561 216 também brasileiro frade dominicano Leonardo Boff e o padre peruano Gustavo Gutiérrez, autor do livro Teologia de la Liberación (1971), que disseminou a Teologia pelos outros continentes do Terceiro Mundo.564 Em tais circunstâncias, o discurso teológico latino-americano de libertação surge assim como uma teologia de emancipação humana nas condições concretas, históricas e políticas de hoje na América Latina. Uma teologia cuja missão é identificar-se com os homens massacrados e excluídos de todos os benefícios de suas nações. Segundo estudiosos e pesquisadores, é a libertação de Cristo se realizando em fatos históricos e políticos libertadores.565 Já o conceito de “católico progressista” nasceu bem antes, da experiência da resistência francesa durante a II Guerra Mundial, quando alguns católicos se juntaram a comunistas para lutar contra os ocupantes nazis. Após o final da grande convulsão que Portugal vivera perifericamente, André Mandouze, um dirigente da Resistência cristã, defendeu a institucionalização da aliança. Em Novembro de 1948 apareceu o Manifesto da União dos Cristãos Progressistas que apelava a uma colaboração com os comunistas e a Rússia Soviética contra o imperialismo. Reações do Vaticano aos progressistas A reação do Vaticano não demorou: em Julho de 1949 um decreto do Santo Ofício proibiu toda a colaboração habitual entre católicos e o Partido Comunista. Era esta condenação que os católicos da Situação tinham em mente quando chamavam “progressistas” aos católicos da oposição566, que se baseavam em antigas formulações do Pio X quando condenou o movimento modernista — “síntese de todas as heresias”, conforme o definiu na Encíclica Pascendi Dominici Gregis, de 8 de setembro de 1907. Como se pôde observar, vem de há muito a tentativa de infiltração no interior da Igreja, por parte de seus inimigos velados ou declarados, a fim de “modernizar”, adaptá-la aos novos tempos e adulterar o considerado pelos conservadores o Magistério tradicional e infalível da Igreja romana.567 O progressismo seria uma forma de "protestantismo católico" – como assinalavam os conservadores, que também alertam sobre a espécie de ditadura do relativismo que seria um verdadeiro câncer que destrói por dentro a cultura católica no mundo atual e pode ser caracterizado por: Cf. NEGREIROS, Rodrigo Feith de. “Teologia da Libertação”, disponível em: http://www.historia.uff.br/nec/dezembro2005/teolliberta.htm. 565 Cf. ANDRADE FILHO, Francisco Antônio. “Teologia latino-americana de libertação em diálogo”, disponível em: http://www.mauriciodenassau.edu.br/artigo/listar/rec/240. 566 Cf. ALMEIDA, João Miguel Furtado Ferreira d'. “A Oposição Católica ao Estado Novo” (19581974), disponível em: http://www.fundacao-mariosoares.pt/aeb/teses/indices_resumos/resumos/013199.htm. 564 Cf. “Há um século subia ao trono pontifício um Papa santo”, Frente Universitária Lepanto, Hagiografia, Vida dos Santos, disponível em: http://www.lepanto.com.br/hagpiox.html. 567 217 abandono das práticas tradicionais da Igreja, desamparando os católicos desejosos de Religião e não de luta de classes; os sacramentos vão se tornando de acesso mais difícil e rareando na vida quotidiana dos fiéis; início de uma baldeação real dos católicos para seitas protestantes ou outras, à procura de apoio religioso.568 A fé, princípio e fundamento de toda religião, residiria no progressismo em certo sentimento íntimo decorrente da necessidade do divino, um sentimento subjetivo, às vezes vago, que a inteligência analisará e interpretará e que, uma vez aprovado pela Igreja, acabará por constituir-se num dogma. A fé católica permitiria uma adesão a verdades objetivas, exteriores ao homem (Revelação e ensinamentos da Igreja). A fé progressista seria uma projeção de um sentimento de religiosidade, em que se o fiel tem sentimentos revolucionários passa a projetá-los no objeto que é Cristo e ele se tornará um precursor de Fidel Castro ou de Che Guevara. Já se o adepto tiver teorias científicas, como Teilhard de Chardin, projetará um Cristo cósmico etc.569 Esse espírito novo, que podemos chamar de espírito pós-conciliar, é o mal que corrói atualmente, segundo os conservadores, a Igreja Católica. É o vírus destruidor da liturgia, da catequese, dos dogmas da Igreja. Este dito espírito pós-conciliar alimenta e mantém um clima revolucionário, em que, entre muitos outros, cinco temas principais de subversão recebem incentivo especial: “a volta às fontes”, “a dessacralização”, “a inteligibilidade”, o “comunitarismo” e o “culto do homem”. Romper com a tradição, introduzindo concepções próprias, que são batizadas de “concepções primitivas”. Sustenta-se então que “o espírito de Constantino” (imperador romano, convertido ao Cristianismo, que presidiu o Concílio de Nicéia, no ano de 325) perverteu tudo e é preciso reformá-lo; que os locais sagrados (igrejas e catedrais) tornem-se simples locais de reunião de fiéis; que sejam demolidos os rituais e os dons antigos; que a autoridade dos padres seja diluída a favor das comunidades e que se cultue o homem como cerne da reflexão religiosa. Tal é a essência do progressismo. Pode-se afirmar que todas as vezes que se constata na liturgia uma glorificação do homem, uma dessacralização, uma diminuição dos dogmas e dos mistérios pela supressão ou interpretação subjetiva dos textos se trata de inspiração progressista.570 O progressista está sempre à procura porque não acredita em nada. Mas essa pesquisa permanente destrói a verdadeira fé, de acordo com os conservadores, sobretudo se emana de padres e bispos. Os progressistas não são homens de fé porque não são homens de verdade. O progressismo é uma doutrina de morte. Os progressistas cf. LE CARON, H. “A essência do progressismo”, do Courrier de Rome nº169, tradução de Maria Tereza Ferreira da Costa e Anna Luiza Fleichman, e publicado na Revista Permanência, ano XII, nº 124/125, 1979, disponível em: http://www.permanencia.org.br/revista/atualidades/progressismo.htm. 569 Idem, Cf. LE CARON, site citado. 570 Idem. 568 218 são liberais porque não acreditam na verdade, e não acreditam porque não a amam – sentenciam.571 Trinta e cinco anos se passaram, durante os quais o chamado progressismo católico teve a seu dispor os mais escolhidos meios de ação no campo eclesiástico, ao menos no Ocidente. Por sua influência, em muitas igrejas penetraram o violão, a minisaia, os casais “juntados”, os ministros protestantes, cismáticos ou de qualquer outro culto. Ao mesmo tempo em que, por exemplo, a música sacra tradicional, a compostura de outros tempos, o recolhimento na oração, o latim, a devoção a Nossa Senhora e aos santos, a confissão humilde e arrependida dos próprios pecados feita no segredo do confessionário, a adoração enlevada ao Santíssimo Sacramento, passavam a ser considerados, em igrejas progressistas, como valores e práticas do passado.572 Porém não foi só no campo religioso que agiram os progressistas. Sua atuação atingiu a sociedade temporal. Em alguns países, incentivaram o igualitarismo, a luta de classes e promoveram invasões de fazendas e edifícios, trabalhando ativamente pela extinção da propriedade privada. A pregação da caridade cristã foi substituída, em certos ambientes, pelo incitamento à revolução, como fazem os adeptos da Teologia da Libertação.573 Segundo os conservadores, houve da parte dos progressistas, no entanto, monumental erro estratégico. Eles quiseram construir uma religião do homem em lugar da Religião de Deus, e com isso perderam as bênçãos divinas e não obtiveram o apoio dos homens. Eles se apresentavam falando em nome do povo, e o povo não os acompanhou. Enormes parcelas do povo católico não se sentiram mais representadas, em sua fé e em sua religiosidade, por vários de seus Pastores. Os que não empreenderam a fuga para seitas protestantes e congêneres permaneceram na Igreja; em muitos casos, frios, distantes, pensativos.574 João Paulo II, por causa disso, traçou àquela altura um panorama sombrio da situação da Igreja: “É necessário admitir realisticamente e com profunda e sentida sensibilidade que os cristãos hoje, em grande parte, sentem-se perdidos, confundidos, perplexos e até desiludidos: foram divulgadas prodigamente idéias que contrastam com a Verdade revelada e desde sempre ensinada; foram difundidas verdadeiras heresias, no campo dogmático e moral, criando dúvidas, confusões e rebeliões; alterou-se inclusive a Liturgia; submersos no ‘relativismo’ intelectual e moral, e por conseguinte no permissivismo, os 571 Idem, LE CARON, site citado. Cf. “Progressismo e Tradição”, in Catolicismo, Revista de Cultura e Atualidades”, disponível em: http://www.catolicismo.com.br/materia/materia.cfm?IDmat=B15A6237-F7F1-06BA827EBC4E46C05CD1&mes=Fevereiro2001. 573 Idem. 574 Idem. O crescimento vertiginoso das vertentes cristãs pentecostal e evangélica, na América Latina deu-se, entre outros motivos, pelo fracasso retumbante da Teologia da Libertação como forma de cooptação de fiéis à Igreja católica tradicional. 572 219 cristãos são tentados pelo ateísmo, por um cristianismo dogmas definidos e sem moral objetiva”.575 sociológico, sem De fato, o Vaticano fez de tudo nas últimas três décadas para silenciar a Teologia da Libertação. Puniu os teólogos identificados com a “opção preferencial pelos pobres”, como o brasileiro Leonardo Boff, o peruano Gustavo Gutiérrez, o chileno Pablo Richard e o suíço Hans Kung, entre outros. No Brasil, em 1989, desmembrou a Arquidiocese de São Paulo, a maior do mundo católico, para enfraquecer o então cardeal dom Paulo Evaristo Arns. Removeu bispos rotulados de “progressistas” do comando de suas dioceses – principalmente nos grandes centros urbanos – e os substituiu por religiosos de perfil moderado ou conservador. Simultaneamente, fortaleceu movimentos católicos conservadores, como o Opus Dei, a Renovação Carismática Católica, a Comunhão e Libertação e os Focolares (Obra de Maria).576 O papa João Paulo II queria conter o que considerava “um movimento perigoso e de inspiração marxista” na Igreja Católica. Mas a Teologia da Libertação não sucumbiu. A existência ainda hoje de milhares de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) espalhadas pelo Brasil surpreendeu o novo papa Bento XVI, o ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé Joseph Ratzinger, na visita que fez ao país há dois anos.577 Agora, os ataques à Teologia da Libertação vêm de onde menos se esperava. Tido como um dos expoentes dessa corrente e um dos responsáveis pelo seu desenvolvimento no Brasil – ao lado do irmão Leonardo Boff –, o teólogo Clodovis Boff, frade da Ordem dos Servos de Maria e professor da PUC do Paraná, mudou de lado. Passou a criticar posições dos colegas do mesmo campo e a defender idéias muito mais próximas do principal algoz do irmão, o então cardeal Ratzinger. O atual papa puniu Leonardo Boff em 1985 com o “silêncio obsequioso”, por causa do livro Igreja, Carisma e Poder. Em 1992, Leonardo deixou a Ordem Franciscana, afastou-se do sacerdócio e passou a viver com a teóloga Márcia Miranda.578 Um intenso e acalorado debate entre os irmãos Boff tem movimentado os bastidores da Igreja Católica. Clodovis escreveu um artigo com duras críticas à Teologia da Libertação. Leonardo rebateu e, agora, Clodovis acaba de publicar uma réplica. Um dos pontos principais da polêmica é a identificação do pobre com Deus feita pela Teologia da Libertação e a tese de Clodovis de que essa corrente da Igreja substitui “Deus e Cristo pelo pobre”. O palco da confrontação foi a publicação trimestral Revista Eclesiástica Brasileira (REB), da Editora Vozes, com tiragem de 1,5 575 Cf. Alocução de 6-2-81 aos Religiosos e Sacerdotes participantes do I Congresso Nacional Italiano sobre o tema: “Missões ao Povo para os Anos 80”, in "L'Osservatore Romano", 7-2-81. 576 Cf. NASCIMENTO, Gilberto. “Mudança de Hábito”, in Carta Maior, 22/12/2008, disponível em: http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=6&i=3005.) 577 Idem, site citado. 578 Idem. 220 mil exemplares. Daí, a discussão espalhou-se pela internet, mas não avançou além dos círculos religiosos.579 De acordo com Negreiros580, a Teologia da Libertação combate a exploração de uma classe social por outra e condena a dominação imperialista entre as nações. Para tanto, ela parte da crença de que a Igreja deve se incluir no processo de transformação do mundo, acolhendo a análise social marxista feita pelas Ciências Humanas e renunciando a qualquer tentativa de resolver sozinha – ou seja, pela teologia – os problemas da sociedade, passando a colaborar com movimentos sociais engajados. Apesar do entusiasmo das bases cristãs e de membros da hierarquia católica comprometidos com a Igreja Popular, a Teologia da Libertação encontrou, porém, forte oposição dos setores mais conservadores. Entretanto, no movimento pendular que caracteriza a conduta dos Papas na condução do rebanho completamente dividido, João Paulo II dirigiu uma carta à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB581, datada de 9 de abril de 1986, pedindo o compromisso com o verdadeiro desenvolvimento desta teologia: “...estamos convencidos, nós e os senhores, de que a Teologia da Libertação é não só oportuna, mas útil e necessária. Ela deve constituir uma nova etapa em estreita conexão com as anteriores – daquela reflexão teológica iniciada com a tradição apostólica e continuada com os grandes padres e doutores, com o magistério ordinário e extraordinário e, na época mais recente, com o rico patrimônio da doutrina social da Igreja expressa em documentos que vão da Rerum Novarum a Laborem Exercens". Os pobres deste país, que tem nos senhores os seus pastores, os pobres deste continente são os primeiros a sentir urgente necessidade deste evangelho da libertação radical e integral. Sonegá-lo seria defraudá-los e desiludi-los.”582 Por sua vez, o Papa Bento XVI, seu sucessor, expressa-se de modo transparente sobre a Teologia da Libertação, condenando os seus “exageros”: “As “teologias da libertação”, que têm o mérito de ter valorizado os grandes textos dos Profetas e do Evangelho sobre a defesa dos pobres, conduzem a um amalgama ruinoso entre o pobre da Escritura e o proletariado de Marx . Por isso o sentido cristão do pobre se perverte e o combate pelos direitos dos pobres se transforma em combate de classe na perspectiva ideológica da luta de classes. A Igreja dos pobres significa assim uma Igreja de classe, que tomou consciência das necessidades da luta revolucionária como etapa para a libertação e que celebra esta libertação em sua liturgia”.583 579 Idem. Cf. NEGREIROS, Rodrigo Feith de. “Teologia da Libertação”, site citado. 581 Só o nome adotado pela direção do arcebispado brasileiro já é uma vitória inconteste da própria Teologia da Libertação... 582 Cf. João Paulo II. Carta à CNBB sobre a missão da Igreja e a Teologia da Libertação, acessada em 24 de março de 2008, disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Teologia_da_Liberta%C3%A7%C3%A3o. 580 Cf. “Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação”, LIBERTATIS NUNTIUS. Agosto de 1984, disponível em: .http://www.fimdostempos.net/teologia_libertacao_bentoxvi.html. 583 221 Já o ex-frade Leonardo Boff publicou artigo enfileirando-se entre aqueles que conclamam resistência – e até revolta aberta – contra o Papa Bento XVI. Em artigo, Boff acusa a Igreja Católica de atuar como seita. Como fizeram os valdenses e metodistas, Boff rebelou-se pelo fato de que Bento XVI liberou a Missa em latim e se mostrou contrário à recente declaração romana de que a única Igreja de Cristo é a Igreja católica, fora da qual, dizem os conservadores, não há salvação. Boff vê nessa declaração um duro golpe no ecumenismo do Concílio Vaticano II: “Bento XVI está imprimindo um curso perigoso à Igreja Católica, provocando severas críticas não apenas de teólogos, mas de cardeais, de inteiros episcopados como o da França, de grupos de bispos da Alemanha e, espantosamente, de bispos da romaníssima Itália, além de outros líderes religiosos e de organismos ecumênicos mundiais. Desde seu tempo de cardeal, tem tratado os grupos progressistas e os teólogos da libertação a bastonadas e com pele de pelica os conservadores e tradicionalistas, seguidores do bispo Lefebvre, excomungado em 1988 e que, à revelia de Roma, ordenou bispos e padres. O Vaticano acabou por acatar seus seminários onde formam o clero no rito tradicionalista.”584 O que vemos, portanto, é um debate sem fim entre duas vertentes aparentemente irreconciliáveis e que caminham juntas para um confronto inevitável após a morte de Bento XVI. Existe, inclusive, uma profecia apócrifa de São Malaquias (quer dizer não reconhecida pela Igreja por motivos óbvios) de que o papa atual (escrevo em 2009) será o último da Igreja, constituída como a conhecemos. Isto significa que poderá haver, em futuro próximo, um grande cisma, motivado pelo radicalismo das duas posturas, do integrismo e do progressismo, como descritas aqui. Enquanto os progressistas denunciam que há uma discreta proteção papal ao clero tradicionalista e o abandono às teses que associavam a Igreja aos pobres dos países de Terceiro Mundo (“os pobres não têm poder”), por outro lado, perdura a acusação dos conservadores de que a corrente da teologia da libertação quer justiça social e felicidade aqui na Terra, mas colocam em segundo plano a salvação das almas! E continuam fixando a posição radical: “Sacerdotes que pregam a Teologia da Libertação são excomungados pelo Papa e ainda tem a arrogância de afrontar sua Santidade! E muitos incautos estão caindo nessa armadilha! Sacerdotes são para salvar almas e não encher a barriga de ninguém e nem se meter em política! A Teologia da Libertação quer uma Igreja Libertadora, assim como fez Judas Iscariotes, e por Jesus não ter aceito isto, Judas entregou Jesus aos romanos! É o mesmo que esta teologia está fazendo, cuspindo na cara de Jesus!”585 No debate interminável, alguns afirmam que o que ocorreu não foi uma crítica ou repressão ao movimento em si, mas sim correção de certos exageros de alguns de seus representantes (como sacerdotes mais tendentes à política). Outros afirmam que 584 Cf. http://www.opovo.com.br:80/opovo/internacional/724995.html. Cf. “Teologia da Libertação”, http://www.fimdostempos.net/teologia_libertacao.html) 585 disponível em: 222 houve deliberada sanção à Igreja Latino-americana na repressão à sua forma mais pungente de ação e crítica social. Assim, no Brasil, principalmente na região sul que é um celeiro dos mais altos expoentes da Teoria da Libertação, tivemos prelados como os cardeais gaúchos que combateram a ditadura militar: Dom Ivo Lorscheider, Dom Aloísio Lorscheider e Dom Cláudio Hummes. E como o fez, de forma mais contundente do que os citados, o catarinense Dom Paulo Evaristo Arns. O quarteto foi mantido sob o olhar vigilante do Vaticano, tão logo faleceu o papa Paulo VI, mais complacente com as tendências dos citados no seio eclesiástico. Seu sucessor, João Paulo II, dava uma no cravo e outra na ferradura. Foi em seu pontificado, por exemplo, que a maior arquidiocese do mundo, a de São Paulo, foi desmembrada para, como bem observa Gilberto Nascimento (Carta Capital, 24/12/2008, pág. 32), “enfraquecer o então cardeal Dom Paulo Evaristo Arns”.586 Os cardeais mencionados – uns mais arrojadamente, outros mais contidos, mas todos igualmente coesos na defesa de uma Igreja que fizera a opção preferencial pelos pobres – embora fossem as figuras mais luminosas desta escolha, não eram os únicos a defendê-la na hierarquia católica. Eles dividiram a própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB em duas correntes: os “progressistas” e os “conservadores”. E no alto e no baixo cleros, assim como na base da pirâmide, os conflitos tornaram-se ainda mais acirrados nos anos pós-68.587 Outro catarinense, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, era tanto poderoso como solidário. Ele acompanhou Leonardo Boff nos interrogatórios humilhantes aos quais foi submetido em Roma pelo então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, ninguém menos do que o atual papa quando cardeal. De pouco adiantou. Boff foi punido, anos depois deixou o sacerdócio e o celibato588. Tal atitude de Boff, no meu entender, a médio e longo prazos deve ser acompanhada por outros padres católicos, seguindo os preceitos progressistas que não desejam mais o celibato como norma obrigatória e, sim, facultativa... Os teólogos da libertação atualmente reúnem-se no Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Este fórum surgiu de um encontro de teólogos durante o III Fórum Social Mundial, em 2003. O primeiro Fórum ocorreu em Porto Alegre, em janeiro de 2005. O II Fórum ocorreu em janeiro de 2007 em Nairóbi, capital do Quênia, com o tema “Espiritualidade para outro mundo possível”. Estes Fóruns antecederam o Fórum Social Mundial – FSM. A idéia é reunir teólogos e teólogas cristãs dos diversos continentes que trabalhem com o tema da libertação, em todas as dimensões, tornando-se um espaço de encontro para reflexão teológica de alternativas e possibilidades de mundo, tendo em vista contribuir para a construção e uma rede mundial de teologias contextuais marcadas por perspectivas de libertação. 586 Cf. SILVA, Deonísio, “Boff vs. Boff, As Coisas do Coiso”, in Observatório da Imprensa, 17/01/2009, Ano 13, nº 517, disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=517FDS001 . 587 Cf. SILVA, Deonísio, artigo citado. 588 Idem. 223 De acordo com o teólogo Odilon Moura, o integrismo é uma defesa intransigente do sagrado, opondo-se à outra tendência, que aconselha exatamente o oposto, o homem colocado acima de tudo, mas em busca de Deus. Deus seria uma espécie de “assessor” do homem, tudo se subordinando às suas necessidades, ou seja, o Dogma, a Liturgia, a estrutura essencial da Igreja, a moral e a própria verdade. O progressismo é, em geral, irenista (pacifista) e eclético. Reagindo ao formalismo e ao ritualismo existentes em fase anterior à nossa, na Igreja, ao tradicionalismo rotineiro e cego, ao ensino da doutrina compendiada em livros repetidores de fórmulas escolásticas mal assimiladas, ele, na busca de uma libertação de tudo isso, saindo de órbita. Não se satisfazendo com uma religião destituída de compreensão inteligente, os progressistas, na tentativa de esclarecimentos mais lúcidos para a fé, esquecendo ou desprezando a verdadeira tradição teológica da Igreja, buscam – bem intencionados ou não – as luzes para aquele esclarecimento, nas filosofias e ideologias mais sugestivas no momento, mesmo que elas contradigam a Fé.589 E Moura complemente: “O modernismo, que pretendeu explicar a fé pela metafísica kantiana ou bergsoniana; a nova teologia, que visava encontrar aquela explicação pelas idéias existencialistas; o teilhardismo; as correntes atuais conciliadoras dos princípios cristãos com as elucubrações de Heidegger e com o marxismo – são correntes progressistas. O progressismo, como o integrismo, deriva de uma corrupção intelectual. Enquanto naquele essa deturpação leva a uma visão limitada da Igreja e das suas exigências, neste, no progressismo, há uma visão exorbitante. Para o progressista, não há normas: nem para o raciocínio, nem para a moral, nem para a sociedade. É o império da arbitrariedade.”590 Com se pode observar, também entre os fundamentalistas católicos, a separação é visível e a luta é quente como o diabo! Cf. MOURA, Odilon. “Integrismo e progressismo”, disponível em: http://salterrae.org/2008/07/27/integrismo-e-progressismo-por-d-odilao-moura-osb/. FONTE: Idéias católicas no Brasil: Direções do pensamento católico do Brasil no século XX. Editora Convívio, São Paulo, 1978, pp. 205-207. 590 Idem, cf. MOURA, site citado. 589 224 8º INTERVALO – A RECUPERAÇÃO Meu ego, antes massacrado e tão dolorido, agora se transformou, potencializando uma nova personalidade bem viva, bem viva... A recuperação deu-se aos poucos, nada como dar tempo ao tempo, e eis que me reergui, o braço estraçalhado recomposto, só ficando como prova a eterna cicatriz. Mas o principal lanho não é físico, flui para a mente... Ó meu Deus, como Lhe agradeço estar vivo, replantando a vinha, agora sem precisar do choro convulsivo e do álcool, como anestésicos... Os analgésicos e a morfina foram pouco a pouco sendo esquecidos sobre a mesa. Quantas orações pude fazer sozinho, com prazer, diante das paredes nuas do meu sofrer? Não há ninguém aqui para me recriminar, zombar de minha inclinação profunda em Lhe pedir por mim, e nenhum conselheiro dogmático – padre ou pastor – para me corrigir... Jesus rezava de pé e agora estou de pé, mãos espalmadas para cima, tentando falar de novo com meu Pai. Essa comunicação é vital para mim, não importa o mundo com as suas habituais tentações e os previsíveis apelos do dinheiro e da sensualidade. Não importa que alguns falsos amigos me digam que estou amolecendo por causa de meu reles e vulgar sofrimento e não perceba, em consolo, o abismo negro em que outros irmãos meus estão metidos. A conversa com o Pai é pessoal e intransferível e não me envergonho de mim, nem tampouco da enorme fome espiritual que estou sentindo. Como dizia o metafísico norte-americano Ralph Waldo Emerson, Deus não se manifesta aos covardes e tenho de ter coragem de decidir sozinho por encontrar a minha prece, esquecendo toda a violência e os mandamentos do mundo. UM DESAMOR À IGREJA CATÓLICA “Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.” Alberto Caeeiro-Fernando Pessoa Minha ex-mulher detestava de todo o coração a Igreja Católica. Ao perceber que havia em mim certa admiração por ela, pela catolicidade de 2000 anos, era aí que ela carregava mais nas tintas. Entre um cigarro e outro (aqueles cabelos pintados de preto, fedendo á nicotina, são inesquecíveis!), dizia que tinha visitado o Vaticano (coisa que a minha pobreza não permitira), espantando-se com tanta riqueza e a multiplicidade de caríssimas obras de arte. Falava em João Paulo I, que no entender dela fora morto, porque examinava a sério distribuir os bens da Igreja; destacava, também, a “evidente” pedofilia e homossexualidade dos sacerdotes, no que era acompanhada por toda a família, incluindo o genro fascistóide que estudou no mesmo colégio de padres que eu. Repetia a conversa fiada de que Jesus era casado com Maria Madalena, que estava grávida durante a crucificação, e que fugiu da Palestina para não ser morta, como o marido. 225 Segundo os livros que lia, todos best-sellers, “a discípula e esposa” de Cristo foi para as Gálias (hoje França), com outros discípulos disfarçados, para ter um parto tranqüilo. Nasceu-lhe uma filha, Sarah, que era o resultado do sangue de Jesus, o perseguido cálice do Santo Graal, a promessa de continuidade cristã, formando a dinastia merovíngia que confirmava a França como berço e mãe da Igreja. Só faltava insinuar, como o fez com todas as letras um famoso antropólogo homossexual brasileiro, que os apóstolos eram sodomitas e que o Cristo era chefe da orgia! Dizia-se, ainda, muito intrigada com o véu oculto em torno das finanças eclesiais e que, para ela, era insuportável entrar na Igreja para ouvir as missas, meros compromissos sociais sem qualquer valor, de acordo com ela, e escutar os padres hipócritas e mentirosos com as ladainhas de sempre... Ela possuía uma visão tão confusa sobre Jesus que eu lhe dizia que não entendia nada do que ela falava, o que fazia crescer entre nós grande irritação. Um casamento perdido por causa de discussões acirradas em torno da Igreja católica! Sempre lhe objetava que se Cristo fosse um homem comum, embora gênio como um Mahatma Gandhi ou um Albert Schweitzer, seu destino para a humanidade não teria o menor valor e não seria Ele merecedor de haver dividido a história em duas partes... Não ter qualquer religião, ser um protoateu ou um panteísta deve ser grande tortura. Não crer é mais difícil que crer, sem dúvida! Principalmente quando uma mulher vivia com amargura, lembrando todo dia do marido morto e cercada de pessoas interesseiras que a abandonaram completamente quando faliu. Uma pessoa enganada e sofrida, que quase enlouqueceu quando sua empresa foi para o brejo e o filho, tão amado, contraiu uma furunculose terrível e quase morreu. Nesse momento, vi a outrora descrente mudar completamente de atitude e a pilhei rezando na cama para Nossa Senhora da Conceição pela saúde do rebento. Espantei-me com aquele “súbita conversão” à intercessora, mas ela se justificou, apontando para a própria vagina, dizendo-me que eu não poderia entender os seus íntimos motivos porque seu filho havia saído dali... Grande alegria eu tive, porque, pelo sim, pelo não, Nossa Senhora a ouviu e o filho obteve uma segunda chance... Lembrei-me do conto de Eça de Queirós, o Conde de Abranhos, em que o autor português focaliza um padre velho numa vila de jovens no interior de Portugal. A igreja vazia não lhe espantava e a um interlocutor sempre dizia, batendo na barriga: “meu filho, eles são jovens, não precisam de Deus; quando envelhecerem, a Igreja ficará cheia e ouvirão os meus conselhos.” De fato, o sofrimento e a maturidade apascentam a razão e fazem com que possamos nos abrir à intuição e à fé. Eu quase perdi meu braço – e quase saí da vida pela porta dos fundos – mas não me arrependo de ter ido embora da casa de minha ex-mulher. Creio que recebi do Alto uma enorme lição: quem almoça com o diabo, acaba jantado por ele... 226 O ÓBOLO DE SÃO PEDRO O maior motivo de irritação que ela exibia, porém, era com a dita infalibilidade papal. Embora eu lhe explicasse que isso só ocorria em relação a dogmas religiosos, ela rebatia que os papas usavam vestimentas cobertas de ouro e, no fundo, eram homens ricos, contrariando o que determinava Jesus. Ela se referia ao dia 29 de junho, muito próximo ao seu aniversário, em que se comemorava o dia de São Pedro, aproveitado para o recolhimento de esmolas em todas as igrejas católicas do mundo, com o objetivo de compor o salário anual do Papa. O chamado “óbolo de São Pedro” remontaria a cerca de 90 milhões de dólares, o que para ela era um rematado e supremo absurdo. Embora tal salário fosse equiparado ao de um jogador de futebol europeu top de linha ou de um ator de Hollywood de mediana importância – ela dizia que o chefe dos cristãos deveria dar exemplo de moderação e humildade. Se o salário do Papa é uma indecência ou um pecado, francamente não sei. Sei somente que todas as igrejas de outras seitas e denominações, no mundo, têm como meta o recolhimento de ofertas e dízimos para sobreviver e a questão financeira, após o predomínio da teoria da prosperidade, não tem causado nenhuma vergonha em ser administrada por pastores e missionários. Muito ao contrário. Vemos hoje protestantes, evangélicos, metodistas e fundamentalistas espalhados pelo mundo a custa de fecundas contribuições institucionais dos fiéis. Isso não é privilégio da Igreja católica... Não sei, também, se essas ofertas desenfreadas de dinheiro fizeram com que os respectivos fiéis também prosperassem, nem sei se o capitalismo tem realmente algum “espírito”, como suspeitava Max Weber. A percepção que mantenho de tudo isso é que quase todos os seres humanos, machucados por enorme sofrimento, voltam-se para Deus implorando ajuda nos confins do arrependimento. E isso aconteceu com ela e aconteceu comigo. E, a despeito de todas críticas, o Vaticano continua de pé... 227 – 14 – OS EXTRATERRESTRES E AS MORADAS DO PAI “Nos vastos céus estrelados Que estão além da razão, Sob a regência de fados Que ninguém sabe o que são, Há sistemas infinitos, Sóis centros de mundos seus, E cada sol é um Deus Eternamente excluídos Uns dos outros, cada um É universo.” Fernando Pessoa “Existem inúmeros sóis e inúmeras Terras girando em torno desses sóis, de um modo semelhante ao que os sete planetas giram em torno de nosso sol. Seres vivos habitam esses mundos.” Giordano Bruno, 1584. 228 Os cientistas, em geral, sempre tiveram desdém e preconceito em relação ao pensamento religioso. Para eles, a religião é forma rígida e dogmática de interpretação da natureza que não foi capaz de evoluir com o tempo, mas apenas divulgar uma espécie de código mágico ou mítico sobre os seus processos. Podemos ilustrar esse modo de ver, lembrando o velho exemplo do índio que temia o trovão e o transformava em deus ou o caso da adoração de um totem nas tribos primordiais, um ídolo que equivalia a um deus para a mente infantil e anímica591. É noção corrente entre os cientistas que tal compreensão mágica das religiões primitivas e, posteriormente, de alguns povos pagãos, substituiu indevidamente o bom hábito de testar os eventos, retirando-lhes os véus, o que não permitiria um comportamento mais adulto na formulação de padrões de explicação que depois se transformassem em leis. A busca científica seria, enfim, um ato de amadurecimento da humanidade que não presidia as intenções das civilizações antigas. Deixando de saber tudo... Os cientistas acham mais fácil para os homens atribuir a um deus (ou ao sobrenatural) o que não podem entender e explicar, bem como tornar mistério algo que a ciência ainda não tenha alcançado pelas investigações, do que esperar pelos resultados que um dia, sem sombra de dúvida, ela venha a alcançar... É certo que quando os religiosos se metem em discussões em torno de valores, moral, ética ou bioética, os cientistas interpretam esse proceder como fruto de desconhecimento, de falta de treino no contato com a realidade ou da pressa em colocar um mandamento ou princípio como explicação banal para tudo que não se possa conhecer através da razão e dos processos de indução e dedução. Ou seja, na medida em que o tempo passa, para o cientista soberbo e cioso da própria inteligência e da excelência da racionalidade, a religião torna-se objeto inútil e sem função, mera ilusão popular que não satisfaz os espíritos mais exigentes. Diz à boca pequena o cientista que haverá um momento em que tudo será explicado cientificamente, o Universo ficará nu e deveremos, a bem da verdade, expulsar a religião em definitivo pela porta dos fundos! Esse desejo velado, presente nas comunidades científicas, só não é mais disseminado na mídia em virtude do medo de que essa confiança na ciência venha a trazer pressões negativas das comunidades religiosas contra os investimentos em ciência e pesquisa. Vale dizer, o respeito dos especialistas em ciência pelos religiosos e suas instituições é medido pelo interesse político, sendo que a tolerância se dá mais pelo silêncio pouco atencioso do que pelo diálogo. Argumentam, não sem razão, que os religiosos são tão divididos que não interessa debater questões importantes para a sociedade humana, como viagens espaciais, poluição atmosférica, controle das armas nucleares e da natalidade, aquecimento global e outros temas, em virtude de os interlocutores não se entenderem entre si e discordarem em questões sutis e extracientíficas. Tal diálogo para eles seria improdutivo, fugindo ao objeto de seus estudos e dos objetivos de pesquisa. 591 Animismo é a crença segundo a qual todas as pessoas, plantas, animais e fenômenos da natureza possuem uma alma (cf. Dicionário Aulete Digital). 229 No entanto, a própria ciência também foi sacudida por especulações em torno do modo de entender o mundo e, em alguns momentos importantes, viveu os próprios e grandes dilemas sobre a própria validade. Por exemplo, a ciência dos fins do século XIX argumentava que o homem havia chegado à compreensão última do Universo através do desenvolvimento da mecânica newtoniana e que tudo já havia sido descoberto. Todavia, o avanço obtido na física teórica, logo no início do século XX, através das teorias da relatividade restrita e geral (1905-1912) de Albert Einstein (1879-1955), que revolucionaram nossa percepção do espaço e do tempo, pôs por terra aquela percepção de “fim da história” que satisfazia até então os cientistas experimentais. Graças a Einstein, hoje são populares os termos relatividade, universo infinito e curvo, curvatura de tempo e espaço, viagem ao passado e ao futuro, etc. No mesmo período, a teoria quântica (1910), divulgada a partir dos trabalhos de Max Planck (1858-1947) reformulou tudo o que se sabia até então sobre o comportamento das partículas e de seu papel na constituição do Universo, além de especular sobre as relações íntimas entre matéria e energia. Hoje, graças à mecânica quântica são de uso corrente e popular as expressões antimatéria, buracos de minhoca, buracos negros, buracos brancos, gravidade, força eletromagnética e interação nuclear forte e fraca592 – termos pouco utilizados ou completamente desconhecidos pelos especialistas teóricos do século XIX. Assim, observamos que a velha percepção de desenvolvimento formalista da ciência, do menos para o mais, em que o conhecimento fica sendo depositado como grãos de areia num silo na medida em que o tempo passa, foi substituída por uma visão mais complexa da mútua influência de fatores históricos e sociológicos sobre o seu desenvolvimento, que passaria a gravitar em torno da afirmação e negação de modelos e paradigmas. Foi o doutor em física e filósofo da ciência, o americano Thomas Kuhn (19221996), quem estabeleceu a noção de que a ciência não é uma atividade completamente racional, controlada e arbitrária. Ele asseverou que a ciência evolui de acordo com as épocas históricas e estabelece novos modelos e paradigmas que serão testados. O modelo adotado é posto à prova pelo trabalho científico normal até ser rejeitado ou aprovado. Se aprovado, transforma-se num “paradigma”593 que passa então a se confrontar com o acreditado em fase imediatamente anterior (“paradigma tradicional”), produzindo aí uma “revolução científica”. “A natureza pode ser descrita por quatro forças fundamentais que, em última instância, norteiam a dinâmica de todo o Universo: a gravidade, a força eletromagnética, a interação nuclear forte e a interação nuclear fraca. Todas as quatro desempenham papéis significativos na biografia do cosmo. Ajudaram a formar nosso Universo atual e continuarão a dirigi-lo em toda a sua história futura.”, cf. ADAMS e LAUGHLIN, Uma biografia do Universo, p. 17, op. cit. 593 Paradigma (do grego “Parádeigma”) literalmente modelo, é a representação de um padrão a ser seguido. É um pressuposto filosófico, matriz, ou seja, uma teoria, um conhecimento que origina o estudo de um campo científico; uma realização científica com métodos e valores que são concebidos como modelo; uma referência inicial como base de modelo para estudos e pesquisas. Cf. Wikipédia, disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Paradigma. 592 230 Observava, ainda, Kuhn, que ao adotar um paradigma, a sociedade científica também decidiria acolher nova ordem de problemas e perguntas específicos, capaz de dar suporte e recepção à pesquisa científica em determinado momento histórico. Daí formam-se crenças que resistem às mudanças e que só são rompidas a partir de novos paradigmas, quer dizer: “um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma”.594 Ao perceber que o saber científico não é um processo linear de descobertas de verdades objetivas e construção progressiva da sociedade em torno dessa verdade, Kuhn assumiu um papel na filosofia da ciência tão importante quanto o de Einstein e Planck na física teórica. O saber seria também relativo e não mais ligado a um poder que não pudesse ser contrariado. Ao nascer fechado, dentro da “ciência normal”, o velho paradigma sujeita-se a viver uma “crise”, onde é testado em sua validade, e depois superado por “novo paradigma” que consegue suportar novos problemas propostos, numa espécie de revolução permanente. Assim, conforme nos garante o cientista social italiano Antonio Negri: “A ciência copernicana “não é menos nem mais” verdadeira do que a ciência ptolomaica. A relatividade do saber não é uma desvalorização da verdade, mas uma qualificação de sua potência.”595 Cai por terra, por analogia, a visão antiquada de que o pensamento religioso deveria ser antecipadamente repudiado, em virtude de exibir uma doutrina imutável, suspensa no tempo e que contraria de fato os pressupostos científicos. Também na ciência ocorrem constantes negações e ultrapassagens, registradas na história: assim, tivemos o modelo de Ptolomeu, em que a Terra estaria no centro do Universo, com os corpos celestes girando em torno dela e que vigorou da Antiguidade até o Renascimento; o modelo copernicano-newtoniano, que colocou a Terra girando em torno do Sol e que percorreu a Idade Moderna até o início do século XX e, finalmente, o modelo de Einstein-Planck, que, até o momento, é aquele que a humanidade adota para explicar o mundo. Desnecessário é dizer que muitas instituições contemporâneas, como bancos, indústrias, comércio, tribunais e governos, ainda adotam o modo de pensar copernicano-newtoniano na prática do dia-a-dia, privilegiando a percepção tridimensional da matéria (concebida apenas pelas velhas noções de comprimento, largura e altura) e não aceitando de bom grado as projeções para o invisível que as invenções tecnológicas vão sugerindo. O homem pós-moderno também utiliza os brinquedinhos eletrônicos, hoje à disposição (computadores, celulares, ipods, equipamentos de som e TVs digitais, etc.), sem dar muita importância às energias invisíveis que os movimentam e que escapam à vigilância dos sentidos. Só se concentram no prazer que proporcionam e nas possibilidades que o dinheiro possa comprar. Ou seja, só percebem e solicitam o ato de consumo, não as maravilhas que possam estar quietas e sombreadas atrás dele. 594 Cf. KUHN, Thomas. “A estrutura das revoluções científicas”, p. 219, 7.ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. 595 Cf. NEGRI, Antonio. “Revoluções de Kuhn”, in Folha de São Paulo, domingo, 28 de julho de 1996, Mais! 5-11. 231 Tal é, por analogia, a mesma conduta adotada pelo homem contemporâneo em relação à religião, que, para o seu senso de falsa liberdade, seria uma espécie de câncer limitador do pensamento ou apenas um mecanismo cerceador sem justificativa real para seus atos. A religião representaria, para ele, um projeto limitante de busca do Criador que ele não sabe onde encontrar e que preferiria de coração que não existisse. Para o homem intoxicado pela tecnologia e a sensualidade, que deseja fazer tudo o que lhe vem à cabeça desde que o dinheiro o permita, Deus é uma problema, não uma solução! Sobre tal dilema comenta o doutor em psicologia clínica norte-americano, Richard N. Wolman: “As pessoas que encontro nas conferências, assim como muitos de meus alunos, pacientes e colegas, queixam-se da falta de relevância da religião para a vida moderna. Essas mesmas pessoas prontamente reconhecem uma necessidade espiritual em suas vidas, mas queixam-se que o pensamento religioso tradicional os aliena do “espírito” que desejam encontrar em sua devoção ou em sua experiência de momentos sagrados. A religião, para muitas dessas pessoas, denota um conjunto de regras e mandamentos morais pelos quais devem pautar suas vidas, deixando claro o que é aceitável e o que é inaceitável ao olhar de Deus. No Ocidente, o mais famoso conjunto de regras são os Dez Mandamentos – provavelmente ainda as melhores regras desse tipo já inventadas –, que nos orientam como seres humanos na arte da convivência civilizada. A transgressão dos Mandamentos cria a necessidade externa de castigo e a experiência interna de culpa. Os edifícios da religião institucional foram construídos sobre esses conceitos fundamentais por milhares de anos.”596 Isto é, alienação, castigo e culpa – eis aí a trilogia imprestável e digna de abandono que a religião significa para o ser humano cheio de respostas de nossa época e que, por isso mesmo, não tem resposta alguma! Se somarmos aos três termos a aniquilação, prevista pelos fundamentalistas no Juízo Final, aí teremos por fim um desprezo completo e em alto nível ao pensamento religioso. Deus está morto e pronto! Vamos beber e fornicar, que é o que nos resta! Afinal, se a maioria é de pecadores que não vão se salvar, que graça teria ser escolhido e poupado por um deus exterminador e vingativo, que jogará a maior parte da humanidade nas profundas do inferno? Aliás seria uma contradição terrível: como podemos amar o próximo, o outro e, ao mesmo tempo, estar felizes com o nosso arrebatamento e salvação, de um lado, e a aniquilação da maioria, por outro? O que é querido entre os indivíduos deveria ser de bom grado desprezado, no coletivo? Afinal, que tipo de ginástica mental seria esta? Nosso tempo é, pois, um tempo de patente revolta da criatura contra Deus. Ao mesmo tempo, e em contrapartida, as recentes descobertas da ciência molestam o cérebro do homem soberbo, revelando-lhe certas dimensões que não existiam na atmosfera materialista e racista do século XIX. Pela via negativa, não por adesão positiva, o homem descrente e perturbado por guerras, catástrofes e os desentendimentos violentos da vida urbana clama por preencher o vazio em que se 596 Cf. WOLMAN, Richard N. Inteligência Espiritual, p. 36, tradução de Geni Hirata, Rio de Janeiro, Ediouro, 2002. 232 encontra através de alguma resposta espiritual, onde restaure a conexão com algo desconhecido e superior. Virou moda dizer que “tudo está conectado com tudo” – como se fosse uma receita de bolo ou panacéia espiritual. Os livros de auto-ajuda, que se multiplicaram exponencialmente, recitam o princípio como se fosse uma oração, só que a maioria das pessoas nem sabe como aplicá-lo na vida triste que se desenrola à frente, com contas a pagar, doenças de filhos, desemprego, divórcios e desentendimentos com parentes. Se o fracasso é a regra e o êxito, a exceção, como tudo estaria conectado com tudo? Religião ou espiritualidade? O que se supõe abertura, acaba finalmente em descrença. O que o homem contemporâneo deplora, não sem razão, nas religiões acaba por justificar um comportamento radical de negação de tudo. Esse niilismo597 escorre para a vida prática na forma de um perder-se na sensualidade desenfreada, nas drogas e num comportamento de completa revolta contra quaisquer deveres sociais. De fato, quando a religião se fossiliza num corpo de normas e leis degenera no farisaísmo, que, na época de Cristo defendia uma religião baseada em mais de 600 interdições (o que não pode!), tornando a maioria dos homens pecadores e indignos de salvação. Cristo condenou fortemente essa tendência normativa dos fariseus, escribas e publicanos, criando inúmeros inimigos na Palestina. Ao mesmo tempo, não aceitava o comportamento terrorista dos zelotes, que, unidos aos conservadores do Sinédrio, dominado pelos fariseus e escribas, utilizaram Judas Iscariotes para levar Jesus às barras dos tribunais romanos, à tortura e à crucificação como a escória daquela sociedade. No mundo contemporâneo, o ser humano em busca de um individualismo anárquico, sem paginação, deseja aplicar o próprio egoísmo até alcançar um ponto ômega de prazer e, para tanto, sacrifica tudo. Ao invés de se revoltar contra as armadilhas do capitalismo neoliberal e globalizado, somente deseja ser bem sucedido nessa estrutura opressora e excludente, esquecendo-se de fato do semelhante e da velha ligação empreendida com Deus, que o fica esperando no vestíbulo. Ao mesmo tempo, esse homem que não pode esquecer das origens, de sua imagem e semelhança, lembra que lhe restam frestas espirituais, réstias de luz que furam a janela mal construída dos pensamentos, gerando perguntas incômodas e trazendo-lhe, sempre que se distrai do seu projeto egoísta, a presença indevida de Deus. Tal personagem quase perdido buscará, como um náufrago, novas verdades, que não sepultem de vez a religião que teima em não morrer no seu ser e, ao mesmo tempo, não abracem o ceticismo da ciência que o incomoda, por não responderem 597 Niilismo é a filosofia de um grupo revolucionário da intelligentsia russa, da segunda metade do século XIX, caracterizada pela total rejeição aos valores da geração precedente. Negando radicalmente as leis e instituições formais, é uma atitude intelectual segundo a qual não existe o absoluto, considerando as verdades e valores tradicionais como sendo desprovidos de sentido e utilidade. Essa falta de crença pode conduzir a ações anarquistas e terroristas e à afirmação do nada e da não existência. (cf. Aulete Digital) 233 aquelas perguntas fundamentais que ruminam sem parar no espírito e vivem arranhando a sua curiosidade. Esse homem que resolver o impasse através de um meio-termo: nem religioso, nem tampouco descrente, um místico sem religião, um buscador espiritual por um deus meio opaco que não lhe obrigue a nada, que fique dentro do coração de cada um, protegido das angústias do mundo externo, cuja amargura e desconcerto toda hora desmentem a sua existência. Ele resolve o dilema de interpretação da realidade tornando-se um místico, que já definimos como aquele indivíduo que precisa de uma instância além da Natureza para explicar os fatos sensíveis e verificáveis, bem como quaisquer acontecimentos não previstos pelas leis conhecidas da ciência. Quando, porém, os cientistas se defrontam com pessoas que cultivam uma atitude espiritual ou mística, sem compromissos com um edifício religioso de normas, aí fica difícil não ouvir seus argumentos. E isto decorre do fato de que os místicos não olham a Bíblia como os fariseus, como um livro de leis e interdições que nos exige uma conduta virtuosa para não morrer. Os místicos querem mais e ousam ir além do pensamento mágico dos índios ou da metafísica tosca dos aiatolás, dos rabinos e sacerdotes. No caso da Bíblia, os místicos consideram que as descrições de vozes e aparições de anjos, que se repetem centenas de vezes no Livro Sagrado, não devem ser consideradas simplesmente como manifestações de Deus, mas se equiparam a um fenômeno de comunicação entre uma humanidade ignorante e despreparada intelectualmente (os hebreus pastores) com seres evoluídos vindos do espaço. A humanidade, uma experiência? Vivemos num perturbado período de revelações, em que os religiosos comumente atribuem às grandes dificuldades e contradições do mundo cercado de tecnologia, ciência e comunicação instantânea em que vivemos o sinal dos fins dos tempos que já são chegados. Qualquer tragédia natural ou vinda do homem é interpretada como se Jesus estivesse batendo à porta, com o séquito de anjos para realmente nos julgar. Os relatos bíblicos do Gênesis e do Apocalipse, por coincidência o primeiro e o último livro da Escritura, sempre despertaram enorme debate entre teólogos, hermeneutas e exegetas598. Ocorre que, quando se filiam a algum comportamento ou facção religiosos, raramente se desviam das interpretações que procuram defender. 598 O hermeneuta procura o sentido que o texto toma hoje. Toma em consideração a atualidade da Palavra Santa. O exegeta procura descobrir o sentido preciso do texto que pretende expor, não o que pensava que significava, não o que preferia que significasse, não o que está na superfície da tradução corrente. Curiosamente, o teólogo e doutor Page Kelley afirmou, sobre o perigo das interpretações, que se os livros do Antigo Testamento fossem substituídos por páginas branco, a maioria dos pastores sequer notaria a diferença. (cf. Pr. Walter Santos Baptista, Igreja Batista Sião, Seminário Teológico Batista do Nordeste, em Salvador, BA, disponível em: http://www2.uol.com.br/bibliaworld/igreja/estudos/igrej037.htm). 234 Essa ortodoxia automaticamente afasta outras vertentes que gostariam de participar do debate e, na maioria dos casos, o diálogo morre aí... Uma dessas opiniões, que está justificada por centenas de livros, é a que atribui a trechos bíblicos a sustentação de que a Terra foi visitada várias vezes por seres extraterrestres, interessados em povoar e colonizar nosso planeta segundo um plano exterior que, na falta de preparo dos povos para quem foram direcionados esses esforços, foi considerado de origem divina. Segundo J. J. Benitez599, se Deus é uma Grande Força Cósmica (ou outro nome equivalente) e pôs para valer um plano para povoar nosso planeta com seres inteligentes – “deve” ter encarregado seres evoluídos para semear esse grau de evolução de vida na Terra e “velar” por seu correto desenvolvimento.600 Se aceitarmos essa hipótese, de que a humanidade seria uma experiência, podemos crer que em determinado instante “essa experiência falhou” (o que ocasionaria o pecado original, depois a história do Dilúvio e de Sodoma e Gomorra) e teve que recomeçar através de um povo eleito (o hebreu). Na época, esse povo, dado o seu caráter elementar e primitivo, confundiu os anjos enviados por Deus com o próprio Deus.601 Os patriarcas e o povo judeu seriam o estágio preparatório para trazer ao mundo o Grande Enviado que iria revolucionar a vida humana, que foi, sem dúvida, Jesus de Nazaré.602 Infelizmente – como lamenta Benitez – não são os Evangelhos canônicos ou oficiais, aceitos pelas Igrejas católica e protestante, aqueles que se aproximam da interpretação mística da Bíblia, muito ao contrário. São os Evangelhos apócrifos, não reconhecidos e que foram escritos depois do século I, os que mais confirmam a percepção, hoje aceita por essa vertente, de que fomos visitados por seres extraterrestres.603 De acordo com o mesmo autor, se nos reportarmos ao Gênesis, uma mente normal e equilibrada não compreenderá o livro, considerando-o uma aberração do texto sagrado. Senão vejamos as passagens: “Ora, naquele tempo havia gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens, as quais lhe deram filhos; estes foram valentes, varões de renome, na antiguidade.”604 Tal trecho, “extremamente enigmático”, conforme Benitez, sendo submetido a mestres em teologia da Universidade de Salamanca e consultores da Pontifícia Comissão Bíblica da Espanha, entre outros títulos, foi interpretado de tal modo pelos 599 Cf. BENITEZ, J. J. O OVNI de Belém: era um disco voador a estrela que guiou os Reis Magos até Belém para visitar o menino Jesus?, tradução de Elizabeth Soares, Rio de Janeiro, Editora Record, 1993. 600 Cf. BENITEZ, op. cit., p.30. 601 Idem, p. 30. 602 Idem. 603 Idem, p. 32. 604 Cf. Gn., 6: 4. 235 exegetas que a expressão “filhos de Deus” seria equivalente, de acordo com tradutores gregos e alexandrinos, a “anjos”, semelhança também encontrada na literatura apócrifa judaica. Ora, se admitirmos que os responsáveis pela prenhez das mulheres foram os anjos, o problema continua: como as criaturas angelicais poderiam ser atraídos por fêmeas humanas, que, inclusive deram à luz? Se os anjos copularam com as mulheres, então eram seres de carne e osso...605 Mas se os anjos, por definição não tendo sexo e, por conseguinte, não podendo sentir atração sexual, impedem essa interpretação e considerando que os “filhos de Deus” neste caso poderiam ser os filhos de Set ou de Caim, parece que nesta parte do Gênesis falta algo...606 Essa parte que falta no Gênesis foi recolhida e salva no Livro de Enoque, um dos Evangelhos apócrifos: em sua primeira parte, no capítulo VI, faz referência a “anjos, filhos do céu, que desejaram as filhas formosas e belas dos homens e geraram crianças”. Enoque, o patriarca e sétimo filho de Adão, não viveu tanto como os outros patriarcas porque, havendo agradado a Deus, fora “transportado”.607 Os registros apócrifos chamam “anjos veladores” às entidades que tiveram contato com os descendentes de Adão e Eva, tentando recuperar, de algum modo, a malograda “experiência genética” que não deu certo no Paraíso. Está claro que tais anjos-veladores, ou Eloim, tinham uma natureza muito similar aos seres humanos, embora, segundo Benitez, seja certo que, para os primitivos patriarcas e descendentes, o seu grau de evolução mental e tecnológica os convertia em “Deus” ou “deuses”608. E o autor complementa: “Esses “anjos” – sempre a serviço de Deus – eram e são entidades adequadas para estabelecer os contatos com a raça humana, dada a sua semelhança física com esta. Ainda assim, a Bíblia está cheia de casos em que as testemunhas caem de rosto na terra ao ver estes “varões” ou “anjos”. Se hoje pudéssemos contemplar algumas daquelas “aparições” aos patriarcas, certamente levaríamos as mãos à cabeça, reconhecendo nos ditos “anjos” os “astronautas siderais”, com seus macacões metalizados, seus capacetes, suas armas sofisticadas e seus sistemas de transporte. Às vezes me pergunto qual será a vestimenta dos primeiros sacerdotes que subirem ao espaço e como irão equipados aqueles “missionários” humanos que nos séculos futuros se lancem à evangelização de planetas mais atrasados que o nosso...”609 O escritor suíço Erich Von Daniken, tendo publicado em 1968, o livro “Eram os Deuses Astronautas”, um ano antes da aterrrisagem do homem na Lua, discutiu seriamente a possibilidade de o homem ter sido, em seu passado, visitado por civilizações extraterrestres. Baseava a teoria na hipótese de que um planeta como a 605 Cf. BENITEZ, op. cit., pp. 35 e 36. Idem, p. 36. 607 Cf. Gn., 5: 24. Cf. BENITEZ, idem, p. 37. Se tomarmos a Bíblia, em versão católica, o livro Eclesiástico, não reconhecido pelos protestantes, faz menção à Enoque: “... agradou ao Senhor e foi arrebatado, tornando-se modelo de conversão para as gerações.” (Cf. Ecl., 44: 16) 608 Cf. BENITEZ, idem, pp. 40 e 41. 609 Idem, p. 41. 606 236 Terra fosse visitado por uma civilização avançada, que descesse neste local que haveria de estar num estágio de civilização como o que alcançamos a cerca de 8 mil anos passados. Fabricando objetos de pedra, os habitantes veriam a colossal descida de um artefato, vindo dos céus. Os visitantes ao descer das espaçonaves se elevariam sem o menor esforço do solo, utilizando-se de pequenos motores a jato fixados na cintura ou entrariam em helicópteros ou pequenas sondas para deslocamento da nave-mãe, provocando estrondos e explosões. A visão desses acontecimentos pelos selvagens com certeza deixaria aterrorizados os incultos habitantes que, sem dúvida, considerariam os visitantes como deuses onipotentes.610 Os viajantes espaciais prosseguiriam no árduo trabalho de pesquisar as riquezas do solo. Uma comissão de pajés, líderes feiticeiros das tribos contatadas se aproximam dos astronautas e tentam ser amistosos. Tendo aprendido a língua local com auxílio de meios eletrônicos, os visitantes agradecem a cortesia e tentam explicar a razão de sua descida, mas percebem que isso não surte efeito algum. Nossos incultos habitantes, compreendendo que os visitantes espaciais, vieram das estrelas e dispõem de grande poder, sendo capazes de milagres espetaculares, só podem ser deuses! Tal hipótese, defendida por Daniken, explica porque certas mulheres, especialmente selecionadas, seriam fertilizadas pelos astronautas, tal como descrito na reminiscência do Gênesis: “Assim surgiria uma nova raça, capaz de saltar alguns degraus da evolução natural e desenvolver-se num estágio superior, sem passar pelas fases intermediárias.” 611 De qualquer maneira, como os livros do Pentateuco não podem ser de todo atribuídos a Moisés, o Gênesis também foi concebido por quatro tradições diferentes: a javista, a eloísta, a deuteronomista e a sacerdotal –, todas respeitadas e integradas naqueles livros por numerosos colaboradores anônimos hebraicos, desde a era mosaica até os tempos de Exílio.612 Assim, o episódio dos “filhos de Deus” que se casaram com “filhas dos homens”, citado pelo autor, é de tradição javista e considerado, pelos exegetas, como de difícil compreensão. Os autores sagrados se referem a uma lenda popular sobre “gigantes” (os Nephilim”, que seriam Titãs orientais), nascidos da união entre mortais e seres celestes. O judaísmo – mais tarde – e quase todos os primeiros escritores da Igreja primitiva interpretaram como “anjos culpados” a expressão “filhos de Deus”. Só a partir do IV século, em função de um conceito mais espiritual da natureza angélica, a literatura patrística começou a ver os “filhos de Deus” como a linhagem piedosa de Set, e os “filhos dos homens” como a descendência depravada de Caim.613 De fato, se uma raça alienígena disposta a um contato e possível colonização fizesse um reconhecimento deste planeta, uma de suas primeiras tarefas seria saber se duas raças poderiam se mesclar. Para isso necessitariam de um paciente humano. Ao comparar as diferenças entre os raptos atuais (“as abduções”) com os que o Gênesis 610 Cf. DANIKEN, Erich Von. Eram os Deuses Astronautas?, pp. 22-23, tradução de E. G. Kalmus, 8ª edição, São Paulo, Edições Melhoramentos, 1971. 611 Cf. DANIKEN, op. cit., pp. 23-24. 612 Cf. João Ribas Costa, in “Apresentação”, pp. 3-4, no livro Eram Deuses Astronautas?, op. cit. 613 Idem, cf. Costa. 237 nos fornece, referindo-se à ligação entre os “filhos de Deus” e os “filhos dos homens”, Benitez esclarece: Enquanto o Gênesis sugere o “rapto das filhas dos homens” como conhecido por todos, os praticados atualmente pelos “astronautas” extraterrenos chegam a público muito depois e quase a totalidade dessas experiências são mantidas dentro de OVNIS, sob sigilo quase total; Os “astronautas” atuais diferem em intenções dos antigos, que executavam o grande Plano de Deus, como “anjos-astronautas” da Bíblia e é por causa disso que não vemos uma descida pública, oficial e maciça dos “astronautas” entre os seres humanos.614 Outra passagem desconcertante, no texto bíblico, diz respeito ao “encontro” entre Jacó615 e um anjo. O trecho diz: “... ficando ele só [Jacó]; e lutava com ele um homem, até ao romper do dia. Vendo este que não podia com ele, tocou-lhe na articulação da coxa; deslocou-se a junta da coxa de Jacó, na luta com o homem. Disse este: Deixa-me ir, pois já rompeu o dia. Respondeu Jacó. Não te deixarei ir se me não abençoares. Perguntou-lhe, pois: Como te chamas? Ele respondeu: Jacó. Então disse: Já não te chamarás Jacó e sim Israel, pois como príncipe lutaste com Deus e com os homens e prevaleceste. Tornou Jacó: Dize, rogo-te, como te chamas? Respondeu ele: Por que perguntas pelo meu nome? E o abençoou ali. Aquele lugar chamou Jacó Peniel, pois disse: Vi a Deus face a face, e a minha vida foi salva. Nasceu-lhe o sol, quando ele atravessava Peniel; e manquejava de uma coxa. Por isso, os filhos de Israel não comem, até hoje, o nervo do quadril, na articulação da coxa, porque o homem tocou o articulação da coxa de Jacó no nervo do quadril.”616 O que fazia, afinal, aquele “homem misterioso” no acampamento de Jacó? Essa passagem seria apenas um símbolo ou uma espécie de anedota arcaica para explicar o nome de Israel? Uma passagem alegórica, uma parábola típica do velho gênero literário do Gênesis, como argumentam os exegetas católicos? Por que a luta de Jacó com o anjo, a estrela de Belém ou a travessia do Mar Vermelho devem ser considerados alegorias, enquanto a concepção virginal de Maria e a ressurreição de Cristo devem ser aceitos como fatos irrefutáveis? Das duas uma: ou a Sagrada Escritura não é inspiração divina ou, se o é, tudo a que se refere ocorreu realmente.617 Conforme Benitez, este seria o ponto-chave. Os escritores e teólogos católicos não poderão aceitar jamais que Jacó, por exemplo, lutou durante uma noite inteira com 614 Cf. BENITEZ, op cit., pp. 94 a 96. Jacó recebeu esse nome por conta das circunstâncias do seu nascimento. Logo após o nascimento de Esaú, Jacó aparece segurado ao seu calcanhar, razão pela qual seus pais lhe chamaram Jacó, do hebraico Yaakov (preso à raiz akêb: “calcanhar”), cujo significado é: “o que segura o calcanhar”. A mudança do seu nome de Jacó para Israel, significa: “campeão com Deus, o que luta ou prevalece com Deus” (Gn., 32: 28). 616 Cf. Gn., 32: 24-32. 617 Cf. BENITEZ, op. cit., pp. 99-101. 615 238 um anjo porque os anjos simplesmente – tal como está hoje este ponto da teologia – não têm natureza humana.618 O contexto leva-nos a acreditar que o “homem” que lutava com Jacó não era um ser humano, um homem natural, mas era um ser sobrenatural. No entanto, se levarmos em consideração que Jacó lutava com um ser celestial, e considerando que os seres celestiais são imateriais, torna-se meio esquisito alguém lutar fisicamente, segurar, tocar um ser imaterial. Mas, se o anjo “se materializou” para a luta, no mínimo deixou-se vencer por Jacó, porque, se tão somente se transformasse num ser etéreo, jamais Jacó poderia tê-lo agarrado. Acreditamos que os anjos são seres muito mais poderosos que os homens, pois dispõem de recursos e propriedades muito superiores às do ser humano. Se o anjo deixou-se vencer, então torna o texto uma estorinha de “faz de conta”, totalmente desacreditada. Quando Jacó diz que viu Deus face a face, dá-nos a impressão de que a luta foi com Deus. Muitos crentes até afirmam “Jacó lutou com Deus”. Ora, é completamente inconcebível que numa luta físico-corporal, a criatura prevaleça contra o criador. Por fim, se a luta foi com outro homem, onde está o mérito?619 Os adventistas, através da “profetisa” Ellen G. White interpretam essa passagem, forçando a barra: “A perseverante fé de Jacó prevaleceu. Ele segurou firme o anjo, até obter a bênção que desejava e a certeza do perdão de seus pecados. Seu nome foi então mudado de Jacó, o enganador, para Israel, que significa príncipe de Deus. (...)Foi Cristo que esteve com Jacó durante a noite, com quem ele porfiou, e a quem ele perseverantemente reteve até que o abençoasse.”620 Cristo aparecer para Jacó, em pleno nascimento de Israel, no mínimo deve ser interpretado como “reencarnação ao contrário”, na esteira das palavras de Jesus, no Evangelho de João: “...em verdade eu vos digo: antes que Abraão existisse, EU SOU.”621 Sem dúvida isso alegraria muito os cristãos esotéricos, que acreditam em reencarnação e aos espíritas também, mas tal interpretação arrojada não agradaria os católicos. Nessa linha, o reverendo William Soto Santiago, PhD., afina a interpretação tentando refazer a história: “Esse Anjo é o Messias Príncipe em Seu corpo angelical, o qual, conforme a promessa divina, em Sua Vinda se faria carne e estaria no meio do povo hebreu. Para o Cristianismo esse foi Cristo: o Anjo do Pacto manifestado em carne humana no meio de Seu povo Israel. O Judaísmo ainda espera a Vinda do Anjo do Pacto, que será a Vinda desse Anjo num corpo de carne; e esse será o Messias Príncipe esperado por Israel, ao qual verá e receberá a bênção dele; pois Israel se agarrará desse Anjo e não o soltará até que receba a 618 Cf. BENITEZ, op. cit., p. 101. Cf. PERES, J. Rede Sepal, Oficina de idéias, disponível em: http://www.lideranca.org/cgibin/index.cgi?action=forum&board=teologia&op=display&num=2247. 620 Cf. WHITE, Ellen G. História da Redenção, Jacó e o Anjo, capítulo 13, p. 94, disponível em: http://www.cvvnet.org/cgi-bin/ellen?hr+c-013. 621 Cf. Jo., 8: 58. 619 239 bênção falada pela boca desse Anjo; porque será o Anjo do Pacto falando através de carne humana a Israel.”622 Essas interpretações são muito bonitas, mas como fogem à interpretação literal da Bíblia também permitem que aceitemos as hipóteses místicas mais fantásticas. Limitando-se aos argumentos básicos – observa Benitez – Jacó era uma das peças da engrenagem de formação do “povo eleito”, tanto quanto os seus descendentes seriam o ci mento de um grande povo do qual irá nascer o Messias (o período do qual se fala fica entre 2.000 a 1.800 antes de Cristo). A missão de vigiar o cumprimento desse “plano divino” estava a cargo de eloístas ou “anjos-astronautas-missionários” de natureza humana ou muito similar a ela.623 Ora, antes da luta com o anjo, Jacó regressava às terras do avô, Abraão, do pai, Isaque e do irmão, Esaú, e teve um relevante encontro com outros anjos e, ao vê-los, Jacó disse: “Este é o acampamento de Deus” e, por isso, chamou aquele lugar de Manaaim624. Por certo, nada na Bíblia é casual. Então, como os patriarcas ficavam sob estrita vigilância dos anjos-eloístas, eram obrigados a ocupar terras muito próximas, montando verdadeiras bases ou acampamentos, que Jacó definia com muita precisão. Se os astronautas eram identificados como anjos de Deus ou como o próprio Deus, ou Jeová, a conclusão lógica é que o lugar onde estavam acampados ou estabelecidos seria também considerado “acampamento de Deus”. E esclarece Benitez: “Pouco depois deste “tropeço” (não sabemos se casual) de Jacó com a “base dos astronautas”, o patriarca decide enviar a Esaú uma série de emissários, com presentes substanciais, a fim de aplacar a ira de seu irmão ruivo (por causa do direito da primogenitura que Jacó usurpou através de um estratagema). E pouco antes do encontro com o anjo, o astuto neto de Abraão faz suas duas mulheres legítimas (Lia e Raquel), as duas escravas delas e as concubinas de Jacó (Zela e Bala) e seus onze filhos cruzarem a corredeira de Yaboq, ficando então sozinho.”625 Como a família e os serviçais de Jacó eram a origem do futuro povo de Israel626 (as chamadas “doze tribos”), a equipe de astronautas não poderia permitir que nada lhes acontecesse, o que explica também que o astronauta que lutara com o patriarca não o tenha paralisado com nenhum golpe mortal, mesmo após uma noite inteira de combate...627 Cf. SANTIAGO, William Soto. “Jacó se encontra com o anjo”, 1º de junho de 2008, Conferências de William Soto Santiago, Jerusalém, Israel, disponível em: http://www.aluzdonovodia.com.br/biblioteca/colunas.php?idcoluna=100. 623 Cf. BENITEZ, op. cit., pp. 101-102. 624 Manaim significa “os dois campos”. Segundo outros autores, pode significar também: “É o campo (majaneh) de Deus. Segundo Benitez, isso ratifica a sua teoria sobre uma possível “base” ou “acampamento” de “astronautas”. Cf. Gn., 32: 1-2. 625 Cf. BENITEZ, op. cit., pp. 102-103. 626 Cf. X. Leon-Dufour, Israel significa “Deus luta”, “Deus é forte” e “lutou contra Deus”. 627 Cf. BENITEZ, p. 102. 622 240 Benitez especula que, em nossa época, os OVNIS que nos visitam não recebem a docilidade que os patriarcas mantinham no período em que a história descrita pelo Gênesis se desenvolveu. Os militares e serviços secretos de todo o mundo sabem da presença dos visitantes e tentam constantemente a sua captura, não raro utilizando meios violentos628. Sempre falando por hipótese, o autor não crê que os “astronautas” de carne e osso tinham perfeito domínio do futuro, que seria uma atribuição do verdadeiro Deus e de seu estado-maior supremo. Os “astronautas-missionários” eram somente os encarregados de materializar o grande plano e a eleição dos patriarcas (base do povo eleito) e do território (a terra prometida) tiveram que levar em conta as características genéticas encontradas e, depois, escolhidas. Ora, qualquer geneticista, hoje em dia, não teria dificuldade em averiguar o tempo mínimo necessário para formar, por exemplo, um determinado grupo humano, a partir de uma série de “primeiros exemplares”. Se isto já é possível, estimando-se a nossa rudimentar tecnologia, do que não seriam capazes aqueles “astronautas” da antiguidade?629 E ele enfatiza: “Se os astronautas se faziam passar por Jeová, é porque as circunstâncias daqueles tempos assim o exigiam. E embora cumprissem uma missão divina, nem por isso podiam ser confundidos com a Grande Força.”630 Conforme Benitez, a Bíblia é, sem dúvida, uma grande porta para o mistério extraterrestre, embora não haja trechos explícitos do Livro Sagrado que falem especificamente em seres alienígenas. A Bíblia fala somente em seres alados e angélicos, misturados às noções de nuvens, vozes, redemoinhos, carros e cavalos de fogo e arrebatamentos para o alto, de seres abençoados como Melquisedeque, Enoque, Moisés, Elias, Filipe e, por que não dizer?, do próprio Cristo. Noutra passagem bíblica, muito importante, temos a controvérsia sobre Elias, o profeta que foi raptado para o alto. Se as naves são capazes, hoje, de absorver e levantar do solo homens e animais, valendo-se de misteriosos fachos de luz ou de forças invisíveis ou desconhecidas para nós, não poderia ter ocorrido o mesmo com Elias? Eis o trecho: “Indo eles [Elias e Eliseu] andando e falando, eis que um carro de fogo, com cavalos de fogo, os separou um do outro; e Elias subiu ao céu num redemoinho. O que vendo Eliseu, chamou: Meu pai, meu pai, carros de Israel e seus cavaleiros! E nunca mais o viu; e tomando as suas vestes, rasgou-as em duas partes.”631 A interpretação católica sobre a passagem é a de que a separação dos profetas se deu num “transporte extático”, que seria uma espécie de êxtase, o que não explica porque o profeta não foi mais visto. Quanto ao redemoinho, ao carro e aos cavalos, a interpretação seria a de que serviriam apenas como fator de separação dos profetas. E se Elias foi arrebatado milagrosamente por volta de 850 a.C., e que não voltou a ser 628 Idem, pp. 108-109. Cf. BENITEZ, p. 142. 630 Cf. BENITEZ, p. 137. 631 Cf. 2 Rs., 2: 11-12. 629 241 visto, o que ocorreu com ele? Podemos dizer que morreu? E se isso de fato aconteceu, por que Jesus, muito mais tarde, afirmou cabalmente que Elias havia voltado?632 No entanto, o mais pormenorizado relato que pode ser associado a extraterrestres é comumente identificado com o livro de Ezequiel, na totalidade do capítulo primeiro633. Consta que, por volta de 593 a.C., o profeta teve uma visão e, curiosamente, alguns exegetas parecem esquecer que o citado texto goza da prerrogativa da inspiração divina. A maioria dos teólogos e especialistas católicos admite, ao contrário, “que muitas descrições de Ezequiel são pura imaginação, poesia ou recursos épico-literários”, o que, para Benitez, não passa de explicações vãs que serviriam apenas para convencer um ingênuo colegial.634 O autor afirma que os teólogos adotam dois pesos e duas medidas porque se o relato em Mateus sobre a “estrela” ou “luz” que guiou os Magos até Belém é classificado como “gênero literário sem o menor rigor histórico”, a “luz” que envolveu Saulo, a caminho de Damasco, em troca recebeu todas as bênçãos dos estudiosos da Bíblia como sendo um evento verdadeiro. Se focarmos o capítulo da “credibilidade” o que seria mais real: a luz de Belém, vista por inúmeras pessoas, ou a luz no caminho de Damasco, que baixou dos céus e cegou um caminhante?635 A luz vista por Saulo, de acordo com o autor, só poderia ser uma nave, que emitia luz fortíssima e que encheu de espanto a todos: “... caímos todos por terra, e ouvi uma voz que me dizia em língua hebraica: Saulo, Saulo, por que me persegues?” Se só Paulo, dentre as testemunhas, ficou cego, elas também não ouviram ninguém; nem tampouco o futuro apóstolo viu a figura de Cristo, dizendo apenas ter ouvido a sua voz. O estado de choque em que Saulo ficou por 72 horas é típico das vítimas atuais de aparições de ÓVNIS pelo menos nos dias subseqüentes à ocorrência.636 A cegueira temporária de Paulo também é encontrada no episódio do Gênesis em que Lot convida os anjos a pernoitarem em sua casa em Sodoma: para afastar a multidão que tentava sodomizá-los, os anjos os cegaram e com isso foram poupados637. Esse trecho é visto pelos teólogos como “ilusão de ótica” – o que segundo Benitez é apenas uma espécie de “gênero literário” para quem não deseja ver a realidade com seriedade e rigor...638 Benitez conclui as suas especulações, chamando atenção para o fato de ser impossível a chamada Estrela de Belém ter sido uma conjunção planetária, um cometa ou um meteorito, porque a jornada dos Magos foi de 3 a 5 meses (cerca de 1.300 quilômetros de percurso), façanha que não poderia ser acompanhada por um fenômeno astronômico de tão longa duração. A hipótese do autor para explicar o acontecimento é a de que um veículo portentoso, dirigido inteligentemente, uma nave tripulada foi responsável por guiá-los a Belém, sendo que sua caminhada era feita de dia, quando 632 Cf. BENITEZ, op. cit., p. 119-220. Cf. Mt., capítulo 11. Cf. Ez., 1: 1-28. 634 Cf. BENITEZ, op. cit., pp. 243-247. 635 Idem, p. 133. “Quantas testemunhas atuais fizeram descrições semelhantes à esta de Saulo? Simplesmente, centenas de milhares.”, cf. BENITEZ, p. 134. 636 Idem, pp. 135-137. 637 Cf. Gn., 19: 9:12. 638 Cf. BENITEZ, pp. 137-138. 633 242 não poderia aparecer no céu “uma estrela luminosa”. Segundo Benitez, desse detalhe importantíssimo esqueceram-se também os exegetas e hispercríticos...639 O autor termina o livro com algumas dúvidas que o incomodam e interrogações que remete ao leitor: Se o tempo jamais foi um problema para os “astronautas de Jeová”, não é possível que continuem sobrevoando a Terra e, nesse caso, teria sido encerrado a sua experiência ou o grande plano de salvação da humanidade?; Se circulam hoje os mesmos OVNIS dos tempos de Abraão, Isaque e Moisés, quais seriam os profetas escolhidos hoje?; Não estariam hoje os profetas da Nova Era sendo desmoralizados pela máquina burocrática das religiões?; Portariam os profetas de hoje cruzes e batinas ou seriam parecidos com Elias, Ezequiel e João Batista?; Não estaria sucedendo hoje à Igreja católica em relação aos OVNIS o mesmo que ocorreu com Galileu há pouco mais de trezentos anos? Não estará ganhando uma batalha para acabar perdendo a guerra? Essas perguntas ou dúvidas, tomadas como um reflexo cultural de um conjunto de aspirações e interrogações típicas do mundo contemporâneo, foram responsáveis por reunir no corpo de uma nova ciência o estudo sobre a vida extraterrestre e suas consequências para a visão de mundo que deveremos assumir, um dia, no futuro. Ufologia e Religião A Ufologia apareceu como novidade nos Estados Unidos em 1945 e pode ser definida, a princípio, como o estudo sistemático e científico dos Objetos Voadores Não-Identificados – OVNIS, artefatos misteriosos, avistados nos céus por testemunhas oculares de diversos países640. Após as explosões das bombas de Hiroshima e Nagasaki (agosto de 1945), que deram fim à II Guerra Mundial, parece ter havido um aumento de aparições de OVNIS e os relatos de avistamentos começaram a aumentar, a partir daí, despertando interesse na Europa e, principalmente, nos Estados Unidos. Períodos remotos da história humana mostram que todas as vezes que uma catástrofe ou mudança radical acontece, objetos luminosos e desconhecidos passam a povoar os céus, com que inspecionando a atividade dos homens. Relatos sobre isso encontram-se em obras de escritores célebres como Cícero, Tito Lívio, Dio Cassius e Plínio e na Bíblia, como vimos, principalmente pelo relato do profeta Ezequiel. Na atualidade, porém, vemos que cresceu o interesse pelos OVNIS na medida em que as crises da sociedade ocidental foram tomando proporções catastróficas. As 639 Idem, pp. 294-296. A sigla “UFO” é a abreviatura de “Unidentified Flying Objects” e consagrou no mundo inteiro o estudo dos discos voadores, como são popularmente chamados. 640 243 guerras que se produziram após 1945, com o seu volume de mortos, a fome, a poluição industrial, o envenenamento progressivo da atmosfera e, mais recentemente, o aquecimento global formaram um quadro apocalíptico ou de medo do apocalipse, que trouxe consigo o secreto desejo de que venha dos céus a instância salvadora, como em antigos momentos da Humanidade. Não quero, com isso, afirmar taxativamente que os OVNIS são uma ilusão. Muito ao contrário. Mas não deixa de ser interessante assinalar que existem causas históricas e sociológicas para o aumento da curiosidade em relação aos discos voadores. A insatisfação na terra tem conduzido a humanidade a olhar mais detidamente para os céus... Diante de milhares de contatos relatados e da curiosidade pública flagrante, muitos cientistas passaram a se interessar sobre o fenômeno, pondo em risco a credibilidade pessoal, ameaçada por militares sisudos e os demais representantes céticos da ciência oficial. Segundo o astrônomo Rogério Mourão, a velha idéia do físico italiano Enrico Fermi (1901-1954), de que os extraterrestres não existem em virtude de não terem até hoje se apresentado, foi retomada pelo astrônomo norte-americano Michel H. Hart, do Centro Nacional de Pesquisas Atmosféricas de Boulder, Colorado, que iniciou, em 1975, uma análise científica da ausência do extraterrestre. Tal argumentação, conhecida no meio astronômico como paradoxo Fermi-Hart, se resume na questão “Onde estão eles?”, atribuída ao físico italiano quando lhe perguntaram, em 1950, o que pensava da hipótese de seres inteligentes em outros planetas do Universo.641 Mas antes dessas afirmações tradicionais e conservadoras da ciência, vieram os pioneiros da Ufologia, isto é, pessoas comuns atemorizadas, fotógrafos sortudos e jornalistas ousados, além dos pilotos de aviação que milhares de vezes viram objetos redondos, luminosos e desconhecidos voando ao lado de seus aviões, na atmosfera. A todos esses a Ufologia deve o extenso conjunto de depoimentos, revelados e estudados por uma disciplina complementar, denominada “Casuística”, que seria a coleção de casos documentados ou legítimos de aparecimento ou contato direto com OVNIS. Normalmente, os livros sobre Ufologia são narrativas superdetalhadas de “casos”, de onde são deduzidos os desenhos das naves, os formatos dos humanóides que as comandam e tudo o mais que se conhece sobre o tema. Aliás, tem-se que admitir que, pelo menos nos Estados Unidos, a Ufologia tornou-se, antes de uma ciência ou expectativa de ciência, uma indústria de muitos lucros, havendo inclusive divisão entre “escolas”, bastante condicionadas aos ganhos dos profissionais a eles ligadas. De acordo com Rogério Chola, ombudsman da revista brasileira UFO, o estudo dos OVNIS é um campo minado, no qual os cientistas recusam pisar para não explodir a própria reputação. E arremata: Cf. MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. “ETs – Onde Estão Eles?”, in Jornal do Brasil, 23/7/90, p. 15. 641 244 “A maioria dos acadêmicos considera a ufologia uma pseudociência, ou seja, um trabalho destituído do rigor da metodologia científica. Para piorar, dezenas de charlatões tomaram conta das pesquisas ufológicas, com a intenção de explorar a boa-fé das pessoas. Mas há cientistas, com formação acadêmica e reconhecimento público, que adotaram a ufologia como sua especialidade. O principal problema da ufologia hoje é a maioria dos próprios ufólogos. Eles são os responsáveis por perpetuar os paradigmas de que OVNI é sinônimo de nave extraterrestre”. 642 Os OVNIS realmente existem – diz Chola, mas podem ser um avião passando entre as nuvens, uma estrela brilhante, um meteoro, um satélite artificial, um balão meteorológico ou pássaros. Pode ser um punhado de coisas banais que normalmente não tomariam a sua atenção, mas que, por terem aparecido em condições desfavoráveis – escuridão, neblina, distância –, não puderam ser identificadas de imediato.643 Atualmente, há quatro teorias sobre o fenômeno: a primeira apela para o racional: OVNI é algum tipo de aeronave avançada, secreta ou experimental de fabricação humana, desconhecida ou mal reconhecida pelo observador; a segunda é a mais polêmica: se nenhum fenômeno natural ou tecnologia terrestre servir de explicação, trata-se de uma espaçonave alienígena; a terceira teoria aponta para hipóteses psicossociais e psicopatológicas: quem vê um OVNI sofre de algum distúrbio. E a quarta escola apóia-se na religião, no ocultismo e no sobrenatural - os OVNIS são mensagens divinas ou diabólicas. Pobre do ufólogo quando as hipóteses de uma tendência misturam-se às de outra, diz Chola: “A ufologia extrapolou os seus limites ao enveredar por caminhos místicos e transcendentais, passando a estudar vida extraterrestre, canalizações de mensagens extraterrestres, contatos telepáticos e entidades de outras dimensões, entre outros, o que a rigor não compete a ela estudar”.644 De fato, alguns cientistas, deslocados de suas especialidades, começaram a avaliar a sanidade mental e a reputação das “vítimas” dos discos voadores e, finalmente, os serviços secretos norte-americanos passaram a se interessar pelo tema, quando pressentiram que as ocorrências de avistamento e aterragem de tais objetos poderia pôr em risco a segurança nacional dos Estados Unidos. Surgiram na América, a partir de 1945, duas metodologias de pesquisa de OVNIS. Uma, dirigida pelos militares em conjunção com os serviços secretos cuida a sério do tema, mas evita que as conclusões porventura tiradas cheguem ao conhecimento da opinião pública. Tal abordagem “secreta” é privilégio de agentes 642 Cf. CHOLA, Rogério. Cf. “Ufologia é ciência?, Saiba mais sobre a ufologia”, Revista Superinteressante, junho de 2005, disponível em: http://super.abril.com.br/superarquivo/2005/conteudo_125888.shtml. 643 Idem, cf. CHOLA, site citado. 644 Cf. CHOLA, site citado. Segundo o sociólogo Gerald Eberlein: “Pesquisas revelaram que pessoas que não têm vínculos com igrejas mas afirmam ser religiosas, reagem de maneira especialmente forte à possível vida de extraterrestres. Para elas, a ufologia é uma espécie de religião substituta.” 245 expressamente designados para a tarefa por órgãos oficiais de governo, mas que necessariamente não aparecem no organograma de seus departamentos. A outra orientação de pesquisa, bem conhecida do público brasileiro, é a Casuística, permitida para consumo civil, e que não retira do material acumulado qualquer conseqüência filosófica mais responsável sobre o material em estudo. Em torno dela, foi montado o maior esquema promocional de que se tem notícia, desde que os militares e os serviços secretos foram liberando “informações imprestáveis”, ou seja, aquelas que, de uma forma ou de outra, “vasaram” para o público externo. Alguns cientistas, como o astrofísico J. Allen Hinek (1910-1986), envolveramse emocional e comercialmente com o assunto; várias associações foram fundadas, congregando os entusiastas da “ufomania”; uma cadeia de jornais e revistas se sustenta nos Estados Unidos, graças aos recursos oriundos do debate sobre as pretensas e luminosas mensagens vindas do céu! A Casuística é, por dedução, um método de pesquisa simpático aos órgãos oficiais do governo norte-americano, que até estimula os divulgadores na área científica e comercial, desde que os pesquisadores jamais ultrapassem os limites permitidos e que cumpram o objetivo de deixar a opinião pública sempre em dúvida: afinal, os OVNIS realmente existem ou não existem? Vale dizer, enquanto os especialistas se preocuparem em fazer palestras contando os casos de aparecimento e contato, mostrem filmes e slides e exibam laudos de sanidade mental das testemunhas oculares – adia-se para longe o reconhecimento das realidades ufológicas pelos governos nacionais, que seria o objetivo final da ciência. No entanto, a Casuística não consegue alcançá-lo, tornando-se um método auxiliar, estagnado e repetitivo de investigação, já que não recebe o rico material dos governos, mantidos no essencial em profundo segredo. Tal como a natureza de Deus, envolta em mistério, o fenômeno OVNI revestese de um véu mágico de ocultamento que não permite a livre discussão do problema, além das freqüentes tentativas das autoridades em acobertar fatos que poderiam cair em domínio público e que poderiam causar, supostamente, pânico na população. Como não se produziu, ainda, ao nível científico, qualquer prova cabal da existência dos OVNIS, apenas indícios muito bem documentados, supõe-se que os governos ocidentais dos países desenvolvidos escondem as provas documentais ou físicas sobre a realidade dos discos voadores e das civilizações extraterrestres. O que mais eletriza, no entanto, os aficionados do tema são os casos documentados pela literatura existente de avistamentos e pousos de OVNIS, bem como as supostas comunicações face a face com os seus tripulantes. Foi Hinek quem classificou os avistamentos, pousos e comunicações dos discos voadores e seres alienígenas em contatos imediatos de primeiro, segundo e terceiro graus. O contato de 1º grau faz referência ao mero aparecimento de OVNI longe do observador, mas sob o seu campo de percepção visual; o 2º grau diz respeito a um 246 contato imediato nas proximidades do observador e, finalmente, o contato imediato de 3º grau significa a interação com os tripulantes, dentro ou fora do objeto alienígena.645 Os casos de contato de primeiro grau são naturalmente em maior quantidade e chegam à centena de milhares, pelo menos no Ocidente. Os de segundo grau, em menor número, são comumente destacados pela literatura ufológica. São os aparecimentos de OVNIS perto de instalações militares, de aviões comerciais em vôos regulares ou de regiões densamente povoadas, gerando problemas físicos e psicológicos para as “vítimas”, tais como estados de choque, vômitos, escoriações, queimaduras e, às vezes, até a morte. Alguns estudiosos levantam a hipótese de que os OVNIS preferem aparecer em regiões de grande riqueza mineral ou que interfiram no perfil eletromagnético da Terra. Mas a verdade é que a Ufologia é campo ingrato de pesquisa porque seu objeto escolhe o palco de avistamento e a periodicidade do fenômeno não obedece a nenhuma lei definida. Para não deixar, todavia, os teóricos da disciplina muito desanimados, eis que são documentados alguns contatos imediatos ditos de “3º grau”, em que as “vítimas” afirmam ter entrado em comunicação ou interação diretas com tripulantes de objetos desconhecidos para a tecnologia terrestre. Isso ocorre invariavelmente com pessoas comuns, independente da condição de credo, raça, posição social e idade, não havendo, entretanto, qualquer declaração documentada de autoridades de projeção nacional ou internacional, afirmando ter mantido contato imediato nesse nível alguma vez na vida. E isso é facilmente explicável pelo elevado ônus para suas carreiras que acarretariam os exames de sanidade mental ou testes em polígrafos (detetores de mentiras). Abstraindo-se, contudo, essa dificuldade do contato de 3º grau, a literatura ufológica consagrou alguns casos célebres, repetidos em livros e que foram considerados modelares na comprovação da teoria. Dentre eles, geralmente o mais citado pela credibilidade do acontecimento é a ocorrência vivida pelo casal Barney e Betty Hill a 19 de setembro de 1961, ao sul de Lancaster, New Hampshire, no nordeste dos Estados Unidos, um caso clássico de contato de terceiro grau com seres extraterrestres. Naquela noite de folga, em que o casal retornava da fronteira do Canadá em direção a Portsmouth (EUA), do automóvel avistaram o que lhes parecia uma estrela muito brilhante no céu. No entanto, a estrela observada foi ficando enorme até pairar no ar, sobre a rodovia. Após o carro de Barney sofrer uma pane na parte elétrica, os dois presenciaram a aterrisagem do objeto e uma escada descendo lentamente da máquina. Logo depois sentiram enorme torpor e perderam os sentidos. O livro de Hinek, “The UFO Experience” (1983) não cogitava, à época, dos contatos imediatos de 4º grau, que consistem no contato social e sexual entre terráqueos e alienígenas dentro das naves espaciais. Esse fenômeno foi conhecido como “abdução” e já gerou nos Estados Unidos pesquisas universitárias ao nível de doutorado. 645 247 Duas horas e meia transcorridas, recuperaram a memória e estavam andando a esmo, pela estrada, estranhamente silenciosa. Compreenderam que algo de muito estranho ocorrera naquele intervalo de tempo. Somente em 1964, porém, na cidade de Boston (EUA), o casal concordou em ser examinado pelo psiquiatra Benjamin Simon. Através da hipnose, o especialista conseguiu fazer aflorar o que estava escondido no subconsciente de Betty e Barney, controlando a experiência de maneira totalmente científica. Eles foram atraídos para a nave e os alienígenas examinaram detidamente os seus corpos, fazendo o que lhes parecia ser alguns testes médicos. Após o período dentro da nave, foram devolvidos à estrada, onde ficaram desnorteados por algum tempo, andando sem direção. E, quando acordaram, não se recordavam bem do que houve, apenas que fora uma experiência traumatizante. O mais interessante neste caso é que Betty Hill desenhou, sob processo hipnótico, um mapa celeste que vira dentro da nave. Sua descrição foi entregue à astrônoma Marjorie Fish que pacientemente o estudou. Não encontrou no mapa nada que correspondesse ao firmamento estrelado, visto da Terra. Entregou a sua pesquisa e o mapa ao Dr. Mitchell, da Universidade Estadual de Ohio, que o examinou e submeteu a extensos estudos, chegando a uma surpreendente conclusão: o mapa, feito por Betty Hill, mostra uma parte de nosso Universo, visto da estrela Ceta Reticuli 3, distante 36 anos-luz da Terra! Esse é um dos casos mais bem documentados no campo da Ufologia e dificilmente deixa de ilustrar os bons livros da matéria. No entanto, os casos clássicos obedecem, mais ou menos, à mesma linha narrativa: uma sequência de avistamento, seguida de aproximação da nave e possível aterrisagem e contato com os tripulantes; exame do depoimento e da sanidade das “vítimas” por parte dos especialistas; notícias na imprensa, durante cinco ou seis dias, e, finalmente, a “hibernação” do caso nos arquivos de vários ufólogos, além de um delicado esforço governamental para abafá-lo suavemente. Todos ficam satisfeitos e o caso se encerra. Quanto ao público, ele sempre fica em dúvida sobre se os OVNIS existem realmente ou não. “Não posso ver discos voadores: sou uma autoridade...” Kenneth Arnold (1915-1984), criador da expressão “disco voador”, a partir de um avistamento em 24 de junho de 1947, jamais poderia supor que sua expressão percorresse o mundo inteiro e popularizasse um fenômeno que não escolheu fronteiras científicas, políticas nem religiosas. No Brasil, a pesquisa sobre discos voadores, obviamente inspirada na escola casuística norte-americana, já está bem desenvolvida, contando com vários especialistas que, de vez em quando, promovem congressos e simpósios, repletos de manifestações contraculturais, que geralmente acompanham em nosso país os entusiastas da matéria. Um caso típico da casuística ufológica, com certo repercussões de interesse religioso, ocorreu na madrugada de 8 de fevereiro de 1982, em território brasileiro. 248 Naquele dia, o vôo 169 da VASP (Viação Aérea São Paulo), num Boeing 727200, saiu à 1h50m de Fortaleza, cidade ao nordeste do país, com destino a São Paulo, na região sudeste, com escala prevista na cidade do Rio de Janeiro. Por volta das 3h12m, trinta e três minutos após ter ultrapassado a cidade de Petrolina, no estado nordestino de Pernambuco, o comandante do avião, Gérson Maciel de Brito, avistou um OVNI que acompanhou o aparelho durante uma hora e vinte e cinco minutos. O objeto também foi visto por mais dois aviões – um das Aerolíneas Argentinas, outro da Transbrasil. O 1º Oficial, Carlos Alberto Góis de Brito, e o engenheiro de vôo, Francisco Cesarino, que estavam na cabine do avião, também confirmaram a versão do comandante, em depoimento no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, de que o aparelho fora seguido por um OVNI. O 1º oficial, então com 35 anos, dez anos de profissão e seis mil horas de vôo, declarou: “... que aquela luz se aproximava do avião e repetidamente se afastava, sempre mudando de coloração, enquanto o comandante Brito se comunicava com o Cindacta (a torre de controle), em Brasília. Quando passávamos sobre Belo Horizonte, o comandante Brito informou os passageiros sobre o fenômeno. Nesse momento, o Cindacta me chamou para informar que, a 8 milhas à esquerda da nossa aeronave, havia realmente um objeto detectado por seus radares”.646 “A conclusão a que cheguei” – prosseguiu o primeiro-oficial – “sobre o fenômeno que ganhou repercussão em todo o Brasil, é que ele, certamente, servirá como dado importante para os especialistas em OVNIS”647. Já o engenheiro de vôo, de vinte e oito anos e trabalhando há dois anos na VASP à época, informou que sua única preocupação, durante a observação do OVNI, foi verificar, a todo instante, o painel de instrumentos: “Quando passávamos sobre Belo Horizonte, aquele objeto se aproximou tanto do Boeing, com uma aparente cauda vermelha, que eu tive a impressão de que ia nos ultrapassar por baixo. Fiquei de olho nos instrumentos de bordo, pois temia que aquela luminosidade pudesse interferir no sistema eletrônico do avião, mas, felizmente, não tivemos nenhuma descarga ou perda de energia.”648 Outro comandante da VASP, Floriano Sérgio Pacheco, que contava então com 43 anos, afirmou, no aeroporto, que as informações prestadas pelo colega de profissão, Gérson Maciel de Brito, são muito importantes para as autoridades que pesquisam fenômenos extraterrenos. O comandante, que trabalhava há vinte e dois anos na VASP e possuía naquele momento dezessete mil horas de vôo, disse que todos os seres humanos devem estar conscientizados de que nós não somos os únicos no Universo: “Os que não acreditam em discos voadores ou civilizações extraterrenas são uns alucinados. Nós não estamos sós. Há civilizações muito mais adiantadas Cf. “Colegas de piloto da VASP confirmam ter visto objeto”, in Jornal do Brasil, 11/2/82, p. 8. Idem. 648 Idem. 646 647 249 do que a nossa e que há muito tempo nos observam de perto. Só espero que elas, no momento oportuno, intervenham na terra para evitar que o nosso planeta se acabe numa catástrofe atômica, pois todos sabem que isso influiria totalmente no equilíbrio universal.”649 O noticiário dos demais jornais, bastante sóbrio, procurou descrever esse contato de primeiro grau com riqueza de detalhes e depoimentos, revelando fatos curiosos para análise. Contou-se, por exemplo, que os únicos passageiros do Boeing 727 da VASP a não se levantarem para presenciar o fenômeno foram os bispos Aloísio Lorscheider, cardeal-arcebispo de Fortaleza e dom Milton, bispo do Crato, região do Ceará. “Deixa esse disco voador pra lá” – teria dito até, Dom Aloísio, demonstrando certo desprezo por um objeto que não encontrava, na época, boas explicações em sua formação teológica. Ou que não pudesse ser avistado por um homem de sua posição... A atitude do Cardeal Lorscheider, recusando-se a mexer-se de sua cadeira no Boeing da VASP, para olhar o OVNI que seguia o avião, lembra muito um episódio semelhante, ocorrido com o ministro Orozimbo Nonato, quando era presidente do Supremo Tribunal Federal. Ele sistematicamente negava que havia visto um disco voador, mas um dia, a sós com o amigo Adauto Lúcio Cardoso, então advogado, o ministro, provocado a comentar a experiência, confidenciou: “Olha, Adauto, eu realmente vi um disco voador, mas o presidente do Supremo Tribunal Federal não pode ver um disco voador, por isso eu nego...” Esse curto depoimento é significativo para fazer entender como se comportam as autoridades científicas, políticas e religiosas em relação ao fenômeno. No caso dos dois religiosos, presentes na ocasião, há, porém, a suspeita de que não quiseram testemunhar o evento porque os documentos de Puebla, que instruíam a teologia da libertação, não falavam uma palavra acerca dos OVNIS, que prudentemente os prelados preferiram não ver...650 Em contraste com a postura de diversas autoridades, prevenidas contra os fenômenos ufológicos, o comandante Mário Provato, do vôo 177 da Transbrasil, confirmou todas as declarações de seu colega da VASP e o chefe de operações do Cindacta, Major José Bello, disse não desacreditar das informações do piloto do Boeing, em virtude de outros pilotos exibirem relatos de avistamentos semelhantes. O departamento de relações públicas da Aeronáutica, por sua vez, esclareceu que, como o caso foge às responsabilidades do Ministério, ele foi arquivado, como tantos outros, informando o tenente-coronel José Matos de Souza que “os documentos não sairão do órgão, como se pode pensar”.651 Papai Noel existe ou são “bebês” enormes? O volume de aparições, avistamentos e contatos imediatos de OVNIS tornou-se fato comum em nossa época, havendo a tendência das autoridades, em diversos países, 649 Idem, artigo citado. Cf. “Não ver para não crer”, in Jornal do Brasil, 10/2/82, p. 3. 651 Cf. Jornal do Brasil, 10/2/82, p. 3. 650 250 de acobertar ou desmoralizar a maioria dos casos documentados. Há quem diga que 99% dos eventos relatados sejam fraude ou se tornaram imprestáveis para qualquer discussão séria no mundo científico. Sobre essa dificuldade em aceitar-se o próprio objeto de conhecimento da Ufologia, o filósofo católico Jean Guitton observou que o que interessa são os “resíduos” ou fenômenos não explicados, que se tornam “exceções” para a inteligência: “...diante das quais existem dois caminhos: ou postula que estes casos hoje inexplicáveis serão um dia explicados por uma ciência mais avançada – que é a atitude dos positivistas diante dos fenômenos que os crentes acreditam “miraculosos”; ou considera que tais fenômenos jamais serão explicados pela ciência, o que é uma hipótese no mínimo dramática. Se assim fosse, a ciência precisaria reconhecer seus limites, o que seria o mesmo que renegarse; ou então ousar e transformar-se. Este é o objeto do debate atual no que concerne aos discos voadores.”652 O que não se tornou óbvio para a ciência foi explicar, de forma convincente, o que aconteceu com o projeto Apollo, que terminou sem uma exposição satisfatória sobre o fim do programa e os resultados porventura alcançados. Sabe-se que, do ponto de vista científico, o alcance fora limitado, apenas se provando que nosso satélite tem composição geológica e mineral muito semelhante à da Terra. Queixando-se de redução de verbas, a Agência Aeroespacial norte-americana, a NASA, encerrou abruptamente as excursões à Lua e, paradoxalmente, optou por um projeto de ônibus espaciais recuperáveis, viajando apenas em órbitas repetitivas em torno da Terra. Foi um anticlímax para a humanidade, como se ela tivesse sido impedida de prosseguir na exploração do espaço sideral, a não ser por sondas não tripuladas, lançadas a pontos distantes do sistema solar. As missões tripuladas, aparentemente pouco produtivas, envolveram, a partir daí, objetivos militares, pesquisas biológicas com ausência de gravidade, passeios espaciais e conserto de telescópios e satélites, que hoje abarrotam o entorno terrestre. Essa mudança de perspectiva foi justificada por desculpas esfarrapadas, como o fim da Guerra Fria (1945-1989), a falta de verbas e o desinteresse dos contribuintes nos programas espaciais. Segundo vários especialistas, tal desinteresse equivaleria, por exemplo, a condenar Cristóvão Colombo, após a descoberta da América, em ficar dando voltas em torno da península ibérica com as suas caravelas, por ordem dos reis católicos espanhóis... De fato, muitos argumentaram que o objetivo do projeto Apollo era predominantemente político, tendo como meta superar a extinta União Soviética, que pôs no espaço o primeiro homem, Yuri Gagarin, em 1961. Para responder aos soviéticos, o presidente norte-americano John F. Kennedy anunciou o objetivo de Cf. GUITTON, Jean. “Eu Acredito Nos Discos Voadores”, in Revista O Melhor de Planeta Ufologia, Especial, número 98-A, s/d. 652 251 enviar um homem à Lua e trazê-lo de volta à Terra em segurança, antes do final da década de 60. Em julho de 1969, os norte-americanos cumpriram a promessa com a missão Apollo 11, em que a dupla de astronautas Neil Armstrong e Edwin Aldrin finalmente pisaram em solo lunar. Outros dez astronautas, em cinco missões posteriores, os seguiram, mas, com a disputa ganha, ninguém mais voltaria ao satélite natural depois da Apollo-17, em 1972. O fato incômodo, porém, em relação ao projeto, diz respeito às transformações de personalidade dos astronautas, que não foram acompanhadas por órgãos de governo, como se a experiência de ver a Terra de longe, somente alcançada por vinte e quatro astronautas até hoje (2009), não pudesse perturbar de alguma forma a “normalidade psíquica” daqueles senhores... Os responsáveis pelo programa jamais se importaram com o significado “para além da ciência” das excursões ao espaço exterior, interpretando as missões apenas como heroísmo militar ou serviço à Pátria. Não atentaram para as consequências psicológicas ou místicas das viagens nem acompanharam – pelo menos ao que consta no domínio público – as imensas mudanças de percepção sobre o Universo que esses homens notáveis passaram a viver, a partir de concluídas as suas missões. Nem deram satisfação à opinião pública sobre os avistamentos de OVNIS que os astronautas presenciaram durante as viagens, omitindo qualquer comentário na velha linha de acobertamento dos eventos, uma política de convivência com o assunto adotada pelos norte-americanos desde os tempos do presidente Einsenhower (18901969), em meados do século passado. Consta que, dentre esses contatos relatados por astronautas, destaca-se, por exemplo, o encontro dos tripulantes da missão Apollo 8 com extraterrestres, em 24 de dezembro de 1968. Os astronautas Borman, Lovell e Anders tinham a missão de fazer o primeiro vôo de circunavegação lunar e, já na primeira volta, notaram algo diferente numa cratera, mandando esta estranha mensagem: “Temos o prazer de informar ao presidente dos Estados Unidos, às nossas famílias e à NASA que Papai Noel realmente existe. Ele é enorme, esférico e muito brilhante. Parece estar nos acompanhando em vôo paralelo” – disse Borman.653 Esta transmissão só veio a público graças a radioamadores que captaram a mensagem. Em código, previamente estabelecido pela NASA, “Papai Noel” significava OVNI... Quanto à histórica chegada do Homem à Lua, os astronautas observaram outras naves pousadas, algumas na borda de crateras. Uma delas estava no local exato onde o módulo lunar deveria descer, o que obrigou os astronautas a pousar num ponto 653 Cf. “E a Lua – mistério.”, ufo.com.br/relatos/misterio.htmAPOLO. disponível em: http://www.projetovega- 252 diferente do que havia sido planejado. A NASA alega que a mudança de local de pouso deveu-se a “problemas temporários num dos computadores de bordo” do módulo lunar: “Esses bebês são enormes. Enormes! Vocês não acreditariam nisso. Estamos lhes dizendo que há outras espaçonaves lá fora e elas estão alinhadas. Estão na Lua, nos esperando!” Centenas de radioamadores captaram essas palavras de Neil Armstrong ao pousar no solo lunar em 20 de julho de 1969. Maurice Chatelain, que trabalhou na NASA como especialista em comunicações, confirma que Armstrong viu os dois OVNIs. Chatelain afirmou que as transmissões da Apollo 11 foram interrompidas várias vezes para que a NASA tivesse condições de esconder as notícias do público, censurando as falas dos astronautas. Há quem garanta que, quando o módulo lunar pousou, Neil Armstrong teria recebido ordens para não sair do aparelho. Movido pela curiosidade, acabou descendo e foi desligado do Programa espacial.654 Enquanto o astronauta Collins permanecia no módulo Columbia, orbitando a 110km da superfície lunar, os astronautas Aldrin e Armstrong recolhiam amostras de rochas e levantavam seus instrumentos de medição. Em dado momento perceberam, para seu espanto, que não estavam sozinhos... Apavorados entraram em contato com Houston, sendo essa transmissão vetada aos meios de comunicação, mas acabou vazando mais tarde por um grupo de radioamadores, que possuíam equipamentos sofisticados que lhes permitiram interceptar o sinal e registrar os diálogos. As frases de espanto, hoje publicadas na Internet, descreviam instalações com naves espaciais pousadas na beira das crateras limítrofes: “...esses “bebês” são enormes, senhor! ... são enormes... aqui há outras naves espaciais. Estão alinhadas em fila, do lado mais distante da borda da cratera... minhas mãos tremem de tal forma que não consigo... filmar... temos apenas três tomadas de OVNIS ou o que sejam, mas podem ter velado o filme... estão pousados aqui e estão nos observando... mas esses seres podem vir amanhã e levá-los embora... seja qual for a sua forma, aquilo eram naves espaciais... não há dúvida...”655 Somente alguns anos depois, Armstrong comentaria abertamente que alienígenas teriam uma base na Lua, sendo que os mesmos alienígenas os haviam advertido para retirarem-se do local e que permanecessem longe do satélite. Numa entrevista nas dependências da NASA, Armstrong teria respondido algumas perguntas sobre a missão a um professor, sendo o conteúdo de sua resposta o seguinte: “É incrível. Certo. Sempre soubemos que havia uma possibilidade. O caso é que fomos avisados. Nunca houve dúvida sobre uma estação espacial ou uma cidade na Lua...”656 654 Idem, PROJETO VEJA, site citado. Idem. 656 Idem. 655 253 Questionado sobre o aviso dos extraterrestres, ele respondeu: “...Não posso entrar em detalhes, exceto para dizer que as naves deles eram muito superiores às nossas, tanto em tamanho como em tecnologia. E, meu Deus, como eram grandes e ameaçadoras!...” A autenticidade dos avistamentos da Apolo 11 foi atestada por testemunho atribuído ao âncora da rede de noticias CBS, Walter Cronkite. Em uma entrevista para o National Enquirer, conduzida pelo repórter Robin Leach, Cronkite fez este relato: “Na rota para o primeiro pouso na Lua do mundo, Armstrong e a tripulação transmitiram uma informação fantástica, e eu estava lá para ouvi-la. Armstrong afirmou ter visto um enorme objeto cilíndrico que estava girando ou caindo entre a nave e a lua. Está registrado oficialmente nos arquivos de registro da NASA que Armstrong indicou que foi tirar fotografias, mas o objeto desapareceu tão depressa quanto ele o tinha visto primeiro. Neil Armstrong não é um homem dado a imaginação fantástica e não foi apenas um da tripulação que viu isto – todos eles viram, e você tem que respeitar esses homens”.657 Finalmente, quando questionado a respeito das demais missões após a Apolo 11 e o conhecimento da NASA sobre a presença alienígena na Lua, Armstrong acrescentou: “Naturalmente a NASA estava comprometida e não pôde arriscar-se a provocar pânico na Terra. Porém foi uma notícia sensacional...” 658 Em agosto de 1996, jornais divulgaram uma série de fotos que teriam vazado dos arquivos da NASA. Eram fotos de OVNIS descobertas por Richard Hoagland, que declarou abertamente que a NASA escondia informações sobre a Lua. Essa opinião também é compartilhada por Edgar Mitchell, comandante da Apollo 5: “Vi documentos em que os Estados Unidos investigaram a presença extraterrestre e decidiram não revelar por acreditar que a maioria da Humanidade ainda pensa que somos o centro do universo” – comentou.659 Em julho de 2008, o mesmo astronauta, Edgar Mitchell (que foi o sexto homem a caminhar na Lua), declarou em entrevista que o fenômeno OVNI é real, que alienígenas contataram humanos várias vezes e que o acidente de Roswell660 realmente aconteceu. Além disso, afirmou que os governos têm escondido a verdade da população há mais de 60 anos. Em pronta resposta, um porta-voz da NASA afirmou que: 657 Cf. OBERG, James, “Os Incidentes OVNI da Apollo 11”, texto do capítulo 3 de “Ufos and OuterSpace Mysteries”, 1982, disponível em: http://www.ceticismoaberto.com/ufologia/oberg_apollo11.htm. 658 Cf. PROJETO VEJA, site citado. 659 Idem, PROJETO VEJA, site citado. 660 Um dos mais comentados da literatura ufológica, O Caso Roswell, ou Incidente em Roswell, diz respeito a uma série de acontecimentos ocorridos em julho de 1947, na localidade de Roswell (Novo México, EUA), em que se comenta ter sido capturada uma nave espacial e seus tripulantes mortos. 254 “... a NASA não rastreia OVNIS; a NASA não está envolvida em nenhuma espécie de operação para esconder a verdade sobre vida alienígena nesse planeta ou em qualquer lugar do universo; o Dr. Mitchell é um grande americano, mas nós não concordamos com as suas opiniões nesse assunto”. Esses fatos nos levam a concluir que o governo norte-americano mantém vasta “máquina de desinformação” que manipula opinião no seu país e ao redor do mundo. Os ex-militares e ex-cientistas da NASA estão dizendo que existem bases secretas subterrâneas, que uma nave alienígena foi resgatada. Seriam grandes patriotas que até mesmo fora da ativa ainda “asseguram a segurança do seu país” ou dizem a verdade? Se eles estão contando a verdade sobre a situação alienígena, então por que estariam permitindo isso? Por que não estão sendo impedidos pela Segurança Nacional? Dizem que as ameaças só começam quando você esta muito perto da verdade. Bem, se esse é o caso, por que é este pessoal do exército (que freqüentemente dá palestras ao redor dos EUA), revela o que sabe sem ser importunado? Se estas pessoas estão contando a verdade, talvez uma explicação para a sua imunidade seja que as autoridades saibam que a verdade será revelada cedo ou tarde. Se aquele enredo está correto, um processo de educação já é encaminhado para prevenir as massas. O fato de que a América parece estar conduzindo este “joguinho” em todos os assuntos relacionados aos Ufos que caíram na Terra, abduções alienígenas e mutilações de animais, nos faz pensar que tipo de maravilhas essa caixa de Pandora revelaria e qual seria o seu impacto na raça humana. Não há nenhuma dúvida de que eventos com Ufos estão acontecendo em países diferentes dos Estados Unidos. Nesse sentido, a indústria cinematográfica norte-americana, completamente integrada aos objetivos do governo, providenciou a confecção de filmes que acostumassem a população, incluindo a juventude, à convivência com a idéia de contato com os alienígenas. Muito desse plano sedutor e diabólico se pode ver nos filmes e na televisão: ET, Contatos Imediatos do 3º Grau, Alienígenas, V, Nação Alienígena e Guerra dos Mundos – todos eles representando a convivência com alienígenas de formas diferentes: “Nação Alienígena” mostra um cenário de alienígenas relativamente pacíficos e capazes de viver em sociedade com os humanos; “Guerra dos Mundos” contém cenário de réplicas humanóides e alienígenas vivendo subterraneamente e mostrando o conflito entre humanos e alienígenas; “ET” narra a paranóia de alienígenas extremamente amigáveis, de tal modo que vários tipos diferentes de extraterrestres são oferecidos às mentes das pessoas, que podem aceitar ou rejeitar um ou todos eles. OVNIS para católicos e protestantes Tantas evidências palpáveis, escapando do mero campo da crença, fizeram com que o tema OVNI passasse ao largo da controvérsia científica e surgisse na área religiosa como objeto de discussão. Ou seja, no século XXI já não há mais sentido em omitir-se na análise do problema, como se ele fosse privilégio de lunáticos, pouco afeitos aos apelos da razão. Como vimos, até as autoridades de governo e serviços 255 secretos vão liberando as informações imprestáveis, ou seja, aquelas que não adianta mais esconder, porque já são de domínio público... A posição de Jean Guitton, intelectual católico, serve, neste momento, para abordar o assunto, do ponto de vista religioso. Ele comenta a conduta dos humanóides, como surgem nos contatos conosco: “Curiosamente, nunca são vistos a executar suas necessidades naturais. Não resta deles mais que uma imagem, como se fossem marionetes representando ou manequins numa vitrine. São invulneráveis. Quando há luta, descarregam uma extrema energia e sempre escapam de seus interlocutores, como se quisessem e, ao mesmo tempo, temessem aparecer.”661 O filósofo chama-nos atenção para o fato de que o comportamento dos humanóides é muito semelhante àquele que a fé cristã atribui aos anjos. São, em suma, “subanjos”, um sonho obsessional e repetitivo que há trinta anos visita oficialmente a humanidade e que é radicalmente diferente de tudo o que a patologia e a psicologia nos permite conceber. E continua: “Algo que sistematiza e amplifica as faculdades paranormais do espírito. Um fenômeno paranormal no mais alto grau, que concentra de forma mítica uma série de fenômenos que até hoje eram estudados separadamente nos laboratórios.”662 Do ponto de vista religioso, Guitton assinala os temas vitais da discussão, expondo as principais perguntas que afloram no contexto espiritual: “Quem nos garante que antes desse nosso cosmos, cujo funcionamento talvez tenha milhares de anos-luz, não existiu uma infinidade de outras humanidades semelhantes à nossa? Pergunto-me como se pode conciliar o dogma da Encarnação, que é o dogma central do cristianismo, com estas humanidades tão múltiplas. Se estou só no cosmos, sinto-me angustiado por ter este privilégio, e o silêncio dos espaços infinitos me assusta. Causa-me medo ter sido o escolhido. Se, ao contrário, suponho que há milhares de Verbos Encarnados ao redor das estrelas e das galáxias, sinto-me perdido entre esta multidão. Nos dois casos minha fé vacila, tanto pela solidão como pela multidão”.663 Humildemente, foi o filósofo consultar teólogos sobre o tema que lhe esclareceram que, do ponto de vista estritamente lógico, a pluralidade de Encarnações é possível, basta que se leia o prólogo do Evangelho de João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens.”664 661 Cf. GUITTON, artigo citado, p. 72. Idem. 663 Idem. 664 Cf. Jo., 1: 1-4. 662 256 O Evangelho faz, por conseguinte, uma distinção entre o Logos em si – a segunda pessoa da Trindade – e o Logos, enquanto encarnado – Jesus de Nazaré. Deixa então a possibilidade de se conceber que o Logos pode ter-se encarnado uma outra vez. Se isto pode ter ocorrido, quem nos garante que não tenha se encarnado um número infinito de vezes no infinito do espaço e do tempo atualmente descobertos pela luneta e pelo cálculo? – pergunta Guitton. A verdade é que, quanto mais se procuram, mais se encontram estrelas acompanhadas de planetas. A partir do momento que se supõem duas encarnações, pode-se supor, também, um número infinito; não existindo, portanto, nenhuma dificuldade lógica.665 Os sofrimentos de Cristo, os terrestres, também são infinitos, porque são os sofrimentos de Deus. Mesmo havendo uma infinidade de seres livres e pecadores nas galáxias, a Encarnação terrestre bastou para salvar e elevar todos os mundos, mesmo que disso não tivessem conhecimento, por ser um conhecimento revelado. Quem sabe, outras humanidades, no infinito do tempo e espaço, não tenham conhecido o drama que vamos conhecer após vinte séculos de cristianismo?666 Do mesmo modo que corremos o risco do genocídio universal, quem sabe se outras espécies pensantes não foram destruídas pela loucura de saber e precisam agora de um socorro redentor? E Guitton afirma o seu credo: “É importante fazer como Jó, ou seja, tapar a boca com a mão e considerar que a Terra em que vivemos, a pequena história que nos é conhecida, seja pelos documentos, seja pela revelação judia e cristã, não esgota em nada a invenção, a imaginação, o poder infinito daquele que chamamos Deus e ao qual demos a onipotência e a plena invenção. O que chamamos tempo talvez não seja mais que um átomo que supõe uma infinidade de tempos anteriores, de outros cosmos e outras histórias, da mesma forma que o que chamamos de espaço talvez seja uma ilha, um recinto, existindo, quem sabe, ao lado desse espaço, hiperespaços que não podemos explorar. Em outros termos: mais do que nunca, precisamos reconhecer que o que sabemos é que não sabemos nada.”667 A pluralidade dos mundos não é contrária à fé revelada pelos livros do judaísmo e do cristianismo – concede o autor. E fica a impressão de que os humanóides são criaturas do tipo angelical, na esteira da Bíblia, que considerava os anjos como seres intermediários entre os homens e Deus, que vivem, como dizem os filósofos, na duração intermediária entre a eternidade e o tempo que se chama éon. Então, pensando na hierarquia que parte dos poderes da dominação, passando pelos Serafins e Querubins, pelos Arcanjos e os Anjos, para terminar no ser composto chamado Homem, quem sabe a hierarquia não prossiga numa espécie de submundo 665 Cf. GUITTON, artigo citado, idem, p. 72. Idem. 667 Cf. GUITTON, artigo citado, pp. 72-73. 666 257 angélico, em que os humanóides seriam suboficiais ou agentes subalternos da angeologia?668 Existe, sem dúvida, uma semelhança entre a conduta de aparições nas narrações bíblicas e a conduta dos humanóides. Nos dois casos estamos diante de seres que às vezes se manifestam e às vezes se dissimulam. Todos os problemas colocados pelos milagres e tudo o que se revela como “aparição” devemos pensá-los mais uma vez, não como uma aceitação forçada, mas entendendo que: “...representam uma zona intermediária sobre a qual, talvez, jamais tenhamos conhecimentos positivos. Para certos espíritos, entretanto, talvez seja esta a ocasião de crer que o invisível existe, e que há, como disse Shakespeare, mais coisas no universo do que nos indica nossa filosofia.”669 Da percepção de Guitton, profundamente católica e espiritualista, passamos a expor a visão protestante sobre os problemas ligados aos discos voadores e à possível visitação de seres extraterrestres ao nosso mundo, desde os tempos bíblicos. “Seriam os Escritos Sagrados normas morais desenvolvidas pelos alienígenas? As visões dos profetas e seu cumprimento foram interferências de extraterrestres? Depoimentos de “rapto”, visitações, contatos imediatos de primeiro, segundo e terceiro grau mereceriam crédito? O exemplo mais utilizado pela Ufologia encontra-se no Livro bíblico de Ezequiel. O profeta foi detalhista no relato de sua visão e expressou minuciosamente a glória de Deus. Contudo, teríamos neste livro indícios de alguma visitação alienígena? Seriam as manifestações de Deus apenas visitações extraterrestres? Visto que a Bíblia abrange toda a história humana e foi escrita durante um período de cerca de 1600 anos, tendo cerca de 40 escritores inspirados, tem portanto, demonstrado singularidade e presciência no conteúdo de Sua mensagem. Contudo, esforçam-se os ufólogos em fazer interpretações que indicam algumas passagens como “visitações”. A Palavra de Deus não tem um interesse político ou diplomático dissociado da moralidade e dos pactos instituídos com o Seu povo. Quando esses elementos políticos aparecem, são apenas conseqüências da desobediência por parte da nação de Israel, ou do desrespeito das nações para com Israel. Por outro lado, alguns ufólogos dizem que determinadas decisões governamentais são fruto de interferências alienígenas. Isto é, os extraterrestres visitavam a Terra periodicamente e comunicava alguma orientação aos povos. Isso, afirmam, foi feito aos diversos povos espalhados pelo mundo. Em outras palavras, veríamos traços alienígenas em todas civilizações. Semelhantemente, afirmam que as intervenções divinas na nação de Israel seriam intervenções alienígenas e não do Deus vivo. 668 669 Idem, p. 73. Idem. 258 Em Ezequiel capítulo 1, lemos que o profeta Ezequiel estava no meio dos cativos e teve visões: abriram-se os céus, e eu tive visões de Deus. O povo que estava com Ezequiel não teve as mesmas visões, logo não houve qualquer visitação de astronautas! Novamente no capítulo 8 do Livro de Ezequiel encontramos outro relato das visões do profeta, nessa ocasião ele estava em casa junto aos anciãos de Israel, mas somente Ezequiel foi transladado e teve a visão em espírito, das coisas ocultas em Jerusalém. Houve uma visitação de extraterrestres ou uma visão divina? Obviamente foi uma visão, pois os demais companheiros de Ezequiel não participaram, apenas ouviram seu relato. Isso contraria a afirmativa dos ufólogos, pois dizem que as visitas dos extraterrestres causavam transformações nas culturas primitivas. As Escrituras nos ensinam que a base do cumprimento das profecias bíblicas é a atuação de Deus: “Ainda veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Que é que vês, Jeremias? E eu disse: Vejo uma vara de amendoeira. E disse-me o Senhor: Viste bem; porque eu velo sobre a minha palavra para a cumprir.”670 Grandes civilizações que detêm, entre ufólogos a elite das visitações extraterrestres, desapareceram. Maias, Incas, Astecas, povos que floresceram e desvaneceram. Onde estavam os seus mentores quando chegou a adversidade? Por outro lado, tudo que as Escrituras profetizaram tem se cumprido plenamente. A Ufologia Científica depende exclusivamente de fatos, contudo, na prática, utilizam evidências circunstanciais: fotos, filmes, impressões no corpo, na terra, em plantações. Evidências que são, em primeira mão, inusitadas. Mas desbaratadas com o tempo e esclarecimento. Essa é a posição do respeitado cientista Carl Sagan, que embora cria em vida extraterrestre, e procurasse investir em sua busca, através de comunicação por sofisticados aparelhos, a ponto de criar um centro de escuta intergalático, admitiu que nunca conseguiu sequer um contato bem sucedido. Carl Sagan fundou a Planetary Society, uma renomada instituição na vanguarda do rastreamento de sinais de vida fora do nosso planeta. O projeto Search for Extraterrestrial Intelligence (SETI), ou Busca por Inteligência Extraterrestre, não alcançou êxito. Em Socorro, Novo México, encontra-se o Very Large Array (VLA) é um aglomerado de vinte e sete radiotelescópios conectados eletronicamente, como se fossem um único telescópio do mesmo tamanho até nos menores elementos, ou um radiotelescópio de dezenas de quilômetros de extensão. Toda essa estrutura científica não conseguiu localizar outras civilizações alienígenas, quer inferiores quer superiores, ou mesmo algum planeta que tenha semelhanças com o planeta Terra. Esperava-se que as mensagens ufológicas refletissem cultura altamente desenvolvida, principalmente na área científica. Contudo, não é isso que propagam. Suas mensagens refletem idéias ocultistas, principalmente tentando atingir as Escrituras como sendo espúrias. Depois de observarmos diversos livros, revistas e jornais que propagam a ufologia, obtemos um extrato de suas afirmações, vejamos algumas: 670 Cf. Jr., 1: 11-12. 259 Acusam a Bíblia de falsidade, no entanto, usam diversas passagens para indicar a existência de OVNIS. Algumas supostas mensagens de alienígenas interpretam as Escrituras de uma forma particular, atribuindo-lhes a autoria; Afirmam que os mentores galácticos aguardam algum tipo de adoração por parte dos habitantes da Terra; Atribuem ao homem uma capacidade divina, que deve ser desenvolvida através de exercícios, meditações, amuletos e marcas. Aguardando um advento de centenas de naves alienígenas que conduziram a humanidade a uma nova era; Aguardam uma nova era, quando o ser humano ultrapassará as fronteiras do conhecimento. A constituição de um código civil mundial que trará paz ao planeta. O auto conhecimento libertará o homem, ou o divinizará; Deus, o homem, e os animais fazem parte da mesma essência divina e material; portanto, é necessário um místico respeito ecológico; Entidades alienígenas e/ou espirituais estão agora presentes para ajudar a humanidade a ajustar-se à Nova Era de avanço espiritual. Essas correntes negam ou omitem o pecado, a real condição do homem e, portanto não tem nenhum plano de salvação que inclua o arrependimento, fé e santificação. Tanto aqueles que afirmam falar com ‘anjos’ quanto os que afirmam que falaram com ETs têm as características acima. Os conceitos de pecado, e condição geral da humanidade parecem muito com as atuais filosofias materialistas e liberais. O imaginário popular adquiriu um espaço sem fronteiras em grande parte devido às viagens espaciais, ficção cientifica e a indústria cinematográfica. Além disso, onerosos projetos científicos estão em operação, buscando com verdadeira seriedade encontrar vida e inteligência nos espaço sideral. Em resultado disso, está ficando cada vez mais difícil para as pessoas, especialmente os jovens, dizer onde termina a ciência e onde começa a ficção. A existência de seres extraterrestres e a possibilidade de se comunicar com eles e de ser influenciado por eles invadiram sutilmente a mente das pessoas, como que pela porta dos fundos. As Escrituras afirmam que a Terra era sem forma e vazia, essa condição verificamos também nos planetas vizinhos e naqueles que podem ser observados por diversos meios. Encontramos a mesma condição quando observamos fotos dos planetas de nosso sistema solar. Por outro lado as Escrituras admitem que existe vida fora da terra. O apóstolo Paulo relatou que além de haver vida fora da terra, ela está em luta com o ser humano. Em sua carta aos Efésios (6.12) ele escreveu: “Porque não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais. As Escrituras também advertem dos riscos do envolvimento com entidades espirituais: Vós bem sabeis que éreis gentios, levados aos ídolos mudos, conforme éreis guiados.”671 671 Cf. 1 Co., 12: 2. 260 As Escrituras admitem a existência de outros seres, além dos humanos, e até mesmo atribui-lhes poder sobre-humano. Mas não encontramos afirmação de seres que residam em outros planetas. Entretanto, afirma a Bíblia a existência de dois níveis de habitat, o terrestre e o celestial. Por outro lado, alguns professos cristãos, liberais, afirmam que existem outros mundos habitados e estes talvez fossem também visitados por Jesus, onde, morrendo por tais extraterrestres, poderia alcançá-los, salvando-os. Assim, seria apenas uma repetição do que aconteceu a cerca de dois mil anos. Imagine diversos mundos que também foram visitados por Jesus, onde viveu e morreu sacrificialmente. Para tais liberais, esta seria uma resposta plausível e até provável. Encontramos alguns problemas no contexto bíblico, que não podemos deixar de considerar. Primeiro, a morte de Cristo para o perdão de pecados é única: assim também Cristo, tendo-se oferecido uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o aguardam para a salvação672 A manifestação de Cristo é impar, primeiro para tirar o pecado e uma segunda vez, para aqueles que O aguardam. Interferir Deus na criação diversas vezes em mundos diferentes através de Cristo está fora do contexto bíblico. Se existissem outros mundos, estariam sujeitos ao juízo que está ocorrendo no céu (devido à rebelião de satanás) e ao juízo que advém sobre a terra (devido à condição caída da humanidade), sem ao menos ser citado no contexto bíblico? Em um vasto universo, não poderia Deus criar outros mundos? Sim, mas, temos que concordar que houve um princípio, um início criativo. E segundo as Escrituras a seqüência da criação é bem conhecida: No princípio criou Deus os céus e a terra. Nos céus Deus criou os anjos, em diversos níveis e na terra Deus criou a natureza, os animais e finalmente o homem. Notamos a citação clara da criação dos animais, répteis e aves. Se houvesse outros mundos, isso seria relevante e seria registrado. Somente encontraremos no Universo três naturezas, a Divina, que somente subsiste na Trindade; a celestial que se aplica a todas as classes de anjos; e a humana. Uma quarta natureza está sendo preparada, a natureza incorruptível dos santos, (mortos e vivos) que na manifestação do Senhor Jesus adquirirão. Encontramos duas ferramentas para identificar os OVNIS: primeiramente pelo equivoco daqueles que tiveram a experiência, e então pelos frutos. A identidade das engenhocas espaciais que aparecem podem ser identificadas na seguinte ordem: 672 confusão com o planeta Vênus, este planeta é o mais brilhante para o observador comum, transmite a impressão que está rodando rapidamente no seu eixo; balões meteorológicos; meteoros; aviões ou helicópteros; parélio, isto é, mancha brilhante que aparece em um lado do sol; Cf. Hb., 9: 28. 261 equivoco nos relatos, a dificuldade relatar o que realmente viu contribui para uma interpretação errônea e carregada de imaginação; paranormal, além da hipnose, atribuindo elementos ocultistas. A segunda ferramenta de identificação são os frutos. Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos?673. Que fruto estão produzindo tais “aparições”? Os seus ensinos, conforme comentamos acima, demonstram que toda a árvore, isto é, todo o assunto relacionado com OVNIS está comprometido com o ocultismo, portanto condenado pelas Escrituras. Outra característica comum das aparições dos supostos seres extraterrestres é a deformidade física: cabeças desproporcionais ao corpo, pele desbotada, olhos exagerados ocupam 30% da cabeça; corpo minúsculo e falta de comunicação oral, enfatizando os poderes telepáticos. Alias, a telepatia sempre é o meio de comunicação com os terrestres, talvez esta seja a razão da necessidade de hipnose para comunicar com supostos alienígenas. Em fim, as “criaturas” que aparecem nas retratações daqueles que afirmaram ter visto algum extraterrestre não passam no crivo das Escrituras, pois Deus ao criar, sempre testificou que sua criação era boa. Vemos uma bela criação, desde a grande variedade de paisagens no planeta, como uma variedade de animais e vegetais que transmitem um belo visual e até mesmo a harmonia de sons, quando voltamos nossa atenção para os pássaros. Coroando a criação Deus criou o homem e a mulher. Definitivamente, os supostos seres extraterrestres não trazem a assinatura de Deus – o belo.674 Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas; sobre a terra, angústia entre as nações em perplexidade por causa do bramido do mar e das ondas675”.676 O que se percebe bem da manifestação protestante, transcrita acima, é que existe uma condenação do ocultismo e do misticismo por serem antibíblicos, um certo prazer com a ausência de provas cabais sobre a realidade extraterrestre e a afirmação de que a Encarnação do Cristo na Terra é realmente única, sem a possibilidade de ter sido repetida em outras civilizações ou mundos. Além de Deus não haver criado outros mundos porque esse fato não aparece no Gênesis, os relatos de aparições e visitações de UFOS são ilusórios e os humanóides não podem existir porque são feios, indignos da criação divina. Ah! – ia me esquecendo –, e a Bíblia não tem contradições e deve ser entendida em seu sentido literal, até por cientistas... Mas o mais surpreendente nesta pós-modernidade foi a declaração recente da Igreja católica, sem desmentido de qualquer porta-voz do pontificado conservador de Bento XVI, sobre a existência dos extraterrestres. 673 Cf. Mt., 7: 16. Cf. Gn., 1: 4,10,12,18,21,25,31. 675 Cf. Lc., 21: 25. 676 Cf. Marcio Souza é consultor teológico do Ministério CACP e um dos comentaristas da Bíblia apologética, entre outras. Os últimos parágrafos são transcrição quase que completa de seu artigo sobre a posição protestante em relação ao fenômeno ufológicos. 674 262 Sem nenhum fato jornalístico que servisse de “gancho”, sem pretexto religioso ou qualquer ocorrência ofensiva de avistamento de OVNIS, o diretor do observatório astronômico do Vaticano, padre José Gabriel Funes, afirmou em 2008 que Deus pode ter criado seres inteligentes em outros planetas do mesmo jeito como criou o universo e os homens.677 O diretor do observatório conhecido como “Specola Vaticana” observou, em entrevista ao jornal L’Osservatore Romano, órgão oficial de imprensa da Santa Sé: “Como existem diversas criaturas na Terra, poderiam existir também outros seres inteligentes, criados por Deus. Isso não contradiz nossa fé porque não podemos colocar limites à liberdade criadora de Deus”.678 O padre Funes, jesuíta argentino de 45 anos de idade, também cita São Francisco ao dizer que possíveis habitantes de outros planetas devem ser considerados como “nossos irmãos” (portanto, ao contrário da visão protestante acima divulgada, não são “feios”): “Para citar São Francisco, se consideramos as criaturas terrestres como ‘irmão’ e ‘irmã’, por que não poderemos falar também de um ‘irmão extraterrestre’? Ele também faria parte da criação.”679 Na opinião do astrônomo do Vaticano, podem existir seres semelhantes a nós ou até mais evoluídos em outros planetas, ainda que não haja provas da existência deles: “É possível que existam. O universo é formado por 100 bilhões de galáxias, cada uma composta de 100 bilhões de estrelas, muitas delas ou quase todas poderiam ter planetas. Como podemos excluir que a vida tenha se desenvolvido também em outro lugar? Há um ramo da astronomia, a astrobiologia, que estuda justamente este aspecto e fez muitos progressos nos últimos anos.”680 Segundo o cientista, estudar o universo não afasta, mas nos aproxima de Deus, porque nos abre o coração e a mente e ajuda a colocar a vida das pessoas na “perspectiva certa”. Padre Funes diz ainda que teorias como o Big Bang e o evolucionismo de Darwin, que explicam o nascimento do universo e da vida na Terra, sem fazer relação com a existência de Deus, não se chocam com a visão da Igreja: “Como astrônomo, eu continuo a acreditar que Deus seja o criador do Universo e que nós não somos o produto do acaso, mas filhos de um bom Pai. Observando as estrelas, emerge claramente um processo evolutivo, e este é um dado cientifico, mas não vejo nisso uma contradição com a fé em Deus.”681 Cf. “Vaticano admite que pode haver vida fora da Terra, Diretor de observatório da Santa Sé diz que não se pode limitar ação criadora de Deus”, in BBC em Português, 14/05/2008. 678 Idem, artigo citado. 679 Idem. 680 Idem, cf. “Vaticano...”, BBC em português, artigo citado. 681 Idem. 677 263 Diretor da Specola Vaticana desde 2006, padre Funes lembrou que astrônomos do Vaticano fizeram importantes descobertas como o “raio verde”, o quase resolvido rebaixamento de Plutão e trabalhos em parceria com a NASA, por meio do centro astronômico do Vaticano em Tucson, nos Estados Unidos. A sede do observatório do Vaticano se localiza em Castelgandolfo, cidade próxima de Roma, onde fica situado o palácio de verão do papa, desde 1935. Na visão do religioso, estudar astronomia não leva necessariamente ao ateísmo: “É uma lenda achar que a astronomia favoreça uma visão atéia do mundo. Nosso trabalho demonstra que é possível fazer ciência seriamente e acreditar em Deus. A Igreja deixou sua marca na história da astronomia.”682 O interesse dos pontífices pela astronomia surgiu com o papa Gregório XIII, que promoveu a reforma do calendário em 1582, dividindo o ano em 365 dias e 12 meses e introduzindo os anos bissextos. Mas, na verdade, a Santa Sé conhece a realidade dos UFOs há vários séculos. A Enciclopédia Católica, editada pelo Vaticano e porta-voz do pensamento oficial da Igreja de Roma, trata deste assunto no capítulo intitulado “Habitacional dos Mundos”. O texto diz que a doutrina apostólica não afirma nada explicitamente sobre a existência dos UFOs, mas esclarece que se um dia a Ciência conseguir provar que em outros planetas ou estrelas existem seres racionais como os humanos, serão todos obras divinas. E ainda afirma que “a Filosofia explicará a origem destes homens do mesmo modo que elucidou a nossa, recorrendo ao argumento da causalidade que postula o Ser Criador. E a Teologia nos convidará a glorificar a grandeza, bondade e prodigalidade infinita de Deus.”683 Hoje, o Vaticano está presente em mais de 200 países, ainda mantendo as tradições de atuar diretamente com o povo, sejam quais forem as etnias, costumes locais ou mesmo as religiões que manifestem. Não há uma única comunidade na Terra que não tenha um padre ou outro membro da Igreja Católica. Assim, há muito tempo os obreiros do Vaticano vêm coletando e analisando relatos dos fiéis, em todo o mundo, que têm sido submetidos a observações de UFOs e contatos com seus tripulantes.684 Antes do padre Funes, porém, o monsenhor Corrado Balducci, respeitado e admirado em todo o mundo católico e noutras searas, além de amigo íntimo do papa João Paulo II, causou grande agitação no meio ufológico com declarações que arrepiaram a ala conservadora da Igreja. O monsenhor vem falando nisso há 20 anos, mas resolveu também afirmar as suas convicções, num momento em que autoridades religiosas do Vaticano começaram a falar sobre a questão dos OVNIS abertamente, porque muito sabem sobre o assunto e sobretudo que o tema pode explodir e não ser prudentemente avaliado. Comentou ele: “A Bíblia não se refere diretamente aos extraterrestres, mas também não os exclui. A realidade dos Ufos é muito provável no infinito mistério da criação. Os religiosos também são abertos a este tema e muitos deles tiveram 682 Idem. Cf. “Depois do homem na Terra, Deus criou os extraterrestres”, disponível em: http://www.ufo.com.br/index.php?arquivo=notComp.php&id=3721. 684 Idem, site citado. 683 264 experiências com objetos não identificados. A vida fora da Terra é evidente e sua existência não pode ser ignorada. Não podemos ficar alheios a estas descobertas, que têm grande significado para a Humanidade!”685 Mas o monsenhor vai mais longe ao criticar as pessoas que não acreditam no fenômeno, fazendo referência ao grande número de contatos e de testemunhos que há em todo o mundo – inclusive de católicos. Ele respeita o empenho de pesquisadores em desvendar o enigma dos Ufos, mas deixa claro que o Vaticano ainda não se envolverá oficialmente com a questão.686 Entre os ufólogos, alguns religiosos, e também em reservados círculos científicos, não é novidade nenhuma que tanto a Bíblia e seus apócrifos, quanto os livros sagrados de outras religiões, como o hinduísmo e o budismo, estão repletos de relatos sobre esses seres e suas máquinas voadoras, e que seus feitos são, na maioria, provas incontestáveis de uma origem alienígena. Outra questão a se levantar é o fato de que tanto essas escrituras, quanto às conclusões de estudiosos que ousaram tocar no tema ufológico-religioso, serem constantemente evitados por exegetas clericais. No entanto, para a Ufologia, a questão está exatamente aí: quem é Deus e quem são esses auxiliares que tanto influenciaram os protagonistas da Bíblia? Considerando-se que nela mesmo, em Gênesis, os evangelistas se referem a Deus em hebraico, por meio da palavra Elohim, que significa deuses, no plural, e não Eloah, no singular, como seria o correto – podemos ter uma idéia da variedade de líderes e suas falanges celestes que nos visitaram no passado.687 O Código da Bíblia, um programa de computador... Outra posição pós-moderna que vem provocando debates acalorados, é a possibilidade de a Bíblia, principalmente nos cinco primeiros livros, o Pentateuco de Moisés, ou Torá, bem como em alguns livros proféticos, com os de Isaías e Daniel, possuir um código secreto, que, além de prever eventos da história contemporânea, poderia descrever por “palavras-chave” o futuro de cataclismos mundiais, tão a gosto dos conspiradores, admiradores de profecias e anunciadores do fim do mundo. A divulgação mundial da descoberta de um código contido na Bíblia judaica (Antigo Testamento) veio através de um livro intitulado de “O Código da Bíblia”, escrito por um jornalista americano chamado Michael Drosnin, que foi o divulgador do assunto. Todavia Drosnin é apenas o canal da informação, pois o verdadeiro descobridor é um cientista judeu, chamado Dr. Eliyahu Rips, que reside há mais de vinte anos no estado de Israel e que atualmente é professor na Universidade Hebraica 685 Idem. Idem, site citado. 687 Cf. “Os evangelhos segundo a Ufologia”, http://www.ufo.com.br/index.php?arquivo=notComp.php&id=3725. 686 disponível em: 265 da capital Jerusalém. Esta revelação selada permaneceu oculta por cerca de 3200 anos e, desde o ano de 1997, as comunidades científica e judaica estão alarmadas com a descoberta de informações que vieram à tona graças à descoberta do computador.688 A “prova” da autenticidade desta descoberta consistiria na precisão de mais de mil fatos que aconteceram, com detalhes e datas, tudo codificado nos cinco livros de Moisés, tais como: o assassinato de dois membros da família Kennedy, o atentado à bomba de Oklahoma, a eleição de Bill Clinton, tudo desde a II Guerra Mundial até o caso Watergate, do Holocausto Nazista até a bomba de Hiroshima, da chegada do homem à Lua até a queda de um cometa em Júpiter, a descoberta da data da Guerra do Golfo vinte e um dias antes de ela acontecer, a data do assassinato de Ytzhak Rabin mais de um ano antes do crime ter ocorrido em Tel-Aviv. O interessante é que aparece a surpreendente descoberta de que em cada profecia do Antigo Testamento, apesar de os judeus não aceitarem a Jesus como o Messias, aparece no código a seguinte frase: “O meu nome é Jesus, Eu sou o Messias”. Contudo, o código apresenta três fatos que, na seqüência das informações, ainda não aconteceram, ou seja, ao apresentar a I e a II Guerras Mundiais com todos os detalhes, com as datas e os nomes dos envolvidos, na seqüência, quando menciona o sobrenome do ex-ministro de Israel, Benjamim Netanyahu, e da palavra Jerusalém, o código apresenta as seguintes frases: Dia da III Guerra Mundial; Todo o seu povo irá para a guerra; Holocausto atômico em Jerusalém; 9 de Av - 5760/5766 (calendário judaico689), que traduzido para o nosso calendário gregoriano seria em torno de 25 de julho de 2000/2006. O calendário judaico, todavia, não tem vogais para se saber a relação entre 2000 e 2006. Alem disso, o código apresenta vários terremotos, desde os que aconteceram há muito tempo até os mais recentes. Por exemplo, o maior terremoto do mundo, que aconteceu na China em 1976, na cidade de Tang Chan, onde mais de 800.000 chineses morreram. E continuando, apresenta mais três grandes terremotos, dois deles entre os anos de 2000 e 2006, sendo um na China e outro no Japão, e um outro em Los Angeles (EUA) com informações que, segundo o código, indicam o total desaparecimento da cidade do mapa, em 2010. O código também menciona o choque de um cometa com o planeta Júpiter, que aconteceu em 1994. Na seqüência, aparece a queda de três cometas gigantescos no planeta Terra, a primeira, em 2006, a segunda, em 2010, e a terceira, em 2012, sendo que nesta última profecia o cometa se esfacelará antes do choque. A predição de dois cometas caindo na Terra encontra-se no Livro das Revelações (Ap., 8: 8-10). 688 Cf. “O Código da Bíblia”, disponível em: http://www.misteriosantigos.com/codbiblia.htm. 689 O calendário judaico começa em 3.760 antes de Cristo. 266 No final do século XVIII, um sábio judeu, conhecido como Genius de Vilna, referindo-se à Torah, os cinco primeiros livros da Bíblia, afirmou: “A regra é que tudo o que foi, tudo o que é e tudo o que será, até o fim dos tempos, está incluído na Torah da primeira à última palavra. E não só num sentido geral, mas nos detalhes de cada espécie e de cada um individualmente, com detalhe dos detalhes de tudo o que lhe aconteceu desde o dia de seu nascimento até sua morte.”690. Transcorria a Segunda Grande Guerra Mundial, quando um rabino da Tchecoslováquia chamado H. M. Weissmandel, movido pelo desejo de encontrar um possível código na Bíblia, começou a contar as letras hebraicas da Torah. Já no primeiro capítulo de Gênesis, notou que, saltando 50 letras e depois outras 50, e assim por diante, soletrava-se a palavra “torah”. Admirado, viu que o mesmo resultado podia ser encontrado nos demais livros que a compõem. Este surpreendente resultado, que não lhe pareceu casual, levou-o a escrever um pequeno livro, referindo-se à descoberta. Cinqüenta anos depois, o Dr. Eliahu Hips, um matemático de fama mundial, que é catedrático na Universidade de Jerusalém, tomou conhecimento do livro através de um rabino, cuja única cópia podia ser encontrada na Biblioteca Nacional de Israel. Curioso, Hips foi em busca do exemplar e pôde comprovar o fato nele relatado em sua própria Bíblia. Hips lembrou-se de outros cientistas que, muito antes dele, haviam investido tempo à procura de um possível código na Bíblia. Isaac Newton fora um deles. Newton, que havia imaginado a mecânica do sistema solar, havia descoberto a força da gravidade, aprendeu o hebraico, e passou metade de sua vida tentando descobrir um código que acreditava existir. O Dr. Eliahu Hips possuía uma grande vantagem sobre Newton, uma ferramenta poderosa, o computador: “Quando recorri ao computador” – afirmou Hips – “achei a brecha. Encontrei palavras codificadas, numa quantidade muito maior do que o permitido pelo acaso randômico da estatística, e então soube que estava chegando a algo de real importância: (...) o Antigo Testamento está codificado.”691 Juntaram-se ao Dr. Eliahu Rips na pesquisa dois outros eruditos judeus, Doron Witztum e Yoav Rosenberg. Desenvolveram então um sofisticado modelo matemático que, quando implementado por computador, confirmava que o Antigo Testamento, não só a Torah, continha mensagens codificadas. Prepararam inicialmente uma tese denominada “Seqüências Alfabéticas Eqüidistantes no Livro de Gênesis”, que indicava que informações ocultas estariam entremeadas no texto do Gênesis sob a forma de 690 Cf. DROSNIN, Michael, O Código da Bíblia, p. 18, tradução de Merle Scoss, 6ª edição, São Paulo, Editora Pensamento-Cultrix, 2004, apud. http://www.misteriosantigos.com/codbiblia.htm. 691 Cf. DROSNIN, op. cit., p. 21, site citado. 267 seqüências alfabéticas, formando palavras com sentidos correlatos em estreita proximidade.692 Certificou-se o matemático de que o código da Bíblia “era real”, percebendo que havia informações codificadas sobre o passado e o futuro, fixadas matematicamente, além do mero acaso. Codificada do começo ao fim, num gigantesco sistema de palavras cruzadas, a Bíblia revelava acontecimentos que ocorreram após ela ter sido escrita, com palavras que se conectam para contar uma história oculta.693 Na experiência inicial – em toda a Torah e, depois, em outros livros da Bíblia – todas as 304.805 letras hebraicas que a compõem foram reunidas694, formando um único fluxo, sem nenhum espaço, como originalmente o texto fora escrito. Organizaram o texto num quadrado perfeito, havendo tanto nas linhas horizontais como nas verticais, a mesma quantidade de letras, exceto na última linha. Foi nesse quadrado que o código começou a ser revelado, primeiramente no livro do Gênesis, depois em toda a Torah, em palavras cruzadas que, na tela do computador, eram organizadas em diferentes cores.695 Ao observarem que algumas palavras se iniciavam na extremidade do texto, dando continuidade na outra, resolveram unir essas extremidades, formando um cilindro, no qual a primeira linha se uniria à segunda, a segunda à terceira, e assim continuamente, até alcançarem a linha final. Com esse modelo, qualquer palavra que surgisse, poderia ser lida numa única seqüência. Para confirmarem a não casualidade das revelações que poderiam encontrar codificadas na Bíblia, os pesquisadores submeteram ao teste outras obras, entre elas a versão hebraica de Guerra e Paz, de Tolstoi, que tem a mesma dimensão da Torah. Em todas as experiências realizadas nessas obras, o resultado foi nulo, sem a presença de nenhum código.696 A experiência final foi buscar nomes de personagens importantes da história do judaísmo, desde os dias bíblicos até nossos dias, uma relação com 32 nomes. Ficaram impressionados com o resultado: além do nome de cada um deles, podiam ver as datas em que nasceram e morreram. Matematicamente falando, as probabilidades de encontrar essas informações codificadas eram de 1 em 10 milhões!697 Tomaram então os 32 nomes e as 64 datas e as misturaram em 10 milhões de combinações diferentes, de modo que 9.999.999 seriam incompatíveis e só um emparelhamento seria correto. Eles então rodaram esse programa no computador, para ver quais dos 10 milhões de exemplos alcançariam melhor resultado e só os nomes e as datas corretas se uniram na Bíblia.698 692 Idem, pp. 21-22. Cf. DROSNIN, op. cit., pp. 23-24. 694 O computador dividiu o Antigo Testamento – todo o fluxo de 304.805 letras em 64 fileiras e 4.772 letras. Cf. DROSNIN, op. cit., p. 27. 695 Idem, p. 25. 696 Idem, site citado. 697 Cf. DROSNIN, p. 22. 698 Idem. 693 268 Harold Gans, um decodificador da Agência de Segurança Nacional, dos Estados Unidos, ouviu com incredulidade sobre a descoberta dos israelenses e procurou-os, com o intento de desmascarar o código da Bíblia, que, para ele, não passava de uma farsa. Gans preparou o próprio programa de computador e, ao submeter o livro de Gênesis ao teste, surpreendeu-se ao ver os nomes dos 32 personagens, acompanhados pelas datas de nascimento e morte. Dominado pelo fato curioso, indagou sobre a possibilidade de encontrar junto aos nomes desses personagens, os nomes das cidades em que viveram. O resultado foi fantástico: ali estavam as cidades nomeadas ao lado de cada sábio. Desta maneira, o primeiro a tentar desmascarar o código da Bíblia, acabou comprovando-o.699 Depois de descobrir uma infinidade de nomes de pessoas, acontecimentos e datas que marcaram a história da humanidade, o Dr. Eliahu Rips e amigos começaram a indagar se aquele código da poderia indicar-lhes acontecimentos futuros. Por essa ocasião, no final de dezembro de 1990, nações do Ocidente, lideradas pelos Estados Unidos da América, formavam um grande cerco contra o Iraque, devido a invasão recente ao Kuwait. Rips procurou pelo nome de Sadam e ficou espantado com o que surgiu na tela do computador. Ali estavam, destacadas em cinco cores diferentes, num padrão de palavras cruzadas, o nome de Sadam Hussein, acompanhado por surpreendentes revelações: Inimigo, Ele escolheu um dia, Guerra, Míssil, Fogo no Terceiro Dia de Shevat ( 18 de janeiro de 1991).700 Pela primeira vez o código revelava um acontecimento vinculado a uma data ainda futura. Foram três semanas de muita expectativa. Ao chegar o dia marcado no código, Rips, como toda a população de Israel achavam-se de sobreaviso para um possível ataque do Iraque. Confirmou-se naquele dia aquela previsão que fora codificada na Bíblia há mais de 3.000 anos, quando caiu sobre Tel Aviv o primeiro de uma série de mísseis scuds lançados sobre Israel. Rips, tomado por um sentimento de reverência, concluiu que Deus lhe descerrara o código da Bíblia, com o propósito de provar aos incrédulos a importância das Sagradas Escrituras, e ao mesmo tempo, alertar para grandes acontecimentos que se aproximavam. Dada a importância de sua descoberta, conscientizou-se de que teria de ser amplamente publicada, para que todo o mundo pudesse conhecer as revelações, mas não sabia como isso haveria de acontecer. Visitou-o naqueles dias, Michael Drosnin, jornalista e repórter do jornal Washington Post. Depois de ouvir de um amigo sobre a surpreendente descoberta de Rips em relação à guerra do Golfo, Drosnin, que era ateu, tomou uma Bíblia que estava sobre a mesa, desafiando Rips a mostra-lhe a tal profecia sobre o Iraque. Sorrindo, Rips disse-lhe que o código da Bíblia, somente podia ser lido através do computador. Cheio de incredulidade, Drosnin viu Rips digitar o nome de Sadam no espaço para busca. Surgiu em instantes o impressionante resultado. Rips fez o mesmo teste em 699 700 Idem, pp. 22 e 23. Cf. DROSNIN, p. 19. 269 Guerra e Paz, e nada apareceu. Drosnin estava pasmado. Aquilo era uma prova de que uma inteligência muito superior à nossa, foi capaz de codificar dentro de um texto tão amplo como a Torah, acontecimentos futuros. Drosnin, que jamais se interessara pela Bíblia, decidiu investigar em seu computador o código. Rips forneceu-lhe para tanto todos os disquetes com o programa de procura e os textos da Torah e Guerra e Paz. Retornando aos Estados Unidos, Drosnin não pensava em outra coisa, passando longas horas em sua pesquisa. Depois de rever tudo o que já havia sido encontrado, ele começou a fazer as próprias buscas. Em maio, de 1994, Drosnin ficou surpreso com o que encontrou. Ele havia lido sobre o cometa Shoemaker-Levi, que segundo a previsão dos astrônomos haveria de chocar-se com Júpiter no dia 16 de julho daquele ano, dois meses depois. Ao procurar por Júpiter , encontrou-o numa seqüência horizontal, e cruzando-o em linha perpendicular, numa representação gráfica da queda do cometa, estava o seu nome completo, acompanhado pela mesma data que fora anunciada pelos astrônomos, o que veio a se cumprir com precisão.701 Falando sobre o efeito desta descoberta em sua vida, Drosnin afirmou: “Esta descoberta foi tão dramática que me fez voltar a acreditar em tudo. Durante aqueles dois anos de investigação, eu estava sempre me perguntando: – Será que isso é mesmo verdade? Teria alguma inteligência não-humana realmente codificado a Bíblia? Cada manhã eu acordava duvidando de tudo, apesar das provas esmagadoras.”702 Drosnin compreendeu que a ausência de uma única letra na Torah, anularia todo o esquema. O próprio Yoshua (Jesus), referindo-se à integridade da Lei, que é a Torah, jurou: “Em verdade vos digo que até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til se omitirá da Lei, sem que tudo seja cumprido.”703 Pouco tempo depois de encontrar no código da Bíblia a surpreendente revelação sobre o cometa Shoemaker-Levi, Drosnin ficou profundamente abalado, quando, ao digitar o nome de Ytzhak Rabin, viu surgir na tela, atravessando o seu nome, na única vez em que aparece, em saltos de 4.772 letras, a sentença “Assassino que assassinará”. Junto à sentença, encontrava-se o ano judaico 5.756, que começaria em finais de 1995. Naquela mesma noite, 1º de setembro de 1994, Drosnin voou para Israel com o propósito de alertar o primeiro- ministro, tentando preveni-lo para que evitasse esse trágico fim.704 Rabin não levou a sério a advertência. Um ano depois, em 4 de novembro de 1995, confirmou-se a trágica previsão, no início do ano indicado. Somente então, Drosnin e Rips, descobriram que próximo ao nome de Rabin, encontravam-se codificadas outras informações relacionadas ao crime, incluindo o nome da cidade Tel Aviv e o nome do assassino Amir. 705 701 Cf. DROSNIN, op. cit., p. 35. Idem, p. 35. 703 Cf. Mt., 5: 18. 704 Cf. DROSNIN, p. 28. 705 Idem. 702 270 Israel, sensibilizada com o assassinato por um judeu ortodoxo, estava disposta a eleger Shimon Perez como novo primeiro-ministro, um dos arquitetos da paz com os palestinos. Concorria com ele um oponente da paz, chamado Netanyahu, cujas possibilidades de sair vitorioso nas eleições, eram mínimas, até que começaram a ocorrer atentados. Sua pregação contra os palestinos começou a ganhar força entre os israelenses, mas uma grande maioria ainda parecia apoiar a paz. Uma semana antes da histórica eleição de 29 de maio de 1996 em Israel, Drosnin que era favorável à pacificação de Shimon Peres, procurou no código da Bíblia pelo seu nome e nada foi revelado com relação a uma possível vitória. Experimentou então Netanyahu, e viu surgir para sua surpresa: primeiro-ministro Netanyahu, eleito, Bibi. Bibi é o seu apelido em Israel.706 Quando se confirmou a vitória de Netanyahu, Drosnin, juntamente com o Dr. Eliahu Rips, fizeram minuciosa procura no código da Bíblia, e ficaram surpresos ao verem que o nome do novo primeiro-ministro se encaixava justamente entre Yitzhak Rabin, seu assassino Amir, logo acima da frase “todo o seu povo para a guerra”.707 Com profundo temor, depois de lerem na tela do computador, associadas ao nome de Netanyahu, as duas espantosas palavras: “holocausto atômico”, eles procuraram descobrir o que revelariam estas mesmas palavras em formações de saltos aritméticos diferentes. Na primeira experiência encontraram: “holocausto atômico, no fim dos dias”. Depois encontraram: “fim dos dias, pragas, salvem!”708 O código da Bíblia revelou-lhes finalmente a mais espantosa de todas as revelações. Drosnin descreve esta descoberta com as seguintes palavras: “Quando abrimos o código em busca da Terceira Guerra Mundial, descobrimos que o ano em que ela poderia começar estava predito num pergaminho de 22 linhas que é a essência da Bíblia. Tal pergaminho é chamado Mezuzah.” 709 Contém 170 palavras que, dentre todas as 304.805 letras dos cinco livros originais da Bíblia, Deus ordenou fossem mantidas num rolo de pergaminho em separado e colocado na entrada de cada residência. Em 5760 e em 5766, os anos 2000 e 2006, estão codificados naquelas 170 palavras. “Guerra Mundial” na única vez em que está codificada em toda a Bíblia, aparece no mesmo trecho, e cruza um dos versículos sagrados. “Holocausto atômico”, na única vez em que está codificado na Bíblia, também aparece junto com os dois mesmos anos nos mesmos versículos do pergaminho... E no local em que os anos 2000 e 2006 estão codificados, o texto oculto do pergaminho sagrado alerta-nos sobre a guerra: “bombardearão seu pais, terror, devastação, está sendo lançada”.710 O pergaminho sagrado conhecido como Mezuzah, que em suas 170 palavras hebraicas contém codificadas tão sérias predições, consiste no texto de Deuteronômio 6: 4-9, que diz: 706 Cf. DROSNIN, op. cit., pp. 71-72. Idem, p. 74. 708 Idem, p. 90. 709 Idem, p. 123. 710 Cf. DROSNIN, op. cit., pp. 123-124. 707 271 “Ouve, Israel: o Senhor teu Deus é o Único Senhor. Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de toda a tua força. Estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração. Tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, andando pelo caminho, deitando-te e levantando-te. Também as atarás na tua mão por sinal, e te serão por faixa entre os teus olhos. E as escreverás nos umbrais da casa, e nas portas”. Drosnin continua: “Não poderia ser por mero acaso que os anos mais claramente codificados junto com “Guerra Mundial” estivessem, ambos, ocultos nas 170 palavras que foram preservadas num rolo de pergaminho em separado durante três mil anos, e ainda hoje são presos ao umbral da porta de quase todos os lares em Israel. Se uma simples letra estiver faltando, um Mezuzah não pode ser utilizado. “Alguém” queria ter absoluta certeza de que, não importa o que pudesse acontecer ao restante da Bíblia, essas 170 palavras, esse rolo de pergaminho seria preservado, tal como originalmente escrito, com seu código intacto.”711 Para enfatizar a seriedade das advertências reveladas no texto da Mezuzah, Drosnin conclui: “E aquele antigo código, que agora predizia que a Terceira Guerra Mundial poderia começar dentro de uma década, também predissera que a Segunda Guerra Mundial começaria em 5700 – no nosso calendário moderno, 1939/1940... Armagedon nos anos 2000-2006 era o alerta codificado nos mesmos versículos sagrados da Bíblia, o código cuidadosamente preservado no Mezuzah que tão acuradamente predisse a última Guerra Mundial. Em vez de uma guerra nuclear entre as superpotências, o mundo talvez esteja agora enfrentando uma nova ameaça – terroristas equipados com armas nucleares. “Terrorismo” está codificado junto com “Guerra Mundial” e, logo abaixo da “Terceira”, aparecem as palavras “Guerra sem quartel”. A expressão sugere uma guerra de aniquilação total. E está claramente codificada com “Holocausto atômico”.712 Conforme Drosnin, se o código da Bíblia é real e certo, a perspectiva de que o terrorismo nuclear possa detonar a Terceira Guerra Mundial é palpável. E Jerusalém seria a cidade escolhida para o holocausto. A cidade, berço das três religiões monoteístas, onde Davi governou, Jesus morreu e Maomé subiu aos céus, poderia ser aniquilada numa batalha final provocada pelo ódio religioso. O Armagedon713 real poderia, então, ser uma Guerra Mundial nuclear.714 711 Idem, p. 124. Cf. DROSNIN, pp. 124-125. 713 Armagedon é um lugar real, é o nome grego de uma antiga cidade de Israel, Megiddo. Em hebraico, “Monte Megiddo” é “Harmegiddo”. “Armagedon” é simplesmente a transliteração grega daquele nome (cf. DROSNIN, pp. 130-131). 714 Idem, pp. 129-131. 712 272 A perspectiva do Apocalipse plasma-se na possibilidade de um terremoto maciço (a sétima praga do sétimo anjo) que está prevista no texto “aberto” da Bíblia. As datas prováveis são 2000, 2010, 2012, 2013 e 2014. Los Angeles, nos Estados Unidos, corre o risco de imenso terremoto em 2010 e China e Japão aparecem três vezes com um “grande terremoto” em 2000 e 2006. Aliás, Japão e Israel estão comprometidos juntos nos desastres bíblicos: o primeiro, num terremoto catastrófico; o segundo, com uma guerra nuclear.715 Drosnin, porém, admitiu que nada aconteceu em 13 de setembro de 1996 (ano judaico de 5756) e o mundo continuou em paz. Aliviado, mas perplexo, o jornalista se perguntou enfim: “Estaria errado o código da Bíblia ou o perigo era real e apenas fora adiado?” 716 Com humildade, Drosnin ponderou que o futuro não seria prederteminado; seria um conjunto de probabilidades e poderia ser mudado: se alguma coisa está predita, o que poderíamos fazer? O que fazemos, na verdade, determina o resultado e o que está previsto não sabia se poderia ser mudado. Ele não conseguia aceitar que possamos mudar o que foi previsto, mas existem alternativas: todos os nossos futuros possíveis foram previstos e estamos escolhendo entre eles. Portanto, não há um único futuro real.717 Todas as Bíblias na língua hebraica original que hoje existem são iguais letra por letra. O programa de computador do código da Bíblia utiliza o texto hebraico original, universalmente aceito. Portanto é inquestionável que as informações sobre o mundo de hoje estão codificadas num livro que já existia há pelo menos mil anos, e quase certamente há dois mil anos, na mesma forma exata que mantém até hoje.718 Toda tecnologia avançada é magia... Seria o Código da Bíblia uma prova de vida inteligente no Universo? Quem poderia ver três mil anos no futuro e codificar o futuro na Bíblia? Drosnin afirma que a palavra “computador” aparece seis vezes no texto aberto da Bíblia, oculta dentro da palavra hebraica que designa “pensamento”. Quatro dessas aparições extemporâneas de “computador” estão nos versículos do Êxodo que descrevem a construção da Arca da Aliança, a famosa Arca Perdida que continha os Dez Mandamentos. O código, aliás, sugere que a escrita das leis nas duas tábuas pode ter sido gerada por computador: “E as tábuas eram obra de Deus e a escrita nelas gravada era a escrita de Deus” – afirmava o Êxodo 32: 16. Mas, codificada nesse mesmo versículo, está uma mensagem oculta: “Foi feito por computador.”719 O astrônomo Carl Sagan certa vez observou que, se existia outra vida inteligente no Universo, ela certamente teria evoluído muito antes do que nós e teve 715 Idem., pp. 135 a 143. Idem, p. 155. 717 Cf. DROSNIN, pp. 155 a 161. 718 Idem, p. 191. 719 Idem., p. 92. 716 273 milhões de anos para desenvolver a tecnologia avançada que hoje estamos começando a desenvolver. Por sua vez, Arthur C. Clarke, autor de 2001, Uma Odisséia no Espaço, assinalava que “qualquer tecnologia avançada é indistinguível da magia.” 720 Se o código da Bíblia prova alguma coisa é o fato de que envolve uma inteligência não-humana e é a prova inequívoca de que tivemos um encontro imediato. Segundo o Texto Sagrado, tal contato aconteceu quando uma voz saída do nada falou com Abraão e também quando ela, da Sarça Ardente, dirigiu-se a Moisés. O código da Bíblia é, na verdade, uma forma alternativa de contato sugerida pelos cientistas que buscam vida inteligente além deste planeta: a descoberta de um artefato ou mensagem alienígena sobre a Terra ou perto dela.721 Contagem regressiva para o fim No melhor estilo milenarista, o jornalista Michael Drosnin, na esteira do estrondoso êxito do Código da Bíblia, publica em 2002 novo livro com o mesmo nome (Código da Bíblia II), desta vez com o sugestivo subtítulo: “Contagem Regressiva”. A nova tentativa era para esclarecer o perigo do holocausto atômico e a possibilidade de guerra mundial codificados na Bíblia ao lado do ano 2006.722 Se o Código da Bíblia era real, tinha como propósito alertar o mundo para um perigo terrível e até mesmo terminal: o fim dos dias, profetizado por Moisés há 3.200 anos e também pelo profeta Daniel, que seria concretizado em nosso tempo por uma guerra mundial que começaria no Oriente Médio.723 O mundo passaria por um colapso econômico global, a partir do ano judaico 5762 (2002, no calendário gregoriano) e o perigo chegaria ao auge no ano de 5766 (2006, no calendário ocidental). A guerra mundial e o holocausto atômico estariam codificado junto com “em 5766”, o ano judaico equivalente a 2006, precisamente para após o dia 17 de setembro.724 O código parece afirmar que a Terceira Guerra Mundial começará com um ato de terrorismo sobre a cidade de Jerusalém725, ao qual Israel responderia de maneira devastadora726. Embora o autor publique diálogos com Yasser Arafat, o então líder da Autoridade Palestina, o livro foi editado antes da morte do dirigente árabe em hospital francês, em novembro de 2004, fato que não foi previsto pelo Código, tampouco mencionado, nem de passagem, por Drosnin. 720 Idem, pp. 93-94. Cf. DROSNIN, op. cit., pp. 94-95. 722 Cf. DROSNIN, Michael. O Código da Bíblia II, contagem regressiva, p. 16, tradução de Merle Scoss, 2ª edição, São Paulo Editora Cultrix, 2003. 723 Idem, cf. Código da Bíblia II, op. cit., pp. 24 e 26. 724 Idem, pp. 28 e 29. 725 Idem, p. 72. 726 Cf. Código da Bíblia II, op. cit., p. 125. 721 274 De acordo com o Código, a escolha real não era entre a paz e os tumultos nas ruas, mas uma alternativa terrível entre paz e aniquilação. Positivamente o que estava descrito e revelado pelo Código era um alerta, não uma profecia.727 O Código também se refere a uma “praga” (a Varíola), que poderia se espalhar em 2005 (ano judaico de 5765)728, mas revela que, assim como Nostradamus, o Código mostrava uma correlação entre a revelação do ano do holocausto, em 2006, e as preocupações israelenses com o crescente poderio nuclear do Irã. No entanto, segundo o autor, as vitórias militares de Israel e conseqüente ocupação das terras árabes poderia conduzir a um holocausto.729 O mundo enfrentaria um colapso econômico global no ano judaico de 5762 (2002 no calendário moderno) e isso levará a um período de perigo sem precedentes, quando nações com arsenais nucleares se tornarão instáveis e os terroristas conseguirão comprar ou roubar o poderio para destruir cidades inteiras. E Drosnin volta a repetir: o perigo atingiria o auge no ano judaico de 5766 (2006, no calendário moderno), o ano que está claramente codificado junto com a “guerra mundial” e “holocausto atômico”. Era importante anotar que os anos de depressão econômica estavam frisados na Bíblia, em 1929 e 2002.730 No final de 2002, com a economia em parafuso, com o Oriente Médio em estado de quase-guerra e com Bin Laden ainda à solta – o Código da Bíblia parecia demonstrar que o grande ataque a Nova Iorque (não o ocorrido em 2001) ainda iria acontecer, porque dois são os anos que estão codificados mais claramente junto com “Nova York”: em 5761 (2001), o ano do ataque de 11 de setembro, e em 5764 (2004). O ano de 2004 foi cruzado pelas palavras “do fogo de um míssil”. No fundo, o mundo viveria uma longa guerra com bombas suicidas que teria primeiro como alvo cidades inteiras e, por fim, ameaçaria a civilização humana.731 O ano supremo para a guerra estaria marcado para 2006, com uma contagem regressiva que começou evidentemente em 11 de setembro de 2001.732 Drosnin acredita, firmemente, que nenhum ser humano poderia ter enxergado três mil anos no futuro e codificado os detalhes na Bíblia. Assim sendo, a existência do Código seria a primeira prova científica de que realmente não estamos sós.733 De acordo com o Código, nosso DNA foi trazido em um veículo e o segredo do código genético humano é revelado no Gênesis, quando Deus diz a Abraão: “Abençoar-te-ei imensamente e multiplicarei tua semente, fazendo-a como as estrelas 727 Idem, p. 129. Idem, p. 150-151. 729 Idem, p. 155 730 Idem, p. 198. 731 Cf. O Código da Bíblia II, op. cit., pp. 200-201. 732 Idem, pp. 209 a 212. 733 Idem, pp. 157 e 192. 728 275 do céu e os grãos de areia da praia. E em tua semente serão todas as nações do mundo abençoadas.”734 A expressão “tua semente” cruza “DNA foi trazido em um veículo”. A frase “em veículo, tua semente, todos os povos da Terra” é novamente afirmada no texto oculto da Bíblia, quando Deus diz: “E em tua semente serão todas as nações do mundo abençoadas.” 735 Os cientistas suspeitam de que uma forma primitiva de vida foi plantada na Terra por alguma civilização avançada de outro planeta, de forma deliberada, numa espaçonave, e que todas as formas de vida da Terra representam um clone derivado de um único organismo extraterrestre. Hoje sabemos que outras estrelas realmente têm planetas e, por isso, é bem possível que uma civilização tecnologicamente avançada exista em algum lugar da galáxia, antes que a Terra tenha sido formada.736 A evolução do DNA na Terra não é um fenômeno realista e, por isso, um agente extrínseco trouxe o DNA até aqui. Adão seria “o modelo”, “o gabarito” de um grande código, cuja listagem dependeria do julgamento e da misericórdia de Deus.737 O DNA, assim como o Código da Bíblia, existia na língua do homem e também é uma linguagem, só que com quatro letras. O código genético é idêntico em todos os seres vivos e o primeiro organismo apareceu subitamente, sem qualquer sinal de precursores mais simples, aqui na Terra.738 Na verdade, conclui Drosnin, uma inteligência alienígena interferiu na história humana e não estamos sozinhos no Universo, o que seria uma crença compartilhada por diversas religiões: “A Bíblia, a julgar pelas aparências, é a história de um encontro imediato com um alienígena. Ele não é visto, mas é ouvido freqüentemente. Em todos os mitos antigos, em todas as religiões, há histórias de veículos e seres que descem do céu, narrativas sobre terríveis visitantes de outros reinos, de “barcos do céu”. Mesmo a descida de Deus no monte Sinai é acompanhada de fumaça e fogo.”739 Argumentos contrários à teoria do Código A premissa do autor é a de que o Antigo Testamento, na verdade, é um complexo programa de computador que contém umas “profecias codificadas” no texto, que revelam o futuro da humanidade (e isso é, realmente, o que o torna interessante). A 734 Idem, p. 131. Cf. Gn., 13: 15 e 16 e 15: 5. Idem, p. 131. 736 Idem, pp. 132-133. 737 Idem., pp. 133 a 135. 738 Idem, pp. 136 e 137. 739 Idem, p. 163. 735 276 influência deste livro chegou até mesmo aos círculos evangélicos por meio do vídeo e do livro “The Signature of God: Astonishing Biblik Discoveries” (“A Assinatura de Deus: Espantosas Descobertas Bíblicas”), diretamente dirigidos à comunidade cristã, com base no que escrevera Drosnin. 740 A Sociedade Bíblica Alemã tomou posição em reportagem intitulada “Deus não fala por códigos” e conclamou a uma avaliação sóbria. A revista "Bibel Report" afirmou que, com talento para combinar as letras de diferentes maneiras, pode-se encontrar praticamente todos os acontecimentos importantes. O procedimento seria semelhante à leitura do destino em formas surgidas do endurecimento de chumbo derretido ou à adivinhação através da leitura da borra de café. De acordo com a Sociedade Bíblica Alemã, é difícil acreditar que Deus tenha falado a Seu povo de forma codificada durante 3.000 anos, e que tiveram de aparecer os senhores Rips e Drosnin (que nem são crentes no sentido bíblico) para descobrir o que Ele de fato queria dizer.741 Caso os senhores Drosnin e Rips tivessem razão, nenhum cristão que crê na Bíblia poderia lê-la sem idéias pré-concebidas. Teríamos de esperar pelas interpretações desses ou de outros “decifradores de códigos bíblicos” para poder predizer acontecimentos futuros. Fica a impressão de que através da tese do “Código da Bíblia”, a Palavra de Deus torna-se mais morta do que realmente digna de crédito. Um artigo do boletim “Topic” (12/97) dizia: revelações segundo o método do "Código da Bíblia" também acontecem fora da Bíblia.742 Seguindo o método do “Código da Bíblia”, o matemático australiano Brendan McKay trabalhou com o romance “Moby Dick”. Ele chegou aos mesmos resultados “sensacionais” que Michael Drosnin. McKay encontrou dados apropriados para acontecimentos como o assassinato de Indira Ghandi, Martin Luther King, Yitzhak Rabin e até do trágico acidente de Lady Diana. Não se deve esquecer de que no hebraico não existem vogais. Isso significa que as sílabas são ambíguas e, além disso, as palavras são mais curtas. Dessa maneira, as chances de se encontrar codificações que fazem sentido são muito superiores do que no inglês ou em outros idiomas. Apesar disso, o romance inglês “Moby Dick” (de 1851) já “previu” todos esses acontecimentos terríveis. McKay também realizou cálculos em relação ao nome de Michael Drosnin. Bem próximo ao nome, o matemático australiano encontrou a palavra “liar” – “mentiroso”, assim como algumas referências à morte do autor do livro “O Código da Bíblia”.743 A Bíblia é a Palavra de Deus! Nela é descrito o passado, o presente e o futuro, e o que é mais importante: a fé absolutamente necessária em Jesus Cristo. Para 740 Cf. Ministério CACP, Revista DF, nº 18, disponível http://www.cacp.org.br/midia/artigo.aspx?lng=PT-BR&article=1086&menu=16&submenu=2. em: 741 Cf. NIETH, Norbert. O Código da Bíblia desvenda acontecimentos futuros?, Revista da Meia Noite, http://www.chamada.com.br/revistas/, dezembro de 1998, Fonte: www.elnet.com.br, disponível em: http://www.vivos.com.br/146.htm. e http://www.chamada.com.br/mensagens/codigo_da_biblia.html. 742 743 Idem, sites citados. Idem. 277 compreender isso não necessitamos de nenhum “Código da Bíblia” especial, mas sim do novo nascimento e da orientação do Espírito Santo.744 O código da Bíblia tem se tomado singular por causa de sua dependência do computador, pois somente com o uso deles é possível a decodificação. Para Drosnin, a Bíblia seria um código elaborado por uma mente infinitamente superior à do homem, capaz de conhecer o passado, o presente e o futuro; mas, como ateu declarado, ele diz que o código da Bíblia “exige que aceitemos aquilo que a própria Bíblia só nos pode pedir para aceitar: que não estamos sozinhos. Eu podia facilmente acreditar que o Código vem de um ser bom, que queria nos salvar, mas não o Criador”. Já Grand Jefrey, em “A Assinatura de Deus...” quer que acreditemos que a fonte intelectual do código é o próprio Deus, e ele vai mais além: “Enquanto estes padrões incríveis existem no texto hebraico da Torá, nenhum outro texto apócrifo exibe esta norma, nem eles podem achar isto em qualquer outra religião hebréia ou textos seculares”.745 Porém, de acordo com o professor William D. Barrick, do The Masters Seminary, os eruditos muçulmanos fazem as mesmas reivindicações para o Alcorão, citando códigos numéricos como prova de que Deus deu esse livro. É lamentável que Hal Lindsey e Jack Van Impe recomendem o livro de Jeffrey.746 Para suas pesquisas, Drosnin usou a Torá. Então, na verdade, o livro deveria ser intitulado “O Código da Torá”; mas, provavelmente, com esse título não teria vendido muitas cópias. Drosnin restringe suas declarações e predições. Enquanto é preciso em fatos históricos como o assassinato de John Kennedy, em 1963, a Guerra do Golfo, em 1991, e a ascensão e queda de Adolf Hitler, nas predições concernentes ao futuro trabalha com possibilidades.747 O teólogo e apologista cristão Dave Hunt, autor de vários best-sellers evangélicos, disse em um artigo, no boletim The Berean Call, (EUA): “Bem que pode haver alguma coisa de sobrenatural por trás desse livro, mas provavelmente de fonte errada... Drosnin declara que todas as Bíblias na língua original, em hebraico, existentes até agora são as mesmas, letra por letra. Isso, simplesmente, não é verdade. Há muitas variações de grafia e, sendo assim, há variações nas letras entre os vários manuscritos. Entretanto, por exemplo, não há diferenças textuais importantes que poderiam mudar os significados entre os manuscritos de Isaías, achados com os rolos do Mar Morto e outros manuscritos posteriores, há diferenças significativas de grafia”. Para Hunt, as diferenças constatadas tornam o “código” inválido, pois qualquer diferença na grafia alteraria o que está contido no manuscrito original, do qual ninguém tem cópia.”748 744 Idem. Cf. http://www.cacp.org.br/midia/artigo.aspx?lng=PT-BR&article=1086&menu=16&submenu=2. 746 Idem, site citado. 747 Idem. 748 Idem, site citado. 745 278 De qualquer forma, as previsões de holocausto e guerra mundial em 2006 foram ultrapassadas pelo tempo, já que não aconteceu a agressão nuclear a Israel. Quanto à crise econômica global, detectada para 2002, não ocorreu, sendo que estamos vivendo uma crise a partir de setembro de 2008, que começou nos Estados Unidos e se expandiu para todo o mundo. Em 2009, o conflito no Oriente Médio acirrou-se, mas é localizado entre Israel e palestinos, embora até o momento em que escrevo (janeiro de 2009) ainda não tenha sido internacionalizado com a entrada de outros países. Quanto aos terremotos previstos, Los Angeles continua de pé, bem como o Japão e a China... Isto nos leva a concluir que as teses milenaristas, apesar de serem não raro objeto de curiosidade e temor, sempre que são expostas junto com datas precisas têm se mostrado equivocadas, causando constrangimentos a seus autores, sejam eles fundadores de religiões, sejam apenas livres-pensadores... As diversas Moradas do Pai Todo esse capítulo foi escrito com o único objetivo de mostrar que o pensamento religioso evoluiu, embora lentamente, em direção ao reconhecimento do óbvio, ou seja, de que existem mundos diferentes do nosso (embora isso não esteja especificado no livro do Gênesis e, por isso, muitos que crêem na Bíblia não o admitam! ) e que existem, por extensão, outras humanidades, em graus diferentes de tecnologia, ocupando algumas dessas esferas, através do Universo. Por uma espécie de “redução ao absurdo”, poderíamos imaginar o quanto seremos vítimas do riso de historiadores, daqui há uns duzentos anos (ano 2209, claro, se não ocorrer o Juízo aniquilador!), quando, ao estudarem o comportamento e os propósitos do homem no início deste milênio, constatarem a nossa dificuldade em aceitar a existência de outras civilizações no vasto Universo. O que pensariam ser algo visto com toda naturalidade, para nós tornara-se enorme peso obscurantista...749 Os católicos e protestantes tiveram enorme dificuldade em aceitar a vida fora da Terra como sinal positivo da obra Divina, como se a existência de seres mais avançados colocassem os ensinamentos bíblicos no mesmo cesto imprestável da crendice e do paganismo. Ora, a realidade é muito ao contrário. Tanto assim que começaram, no século XXI, as tímidas manifestações, por enquanto extra-oficiais, como vimos, de alguns sacerdotes e filósofos ligados ao Vaticano, de que não há qualquer contradição entre a existência de Deus e a de “irmãos extraterrestres” que visitaram o planeta no passado e com certeza continuam franciscanamente visitando... Mesmo os protestantes, partidários da defesa intransigente da pureza bíblica, em que o texto não teria qualquer contradição, mas, ao mesmo tempo, eles podem interpretá-lo como bem quiserem – já se prestam a não encarar como objetos de conhecimento herético a pesquisa sobre os extraterrestres e os temas auxiliares da 749 Por enquanto fiquemos com uma frase, atribuída na década de 70 ao brilhante humorista brasileiro Millôr Fernandes: “Deve haver algum planeta com vida inteligente, porque neste não há!” 279 Ufologia, como a arqueologia não tradicional e a parapsicologia. Essa evolução, porém, é muito lenta e fica a anos-luz das hipóteses produzidas pelos cientistas e astrônomos mais ousados. Nesse sentido, podemos encontrar pesquisadores desses fenômenos, como o pastor presbiteriano de Endwell, em Nova Iorque, Barry L. Downing, cuja opinião sobre os eventos aparentemente milagrosos e sobrenaturais referidos na Bíblia poderiam ser interpretados como manifestações extraterrestres: “Ao invés de serem obras de espíritos ou mensageiros divinos, os anjos poderiam perfeitamente ser possíveis visitantes espaciais, sendo que o Deus que dialoga com o homem e se mostra na imagem de um anjo referido nas escrituras também poderia ser considerado um possível ser extraterrestre desejoso de orientar os humanos em momentos críticos.”750 Na verdade, o encaminhamento do assunto como hipótese ou prova de pensamento aberto, não significa por si só um pecado. Não é pecado também se procurar nos textos bíblicos mensagens cifradas, se até Jesus falava por parábolas e símbolos, mesmo em contato com o povo, embora guardasse os verdadeiros ensinamentos, o leite e o mel da sabedoria, para os discípulos que, prudentemente, não os registraram nos textos bíblicos oficiais. Seria também um grande egoísmo e enorme vaidade supor que a revelação de Jesus seja única e só nossa, sem poder ser repartida ou compartilhada com seres inteligentes que povoem o grande Universo. Compartilhar a nossa salvação com eles seria prova inequívoca de maturidade e carinho, talvez o único caminho para obter a paz e reconciliar a humanidade tão separada por guerras e opiniões diversas. De qualquer maneira, quanto a esse tema dos extraterrestres, que afeta de modo profundo a pós-modernidade, podemos discutir as palavras do Cristo, transpondo as limitações do Antigo Testamento e, numa evidente translação, sugerir novo modo de encarar o relacionamento com o Pai Celestial: “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou preparar-vos um lugar. E, quando eu for e vos preparar lugar, voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que, onde eu estou, estejais vós também. E vós sabeis o caminho para onde eu vou.”751 Naturalmente, tais considerações tão profundas foram ditas para ser interpretadas por discípulos instruídos nas coisas de Deus, não mais os semianalfabetos pescadores e artesãos que foram buscados, um por um por Jesus para serem posteriormente treinados. É, contudo, também natural que os exegetas cristãos pensem na expressão, “na casa de meu Pai há muitas moradas”, sem aceitar uma interpretação que agradaria aos ufologistas e adeptos da percepção de que a humanidade é o resultado de uma 750 751 Apud. WELLS, C. R. P. Um Extraterrestre na Galiléia, p. 144, São Paulo, Editora Madras, 1999. Cf. Jo., 14: 1-4. 280 experiência alienígena. No máximo, poderiam concordar em que Jesus dava sinais de que os cristãos deveriam pregar para outros povos e aconchegar na nova doutrina quem não soubesse ainda a respeito das boas novas. As moradas de Deus representariam aqui casas, locais e territórios de acolhimento terrestre e, não, celeste... Nós, tão primitivos, já fomos à lua, e enviamos sondas a tantos planetas, inclusive ao Sol, não nos parece óbvio que nossos irmãos mais evoluídos (extraterrestres), vendo tão próximo o perigo para a humanidade não viriam, de pronto, nos ajudar? Mas o que seriam as várias moradas? Poderíamos nos deslocar até elas? Há possibilidade de comunicação entre os seres dessas diversas moradas? Onde estariam localizadas? As respostas estariam, na verdade, em nossa forma limitada de compreender a perfeição do Reino de Deus. Ora, se o Pai é onipresente, logo está em todo o Universo e as várias moradas seriam os mundos habitados tanto física quanto espiritualmente e não há outra explicação. Além disso, se Deus é a inteligência suprema, criadora, universal e soberanamente perfeita, por qual motivo criaria um universo infinito se não tivesse utilidade? Se assim fosse, não seria a criação de um Deus perfeito, pois se Ele o criou, assim o fez por algum propósito, que com certeza, não seria para agradar nossos olhos primitivos. E se foram criadas galáxias que nem conseguimos enxergar, então a criação certamente não foi exclusiva para deleite do homem terreno, mas para que outros filhos de Deus o pudessem habitar, cada qual em seu respectivo grau de evolução. Não importa que a ciência ainda não tenha descoberto vida em outro planeta, mas apenas vestígios, como recentemente descobrimos moléculas de carbono e de água em Marte e em uma das luas de Saturno. O bom senso ensina-nos assim que a vida extraterrestre pode existir e não podemos desconsiderar esta condição em nome de posições dogmáticas que em nada podem se opor a esta idéia, pois qualquer afirmativa contrária será vazia e infecunda. Aliás, a ausência de evidências não significa evidência de ausência... Contudo, o coração protestante força a barra, tentando incompatibilizar a Bíblia com os novos tempos, como aconteceu com Giordano Bruno (1548-1600) e, depois, com Galileo Galilei (1564-1642), o primeiro condenado à fogueira, como herege, e o segundo, severamente censurado pela inquisição por defender as teorias de Copérnico, que afirmavam que a Terra gira em torno do Sol... O papel conservador da Igreja católica, que antes possuía a força do Estado a seu favor, hoje é desempenhado pela ira de alguns devotos que colocam a Bíblia como resposta a qualquer tentativa de evolução do pensamento. Para esse tipo de cristãos, a Bíblia é a Palavra de Deus revelada e ensina que a vida só é possível através de um ato criador. Mesmo que no espaço existam planetas semelhantes à Terra, lá não existiria vida se o Criador não a tivesse criado. E se Deus o 281 tivesse feito, e essas criaturas nos visitassem algum dia, então Deus não teria nos deixado ignorantes a respeito. Essa percepção, por exemplo, é contraditada pelas palavras de Jesus, no Evangelho de João, quando anuncia: “Tenho ainda muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora; quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade, porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir.”752 Ora, se Cristo não disse toda a verdade, porque nós não tínhamos capacidade de entendê-la e suportá-la, como reclamar de que Deus nos deixou ignorantes sobre a realidade de outros mundos? Para os protestantes, se Isaías profetizou que o Universo será enrolado um dia “como um pergaminho envelhecido”753, então, se Deus tivesse criado seres viventes em outro lugar, Ele automaticamente destruiria a morada deles também, o que, evidentemente, é um absurdo lógico, porque o que um pergaminho enrolado significa é que a verdade no futuro ficará selada, impossível de ler por mentes não treinadas nas coisas de Deus. Outro raciocínio que levaria à mesma conclusão seria aceitar o que o Gênesis nos diz sobre a finalidade das estrelas. Seria uma “chave bíblica” para se responder às questões relativas aos chamados “extraterrestres”. O conhecido Salmo 19 trata do assunto, mas no relato da Criação, o Gênesis diz: “Disse também Deus: Haja luzeiros no firmamento dos céus, para fazerem separação entre o dia e a noite; e sejam eles para sinais, para estações, para dias e anos. E sejam para luzeiros no firmamento dos céus, para alumiar a terra. E assim se fez.”754 Assim, segundo os protestantes, as razões da existência das estrelas são muito claras: devem luzir na terra, mostrar o tempo e ser portadoras de sinais. As estrelas são, por conseguinte, orientadas e planejadas para a terra, ou, para ser mais exato, para as pessoas que vivem na terra, o que é um exagero não confirmado pelos mais recentes estudos científicos e astronômicos. As estrelas positivamente não foram criadas “para agradar” o homem... Diante desta distribuição de finalidades quando da criação, diante da seqüência da criação (no primeiro dia a terra e, só no quarto dia, os outros planetas) bem como do testemunho bíblico como um todo – pode se chegar a uma única conclusão: não se pode contar com vida em outros planetas... Essa percepção é uma rematada tolice que nem merece contestação... Dizia o cientista e astrônomo Carl Sagan: 752 Cf. Jo., 16: 12-13. Cf. Is., 34: 4 e Ap., 6: 14. Na passagem, Isaías não fala em Universo, mas em céus... 754 Cf. Gn., 1: 14-15. 753 282 “...os extraterrestres podem, ou não, ser animais ou seres humanos, mas ao mesmo tempo podem possuir inteligência como nós, moral, capacidade artística, etc. (...) “Ser de outro mundo pode significar sentir e pensar como nós, mas não necessariamente assemelhar-se.”755 Pensando diferente dos protestantes, num século materialista e racista como o XIX, os espíritas formularam uma doutrina que compreendia e aceitava plenamente a existência de extraterrestres. Allan Kardec, o codificador dessa percepção, faz a pergunta cinqüenta e cinco do Livro dos Espíritos: “São habitados todos os globos que se movem no espaço?” E a resposta surge firme e atende plenamente à nossa razão: “Sim e o homem terreno está longe de ser, como supõe, o primeiro em inteligência, em bondade e em perfeição”.756 Na Terra os estudos psicológicos mostram a grande diversidade de caracteres dos seus habitantes, compondo também outras moradas, morais, psicológicas, como explicado pelo Codificador no item anterior. Podemos concluir que em todos esses mundos haja também uma grande diversidade de padrões evolutivos. Ou seja, em relação a Terra, há mundos mais adiantados e outros em que o processo de aperfeiçoamento dos seus habitantes ainda está muito aquém ao da Terra.757 Atualmente a Astronomia a cada dia traz novidades sobre o Universo. Os mais sofisticados aparelhos instalados na Terra varrem o espaço diariamente e possantes telescópios em órbita avançam o seu olhar indiscreto por regiões espaciais inimagináveis. Novos Planetas são descobertos, galáxias são fotografadas, explosões estelares são captadas, e o homem, deslumbrado, reconhece-se um viajante do infinito aboletado no planeta terreno. Às vezes temos a impressão de que o Universo não tem mais segredos. A cada nova descoberta porém, mais se nos patenteiam que pouco sabemos sobre a imensidade do Universo. As distâncias em que os fenômenos ocorrem, embora não consigamos imaginar, nada representam em relação ao infinito, que foge completamente de nossa capacidade intuitiva. Bilhões e bilhões de esferas são constatados compondo as mais distantes galáxias... As moradas do Pai são uma imensidade comparada mesmo à excelência do Universo e, em 1857, Kardec as classifica em cinco categorias de acordo com a evolução intelectual e moral dos habitantes de cada um, deduzidos pelas observações feitas na Terra e confirmadas pelo plano maior. Assim teríamos Mundos primitivos; Mundos de expiação e provas; Mundos regeneradores; Mundos felizes e, finalmente, Mundos celestes ou divinos. Nos mundos primitivos e de expiação e provas estariam encarnados os da terceira ordem, os espíritos imperfeitos, os impuros, levianos, pseudo-sábios, neutros e batedores e perturbadores. 755 Cf. http://www.forumespirita.net/fe/index.php?topic=1418.0. Cf. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, op. cit., p. 69 757 Cf. Fórum Espírita, site citado. 756 283 A Bondade Divina permite que os mundos inferiores recebam a visita dos habitantes dos mundos mais adiantados para trazerem ensinamentos dentro da máxima da Lei de Cooperação e de Auxílios mútuos de que “o maior deve proteger o menor”. Convém ainda salientar para que atentemos bem para as palavras do Mestre Jesus, quando, no sermão da montanha, disse as palavras grafadas pelo evangelista Mateus no capítulo cinco versículo quatro: “Bem aventurados os mansos e pacíficos porque eles herdarão a Terra”, ou seja, muitos espíritos que ainda se encontram no inicio da escala evolutiva da terceira ordem estarão tendo uma das últimas oportunidades de permanecer da Terra que se promoverá. Já nos mundos regeneradores e felizes, veremos os da segunda ordem, os bons espíritos, os benévolos, os sábios, os de sabedoria e os superiores. Nos mundos celestes ou divinos, os da primeira ordem, os espíritos puros.758 Conforme Kardec, o planeta Terra seria uma nave sideral, que gira no espaço infinito entre bilhões e bilhões de outras, com seus passageiros. Julgamos intuitivamente que esse grupo de criaturas seja toda a humanidade, que é toda a Criação Divina. Embora a Doutrina Espírita afirme que não somos os únicos habitantes das galáxias, ainda não assimilamos plenamente essa nova revelação. Por mais que nos esforcemos, essa idéia ainda é muito vaga, nebulosa; é muito recente em nossas mentes. Essa dúvida influi decisivamente em nosso psiquismo e o egoísmo é o móvel de muitas de nossas atitudes. O desejo, a posse, o exclusivismo chumba-nos ao chão como que temerosos de perdê-lo.759 A Terra classifica-se, ainda, como mundo de expiação e provas. Porém, diante das conquistas intelectuais e morais que já fizemos e dos acontecimentos verificados, tudo indica que estamos no limiar de transferirmo-nos para a categoria de mundos regeneradores. Podem, portanto, já existir encarnados na Terra espíritos da segunda ordem. Há outras humanidades, em outros orbes, uns mais adiantados, outros em processo de aprimoramento... A nossa querida Terra, planeta azul do Mestre Jesus, também faz parte desse concerto Divino e todos nós, amando-nos uns aos outros como o Divino Amigo ensinou, a promoveremos a um mundo onde a fraternidade reinará, pois esse é o seu destino.760 Há diferenças, portanto, e significativas sobre o que os cristãos pensam em relação ao problema dos extraterrestres. Nossas interrogações, porém, não podem ultrapassar o reino da discussão sadia e da troca de idéias, com as quais poderemos viver uma plataforma comum de valores, enquanto aguardamos a visita de Jesus que, segundo o Apocalipse, tornará “como um ladrão”761, de forma surpreendente e majestosa, caso não vigiarmos e guardarmos os seus mandamentos. Mas até lá, podemos e devemos utilizar dos meios humanos para retirar os véus dos mistérios do Universo e encontrar, finalmente, as diversas Moradas do Pai. E nosso 758 Idem, site citado. Ver KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, op. cit., pp. 62 a 73 e 86 a 99. Idem. 760 Idem, site citado. 761 Cf. Ap., 3: 3 – “... se não vigiares, virei como ladrão, e não conhecerás de modo algum em que hora virei contra ti.” 759 284 sentimento de solidão vai se esvair e não será a separação primitiva e casual entre cristãos que haverá de deter nossos passos... 285 9º INTERVALO – “QUEM SÃO OS EXTRATERRESTRES?” “O que mais espanta não é a presença de seres espaciais, de raças extraterrestres. Se da Terra desconhecemos muitas espécies, quanto mais do Cosmo. O que mais espanta é que a Humanidade ainda não está consciente de onde ela está, do que ela é. Para nós o azul do céu riscado pelo sol marca a jornada de trabalho, nossa repetição cotidiana. O céu é mero pano de fundo. A noite quase não se vê. Nossos corpos estão cansados e o pensamento delira em imagens de “amanhã”. Casulos de pensamento. Uma “realidade” criada por nós mesmos. Não o futuro, mas o agora do acontecer do mundo, do acontecer psicológico. Criamos o que vivemos e vivemos o que criamos. Mas pergunto: não é óbvio que somos seres cósmicos? Por acaso onde estamos? Estamos parados no nada? Boiando nessa coisa que chamamos de espaço? Será? Parece que não nos livramos ainda da antiga concepção de sermos o centro do universo. Como se o universo tivesse um centro! Como algo que é todo-unidade pode ter um centro? A colocação de um centro fatalmente limita a consciência a um ponto, do qual pouco se vê. Mas quando o ponto se apaga, resta o Cosmo como ele é. O que mais causa impacto não é a enorme quantidade de fenômenos que ocorrem no Cosmo, mas a Unidade dentro da qual tudo o que existe é. O Cosmo é diverso e é uno. É Verbo e é silêncio. É onde todos os universos coexistem e coabitam ao mesmo tempo. Universos que se movem, que se transformam, que são vivos. Todo o Cosmo é Vida. Sim! Não estamos parados. A Terra viaja em uma galáxia, girando em torno de um sol a cerca de 100 mil quilômetros por hora, com outros bilhões de galáxias que também viajam por aí, cada uma com seus bilhões de estrelas. Mas o espaço é o espaço. Não se mede o espaço. Mede-se a distância de um ponto a outro no espaço, mas não se mede o espaço. O espaço é imensurável. Ele é imponderável, infinito, eterno e uno. Ele é o mesmo em todo lugar. Eis a beleza do mistério maior: somos Um! E essa é a beleza da consciência cósmica. Aqui ou em Andrômeda, ou em uma galáxia a 10 bilhões de anos-luz, não importa em que lugar do Cosmo estamos; ali está o valor de sua unidade. Ali é Vida! É a beleza do coabitar do movimento e do repouso. Tal beleza é “est-ética” (estética e ética ao mesmo tempo): é o natural respeito e reverência pela Vida, pela beleza do Cosmo! Não espanta, pois, que outras raças cósmicas convivam conosco no Cosmo. Espanta mais sermos nós mesmos uma raça cósmica, assim como qualquer outra raça que exista, e não termos consciência disso. Para nós está sendo o inverso: consideramos o universo pequeno demais diante das nossas preocupações cotidianas. Nossa sede de futuro está destruindo o nosso presente. A nossa amorosa Gaia está sendo consumida, como algo descartável, como se não fosse viva. Urge sairmos do tempo cronológico que nos mata, da busca pelo futuro, para adentrarmos no tempo da eternidade, onde espaço e tempo não são coisas distintas, separadas, mas antes o imponderável movimento de Vida no Cosmos. Quem são os extraterrestres? Nós mesmos! É preciso baixarmos totalmente na Terra, pois somente assim subiremos aos céus!” 286 Maurício Patitucci Domingo, 2 de Novembro de 2008. “A REGRA ÁUREA” JUDAÍSMO Não faças ao teu semelhante aquilo que para ti mesmo é doloroso. CRISTIANISMO Faça ao teu próximo somente o que gostaria que lhe fizessem. ISLAMISMO Ninguém pode ser um crente até que ame o seu irmão como a si mesmo. CONFUCIONISMO Não faças aos outros aquilo que não queres que eles te façam. HINDUÍSMO Não faças aos outros aquilo que, se a ti fosse feito, causar-te-ia dor. TAOÍSMO Considera o lucro do teu vizinho como teu próprio, e o seu prejuízo como se também fosse teu. ZOROASTRISMO A Natureza só é amiga quando não fazemos aos outros nada que não seja bom para nós mesmos. BUDISMO De cinco maneiras um verdadeiro líder deve tratar seus amigos e dependentes: com generosidade, cortesia, benevolência, dando o que deles espera receber e sendo tão fiel quanto à sua palavra. JAINISMO Na felicidade e na infelicidade, na alegria e na dor, precisamos olhar todas as criaturas assim como olhamos a nós mesmos. SIKHISMO Julga aos outros como a ti mesmo julgas. Então participarás do Céu. Independente da religião que adotamos, praticamos, simpatizamos ou não, e lembrando que nossas crenças religiosas são nossos direitos inalienáveis, talvez devêssemos fazer dois importantes questionamentos: – Já paramos para analisar a extraordinária, magnífica, excepcional e colossal “COINCIDÊNCIA” que consiste nos ensinamentos desta Regra Áurea serem 287 semelhantes entre si nas dez mais importantes religiões do mundo, cada uma delas instituída em época, local e cultura diferentes? – Sabendo que não é possível existir uma coincidência deste porte, desta magnitude e desta envergadura, o que este fato evidencia? Numa análise imparcial, neutra e à luz do bom senso, este fato demonstra que aqueles dez ensinamentos desta Regra Áurea têm A MESMA FONTE, à qual, conforme a nossa crença, podemos chamar de Deus, Alá, Jeová, Fonte Suprema, etc. Ou então podemos concluir que os fundadores daquelas dez mais importantes religiões foram intuídos e inspirados por mensageiros ou intermediários daquela Fonte Suprema, aos quais, conforme a nossa crença, podemos chamar de Espírito Santo, Espiritualidade, Mentores, Anjos, Arcanjos, Avatares, Cristo, etc. É bom que existam muitas religiões porque, deste modo, sempre haverá uma que seja compatível com a capacidade, o perfil psicológico e a preferência de cada um. No entanto, devemos estar atentos para seguinte realidade que – à luz dos cristalinos e insofismáveis fatos acima – já podemos perceber: – Cada religião, longe de ser a absoluta dona da verdade, é apenas um dos muitos canais da mesma Fonte Suprema. Lembrando aquela inspirada frase de Divaldo Franco – “mil vezes um bom ateu do que um mau religioso” – devemos nos lembrar de que, acima da nossa adoção e da nossa prática dessa ou daquele religião, deve estar a nossa conduta cotidiana conforme nos ensinam claramente aquelas dez versões desta Regra Áurea. Em outras palavras, o que verdadeiramente importa é que, no nosso dia-a-dia, todos os dias: – Devemos fazer ao próximo somente o que gostamos que nos façam. Considerando que a fonte daqueles dez semelhantes ensinamentos desta Regra Áurea é a mesma, como também podemos considerar este fato? – Como um convite implícito (ou explícito?) para pelo menos compreendermos (*) o Universalismo que consiste não somente no respeito a todas religiões alheias, e sim também na prática da Religiosidade sem a obrigatoriedade do intermédio (ditatorial ou não) dessa ou daquela religião. (*) E se for o caso, até mesmo para praticarmos. Quando cada um de nós a – seja seguidor fanático ou liberal dessa ou daquela religião, seja universalista, seja ateu ou indeciso – praticar cotidianamente esta Regra Áurea, estará agindo de maneira “politicamente correta”. Por que? Porque estará fazendo a sua parte (e dando o seu exemplo para os outros) em prol de uma humanidade pacífica, fraterna e solidária! Delasnieve Daspet - 13 de janeiro de 2009. 288 – 15 – A RECONCILIAÇÃO DOS CRISTÃOS "Para mim, as diferentes religiões são lindas flores, provenientes do mesmo jardim. Ou são ramos da mesma árvore majestosa. Portanto, são todas verdadeiras." Mahatma Gandhi “O Cristianismo só poderá reconquistar o seu império no mundo, mediante uma luta sincera, em que ele não seja nem opressor nem oprimido.” R. P. Lacordaire 289 Não tenho intenção de fundar uma igreja. Muito ao contrário. Apesar de isso representar um grande negócio no Brasil, não desejo e não quero fundar mais uma igreja. As que estão por aí já são em número suficientes e praticamente dizem as mesmas coisas. Há igrejas para todos os gostos. Algumas geram até supremos desgostos, além de muitos dízimos e ofertas... Não posso negar de que nutro maior simpatia pela Igreja católica dos meus pais e avós do que pelo que falam os protestantes, evangélicos e pentecostais, cuja pulverização de opiniões impede até que se façam mais respeitados e ouvidos... No entanto, acompanhando uma tendência normal entre os católicos brasileiros, sou favorável ao controle da natalidade e ao uso de preservativos na prevenção da AIDS e de outras Doenças Sexualmente Transmissíveis. Nada tenho contra a inseminação artificial para facilitar a concepção entre casais aparentemente inférteis e não me oponho às pesquisas com células-tronco em embriões, recentemente permitidas por resolução da Corte Suprema brasileira. Sou totalmente favorável à ruptura de uma tradição secular da Igreja em relação ao celibato dos padres762: sou daqueles que pensam que o celibato não é fruto de preceitos bíblicos taxativos, por isso deveria ser facultativo e também gostaria de, após vários fracassos em meus casamentos, poder participar sem culpa da eucaristia. Afinal, também sou filho de Deus, apesar de divorciado. Tenho, ainda, muito boa impressão do movimento carismático, que cresce dia a dia e prova, com sua prática, que os padres e bispos não são tão essenciais assim para a nossa reflexão e aperfeiçoamento espirituais. No III Sínodo Mundial dos bispos católicos, em Roma, o então cardeal-primaz do Brasil, Avelar Brandão, opinou sobre a divisão existente entre os católicos: “Estatísticas sócio-religiosas demonstram que um número relativamente reduzido de batizados são fiéis a seus deveres religiosos. É por isso que o primeiro e mais urgente trabalho da Igreja na América Latina é a evangelização e pregação da fé; não existe, como antes, a unidade católica.”763 Esse opinião sincera ilustrou uma pesquisa feita em 1968, pelo IBGE, cujos dados estatísticos já naquela época testemunhavam que 67% dos católicos entrevistados se consideravam pessoas muito pouco religiosas...764 Por outro lado, estou de acordo com o empenho profundo de grupos católicos em aperfeiçoar o diálogo ecumênico com protestantes e evangélicos e outras 762 Defensores do casamento para padres e do celibato opcional dizem que a aceitação da igreja atrairia muitos homens para o sacerdócio, diminuindo a falta de padres em muitas partes do mundo. Os padres católicos tinham permissão para se casar durante o primeiro milênio depois de Cristo, mas o casamento de sacerdotes foi condenado pela igreja em 1139. Cf. Folha Online, “Vaticano confirma obrigatoriedade do celibato para padres”, 16/11/2006, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u101891.shtml. 763 Cf. “Católicos mas não muito”, p. 73, in Revista “Realidade”, São Paulo, Editora Abril, novembro de 1971. 764 Idem. 290 designações interessadas em dialogar. Os limites nessa tarefa devem ser definidos, porém, pela generosidade entre as partes, esquecendo-se o que disse, apressadamente, o papa Bento XVI sobre a Igreja católica, como a única que subsiste como sujeito na realidade histórica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos bispos e padres em comunhão com ele765. Essa visão antiquada de que Cristo fundou apenas uma única Igreja e instituiu-a como “grupo visível e comunidade espiritual” é constantemente repetida por todas as seitas e denominações, cada qual reivindicando para si a mesma coisa766. Essa conduta desassombrada de bater no peito e bradar que “a minha religião é a única, a melhor e a mais perfeita”, além de impedir de saída o diálogo entre cristãos realmente separados, só faz ressaltar o que os divide, embora isso não faça o menor sentido, vez que todos pegaram o mesmo trem, que vai numa só direção, apesar de os passageiros usarem vagões e cabines diferentes e entrarem em diferentes estações, no tempo. É evidente que Deus abençoa a todos igualmente, mesmo que sejamos diferentes ou prematura e tardiamente divididos... Uns gostam e crêem na intercessão da Virgem Maria, cultivando a “Mariologia”, outros afirmam ser Maria mulher como qualquer outra e acusam de idólatras os católicos, falando em “Mariolatria”; uns precisam do Papa como orientador espiritual e infalível, outros pensam que a sua figura é totalmente dispensável; alguns crêem no magistério da Igreja católica e acreditam na tradição oral, outros só admitem a Bíblia como única Escritura e utilizam-se do livre exame para interpretá-la; ali estão irmãos que crêem na fé, acolá, os que acreditam apenas nas obras para atrair o olhar e a proteção de Deus; vemos, mais adiante, cristãos que acreditam nos espíritos e na reencarnação, tendo ao lado irmãos que pensam que os mortos não têm nada mais o que fazer a não ser ficar dormindo até soar a trombeta do Juízo; por fim, deparamo-nos com os que só admitem a Graça por intermédio da Igreja e outros, que só permitem para si a idéia da Graça como conseqüência da predestinação, decidida muito antes por Deus. Que barafunda! São tantas as diferenças e controvérsias teóricas que poderíamos nos desanimar e o mais curioso é que elas procedem, na maioria das vezes, de interpretações contraditórias da Bíblia. Aliás, todas as controvérsias são válidas e todos têm razão. O único aperfeiçoamento nisso tudo é que essas diferenças não são mais dissolvidas por meios violentos ou de tortura, nem infligem a ninguém a morte na fogueira ou em fuzilamentos por motivos de limpeza étnica. Não há aqui opressores nem oprimidos, quando o Estado é separado das igrejas por uma legislação bem definida. O Estado laico é proteção da sociedade contra qualquer fanatismo religioso e as suas manifestações violentas. Cf. “Respostas a Questões relativas a alguns Aspectos da Doutrina sobre a Igreja”, Congregação para Doutrina e Fé, 10 de julho de 2007, disponível em: http://averedemptorismater.blogspot.com/2007/07/igreja-catlica-apostlica-romana-nica.html 765 766 A diferença está nas seitas cristãs fundamentalistas que se consideram anteriores a Jesus Cristo e instituídas pelo próprio Deus. Essas denominações, os Adventistas, os Mórmons e as Testemunhas de Jeová se auto-consideram “igrejas remanescentes”, isto é, foram criadas por Deus e fundadas nos Estados Unidos... 291 Os cristãos precisam de amores, não de inquisidores! É necessário vislumbrar novos horizontes para a fé e não aceitar a conversa de que qualquer tentativa de reunir irmãos separados seja compreendida como “abominação” ou “coisa do Anticristo”. Precisamos instalar no mundo uma espécie de Organizações das Nações Unidas religiosa, que coloque os cristãos representativos frente a frente, num diálogo útil, sem rancores e manifestações de intolerância. Além disso, os cristãos têm o dever de chamar judeus e muçulmanos – nossos primos das grandes religiões monoteístas – para sentarem à mesma mesa de concórdia e formularem, junto conosco, uma plataforma comum que nos liberte de vez dos separatismos e das guerras religiosas. Podem até dizer que sou um sonhador, mas não sou o primeiro, nem serei o último – parafraseando o grande pacifista ateu John Lennon... Que sou um grande pecador, não se tenha a menor dúvida! Boêmio e fraco, não sou exemplo nem muro de virtudes. No entanto, apesar de tantos defeitos, sempre me interessei por temas religiosos, porque isso é efeito visível de uma fome espiritual que existe dentro de mim. Sendo completamente sincero, devo confessar, sem medo: adoro rezar! Adoro ficar em silêncio – porque acho que para me comunicar com Deus e com Cristo não preciso de gritos histéricos! – e me sinto em paz assistindo a uma missa católica ou a eventos religiosos em um templo evangélico ou budista. Não distingo o direito de todos de amar a Deus como quiserem, mas reservo para mim, sob total intimidade e privacidade, o modo como me comunico com Ele. Após ter ficado tão próximo da morte e sentindo o seu hálito exigente e destrutivo, todo dia seguinte para mim é uma forma de milagre e sonho, onde surge lá no fundo a vontade de agradecer. Ao cair da noite, ao deitar, consigo fazer três coisas bem definidas para um cristão: abandono-me no confortável e amigo colo de Deus; pergunto-me se meu dia foi produtivo, eficiente e se consegui a grande façanha de não ter cometido muitos pecados; e se, ao longo do abençoado dia fui capaz de alguma atitude nobre para com o meu próximo... Sei que são miseráveis providências, mas creio firmemente que acordar do sono já é excepcional milagre para a criatura e deve ser festejado ao renascer do dia, porque representa o sinal de que Deus deseja que tenhamos algo ainda a cumprir... Eis o mistério da fé... Os cristãos vivem separados por questiúnculas e bizantinismos767 e teimamos em esquecer o fundamental: a nossa regra de ouro, bem como das demais religiões que compõe a grande história da luz humana, que vem a ser o amor ao próximo, atitude que 767 Bizantinismo é a tendência a discutir temas complexos e minúcias, deixando de lado as questões relevantes e os resultados práticos (cf. Aulete Digital). 292 a psicanálise, desde o início do século passado, dizia ser uma resolução quase impossível de cumprir, em virtude do inarredável edifício do egoísmo humano. No entanto, mesmo percebendo os obstáculos previstos pelos descrentes, o amor ao próximo sempre foi a pedra de toque da mensagem de Cristo, contra o mundo pagão e, posteriormente, à ansiedade do mundo ocidental em desmentir sua pregação. Precisamos de um toque de reunir para reencontrar os irmãos separados. Eles estão a nosso lado, no trem da existência, e não devem ser confundidos com a floresta de denominações e seitas (as cabines) em que repousam os próprios temores. Também do lado protestante, devemos entender que a afirmação radical do livre exame, bem como o exercício da teoria da prosperidade sem qualquer freio tornarão inúteis quaisquer tentativas concretas de reconciliação. Não há dúvida de que o dinheiro separa o que as religiões, por definição, tentam reunir e religar. Se ser cristão é descobrir e encontrar o outro, a senha deve passar a ser “renovo minha disposição em acolhê-lo, porque assim também se renovam as minhas esperanças!” Acho que religião é isso: ou é acolhimento ou é abrir a porta ou se torna um desentendimento brutal, que pode resultar em intolerância, violência e morte. Os exemplos da história não nos deixam mentir... Sentir-se satisfeito pela falsa idéia de que “a minha religião é a melhor” é esquecer, na prática, que o outro existe e necessita ser acolhido, compreendido e, principalmente, não repreendido por pensar diferente. Muitos até se encontram perdidos – como eu, antes do atentado de que fui vítima – ou se sentem assim, mas nem por isso deixam de sinceramente fazer o caminho de volta... A própria contradição entre versículos (ou versos) bíblicos, manifesta neste livro, é a pista para que olhemos com carinho e senso de oportunidade o que está por trás do texto. Se você busca nas Escrituras o que deseja e encontra, se o que encontra lhe traz alívio e o faz pensar que tem razão – então o texto bíblico cumpriu a sua função e Deus está plenamente recompensado. Se, por outro lado, você não entende o que a Bíblia diz e precisa de alguém que lhe explique e interprete as complexas passagens, não se envergonhe de procurar um conselheiro espiritual, seja padre, pastor, missionário ou ministro, desde que qualquer deles o façam, sem imposições, encontrar o melhor caminho. Mas se a sua intenção é esquecer do outro ou oprimi-lo, seja por uma cruzada (interna), uma inquisição (externa) ou separação financeira (moderna) – saiba que isso não é verdadeiramente Cristianismo... Nossas contradições não devem ser objeto de vergonha, mas antes devem ser dissolvidas com solenidade, festas e bandas de música. Sem dúvida, as contradições expostas na Bíblia, antes de representarem um perigo, são a sua maior riqueza: são testes terríveis para as teóricas intenções de conseguir tecer a teia longamente esperada da fraternidade e da cooperação. Não de uma unidade inatingível, porque o texto em 293 que se baseia é soberano e lindamente equívoco. Muito bom para homens imperfeitos e falíveis... Acolher o diferente, a diversidade cultural – eis o principal compromisso do cristão no século XXI que nos livrará do inferno. E o impasse mais palpável para todos é reconhecer que Jesus compreendeu a imensa dificuldade que temos em superar o próprio egoísmo, a ponto de um filósofo existencialista e ateu, como o francês JeanPaul Sartre (1905-1980), haver resumido a grandeza de nosso drama humano: “o inferno são os outros!” É preciso dizer que a Igreja católica desperta ódio em algumas denominações protestantes e fundamentalistas por um curioso fenômeno de inveja material: estas não suportam o tamanho, o peso e o sucesso da instituição, mesmo com os erros cometidos e as dificuldades e descrenças do mundo contemporâneo. Imputando à estrutura católica praticamente todos os enganos, tais organizações e seitas também demonstram o secreto e velado desejo de também crescer como em dois mil anos ela conseguiu, copiando-lhe a vitoriosa estrutura administrativa. Sob o hábil e piedoso pretexto de salvar os fiéis, elas tentam substituir o objeto de ódio por si mesmas e seu crescimento é patrocinado por uma facilidade enorme em abrir mão de princípios, como vimos no caso da intolerância racial que afetava algumas delas, desde o século XIX. Em troca de mais adeptos e seguidores, sempre aparecia uma iluminação interveniente, vinda de não sei onde, para confirmar a mudança doutrinária antes defendida, a ferro e fogo, por seus fundadores. Isso me lembra a grande frase de Groucho Marx (1890-1977), um humorista norte-americano, que dizia: “se você não gostou dos meus princípios, não importa, tenho outros...”768 É, todavia, nessa zona de sombras em que são comercializados os princípios, que entra o diabo. Como podem sobreviver denominações e seitas que pregam o amor ao próximo se nem sabem conviver entre si? É em tal fresta sem luz que o demônio atua, chupando tudo ao redor, como um buraco negro ideológico. É aí que ele ressurge, com todo o arsenal de disfarces e manipulações, criatura angélica, criada por Deus mas que, exercendo de maneira intransferível o livre-arbítrio que o Ser Supremo lhe concedeu, decidiu se revoltar, cioso de que era um ser magnífico e que, por isso, em sua soberba, poderia enfrentar o Criador. Esse movimento de revolta e rebeldia permeia toda a história sagrada até o grande momento em que Cristo, o Filho, é tentado no deserto. O diabo ofereceu-lhe o Universo inteiro, pedindo em troca “apenas” ser adorado. Comportava-se então como um parente próximo a Jesus. Ao dizer que “nem só de pão vive o homem...”, Jesus o venceu, após quarenta dias de jejum, mas nem por isso o fulminou. O diabo não foi aniquilado e continuou andando, como uma serpente, pela história do mundo. Se Jesus não o matou é porque para os cristãos ele tem alguma serventia... O homem foi salvo na Cruz dos próprios pecados através do Cristo, mas não das tentações do diabo. E o ser angélico é decaído, mas não é distraído. Está sempre presente, o tinhoso, pronto a nos tentar, até fingindo para os filósofos, políticos e Groucho era líder em frases espirituosas: “todo mundo precisa crer em algo. Creio que vou tomar uma cerveja” – brincava ele... 768 294 dirigentes mundiais de que não existe. Essa é a sua principal artimanha. Ele é determinado e decidido, sabendo se aproveitar das fraquezas humanas. Das minhas então se aproveitou muito. Em inúmeros momentos de minha existência senti sua mão, tentando me cooptar... Os cristãos devem ser lembrados sempre de que Satanás é um anjo decaído, sim, mas é de fato um anjo. Tem poderes. Não é um pervertido, porque Deus não criaria perversões, mas provoca perversões no reino da Criação. E é nosso livre-arbítrio que irá decidir se ele merece ou não ser ouvido. Se ficarmos distantes uns dos outros, como cristãos separados, com certeza o diabo terá conseguido o que deseja, a nossa divisão e fraqueza. Ele não participa do mal, ele o insufla, negando as próprias origens, que são divinas... Nesse sentido, o diabo não é hetero nem homossexual, ele é pós-moderno. E pretende nos desafiar até o fim dos dias... 295 10º INTERVALO – UM ANJO SALVOU MINHA VIDA Muitos não acreditam que Deus exista e tais pessoas merecem meu mais profundo respeito. São pessoas torturadas pela injustiça e pelo desconcerto do mundo. Elas vivenciam profundamente o absurdo da vida e transformam essa inconformidade no dado mais importante de suas existências. A frágil condição humana leva-nos constantemente a dúvidas sobre a necessidade de Deus em no cotidiano, sobretudo quando contemplamos tragédias inexplicáveis como a morte de um ente muito querido ou de inocentes, em catástrofes naturais. A contabilidade sideral é irônica e, sem dúvida, acima de nossa percepção banal. Falar de Deus a um descrente seria o mesmo que descrever a cor amarela para um cego de nascença. Não há a perspectiva de realização e talvez muita dificuldade na compreensão do próprio significado. Mas o Arcanjo mandou suas hostes todas e estou vivo e ficando, a cada dia, melhor. Mas não posso deixar de contar-lhes que foi outro anjo o responsável por minha salvação. O meu anjo voltou de meu passado amoroso como a mulher de Vinícius: com o olhar cheio de amor e as mãos repletas de perdão. Ela bateu em todas as portas, moveu mundos e fundos para que não ficasse desamparado. Cuidou para que tivesse o melhor atendimento, apesar das vicissitudes conhecidas de nossa saúde pública, e consegui me submeter a uma cirurgia para, agora, com paciência, reaprender a utilizar um braço, que estaria para sempre ultrajado e condenado. A enfermeira de quem me separei um dia, porque não suportava em meu egoísmo repartir sua bondade com todos os que ela sempre atendeu e acolheu – como amiga, parente e profissional de saúde que leva a sério o ato de cuidar – voltou para mim e não precisou de que eu dissesse palavra, que demonstrasse estar no fundo do poço, para que ela oferecesse as mãos, sem cobranças, para ajudar a me reerguer. Agora compreendo o que Drummond dizia em seu célebre verso: “Amor é o que se aprende no limite, depois de se arquivar toda a ciência herdada, ouvida. Amor começa tarde.” e acrescentaria, não sem a vulgaridade do bom-senso: “antes tarde do que nunca”. Curioso o fato de, apesar desse turbilhão de dor, Deus me dar a prova de sua presença, trazendo para perto alguém que não possui conflitos com os meus valores. Alguém que sabe ouvir, sorrir e conversar e que passou a vida inteira notando realmente a presença do outro, como boa cristã. Volto a Vinícius: “uma mulher me ama e me ilumina”. Estou no outono da vida, mas antes do pôr-do-sol tenho o dever de agradecer: apesar de todos os sofrimentos e de alguns inimigos que puseram espinhos em meu caminho, encontrei acolhimento e os sinais de Deus espalhados pelo chão. Foram tantos na trajetória, que, quando caí, Ele me carregou nas costas até que pudesse estar ereto de novo. Para tanto, Deus selecionou-me os seus agentes e eles não titubearam um só instante em me ceder o perdão e uma nova chance. 296 Estou aqui, de peito aberto, para recomeçar e não olhar com amargura o retrovisor. Graças a ela, pude compreender que há ainda esperança em meu viver e que poderei amar ainda, agora de maneira responsável e plena, porque tenho diante de mim alguém que a todo instante, neste mundo desonesto, neste vale de lágrimas de ignomínias e injustiças, demonstra que não bastam apenas palavras, é preciso fazer obras para agilizar e bem representar a providência divina. Agora sei que sou um pobre escritor e que, no sentido típico e genuíno do que nos ensinou o apóstolo Paulo, ela é muito mais cristã do que eu. Por sua causa percebo, enfim, o que é transpor a cegueira do caminho de Damasco. Obrigado por seu amor e por tudo. Peço-lhe, com humildade, que aceite também o meu amor. Estou me convidando a ser feliz... 30 de agosto de 2008. OS SINAIS Você andou sobre as águas, Em mar revolto, encrespado, E tive tanto medo como aquele Pedro, Afundando sem crer em seus sinais. Eis que em meu puro desespero De criatura, acostumada com o menos, Você ofereceu-me a mão forte E o conforto maior de que precisava. Na travessia do mar escuro, Já estava na glória de Seu Nome E, aturdido, mal sabia... Por que a natureza humana é tão tola Que precisa de atroz sofrimento para acordar? Somos seres tão imbecis e avaros, Que não entendemos a nossa delicadeza Vista do alto, qual diligentes formigas Para o paciente entomólogo? Com que facilidade Você opera, Ó Senhor, quando olha clemente o seu filho, Que enfrentou o próprio silêncio E a dor, como prenúncio de morte, Sem saber que ultrapassava o umbral Da nova vida, ofertada como convite, Sem intenção forçada ou remordimento! Senti então, não sem alegria e júbilo, E chorando baixinho, para ninguém ouvir, 297 Você me dizendo: "Vem, meu filho! Você estava longe, nem me escutava, Mas eu o amo mesmo assim, Porque, embora não soubesse, Você pertence todo a mim..." 7 de agosto de 2008. 298 EPÍLOGO: UMA CAMINHADA ESPIRITUAL “As Bíblias do saber foram outrora as Sumas: faltam-nos hoje as Sumas, e ninguém entre nós seria capaz de compor uma. Tudo é caótico. Mas se ainda é cedo para redigir uma Suma coletiva, pelo menos cada homem que pensa e que deseja verdadeiramente saber, pode tentar constituir a sua Suma pessoal, isto é, pôr ordem nos conhecimentos, invocando os princípios desta ordem, ou seja, filosofando e coroando a sua filosofia por uma teologia sumária, mas profunda.” A. D. Sertillanges, 1920. “Eu me contradigo, sou amplo, contenho multidões.” Walt Whitman “A melhor religião é aquela que te faz melhor. Aquilo que te faça mais compassivo, mais sensível, mais desapegado, mais amoroso, mais humanitário, mais responsável. A religião que fizer isso de ti é a melhor.” Dalai Lama 299 Todos os que leram a Bíblia, tenham vocação religiosa, convicções ou compromisso com alguma denominação ou seita, têm preferência por algum de seus trechos ou passagens. Como vimos, tenho predileção por dois de seus momentos mais significativos: o capítulo 13 da 1ª Epístola de Paulo aos Coríntios e o Sermão da Montanha, a partir do 5º capítulo do Evangelho de Mateus, não necessariamente nessa ordem. Do meu ponto de vista, esses trechos, bem como sua aceitação e acolhimento, servem para definir os propósitos interiores de um ser humano rumo à escolha de um modo cristão e singular de viver... No entanto, existe um momento do Evangelho de Marcos que me sacode interiormente, porque representa a mais viva contradição que repercute dentro do meu ser. Esse trecho representa a tradução mais viva da encruzilhada imposta a um indivíduo na caminhada de conversão e luta para bem conviver com Deus. Por isso, fiz questão de guardá-lo para este final: “Ao que lhe respondeu Jesus: Se podes! Tudo é possível ao que crê. E imediatamente o pai do menino exclamou [com lágrimas]: Eu creio! Ajudame na minha falta de fé!”769 Nem gosto, particularmente, do Evangelho de Marcos como um todo. Acho-o muito esquemático e popular demais, muito abaixo do que representam os de Mateus e Lucas, bem como do mais profundo e espiritual, que é o Evangelho de João. Essa é minha opinião pessoal, que não advém de nenhum comentador: é a minha impressão. No entanto, aquela passagem me comove profundamente, a ponto de ter chorado ao relê-la. Talvez porque exiba em poucas e ternas palavras os doces dilemas que atravancaram minha vida em relação às questões de fé. Essa pobre criatura sempre teve dúvidas, sempre colocava um “mas...” diante dos doces mistérios e deixava o próprio coração de reserva, pensando que só a razão merecesse prevalecer. Afinal, o mundo e a pós-modernidade convidam aos exercícios racionais e ao ateísmo, enquanto a fé é tão indivisível e simples! Enquanto a dúvida torna-se um intermezzo, um intervalo mental de duelo, na fé você se entrega por inteiro, sem medo ou qualquer divisão interior. Só que esse estado d’alma é tão nobre que muito poucos o conseguem alcançar. Os que o conseguem, em maior grau de entrega, são entre nós chamados santos. E, quando sobem aos céus, são identificados como anjos... O trabalho de Jesus foi, nesse sentido, bastante eficiente. Ele carregou na cruz a humanidade inteira e ainda ouve, generoso, os nossos pedidos. Só que assim ficou muito ocupado e então soube delegar e dividir, com sabedoria, todo o ofício de salvar entre os anjos (que anunciam o Seu Nome) e os santos (que evangelizam em nome de Sua Lembrança)770. Assim, passamos a compreender que o universo é hierárquico, com divisões de aperfeiçoamento, onde os espíritos se dividem de acordo com o grau de desenvolvimento. São muitos os luzeiros no céu, as casas do Pai, em que repousam as almas inquietas e procuram (re) encarnar na busca de novos conhecimentos e novas existências, na aventura infra-celeste de retorno ao colo divino. Esse é um mistério tão profundo que o poeta brasileiro Vinícius de Moraes costumava perguntar a Deus, na letra de uma de suas canções populares: “Se foi pra desfazer, por que é que fez?” 769 770 Cf. Mc., 9: 23-24. “Fazei isso em memória de mim.” (cf. Lc., 22:19) 300 Tal pergunta significativa e metafísica na mente de um ateu sempre me fez refletir. Enquanto resta a dúvida, sempre nos defrontamos com a pergunta básica sobre a existência de Deus. Essa inquietação desesperada parece conviver com toda a nossa existência. Parece um defeito de fabricação que alguns chamam de pecado original. Para os que não acreditam no pecado, achando-o chato de entender e sobretudo injusto, Chesterton, um ateu que se converteu ao catolicismo (e os convertidos devem ser lidos com bastante atenção) assinalava: “quem não acredita nele [no pecado original], basta abrir um jornal todo dia!”. Um teólogo católico ajunta outro dado a esse debate: “A verdade, porém, é que quem recusa o universo de Deus está muito perto de recusar o Deus do universo. E o fato é que atingimos aqui o coração da atitude religiosa ou a-religiosa, de um grande número de nossos contemporâneos. Não se trata, propriamente, de ateísmo. Pelo menos, não é o caso do ateísmo especulativo, pois nunca ninguém provou a inexistência de Deus. No plano das razões e das provas, não há dúvida que as probabilidades da existência de Deus são incomparavelmente maiores do que as probabilidades da não existência.”771 De fato, a oposição entre o Deus invisível e sua criação ocupam quase que totalmente os espaços opacos de mistério em que repousam as nossas dúvidas, causando-nos enorme sofrimento. Outro teólogo, desta vez protestante, opina sobre o ateísmo, assinalando o sentido de sua procura: “busco Jesus, em quem o invisível assume um rosto”772. Acontece que a própria pesquisa de Deus é muito difícil, apesar de seus vertiginosos apelos históricos, registrados no próprio texto sagrado: “Por exemplo, três quartos da Bíblia registram o fracasso espetacular da aliança de Deus com os israelitas. No final do Antigo Testamento, o sonho de levar a luz aos gentios termina quando os exércitos gentios aniquilam totalmente os portadores escolhidos dessa luz. Mas, quando o apóstolo Paulo relembra essa história, a história de sua etnia, vê uma avanço maior. Sem o “não” de Israel, a igreja cristã teria permanecido uma seita messiânica judaica sem importância; a rejeição libertou o evangelho, para que se espalhasse pelo mundo conhecido.”773 Assim, o caminho para o descrente é a denúncia do paradoxo, que não deixa de ser um dos alicerces da fé cristã. Nela, o adepto vive sempre diante do mistério, sem esquecer que nem tudo pode ser esclarecido e a maioria dos temas passa por contradições. E o próprio Livro Sagrado espelha isso por todo o decorrer: “Na história da igreja, os líderes cristãos demonstram a tendência de encontrar uma definição para tudo, de reduzir o comportamento e a doutrina a valores absolutos que pudessem ser respondidos como verdadeiro ou falso. No fundo, não encontro essa tendência na Bíblia. Muito pelo contrário, encontro o mistério e a incerteza que caracterizam qualquer relacionamento, Cf. CONGAR, Yves M. J. “O Problema do Mal”, p. 686, in Deus, o Homem e o Universo, op. cit. Cf. YANCEY, Philip. O Deus Invisível, p. 168, op. cit. 773 Idem, p. 255, op. cit. 771 772 301 especialmente o relacionamento entre um Deus perfeito e seres humanos falíveis.”774 O divisor de águas entre ateísmo e crença parece, portanto, ficar bem claro: “podemos temer a Deus ou temer todas as coisas; ou confiar em Deus ou não confiar em nada”775. Nesse sentido, muitos ateus, mesmo se justificando por nobres motivos, preferem a recusa de ser e o endeusamento do nada. Permitindo-se tudo, fazendo tudo sem qualquer critério, o homem contemporâneo nem consegue realmente compreender porque tanto sofre. Nesse sentido, a Bíblia é um livro extraordinário, porque nos indica novos caminhos, que parecem velhos, para que os seres humanos possam reencontrar a paz verdadeira. E arrancar de si a depressão, podendo seguir decidido, cá entre nós é uma brilhante escolha. Para encontrar a tão almejada paz, todavia, nosso individualismo deve ceder lugar à linguagem do amor, que supõe o cuidado com alguém semelhante a nós e que merece e evoca um grande respeito. Procurando fugir à armadilha comum entre o falso e o verdadeiro, palmilhei de propósito neste livro diversas identidades religiosas. Em alguns momentos, expressei simpatias pelos sonhos do Cristianismo esotérico, com a percepção dos iniciados sobre as doutrinas secretas de Jesus; logo ali, fui adepto do Cristianismo popular, lutando por compreender os mistérios da Trindade, os sacramentos da Igreja e o papel de Maria como Mãe e suprema bênção dos católicos; mais além, vesti-me de protestante, caprichando nas citações bíblicas, como se aceitasse de bom grado as olimpíadas religiosas em que alguns pastores se metem, tentando provar entre eles quem sabe mais versículos de cor; mais adiante, tornei-me crítico feroz das condutas religiosas fundamentalistas, principalmente quando se utilizam de seitas separadas para desenhar um muro de virtudes completamente artificial – enfim, um longo caminho para demonstrar que não é suficiente se pautar pelo que diz exclusivamente o Livro Sagrado, porque ele é muito rico e contraditório, capaz de acomodar centenas de apetites e convicções muitas vezes fanatizados e divergentes. Alguns céticos provavelmente irão me acusar de haver arrombado portas abertas. Que a Bíblia, analisada friamente por quem dela descrê, é repleta de belas e fecundas contradições, servindo num momento aos iconoclastas, destruidores de ídolos, ora aos que pretendem manter imagens religiosas, valorizando a “comunhão dos santos”; assim como traz alento aos adeptos da teoria da reencarnação, enquanto os demais fiéis, que percorrem avidamente outros de seus trechos, deduzem o contrário, ou seja, conseguem provar que antes do Juízo só vivemos uma vez... Seria esse um desserviço meu à causa religiosa? Evidentemente que não, tampouco foi essa a minha intenção. Penso, muito ao converso, que é em suas contradições profundas que a Bíblia Sagrada ganha peso e beleza, conseguindo, por causa disso, galvanizar multidões. Neste século XXI, infelizmente, os cristãos não estão unidos, estão dispersos, em diáspora. Vivem fervilhando em torno de uma pletora de seitas e denominações que 774 775 Idem, p. 85, op. cit. Idem, p. 65, op. cit. 302 mutuamente se afastam. Precisamos, sem demora, fazer o caminho de volta, mas sem cobranças ou acusações de ordem metafísica... Quando vemos, por outro lado, no Brasil, em qualquer lugar que se percorra, centenas de entidades evangélicas, de pequeno porte, à beira das estradas ou penduradas em favelas e confins, quando encontramos nos municípios mais afastados uma pobre igrejinha católica no centro de uma praça ou escondida nas periferias miseráveis – realmente temos que concordar que a mensagem de Jesus prosperou e, de tal modo teve êxito em nosso meio que, para algumas seitas, se transformou em gigantesco objeto de negócio. Como é bom ganhar dinheiro tendo o Cristo como fiador!? Afinal, Ele é garantia para o investidor religioso: Ele nos ama, é fiel e não nos trai nunca. Já pensou você ter um sócio numa empresa que jamais lhe trai? No entanto, Deus não pode nem deve ser objeto de negócio e Jesus não pode nem deve proporcionar fortunas... Ocorre que em meu entender essa conduta só contribui para afastar pessoas desconfiadas e de boa ética, preocupadas em não misturar as convicções mais profundas com mera especulação comercial. Os telepastores invadiram com toda força os meios de comunicação numa guinada espetacular, quando sabemos que nos idos dos anos 50 do século passado os protestantes condenavam o rádio e a televisão como veículos do demo, do inimigo, porque disseminavam por milhões ídolos e imagens malditas. Hoje, é tudo diferente: temos pastores e missionários donos de horários nas TVs abertas e a cabo, proprietários de estações de rádio e de redes de televisão, utilizando os programas de evangelização para obter patrocínios e coletar fundos. Algumas denominações fundamentalistas, inclusive, abandonaram a intolerância racial de suas doutrinas de raiz em nome da obtenção de novos correligionários e fiéis, além, é claro, de expandir o apelo institucional pelos países mais pobres de Terceiro Mundo. Tomam-se dinheiros e ofertas das populações deseducadas e indefesas, em nome de um pretenso horror à atuação do diabo (chamado de cinco em cinco segundos de Inimigo), repetindo-se com o auxílio da tecnologia eletrônica o mesmo tráfico de simonias (obtenção da salvação em troca de bens financeiros) condenado por Lutero e seus seguidores na reforma protestante do século XVI. E tal conduta obscena da teoria da prosperidade só não virou uma imposição de algumas seitas evangélicas contra a população como um todo, em virtude de o Estado ser separado da religião por imperativo constitucional. Aliás, o perigo das religiões evangélicas que utilizam a teoria da prosperidade é o imediatismo, a gana por dinheiro que passa por cima da memória cristã, que na Igreja se chama “catolicidade” e sustenta a instituição há dois milênios. Quantos santos perderam a própria vida, destituíram-se dos bens e haveres para viver uma vida miserável em nome de Jesus, enquanto vemos pastores com mansões, aviões e acusados de crimes de colarinho branco e lavagem de dinheiro? O pedido de perdão de João Paulo II aos judeus, negros e índios, durante o seu pontificado, ratificou o propósito da Igreja católica de limpar o terreno dos pecados 303 históricos cometidos contra esses grupos, preparando um novo diálogo que pouco a pouco vai trazendo de volta, para desfrutar da mesma mesa em comunhão, os irmãos ortodoxos, protestantes, judeus e muçulmanos. Quem sabe teremos a favor do Espírito, algum dia, a fundação de uma ONU religiosa da mesma forma que temos, desde 1948, uma organização como as Nações Unidas de cunho apenas político e social? Essa é a minha esperança, vista ainda como utopia no momento em que escrevo as últimas linhas deste livro, porque reunir irmãos separados é muito mais difícil do que somente garantir-lhes espaços institucionais de liberdade. O Brasil é um grande país católico, cheio de espíritas e evangélicos. Aqui já se fez o sincretismo religioso na prática e qualquer tentativa de estabelecer o ódio religioso não prosperará, porque o brasileiro é , antes de tudo, católico-espírita, que crê em reencarnação, aceita os umbandistas e as religiões africanas de bom grado, mas não deixa de assistir às dezenas de programas de TV onde os telepastores procuram convencê-lo a contribuir com dízimos e ofertas para melhorar de vida e evitar o castigo (ou aniquilamento – é pra quem quer) no Juízo Final. Aliás, a ONU religiosa começaria aqui, onde temos uma capital da República repleta de seitas esotéricas e abençoada ao mesmo tempo pelo sonho de João Bosco.776 *** A dúvida não me fez feliz. Ergueu o intelectual, mas desfez o homem nas brumas da desconfiança e da busca sem paz, dissolvente. Quando me defrontei com a confusão do cristianismo primitivo, na multidão de hostes e seitas, me embaralhei também nas escolhas que os cristãos tiveram que fazer, às vezes sob o custo das próprias vidas. Engalfinhei-me com os meus vícios e minha insana boêmia, que quase me conduziram à morte na pós-modernidade e descobri, por fim, um fio condutor, uma razão de viver que só poderia se justificar plenamente com o freio de arrumação preparado por Jesus, meu Pai. Ele afirmou com todas as letras, queimando-as com fogo e cicatriz o meu lombo, a ordem que deveria seguir: “agora você, filho, pertence ao meu time e não adianta mais fugir...” A dimensão da empreitada às vezes cega a vista e faz o viajante claudicar na caminhada. Fugir do diabo é até simples, mas do ônus de sua obra fica muito difícil para o frágil ser humano. Seus disfarces e apelos subterrâneos, a simulação e influência na 776 O sonho de Dom Bosco, em 1883, sobre uma nova civilização espiritual que seria fundada no planalto central brasileiro, foi parcialmente realizado com a fundação de Brasília (1960) que mantém vasta gama de seitas e organizações espirituais e esotéricas. A arquitetura da cidade, ao contrário da mentalidade conservadora dos políticos e da burocracia federal ali instalada, aponta para um futuro de pluralismo ideológico, concórdia cidadã, tolerância racial e respeito espiritual que possam fazer do Brasil um grande exemplo para o mundo. Rezemos! 304 política e nos costumes demonstram que resta muito pouca massa de manobra para a criatura, que se debate neste mundo em meio a tentações e desesperanças. Este momento de minha vida foi crucial, emotivo e cruciante. O hospital onde estive, o palpável hálito da morte e a cicatriz, para sempre, pareceu-me, a princípio, um enorme castigo. Naquele momento, a pobre e sofrida criatura gritou do fundo do peito para Deus: “eu não mereço!”. Ocorre que o tempo passou, com seu navio misterioso e nevoento, e descobri que antes de portar uma chaga permanente, recebi Dele uma bênção particular e exclusiva. E com ela voltaram, como por encanto, o perfume das flores e o desejo de acreditar. Lembrei-me da agonia de minha mãe, clamando pela Virgem Maria no leito de morte e zangada com Jesus porque Ele lhe aparecia, mas parecendo não a querer levar (que malvado!) e percebi que só me restava o retorno para o colo do Senhor. Sabe, eu voltei, de mãos vazias e coração retalhado. Mas não é que vislumbrei, de fato, o inefável panorama?, a sensação de brisa fresca e terna de que minha volta não era nem um pouco surpreendente, porque ao entrar a mesa estava posta por Ele... E cada coisa em seu lugar... 305 306 307