Iniciação sexual de mulheres jovens vivendo com HIV/Aids no município de São Paulo Introdução Nos últimos 15 anos, o número de novas infecções pelo HIV diminuiu em 35% no mundo; no entanto, a cada dia, cerca de 1000 jovens mulheres são infectadas pelo vírus (UNAIDS, 2014). Entre os jovens que vivem com HIV/Aids, merecem especial atenção os infectados por transmissão vertical, via de infecção de 92,8% dos menores de 13 anos diagnosticados com o vírus no Brasil, até junho de 2014 (BRASIL, 2014). Considerando a prevalência do HIV na população brasileira, estima-se que cerca de 12.000 recém-nascidos são anualmente expostos ao vírus (BRASIL, 2014). Os primeiros casos de transmissão vertical do HIV, no Brasil, foram identificados na segunda metade da década de 80. Assim, a sociedade defronta-se, atualmente, com a primeira geração de indivíduos que chegaram à juventude e à vida adulta - e consequentemente à vivência da sexualidade com parceiro - cientes de sua condição sorológica e do modo como foram infectados. Embora muito tenha se produzido sobre HIV/Aids ao longo das quatro décadas da epidemia, no Brasil, ainda há pouca investigação na literatura científica a respeito da sexualidade e dos contextos de iniciação sexual dos jovens que adquiriram o HIV por transmissão vertical. Os poucos estudos realizados evidenciam as dificuldades vividas por esses jovens na tentativa de administrar “a condição de soropositividade em seus relacionamentos afetivos” (PAIVA et. al., 2011, p. 4204). Considerando o exposto acima, o estudo aqui descrito teve como objetivo conhecer as características relacionadas à iniciação sexual de mulheres jovens, com idades entre 18 e 24 anos, vivendo com HIV/Aids no município de São Paulo, a fim de investigar em que dimensões a condição sorológica – no caso daquelas infectadas por transmissão vertical - imprime especificidades no processo de iniciação sexual dessas jovens. Material e Métodos Entre os meses de fevereiro de 2013 e janeiro de 2016, foram entrevistadas, no estudo GENIH1, 975 mulheres vivendo com HIV (MVHA), com idades entre 18 e 49 anos, nas 18 unidades de referência ao tratamento de HIV/Aids no município de São Paulo, bem como 1003 mulheres não vivendo com HIV (MNVHA), da mesma faixa etária, usuárias da rede pública de saúde do município. Foram coletados dados sociodemográficos, características do primeiro e do último relacionamento afetivo-sexual, além de informações sobre comportamento sexual, reprodutivo, contraceptivo e preventivo a DST/AIDS ao longo da vida. Para fins do presente estudo, utilizaram-se os dados obtidos nas entrevistas realizadas com as jovens entre 18 e 24 anos. Atendiam a esse critério 257 jovens usuárias da atenção da básica e 130 moças vivendo com HIV. Foi realizada uma análise descritiva bivariada - por meio do software SPSS – das variáveis relacionadas aos contextos de iniciação sexual desse grupo de entrevistadas. O estudo foi conduzido 1 Coordenado pela Prof. Dra. Regina Maria Barbosa, do NEPO/UNICAMP, com financiamento da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e do CNPq. de acordo com os princípios da Declaração de Helsinque e observando os requisitos da Resolução 466, estabelecida em 2012, pelo Conselho Nacional de Saúde para pesquisas com seres humanos (BRASIL, 2012). Resultados e discussão Os resultados aqui apresentados referem-se ao calendário de iniciação sexual das jovens entrevistadas. Ainda que se compreenda a iniciação sexual como um processo de experimentação social, em que o jovem familiariza-se com valores, representações e expectativas de gênero da cultura sexual em que está inserido, o evento da primeira relação sexual corresponde a um “bom indicador das maneiras diferenciadas de viver a sexualidade na adolescência, podendo-se constituir em um bom preditor de comportamentos futuros” (BOZON; HEILBORN, 2006, p. 156). Consideraram-se as respostas referentes à primeira relação sexual consentida, ainda que, anteriormente, a jovem tenha vivenciado uma experiência de sexo forçado. O estudo GENIH não entrevistou, entre as MNVHA, aquelas que se declararam como virgens. Já no grupo de MVHA, foram entrevistadas aquelas que ainda não haviam iniciado a vida sexual, a fim de se investigar se a condição sorológica teria alguma relação com esse aspecto da sexualidade. No conjunto das MVHA, observou-se associação entre já ter iniciado a vida sexual e a forma de infecção pelo HIV: aproximadamente 20% das entrevistadas, cuja infecção foi por transmissão vertical (TV), ainda não havia tido experiência sexual; enquanto, dentre as jovens infectadas por “outras vias”, havia apenas uma virgem. Cabe destacar que o conjunto das jovens infectadas por “outras vias” é composto, basicamente, por aquelas que declararam a transmissão sexual do HIV como a provável forma de aquisição do vírus. A idade mediana na iniciação sexual foi examinada, comparando-se então três subgrupos: as jovens infectadas pelo HIV por TV; as jovens com outras vias de infecção do HIV; as jovens que não vivem com HIV (oriundas da amostra das mulheres da atenção básica). Observa-se um gradiente na idade mediana da iniciação sexual nesses três subgrupos: 15 anos para as moças que foram infectadas por outras vias; 16 anos para as MNVHA e 17 anos para as que são TV. Tabela 1 – Idade mediana, em anos, na primeira relação sexual, por status sorológico e via de infecção Idade mediana na Iniciação Sexual Da jovem Do parceiro Transmissão Vertical 17 19 MVHA Outras vias de infecção 15 20 MNVHA Jovens não vivendo com HIV 16 19 Fonte: Estudo GENIH. Município de São Paulo, 2013‐2014. Esse calendário diferenciado requer análises e interpretações específicas. Em primeiro lugar, é importante analisar as características sociodemográficas desses dois grupos de jovens vivendo com HIV, uma vez que a origem e as características biográficas, como escolaridade (da mãe e da jovem), religião da família e renda familiar tendem a interferir no processo de iniciação sexual feminino de forma significativa (BOZON, HEILBORN, 2006; PAIVA et. al., 2008). Uma análise inicial dos aspectos sociodemográficos não revelou diferenças significativas com relação à cor autodeclarada, predominando, nos dois grupos de jovens vivendo com HIV, as pardas e pretas. Idem em relação à religião da entrevistada: os dois grupos são compostos por uma terça parte de jovens sem religião e uma maioria de jovens cristãs entre aquelas que declararam ter religião. No entanto, as principais diferenças entre as jovens estão relacionadas à escolaridade da entrevistada e à escolaridade materna: as jovens infectadas por TV apresentam maior escolaridade que às demais, tendo em sua maioria concluído o Ensino Médio, aspecto radicalmente distinto das jovens do subgrupo “outras vias de infecção”, dentre as quais prepondera o nível fundamental de escolaridade. Além disso, percebem-se diferenças no calendário de iniciação sexual entre os dois grupos de mulheres (TV versus outras vias), com adiamento da iniciação sexual entre as infectadas por TV, ainda que comparadas apenas as jovens com o mesmo nível de escolaridade. Desde a década de 90, observa-se uma tendência à estabilização da idade de iniciação sexual com parceiro entre 15 e 19 anos, não apenas no Brasil, mas também em diversos outros países (PAIVA et. al., 2008; BOZON, HEILBORN, 2006). Entre as jovens entrevistadas no estudo GENIH, a primeira relação sexual distribui-se nesse mesmo intervalo; contudo, há uma diferença de dois anos entre a idade mediana de iniciação sexual das jovens vivendo com HIV quando segmentadas por modo de infecção. Assim, parece-nos que há uma potencialização destes dois elementos – ter adquirido o vírus por TV e ter prosseguido na trajetória escolar – no adiamento do início da vida sexual das jovens infectadas por TV. Outro aspecto examinado diz respeito às diferenças de idade entre parceiros na iniciação sexual. Há menor diferença de idade entre a jovem e seu parceiro no grupo infectado por TV. Entre as infectadas por outras vias essa diferença de idade acentua-se, uma vez que se trata do grupo em que as jovens se iniciaram mais cedo e, simultaneamente, daquele em que os parceiros tendem a ser mais velhos. Esses resultados sugerem diferenças nos contextos de socialização sexual dessas jovens e nas relações que estabelecem com seus parceiros. Parceiros mais velhos tendem a ser mais experientes e as relações entre os gêneros podem ser mais hierarquizadas nesses contextos (BOZON, HEILBORN, 2006). Cabe mencionar que as jovens infectadas por TV relatam poder contar mais com amigos, colegas e vizinhos (dados não apresentados). Esses dados sugerem a importância que o grupo de pares possui entre as jovens infectadas por TV, o que aparece em associação com as características de suas primeiras experiências afetivosexuais, que se dão em um contexto de maior semelhança com seus parceiros. Independente da via de infecção, mais de três quartos das entrevistadas relatam ter se iniciado sexualmente com um namorado. Outros estudos trazem dados semelhantes, sugerindo que “a iniciação sexual [...] continua a se realizar em um contexto bastante estruturado, por vezes rígido, sobretudo no que diz respeito às relações entre homens e mulheres” (BOZON, HEILBORN, 2006, p. 155). Esse estudo indica que a primeira relação sexual, para as mulheres, corresponde a uma experiência de aprendizagem da sexualidade cujo cerne é a dimensão afetiva, e não técnica, como tende a ocorrer entre os homens, tendo em vista sua maior frequência no contexto de relacionamentos considerados “estáveis” ou de parceria fixa. Essa característica também se confirma nesta investigação com as jovens vivendo com HIV/Aids. Conclusão Ainda que a epidemia de Aids entre jovens seja vista como um problema social ou uma emergência da saúde pública, muitas vezes não se considera a diversidade de experiências relacionadas à vivência desta infecção pelas mulheres jovens brasileiras, criando uma falsa sensação de homogeneidade. Perdem-se de vista aspectos importantes que interferem nas trajetórias individuais e nas relações que essas mulheres estabelecem entre si e com seus parceiros. Os resultados iniciais desta pesquisa já apontam para essa diferença de trajetórias, sugerindo que as jovens infectadas por TV se socializam em um ambiente familiar ou institucional que implica maior controle de suas condutas afetivo-sexuais, traduzida por um adiamento do início da vida sexual, ao contrário daquelas que se infectaram por outras vias. O estudo se encontra em andamento, e outros aspectos referentes ao contexto de iniciação sexual dessas jovens serão analisados, tais como número de parceiros ao longo da juventude, tempo de relacionamento transcorrido até a primeira relação sexual, uso de estratégias contraceptivas ou de prevenção a DSTs na primeira relação sexual, entre outros. Referências BOZON, M.; HEILBORN, M.L. Iniciação à sexualidade: modos de socialização, interações de gênero e trajetórias individuais. In: HEILBORN, M.L.; AQUINO, E.M.L.; BOZON, M., KNAUTH, D.R. (Orgs.). O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Garamond/Editora Fiocruz; 2006, p. 30-62. BRASIL. Resolução CNS no 466. Brasília: Ministério da Saúde – Conselho Nacional de Saúde, 2012. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_ 2012.html> Acesso em 17 nov. 2015. BRASIL. Boletim Epidemiológico Aids e DST. Ano III, no 1. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. PAIVA, V. et al. Idade e uso de preservativo na iniciação sexual de adolescentes brasileiros. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v.42, supl. 1, p. 45-53, jun. 2008. PAIVA, V. et al. A sexualidade de adolescentes vivendo com HIV: direitos e desafios para o cuidado. Ciência & Saúde Coletiva, v. 16, n.10, p. 4199-4210, out. 2011. UNAIDS. The Gap Report. UNAIDS, 2014. Disponível em: <http://www.unAids.org/ sites/default/files/en/media/unAids/contentassets/documents/unAidspublication/2014/UNAIDS_Ga p_report_en.pdf>. Acesso em 20 nov. 2015.