“CURSO DE PEDAGOGIA” – UM MANUAL PARA O CURSO DE FORMAÇÃO DE PROFESSOR Miguel André Berger Universidade Tiradentes/ Sergipe [email protected] Palavras-chave: manual pedagógico – ideário escolanovista – intelectual da educação. Introdução A História da Educação, enriquecendo-se a partir dos estudos culturais, demonstra crescente interesse pelos livros e, mais especificamente, os impressos pedagógicos utilizados no processo de formação do professor, suas condições de produção, circulação e apropriação, utilizando das contribuições teóricas de Chartier (1990). No Brasil, poucos estudos tratam da história do livro didático. Entre os estudos, destaca-se o de Circe Bittencourt (2008), que analisa a história do livro didático no processo de construção do ensino escolar brasileiro no decorrer do século XIX e primeiras décadas do século XX. Coloca que a origem do livro didático está vinculada ao poder instituído. Quando o Estado começa a se preocupar com a criação do sistema educacional surge a necessidade da criação do livro que se distingue da produção cultural dos demais livros. O livro didático vai exercer um papel relevante na construção do saber escolar, na divulgação das idéias e diretrizes que os dirigentes e intelectuais queriam imprimir ao ensino para concretização do ideário republicano visando à modernização do ensino e do país. Em síntese, o livro passa a ser um “veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura” (BITTENCOURT, 2008, p. 14). A obra didática era, inicialmente, concebida como principal instrumento para divulgação do ideário educacional, dependendo dela a formação do professor e do aluno. Nessa perspectiva podem-se distinguir dois tipos de literatura: o livro didático e o manual. O primeiro visava reunir textos de autores consagrados, sobretudo, as obras religiosas, para uso exclusivo dos professores. Esses livros eram utilizados para fazer as atividades e de cópias de trechos por parte dos alunos, ou então, para subsidiar o professor nas preleções junto aos alunos. O manual didático destinava-se também ao professor, surgindo com a criação das escolas normais para a formação de professores. Segundo Bittencourt (2008, p.31), muitos desses manuais, inicialmente era tradução de obras estrangeiras, passando depois a serem de autoria de homens de “confiança” do poder, que ocupavam posições como dirigentes educacionais. Os manuais pedagógicos constituem-se livros elaborados para formar futuros professores e que reuniam em escritos sintéticos e fáceis de ler as questões tidas como essenciais para os educadores, constituindo como produções intermediárias no campo educacional, segundo Silva (2003). Tinham como finalidade divulgar e elucidar ideias originadas não só da Pedagogia, como também em outros campos, acerca do ideário escolanovista, da pedagogia moderna, do método intuitivo, a fim de fundamentar o trabalho pedagógico nas primeiras décadas do século XX. O interesse pelo estudo desse material como um artefato da cultura pedagógica de uma época insere-se dentro de uma perspectiva teórico-metodológica que se situa no campo da História intelectual em sua interface com a História social e cultural, enriquecendo o campo da historiografia. As novas abordagens da História cultural remetem a objetos que extrapolam os limites encerrados nas hierarquias sociais e permitem traçar perfis de relações sociais que se estabelecem através de um conjunto de práticas culturais que delineiam as representações existentes em um determinado tempo e espaço. As representações constituem modos de pensar e de sentir que recortam configurações intelectuais específicas e só o são por terem sido apropriações dos sujeitos que viveram uma determinada época (CHARTIER, 1990). O livro é um desses objetos que carrega em si uma representação quase sagrada pelo saber que ele carrega, mas que estabelece diferentes formas de relação com o público que se apropria dos seus conteúdos, que se evidencia nas diferentes práticas de leitura. Perceber o livro como objeto cultural, significa inseri-lo no bojo de um movimento próprio de circulação da cultura e das mudanças as quais se está sujeito no processo civilizatório. Identificar o modo pelo qual este objeto é pensado, construído, dado a ler em uma determinada realidade social faz parte do modo como se escreve a história no âmbito das propostas da Nova História Cultural. Nesse artigo empreendemos uma análise do livro “Curso de Pedagogia – lições práticas elementares de Psicologia, Pedologia, Metodologia e Higiene Escolar, professadas na Escola Normal de Aracaju”, escrito por Helvécio de Andrade e publicado em 1913, pela Tipografia Popular. Esse livro foi direcionado à Escola Normal de Aracaju, localizada no Estado de Sergipe, por ser o lócus formador das futuras professoras primárias, responsáveis pela modernização educacional. No presente estudo buscamos detectar como Helvécio de Andrade concebe a Pedagogia, a Psicologia e sua contribuição na formação do professor? Quais os conceitos e prescrições estabelecidos para a Educação Física, Educação Intelectual e Educação Moral? Que princípios e métodos de ensino ele defende para concretização do ideário da Pedagogia Moderna? Em quais autores recorre para embasamento de suas colocações? Formação docente A Escola Normal foi uma das primeiras instituições criada com a finalidade de preparar professores para a instrução de primeiras letras. Essa preocupação surgiu tardiamente no Brasil em decorrência da expulsão da Companhia de Jesus dos domínios portugueses e o início do processo de laicização da instrução (VILLELA, 2008), tornando-se mais urgente com a promulgação do Ato Adicional de 1834 que transfere às províncias a responsabilidade pela organização de seus sistemas de ensino (primário e secundário) e a formação de professores. A primeira Escola Normal é criada em Niterói em 1830, sendo que depois se expande em diversas províncias, não havendo no início uma legislação para normatização do currículo e duração do curso (ARAÚJO, 2008). Eram criadas frente à preocupação dos dirigentes provinciais na formação de homens com a missão de elevar o nível intelectual e moral da população, unificando padrões culturais e de convivência social. Era uma medida para minimizar o atraso da instrução, visto como um dos aspectos que perturbava a segurança individual e pública. Em Sergipe, a primeira Escola Normal surge em 1870, tendo uma existência efêmera como em várias outras províncias. Passa a ter maior instabilidade após a proclamação da República, no Governo de Rodrigues Dórea, que cria um prédio próprio para sua instalação em 1911. Esse governante convida o professor paulista, Carlos da Silveira, que vem para Sergipe difundir para os professores, principalmente da Escola Normal, os novos métodos pedagógicos preconizados pela Pedagogia Moderna (VALENÇA, 2005). Essa pesquisadora ao analisar as representações da cultura escolar feminina na Escola Normal de Sergipe, comenta as várias propostas curriculares colocadas em prática no período de 1871 a 1931. Antes da Reforma empreendida no Governo de Rodrigues Dórea, o currículo era composto por disciplinas de conhecimento geral como Gramática Nacional Aritmética, História, Geografia e Francês, sendo depois incluídas as disciplinas Pedagogia, Metodologia, Higiene Doméstica e Instrução Moral e Cívica. Com a reforma, o currículo passou a incluir as disciplinas visando à transmissão de um conjunto de saberes necessários à formação do novo aluno e a formação pedagógica para o bom desempenho da função docente. Passaram a integrar o currículo as disciplinas de formação pedagógica: Pedagogia, Psicologia, Pedologia, Noções de Higiene Escolar. Além dessas foram acrescentadas as matérias Trabalhos Manuais, Música, Desenho e Caligrafia. Para efetivação dessas mudanças e propagação do ideário da Pedagogia Moderna, houve a participação de vários intelectuais. Além do professor paulista Carlos Silveira e do governador Rodrigues Dórea, se destacou o médico Helvécio de Andrade. O intelectual Helvécio de Andrade O sergipano Helvécio de Andrade nasceu em maio de 1864, em uma fazenda no município de Capela, e faleceu em 1940, dedicando grade parte de sua vida à medicina e à educação. De origem humilde, iniciou seus estudos em Estância contando com a ajuda de seu tio, dando continuidade aos estudos no Colégio Particular Santo Antonio (Bahia) e no Colégio Pedro II, o que favoreceu seu ingresso na Faculdade de Medicina da Bahia. Nesse ambiente acadêmico teve contato com as teorias de Lombroso, Haeckel, Littré e Spencer, que favoreceram Helvécio na compreensão da influencia do social na vida do indivíduo e do aparecimento das epidemias (VALENÇA, 2006). Também foi influenciado pelas idéias de August Comte, Strauss, Hahnemann, Hervel e Tardieu, esses três últimos do campo médico. A medicina social foi priorizada por esse intelectual e temas como a importância do médico na higiene pública teve um lugar de destaque nas discussões acadêmicas e em seus escritos. Após a conclusão do curso optou em exercer a profissão de clinicar em Própria (SE), município que se destacava no setor econômico, mas obteve pouco sucesso. Em 1889 resolveu atuar como Inspetor de Saúde, em Santos (São Paulo), a fim de contribuir no combate às epidemias que vinham dizimando a população. Durante a sua formação e desempenho como Inspetor sanitário, Helvécio de Andrade acumulou várias experiências e publicou artigos e livros que contribuíram para demarcar seu lugar no campo científico e social bem como consolidar um capital social. Diante das amizades no meio político, Helvécio de Andrade foi nomeado Inspetor Geral do Ensino Primário, quando se inteirou mais das iniciativas educacionais propostas por Caetano de Campos e do ideário escolanovista. Passou a se apropriar do discurso e conhecer as práticas contempladas pela Pedagogia Moderna que vinham sendo colocadas em prática em São Paulo. A Pedagogia Moderna difundia que o ambiente escolar deveria constituir em um espaço físico amplo, arejado e iluminado; a ordenação adequada do tempo e espaço escolar (FRAGO e ESCOLANO, 1998); a existência de mobiliário, material didático, compêndios e a adoção das cartilhas analíticas para favorecer o trabalho escolar. Além disso, o processo de aprendizagem deveria centrar-se no aluno, conforme os princípios defendidos por Dewey (1980). Diante de problemas de saúde que afetaram sua família, desiste do campo da medicina e passa a atuar no campo educacional, regressando para Sergipe. Em 1909, Helvécio de Andrade foi convidado para assumir o cargo de Delegado Fiscal do Governo Federal junto ao Colégio Atheneu, atuando também no campo médico e como educador, sendo que em suas publicações defendia a importância da implantação das práticas higienistas nas escolas. Para ter uma compreensão do indivíduo na sua condição social, Helvécio de Andrade buscava respaldo nos conhecimentos da Biologia, da Psicologia e da Sociologia. Em 1911, após o regresso do professor Carlos Silveira a São Paulo, Helvécio de Andrade foi nomeado pelo Governador Rodrigues Dórea para ser professor das cadeiras de Pedagogia, Pedologia e Higiene Escolar da Escola Normal. Ao assumir esta tarefa e com a pretensão de executar as diretrizes previstas na Reforma de Ensino, Helvécio definiu um programa para a cadeira, o qual estava afinado com as idéias defendidas pela Reforma Caetano de Campos implantada em São Paulo. Além de professor da Escola Normal, Helvécio de Andrade ocupou o cargo de Diretor da Instrução Pública em Sergipe durante mais de doze anos (1913-1918, 1926-1927, 1930-1935). Durante esse período produziu documentos oficiais, conferencias públicas, artigos para jornais, folhetos e livros, discutindo temas relacionados às áreas de saúde, higiene e educação. O livro “Curso de Pedagogia – lições práticas elementares de Psicologia, Pedologia, Metodologia e Higiene Escolar, professadas na Escola Normal de Aracaju”, foi um dos livros destinado ao curso responsável pela formação de professoras primárias. A produção e a circulação desse livro podem encontrar respaldo nas colocações de Bittencourt (2008), diante do cargo e do prestígio que Helvécio de Andrade gozava como homem de confiança do poder. Na concepção desse dirigente, esse livro era destinado aos professores primários, mas teve também outras repercussões, ao ser alvo de críticas por parte de Ítala Silva de Oliveira, normalista do Atheneu Sergipense, e do professor Ávila Lima. Essas querelas eram objeto de publicação nos jornais em circulação na capital sergipana, como uma forma de luta em busca de obter reconhecimento e a legitimidade das suas idéias por seus pares e concorrentes (VALENÇA, 2006). O livro “Curso de Pedagogia”. O livro consiste em uma publicação contendo 125 páginas, tendo o formato de 21 cm x 14 cm. Ele preserva o modelo de folhas dobradas, reunidas em cadernos e encadernadas que desde antes de Gutenberg perpetuaria a cultura do impresso (LUSTOSA, 2006). É de formato simples e sem ilustrações, já que em Sergipe o campo editorial não dispunha de procedimentos sofisticados. Isto favorecia o preço reduzido da obra, na expectativa de ser de fácil acesso ao estudante, conforme expõe Helvécio na parte introdutória. Não há, que me conste, no paiz, um livro que offereça ao estudante, com o preço reduzido, a vantagem de um plano de estudos, methodico e coordenado, das matérias que constituem o curso de Pedagogia em seus distinctos mas correlatos ramos. Aqui, porém, encontrarão os interessados os elementos de Psychologia Pedagogica, Pedologia, Methodologia e Hygiene Escola, elementos que, desenvolvidos pelo estudo e pela observação ou pelas mestras nas respectivas cathedras, darão ao professor primário os conhecimentos indispensáveis à perfeita comprehensão da sua difícil tarefa” (ANDRADE, 1913, p. I). As inscrições na capa dizem respeito ao título do livro e à subdivisão do mesmo em: Psicologia, Pedologia, Metodologia e Higiene Escolar. Traz claro o nome do autor, em letras cursivas bordadas, diferentes das demais, que são de imprensa, maiúsculas e minúsculas, variando também o tamanho das fontes. O nome e o endereço da editora vêm no final da página da capa, bem como a cidade e a data da edição. Tudo isso cercado por uma moldura razoavelmente simples, com pequenos arabescos em cada um dos cantos. O livro é composto de quatro partes, sendo cada destinada a uma das ciências da educação; essas partes se subdividem em lições. As lições são apresentadas de forma mais “ syntheticas que analyticas, em seu conjunto, segundo a forma das lições de Welch, as que melhor me impressionaram pela clareza e concisão” (ANDRADE, 1913, p. II). Na primeira parte apresenta as lições praticas elementares de Psicologia. Helvécio de Andrade concebe a Pedagogia como a ciência de instruir e educar as crianças, sendo a Psicologia a base da Pedagogia, como ciência da alma e de suas faculdades. Para esse intelectual a Pedagogia é a parte pratica, enquanto a Psicologia a parte teórica da ciência da educação. Também indica os objetos da psicologia, métodos de estudo e aplicações pedagógicas. Classifica os fatos psicológicos e dedica-se ao estudo de cada um: sensibilidade, sentidos corporais, sentimentos psíquicos, inteligência, atenção, percepção, intuição e a memória. Conclui esta parte com as noções acerca da educação física, intelectual e moral. Para comentar os fins da educação respalda-se em artigo publicado na Revista de Ensino (1911), sendo que também se apropriou das contribuições teóricas de vários educadores como Ernesto Weber; Jean Rousseau para explicar as etapas do desenvolvimento da criança; Welch para explicar o funcionamento do sistema nervoso; Comenius por destacar o papel e a importância dos sentidos na aquisição do conhecimento pelo ser humano bem como a necessidade de estruturar as situações de ensino partindo do concreto ao abstrato. Em relação à Educação Física, matéria que passa a integrar o currículo do Curso de formação de professores e, depois, do curso primário, Helvécio destaca sua importância “por desenvolver o organismo, gradual e harmoniosamente, com o fim de robustecer os membros e órgãos, e preservar a saúde” (1913, p. 41), traçando diretrizes de como deve ser desenvolvida na escola de acordo com a fase de desenvolvimento da criança. Coloca que a educação Física não pode dispensar a dos sentidos, sugerindo atividades e jogos para aperfeiçoamento da educação dos sentidos, a qual favorecerá a educação intelectual. Em relação à educação intelectual “esta tem por finalidade abastecer o espírito de conhecimentos, desenvolver o amor ao saber, preparar-se para aquisição do saber, e regular o exercício no emprego do saber” (REVISTA DO ENSINO, 1911, p. 55). Diz que a inteligência é constituída pelo conjunto dos poderes da mente, havendo necessidade de desenvolver as faculdades da mente, entre elas a percepção, a memória, a análise, a abstração, imaginação, classificação, juízo e raciocínio. Recorre às lições de coisas, respaldando-se em Calkins (1950), para o desenvolvimento de atividades que favoreçam o desenvolvimento da Inteligência. Sob a forma de licções de coisas devemos dar as creanças todos os conhecimentos uteis sobre os objectos communs, para mais tarde passar aos exercícios de leitura, escripta e calculo [...] Deve-se antes de tudo mostrar os objectos ás creanças, provocando-lhes por meio de perguntas as apreciações (ANDRADE, 1913, p. 46). Caso o professor não disponha do objeto, esse educador recomenda o uso de quadros, estampas, desenhos em relevo, sólidos geométricos, mapas, ou outros recursos. Na última lição trata da Educação Moral, colocando que a educação moral e a intelectual favorecem a educação mental. Por educação moral entende a sujeição dos nossos desejos e instintos ao domínio de uma vontade firme, cujas decisões estejam de acordo com os princípios da justiça, de verdade, sinceridade e direito, e na formação de uma consciência pura para com Deus e com os homens. Na sua concepção, a verdade e o dever devem ser ensinados às crianças por meio de casos particulares, reforçados por exemplos pessoais adequados, compartilhando das idéias de Pestalozzi. Além da família, o mestre tem um dever grande na formação do caráter dos seus alunos, segundo Helvécio de Andrade. A segunda parte do livro é dedicada ao tema “Pedologia”. Inicialmente faz uma caracterização da Pedagogia moderna, suas características e objetos. Defende que a Pedagogia Moderna consiste no conhecimento físico e psíquico da criança, constituindo um campo de estudo complexo, que recorre às ciências auxiliares, as quais o professor deve dominar. Coloca que o professor deve conhecer a criança para escolher o método de ensino mais adequado. Ilustra com o caso do horticultor, apropriando-se das ideias de Comenius. Um horticultor que não conhece bem as condições em que as plantas florescem e fructificam, pouca coisa colherão do seu trabalho [...] As creanças são como as plantas, precisam ser conhecidas e cultivadas em sua natureza, aptidões e inclinações (ANDRADE, 1913, p.52) A seguir, trata da Pedologia como o estudo experimental da criança sob o duplo ponto de vista físico e psíquico, campo esse que vai favorecer o professor na subordinação do ensino às necessidades da criança. Mais uma vez alerta o professor sobre a integração que deve existir entre a escola e a família na educação da criança, comungada à ação do médico. Também comenta a questão do crescimento físico e hereditário da criança, fatores do desenvolvimento mental, avaliação dos sentidos, memória, afetividade e fadiga. Ao comentar aqueles fatores destaca o papel do jogo, como o primeiro sinal do desenvolvimento próprio da criança, como um meio de expansão dos sentidos e das forças físicas. Recorre às contribuições de Claparede para fundamentar suas colocações e distinguir os tipos de jogos: afetivos, os que exercitam a atenção e os artísticos, e a Lombroso, com a teoria ativista para discutir a afetividade infantil. Na última lição trata da questão da fadiga. Destaca que a Pedagogia Tradicional não se preocupava com o que a criança podia fazer, detendo-se em estabelecer o que ela devia fazer, enquanto que a Pedagogia moderna contempla essa questão como uma medida indispensável à preservação psicológica e mental da criança. Dessa forma propõe procedimentos e período de tempo que o professor deve-se destinar às atividades de ditado, calculo e a escrita a fim de não causar fadiga na criança, o que pode ser um motivo gerador dos erros de aprendizagem. A metodologia é a temática contemplada na terceira parte do livro. Após distinguir a metodologia geral da específica, Helvécio comenta os métodos pedagógicos analíticos e sintéticos. Em relação aos métodos analíticos gerais tece comentários aos métodos formulados por Sócrates (método da investigação), por Pestalozzi (método intuitivo), por Gerard (método moral), por Jacotot (método natural) e do Abade Gaultier (método recreativo). Destaca que esse método reúne os melhores princípios formulados por Pestalozzi e por Gerard. Nas lições posteriores comenta a Didática como parte da metodologia que procura formular as principais regras para nortear o ensino e se aprofunda em relação ao método intuitivo. Trata também da aprendizagem da leitura, dos métodos e tipos de leitura, trazendo informações acerca do ensino da gramática, da aritmética e da geografia. Helvécio recomenda a adoção do método analítico para a aprendizagem da leitura, respaldando-se nas colocações de Armando Barreto, veiculadas na conferencia do professor Carlos Escobar, publicada no segundo número da Revista de Ensino (1911). A Higiene Escolar é o tema abordado na quarta parte do livro composta de seis lições. Essas lições dedicam-se aos seguintes aspectos: 1) definição e objeto de estudo da Higiene. Saúde e suas características na primeira e segunda infância; 2) Situação e construção da escola; 3) Ventilação, iluminação e asseio nas aulas; 4) mobília, atitudes e posições do aluno; 5) Moléstias que se contraem na escola, e 6) moléstias que se propagam na escola. Concebe a higiene como a arte de conservar e defender a saúde, acrescentando, posteriormente que, a saúde é o estado resultante do regular funcionamento do organismo, em que as funções se exercitam livre e normalmente com um sentimento intimo de bem estar (ANDRADE, 1913). Nessa parte do livro comenta as fases da existência humana: infância, adolescência, virilidade e velhice, ressaltando que o período de iniciação e duração de cada fase é bastante flexível, dependendo das condições hereditárias, climáticas e das moléstias herdadas ou contraídas pelo indivíduo. Helvécio também se preocupa com a alimentação da criança, defendendo a questão do aleitamento materno em contraposição à alimentação artificial. “O aleitamento materno garante a integridade das funções digestivas, e evita a causa de quase todas as moléstias mortaes das creanças” (ANDRADE, 1913, p. 109). Em relação à alimentação faz uma graduação dos alimentos que devem ser oferecidos às crianças (leite, papinhas, sopinhas, gemadas, pão, arroz, incluindo depois outros), recomendando a necessidade de evitar a criança de ingerir carne e vinhos na primeira infância, os quais têm efeitos nocivos no sistema nervoso. Após discutir os cuidados a serem adotados em relação à saúde da criança, dedica a segunda lição à situação e construção do prédio escolar, ressaltando o papel do médico como um especialista a ser consultado em relação ao terreno e o plano da obra. Faz referência a vários países considerados como desenvolvidos dentre eles a Inglaterra, os Estados Unidos, a Bélgica, a França, a Suíça e a Alemanha que vem priorizando a questão da higiene escolar. Cita também a experiência vivenciada no Estado de São Paulo, quando de sua atuação naquele estado. Segundo Helvécio de Andrade “é dever patriótico das nações pôr em pratica todos os meios capazes de preservar a creança das causas do enfraquecimento physico e mental” (1913, p. 113). A seguir, comenta várias prescrições a serem observadas quando da construção de um prédio escolar As escolas devem ser situadas em terrenos seccos ou drenados, e a 1 ou 2 metros do solo. Elas devem attender as necessidades das estações quente e fria. Além das janellas altas e largas, devem ter ventiladores para os dias de inverno. As salas de classe devem occupar os pavimentos térreos, afim de evitar o cansaço que resulta das subidas repetidas. As dimensões das salas de classe devem ter taes que cada alumno disponha de 1,25 c. quadrados de superfície e, 30 metros cúbicos de ar por hora. A disposição mais conveniente é a de um rectangulo de 10m. sobre 7, com altura de 4 a 5 metros para o numero máximo de 50 alumnos. O tecto dever ser de cor branca e uniforme; as paredes de cor cinzenta ou esverdeada; os corredores amplos, claros e bem arejados. (ANDRADE, 1913, p. 113). Helvécio traz especificações sobre os sanitários, os quais deveriam ser localizados fora da escola, comunicando-se através de corredor bem ventilado; destaca também a importância da escola dispor de lavabos, com torneiras com água corrente para disseminar junto às crianças o hábito de lavar as mãos, a fim de evitar o contágio de certas moléstias. Na terceira e quarta lições traz recomendações sobre as condições de ventilação, iluminação e asseio na escola e nas salas de aulas bem como o mobiliário escolar e o tipo de conduta mais adequada por parte do aluno. Helvécio se preocupa em dar orientações detalhadas, a fim de que o professor possa cumprir de forma consciente sua função de corrigir as atitudes incorretas dos alunos, pois dessas podem decorrer muitos defeitos físicos. Destaca que a posição correta do aluno é a que mantém o busto aprumado, a cabeça ereta, o braço esquerdo encostado ao lado correspondente, o direito tocando ligeiramente o corpo, o punho descansando sobre a mesa. A quinta e sexta lições são dedicadas à discussão das moléstias que se contraem e se propagam nas escolas. Entre as primeiras cita as oculares (a miopia e presbitia) que podem ser de origem hereditária ou decorrente do enfraquecimento da vista com o avanço da idade, e os desvios vertebrais. Alerta que a miopia pode se revelar a partir dos sete anos em decorrência do ambiente escolar dispor de iluminação deficiente ou em excesso, da má qualidade do material escolar e uso abusivo de exercícios gráficos. Na lição seguinte dedicase às moléstias que se adquirem na escola, suas causas, formas de contágio e méis de evitar sua propagação. Algumas dessas moléstias requerem o afastamento temporário do aluno do contexto escolar, outras um tratamento especializado, conforme as orientações traçadas ao abordar o tema Pedologia. Esses conhecimentos foram resultantes de suas vivências e leituras quando atuava em São Paulo. A Revista de Ensino, periódico que faz referencia no capítulo introdutório de seu livro, em seu segundo número (1911, p. 51-52), traz um artigo intitulado “Construções Escolares”. Comenta que o governo francês, descontente com o gasto de dinheiro e a ineficácia dos prédios que pouco favoreciam o ensino, montou uma equipe composta de arquitetos, professores e higienistas para formulação de um plano uniforme para nortear as construções escolares, o que deu origem à lei de 48 de janeiro de 1887, o qual teve repercussão mundial. Outra fonte de consulta de Helvécio de Andrade foi o livro “A higiene na escola”, do médico Balthazar Vieira de Mello. Esse livro foi publicado em 1902, quando de sua atuação como inspetor sanitário, atendendo solicitação do Governo de São Paulo, diante da necessidade de dispor de linhas mestras para orientar a implantação da inspeção médica escolar. O livro é estruturado em oito capítulos: Capítulo I – Situação e construcção do edifício escolar; Capítulo II – Ventilação, illuminação e limpeza; Capítulo III- A mobília escolar e o material de ensino; Capítulo IV – Posições e attitudes escolares; Capítulo V – Methodos e processos de ensino; Capítulo VI – Distribuição das materias – Horas de classe e de recreio – Exercícios phsicos – gymnastica; Capítulo VII – Molestias que se adquirem no meo escolar; Capítulo VIII- Moléstias que se propagam no meio escolar; Appendice – Inspecção médica escolar – Medidas Hygieniocas e administrativas; e as Conclusões. O livro de Vieira de Mello é considerado por Lima (1995) um trabalho pioneiro em termos da constituição do campo da saúde no Brasil, pela sua amplitude e organização, abordando questões que se referem ao meio escolar e à organização do trabalho educativo, no momento de conformação do novo modelo de organização escolar – os grupos escolares. O grupo escolar foi a instituição privilegiada para difundir, através da cultura escolar, noções de higiene, envolvendo conhecimentos e hábitos a serem adotados pela criança, bem como pautar sua construção e funcionamento nos preceitos higiênicos em voga naquele período. Contrapondo os títulos, as temáticas e os saberes transmitidos por Helvécio de Andrade em seu livro, publicado em 1913, com a estrutura do livro do médico paulista, de 1902, pode-se dizer que esse foi outra fonte de leitura e apropriação dos saberes pedagógicos utilizada pelo médico e educador sergipano. Conclusão Nesse artigo analisamos a trajetória do médico e docente Helvécio de Andrade, autor do livro “Curso de Pedagogia”. Através desse manual didático visava favorecer a divulgação dos princípios e métodos que deveriam orientar a preparação das normalistas, futuras professoras no ensino primário, nas práticas escolares concorrendo para a modernização do ensino. Helvécio elucida ideias originadas não só da Pedagogia, como também do campo da Psicologia, da Metodologia e da Higiene, a fim de fundamentar o trabalho pedagógico nas primeiras décadas do século XX. Essas ideias são resultantes de suas vivências e do processo de apropriação das contribuições teóricas de Welch, Farias de Vasconcellos, Binet, Claparède, Compayré, Jules Simon e do médico higienista Balthazar Vieira de Mello, além de outros trabalhos publicados na Revista do Ensino de São Paulo. Esse manual assumiu o papel de produto e produtor de um discurso pedagógico que muito influenciou a cultura escolar do curso de formação de professor bem como as decisões dos dirigentes escolares na construção do modelo de escola graduada em Sergipe. Referências Bibliográficas ANDRADE, Helvécio de. “Curso de Pedagogia – lições práticas elementares de Psicologia, Pedologia, Metodologia e Higiene Escolar”, professadas na Escola Normal de Aracaju. Aracaju: Tipografia Popular, 1913. 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