TEMAS EM DEBATE PEDAGOGIA E SAÚDE NA EDUCAÇÃO DE ALUNOS COM DEFICIÊNCIA: ENTRE ANTIGAS E NOVAS INTER-RELAÇÕES Ana Beatriz Machado de Freitas 1 Resumo: O artigo traz uma reflexão sobre a influência da área da Saúde no campo da Educação Especial, particularmente na educação de pessoas com deficiência. É reconhecida a importância histórica da área nas origens dessa educação na era contemporânea, bem como na orientação das intervenções educacionais. A Educação Especial constituiu-se caracterizada por um modelo médico de intervenção e apartada da escolarização comum (regular). Com a perspectiva da educação inclusiva, no final do século XX, passou a se estruturar como atendimento que transversaliza todos os níveis da educação regular e a assumir um caráter eminentemente pedagógico. É observado, no entanto, que a pertinência das críticas ao modelo médico e da ênfase às condições sociais que deixam os sujeitos em situação de deficiência/dependência não deve justificar a pouca evidência de conhecimentos da área da Saúde conferida à formação de professores, especialmente nos cursos de Pedagogia. Os conhecimentos dessa área estão estritamente relacionados com os diferenciais do público atendido pela Educação Especial no que concerne a particularidades dos processos de desenvolvimento –inclusive neurodesenvolvimento - e aprendizagem, os quais são objeto de estudo e intervenção do pedagogo. Palavras-chave: Educação especial. Saúde. Educação inclusiva. Formação de professores. 1 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás; Pedagoga; Professora do Instituto Federal de Goiás e da Faculdade de Inhumas. E-mail> [email protected] educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 672 INTRODUÇÃO E ducar alunos com deficiência na classe comum figura-se um desafio da educação contemporânea, especialmente no contexto da escola pública brasileira e da formação de pedagogos, historicamente não voltadas a esse público. Ainda que na atualidade, com mais veemência pós-década de 1960, como assinala Mendes (2006), tenha se constituído no ocidente uma base moral - alicerçada em movimentos relacionados aos direitos humanos e às minorias socialmente marginalizadas - de tal forma que se tornou intolerável aceitar qualquer forma de segregação baseada em um atributo humano (cor, etnia, religião, cultura, condição física, entre outros), a aceitação dessa premissa com referência à educação não se fez (nem se faz) sem conflitos, visto que a instituição escola não foi constituída para educar na heterogeneidade. A especificidade de alunos que apresentam uma deficiência pode ser mais impactante para as escolas e para a subjetividade dos docentes: para as escolas e sistemas educacionais porque têm de se estruturar materialmente e quanto à capacitação humana/profissional para um público até então desconhecido; para os professores porque a atribuição de ensinar esses alunos intervém nos sentimentos de confiança e competência na relação pedagógica. Ser professor de um aluno que se encontra em atraso escolar em relação à turma em razão de uma dificuldade relacionada à incompreensão do que foi ensinado (ou da maneira como foi ensinado) ou a um diferencial de acesso cultural a determinados conhecimentos e linguagem são obstáculos que se figuram passíveis de resolução ou minimização por meio da pedagogia. O professor pode sentir dificuldade, mas não impotente, pois em sua formação situações como essas são previstas. Já a formação para ensinar alunos com deficiência tradicionalmente não é posta na graduação, uma vez que, pela especificidade em questão estar relacionada a diferenciais orgânicos, a competência para resolver as necessidades postas estaria no âmbito da Saúde. educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 673 Em tese, para diminuir o dilema, seria necessário incorporar elementos dessa área na formação do pedagogo. Por outro lado, a história mostra que a relação da Saúde com a Educação, particularmente com a Educação especial no Brasil, mostra que a primeira esteve a serviço da ratificação de homogeneidades nas escolas, de justificativas de classificação dos capazes, menos capazes e incapazes, definidas critérios clínicos padronizados, como pareceres médicos e testes psicométricos. Nesse sentido, resgatar na formação do professor um enfoque aos critérios médico-psicológicos de normalidade/deficiência significaria retroceder a um paradigma que não se coaduna com os postulados da educação inclusiva nem com a ressignificação da Educação Especial (a serviço da escolarização comum e praticada sob a forma de atendimento educacional especializado, preferencialmente na escola do aluno). As críticas são válidas, mas nem por isso podem justificar a restrição de estudos relacionados à área da Saúde implicados no desenvolvimento humano, haja vista que a esfera biológica é constitutiva do desenvolvimento e dos processos de aprendizagem e, no caso das condições orgânicas deficiência, implica diferenciais importantes envolvidos nesses processos. Esse conhecimento, portanto, torna-se fundamental à formação do pedagogo em face da responsabilidade pela educação de alunos com necessidades educacionais específicas, dentre estes (nos limites deste artigo) os alunos com deficiência. SAÚDE E PEDAGOGIA NA EDUCAÇÃO ESPECIAL A educação das pessoas com deficiência modernidade foi e tem sido marcada por intervenções advindas do campo da Saúde. A marca de “imperfeição” no corpo automaticamente delegaria o indivíduo à submissão à área médica, que se responsabilizaria por seus cuidados, inclusive o cuidado com a educação. Essa educação - já era um pressuposto - não se faria em escolas coeducativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 674 muns; mereceria uma educação especializada, tanto na lógica de beneficiar esses alunos, no atendimento às suas demandas específicas, como, ao mesmo tempo, não prejudicar a estrutura e o funcionamento da escola comum, organizada para educar os “saudáveis”. Nessa lógica, deficiência confunde-se como o signo da doença e já se preconcebe que alunos “doentes” não aprendem como os demais. Jannuzzi (2012) relata que a influência do campo médico na educação brasileira se fez com mais intensidade a partir da segunda metade do século XIX até as primeiras décadas do século XX. No contexto de epidemias, medidas de higiene foram implementadas nas escolas, como a Inspeção higiênica de estabelecimentos Públicos e Privados da instrução e Educação, “integrada por uma comissão de médicos subordinados à então denominada Inspetoria Geral de Saúde e Higiene” (JANNUZZI, 2012, p.30). no entanto, até 1910, como observa a autora, não havia na explícito com relação à pessoa com deficiência nessas medidas de higienização2. Posteriormente, as deficiências, sobretudo as de ordem intelectual, passaram a ser relacionadas a problemas e saúde e degenerescência. Tornou-se recorrente a seleção dos denominados “anormais pedagógicos”, especialmente sob a referência dos estudos de Basílio de Magalhães, que autor do livro “Tratamento e educação das crianças anormais de inteligência: contribuição para o estudo desse complexo problema científico e social, cuja solução urgentemente reclamam – a bem da infância de agora e das gerações porvindouras- os mais elevados interesses materiais, intelectuais e morais, na Pátria Brasileira”. Segundo a obra, publicada em1913, a orientação educacional dessas crianças deveria ser “[...] dada pelo médico auxiliado pelo pedagogo. Este deveria ser instruído em escola superior por mestres vindos da Europa e dos Estados Unidos (JANNUZZI, 2012, p. 42). 2 No entanto, em 1900, no IV Congresso de Medicina e Cirurgia, o doutor Carlos Fernandes Eiras apresentou um estudo intitulado “Da educação e tratamento médico-pedagógico dos idiotas” (JANNUZZI, 2012, p. 33). educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 675 Portanto, já se requisitava uma formação desse professor que fosse diferenciada. Os estudos da psicologia estavam em voga nos países economicamente desenvolvidos, principalmente a experimentalista e psicométrica, e vinham orientando as intervenções educacionais. No Brasil, na década de 1930, destacou-se o professor Lourenço Filho, pelo empenho em implantar uma pedagogia científica, o que era entendido como pedagogia endossada por instrumentos de testagem psicológica. O objetivo, como ressaltam Sganderla e Carvalho (2008) era a classificação dos escolares para organização das classes conforme homogeneidades. Acreditava-se que por esse procedimento seriam contempladas as diferenças de aprendizagem (consonantes à maturidade) e que assim as intervenções pedagógicas seriam orientadas de forma mais direcionada; por conseguinte, alcançaria-se maior eficácia nos resultados. Nesse intuito, Lourenço Filho criou os testes ABC, para mensurar a maturidade para o aprendizado da leitura e da escrita. Seus resultados “[...] distribuíam-se na forma de uma curva normal, a partir da qual era possível dividir a população em três grupos ‘homogêneos’ de crianças: fortes, médias e fracas” (LIMA, 2007, p.146). A partir desse diagnóstico, seriam organizadas intervenções de acordo com o mensurado; às classes sãs crianças mais “fracas” deveriam ser propostos exercícios que favorecessem a superação de suas “deficiências”. No entanto, para o criador dos testes “as escolas não deveriam aceitar a matrícula de crianças com baixo QI, as quais deveriam ser encaminhadas a instituições ou classes especiais” (LIMA, 2007, p. 150). Essa perspectiva vigorou ainda por muito tempo na literatura pedagógica voltada à formação de professores. Na obra Biologia da Educação, de Almeida Júnior (1958), editado pela primeira vez em 1939, revisto em 1951 e em voga em 1958 (edição consultada), são notórios os trechos de justificativa de identificação dos “anormais” para o “benefício social” dos “normais”: educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 676 Os anormais da mente, ou ficam na escola comum prejudicando a si próprios e aos outros, ou vão para a rua. Contudo, há neles, como no trabalhador cego ou mutilado, uma capacidade residual que deve ser aproveitada, praticando-se com isto, um serviço de profilaxia social (ALMEIDA JÚNIOR, 1958, p. 373). No teor das assertivas, subentende-se uma perspectiva eugênica, de combate a aos caracteres de imperfeição biológica que não só prejudicariam o indivíduo pela irremediável invalidez, como também a sociedade e até o trabalho do professor: Não se pode deixar de reconhecer o grave prejuízo que causam os oligofrênicos à vida social3. Quando produzem serviços úteis (o que não é a regra), produzem menos que os outros.Quase sempre vivem como parasitas [...].Cadeias, asilos, hospitais abrigam grande proporção de oligofrênicos. Se êstes não existissem, ou se sue número se reduzisse, muitos problemas sociais desapareceriam ou teriam a solução facilitada. Na própria escola primária (onde há pelo menos 1oligofrênico em cada grupo de 100 alunos) o débil mental prejudica a função social do educador (ALMEIDA JÚNIOR,1958, p.493). Nas décadas seguintes, a educabilidade das pessoas com deficiência foi afirmada na legislação brasileira – na primeira LDB – Lei 4.024, de 1961, com a “educação de excepcionais”, e na criação, em 1973, do Centro Nacional de Educação Especial (CENESP), mas ainda prevendo o caráter segregado, a escolarização em instituições ou classes especiais, algumas de3 O autor define oligofrenia como”estado caracterizado pelo desenvolvimento insuficiente das funções psíquicas intelectivas” .Subdividem-se os oligofrênicos, em idiotas (idade mental que não ultrapassaria os 8anos); imbecis (idade mental de 3a6 anos) e débeis mentais (idade mental de 6 a9anos), classificação estipulada de acordo com o quociente intelectual (QI), mensurado em teste psicológico Binet-Simon padronizado (ALMEIDA JÚNIOR, 1958, p.492). educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 677 nominadas de “ensino emendativo” (JANNUZZI, 2012). Como observa Mendes (2006), o ensino especial não atendia aí somente os alunos com algum tipo de deficiência, mas também a ele eram encaminhados os alunos das escolas comuns que não conseguiam avanço na aprendizagem escolar em relação à maioria de seus pares. Aos poucos, como refere a autora supracitada, razões científicas, político-econômicas e morais – como a necessidade (econômica) de contenção de gastos em instituições especializadas e a evidência das competências apresentadas pelas pessoas com deficiência - contribuíram para que a separação educação especial/educação comum fosse questionada. A discussão originou-se nos países escandinavos e da América no Norte e estendeu-se para outros na Europa na década de 1970. O princípio da “normalização” passou a ser defendido, isto é, o direito das pessoas com deficiência de participarem amplamente da vida social com e como as demais pessoas, isto é, de experienciarem “[...] um estilo ou padrão de vida que seria comum ou normal em sua cultura, e que a todos indistintamente deveriam ser fornecidas oportunidades iguais de participação em todas as mesmas atividades partilhadas por grupos de idades equivalentes” (MENDES, 2006, p. 389). Portanto, quando a “Declaração de Salamanca sobre princípios, política e práticas na área das necessidades educativas especiais” (UNESCO, 1998), foi ratificada em 1994, em nível mundial, sob a perspectiva do que se denomina educação inclusiva, ou seja, comprometida com a escolarização de todos na escola comum, sem qualquer segregação, e estruturada para atender quaisquer necessidades educacionais, os países desenvolvidos já encontravam envolvidos há mais de duas décadas nessa discussão e encaminhamento de políticas públicas nesse sentido. No Brasil, ao contrário, além de a interação entre escolas especiais e escolas comuns ser historicamente inexistente, estas últimas, educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 678 sobretudo as escolas públicas, enfrentam o desafio de dirimir o fracasso escolar, em que se verifica a incapacidade dos sistemas educacionais em atender quantitativa e qualitativamente à demanda, seja na infraestrutura material, seja nos aspectos estritamente pedagógicos, o que resulta em altos índices de evasão, repetência ou de aprovação escolar sem real aprendizado dos conteúdos. Nesse contexto, a perspectiva de ensinar conhecendo e atendendo às necessidades específicas de aprendizagem de alunos com algum tipo de deficiência impacta o professor e os sistemas escolares. De ato eles não foram preparados para tal. Indo mais além: podemos dizer que ensinar na heterogeneidade – social, cultural, comportamental, linguística, étnica, religiosa e de estilos e ritmos e recursos de aprendizagem - não faz parte da cultura da escola4. A homogeneidade, tanto no produto como no processo, é buscada e, como vimos, enunciada como facilitadora do trabalho do professor. Romper com essa discursividade historicamente dominante tem sido um preceito das políticas de educação inclusiva. Garcia (2006), ao analisar a Resolução 2/2001, de 11 de setembro de 2001, que institui as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica e o Parecer 17/2001, de 3 de julho de 2001, vinculado à referida Resolução, pôde perceber que 4 Os sociólogos Bourdieu e Passeron (1975) já se referiam à hiância entre os conhecimentos e competências exigidos pela escola os conhecimentos e competências do contexto sociocultural dos alunos que chegam a ela. Como os conteúdos exigidos são os de referência e contexto das classes sociais dominantes, mais favorecidas economicamente, os alunos que não pertencem a essas classes encontram-se em desvantagem no processo de aprendizado acadêmico, por estarem desprovidos, antes de entrar na escola, de um “capital cultural” que é valorizado por essa instituição. É o caso, naatualidade, de crianças envolvidas desde os primeiros anos de vida com o mundo letrado e informatizado sob os incentivos e ensinamentos dos pais para o domínio da leitura e de recursos tecnológicos, em comparação a outras crianças que não viveram tal contexto. educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 679 a organização do trabalho pedagógico na educação especial na educação básica apóia-se em duas premissas complementares: a defesa de uma abordagem educacional de atendimento e a crítica à homogeneização da escola do ensino regular. A primeira apóia-se na concepção das “necessidades educacionais especiais” para se contrapor ao modelo médico-psicológico de atendimento aos alunos da educação especial. A segunda premissa completa a primeira e defende o reconhecimento da heterogeneidade dos alunos ao contrapor-se à homogeneização praticada pelas escolas do ensino regular (GARCIA, 2006, p.301). Ainda assim, assinalamos que, na prática, a educação especial, mesmo como modalidade que perpassa a escolarização comum, não se livra de estar a serviço de uma homogeneidade: o aprendizado quantitativo e qualitativo dos mesmos conteúdos organizados para determinado ano escolar e faixa etária correspondente. Essa homogeneização (como fim) seria a desejável, sob recursos heterogêneos (de atendimento às necessidades específicas). No entanto, como a necessidade do atendimento educacional especializado traz o distintivo de quem dela necessita e da requisição de profissionais responsáveis por esse atendimento, cria-se na escola comum, o lócus da educação especial como se significasse um ensino diferencial ministrado pelo professor especialista. Certamente isso passa pela incompreensão da proposta, pois, Na perspectiva da educação inclusiva, a Resolução CNE/CP nº 1/2002, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, define que as instituições de ensino superior devem prever, em sua organização curricular, formação docente voltada para a atenção à diversidade e que contemple conhecimentos sobre educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 680 as especificidades dos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação (BRASIL, 2010, p.13). Portanto, ainda que esteja previsto o atendimento educacional especializado a ser realizado por profissionais com conhecimentos específicos, como: Libras, sistema Braille, uso do sorobã, recursos de comunicação alternativa e programas de enriquecimento curricular (BRASIL, 2010), de modo algum a presença deles desincumbe o professor regente de classe da responsabilidade pedagógica pelo aluno com necessidades educacionais específicas, mesmo porque, como anteriormente mencionado, é esperado pela lei que na formação docente os conhecimentos sobre as especificidades estejam contemplados. A anuência a essa proposição é fundamental para que a educação especial não se constitua um “(sub)sistema” paralelo dentro do sistema da escola comum, ou seja, para que os alunos com necessidades específicas não sejam, na prática, quase que exclusivamente “alunos do professor de apoio”, realidade frequentemente relatada por docentes e familiares desses alunos. A proposta, segundo o Documento Subsidiário de Política de Inclusão (BRASIL, 2005), é que o atendimento especializado na escola não fique relacionado estritamente aos alunos com deficiência, mas compreendido como uma área que pode e deve atender a qualquer aluno que dele necessite (recursos para superar temporariamente determinada dificuldade de aprendizagem, por exemplo). Considera-se também “[...] a possibilidade das escolas especiais funcionarem como centros de apoio e formação para a escola regular, facilitando a inclusão dos alunos nas classes comuns ou mesmo a freqüência concomitante nos dois lugares” (BRASIL, 2005, p. 20), justamente pela necessidade de coordenação entre os serviços de educação, saúde e assistência social pontuadas no documento como essencial. educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 681 Assim, reafirmamos a importância dos conhecimentos sobre as necessidades educacionais específicas - dentre estas, as condições de deficiência – na formação de professores, especialmente do pedagogo. Isso implica conhecimentos da área da saúde (embora não exclusivamente). Essa prerrogativa soa contraditória, visto que o discurso da educação inclusiva no Brasil em muito pautou-se na crítica ao modelo médico por razões justificadas. Por certo não podemos perder de vista o olhar crítico para as intervenções da área de saúde que se entrelaçam com a educação a serviço de diagnósticos que estigmatizam os sujeitos e ratificam ações de exclusão social, mas nem por isso a formação pedagógica pode prescindir dos conhecimentos dessa área para melhor compreensão dos processos de aprendizagem de alunos com e sem deficiência. O LEGADO DA SAÚDE A perspectiva da educação inclusiva traz a necessidade e múltiplos olhares para a diversidade de diferenças que passa a constituir a escola. No caso de alunos com algum tipo de deficiência - motora, sensorial, intelectual - ou com transtorno do desenvolvimento (como o espectro autista), as diferenças nos processos de desenvolvimento e na vias de aprendizagem precisam ser conhecidas para que o professor possa solicitar apoio e recursos, diversificar ou adaptar os que possui, fazer adequações metodológicas e nos formatos de avaliação, entre outras variações, tanto para melhor interação com esse aluno, quanto para mediar a relação deste com o conhecimento e com seus pares e ainda para que se estreite a interação pedagógica com o professor que presta o atendimento educacional especializado, com a família e com profissionais de outras áreas que muitas vezes acompanham o aluno (fonoaudiólogo, médico, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional). Assim, entendemos que o conhecimento a respeito do desenvolvimento e aprendizagem relacionado às condições orgâeducativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 682 nicas de deficiência deve estar a serviço, na formação do pedagogo, da intervenção pedagógica, e não figurar como meramente informativo de características e “sintomas” a serem identificados pelo professor com o único objetivo de encaminhamento a outros profissionais, os quais seriam os únicos ou principais responsáveis pela educação do aluno com essa especificidade. A formação do pedagogo para ensinar alunos com deficiência tradicionalmente não é posta na graduação, uma vez que, pela especificidade em questão estar relacionada a diferenciais orgânicos, a competência para resolver as necessidades a eles relacionadas não estaria nos professores da escola comum, e sim nos profissionais da área da Saúde e pedagogos especializados (por exemplo, psicopedagogos ou educadores especiais). Assim, o exercício da educação inclusiva traz questionamentos sobre a suficiência da formação do professor, não só para a escolarização de qualidade dessa população de alunos. A inserção, na grade curricular dos cursos de Pedagogia, de uma disciplina relacionada à educação de alunos com necessidades específicas pode ser um importante contributo na formação do professor, todavia não significa, por si só, comprometimento coma formação numa perspectiva inclusiva. Se somente nessa disciplina a educação desses alunos for tratada, estará se reproduzindo a histórica separação: universo dos especiais (tratado na disciplina “especial” ou “inclusiva”) e universo dos alunos “normais” (referidos em todas as outras disciplinas do curso). A educação das pessoas com deficiência, assim como a de outras minorias, pode e deve ser abordada nas metodologias, na didática, no estágio e nas disciplinas de fundamentos da educação. Em relação a estas últimas, destacamos o papel da Psicologia da Educação, por abarcar o estudo dos processos de aprendizagem e as compreensões de desenvolvimento humano. Nas últimas décadas, tornou-se recorrente privilegiar os enfoques sócio-históricos, o que denota um olhar crítico da própria área, que é uma das ciências da Saúde e que na história da educação educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 683 especial é tradicionalmente vinculada ao modelo médico. No entanto, é importante resgatar a relevância da dimensão biológica na constituição do desenvolvimento humano (de pessoas com deficiência ou não), para que esse desenvolvimento não seja compreendido estritamente como produto das interações e intervenções socioculturais. Embora estas sejam de suma importância a ponto de muitas vezes promoverem transformações nos processos orgânicos, é necessário, até para realizar as devidas intervenções, conhecer, por exemplo, aspectos neurofisiológicos relacionados aos sentidos, ao movimento, à atenção e à aprendizagem; diferenciais de percepção sensorial e de funcionamento cognitivo característicos de pessoas com espectro autista, os quais intervêm no curso de sua aprendizagem e de suas interações; marcos biológicos da aquisição de competências motoras e de fala, na criança; o papel do sono, da nutrição, da estimulação sensorial e da movimentação corporal, entre outros. Vale lembrar que Itard, Séguin, Decroly e Montessori, médicos, tornaram-se educadores de referência da história recente da pedagogia. Em comum, o fato de terem se dedicado à educação de crianças com deficiência intelectual, embora não somente, e de postularem que elas poderiam aprender sob determinadas intervenções pedagógicas (CAMBI, 1999; JANNUZZI, 2012). Cambi (1999) observa que desde o século XVIII na Europa e com mais complexidade nos dois séculos posteriores foram propostas na contemporaneidade as primeiras intervenções educacionais voltadas para pessoas para pessoas com deficiência, sob um enfoque “ortofrênico”, ou seja, com vistas à normalização ou o mais próximo do que se concebia com tal, sobretudo a normalidade de funcionamento orgânico. O Documento subsidiário à política de inclusão (BRASIL, 2005, p. 19) destaca que “o surgimento da educação especial está vinculado ao discurso social posto em circulação na modernidade para dar conta das crianças que não se adaptavam aos contornos da escola”, o que era atestado pelo saber médico, saber que educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 684 subsidiava, na pedagogia e na psicologia, uma reeducação sob métodos comportamentais com vistas à normalidade. Não obstante, entendemos que é preciso situar essa visão no tempo histórico. Entendemos que num contexto em que praticamente não se cogitava uma educabilidade para pessoas com deficiência, tampouco se concebia que superassem significativamente as limitações do organismo (principalmente nas condições de deficiência intelectual), falar em classes ou escolas especiais ou em uma pedagogia reabilitativa representava um pensamento arrojado, de crença nas potencialidades de aprendizagem do aluno com deficiência e crença, igualmente, nas possibilidades da Pedagogia, sob uma fundamentação científica. Jannuzzi (2012) destaca que também no Brasil muitos médicos do período das inspeções de saúde nas escolas, fim do século XIX e início do século XX, tinham a preocupação, de fato, em escolarizar esse aluno não de confiná-lo a tratamentos clínicos. Percebemos, em suma, que acreditava-se que a educação poderia intervir nos desígnios biológicos, proporcionar transformações, mas, para tanto, o curso biológico precisava ser conhecido. Atualmente, é válida a crítica de que as transformações tinham sempre como referência um padrão de normalidade; portanto, pressupunha que o indivíduo teria de se adaptar à maioria (ou seja, a cultura/sociedade não teriam responsabilidade de atender a peculiaridades/necessidades de uma minoria). No entanto, a validade desse princípio permanece. Hoje são valorizadas as diferenças e é legalmente avalizada a responsabilidade do poder público pelo atendimento digno a todos os cidadãos, e justamente por causa disso, maior é a responsabilidade pelo conhecimento das diferenças. No caso do público com algum tipo de deficiência em nível biológico, os diferenciais dessa esfera devem ser estudados por profissionais que irão tender às suas necessidades, entre eles os professores. Cumpre ressaltar que autores contemporâneos de referência dos cursos de Pedagogia no Brasil no campo do desenvolvieducativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 685 mento humano cognitivo e psicológico, como Piaget, Vygotsky e Wallon, estudaram a fundo os processos orgânicos envolvidos na constituição do pensamento, o que nem sempre é ressaltado. Isso ocorre, em parte, pelos limites de tempo e da necessidade de priorizar, para fins didáticos, os enfoques de cada autor estudado. Na prática, Piaget acaba por ser lembrado como o autor que defende a ação do sujeito sobre o meio e a consequente construção do conhecimento; Vygotsky como o autor que defende o desenvolvimento humano como produto sócio-histórico-cultural e Wallon como o representante de uma psicomotricidade alicerçada na base socioafetiva. Essas afirmativas são válidas, porém superficiais, pois não traduzem o processo epistemológico de cada um desses autores. Obviamente as ênfases diferem, mas todos, para chegaram a elas, estudaram várias dimensões do desenvolvimento (social, motora, neuronal, linguística) e consideraram sua pertinência. Além disso, há uma tendência, não só da disciplina Psicologia da Educação, mas do curso de Pedagogia como um todo, em supervalorizar o papel do social (interações, meio, cultura, história, contexto político-econômico) na constituição do aprendiz e do processo ensino-aprendizagem. Essa perspectiva é afirmativa da educação como fenômeno eminentemente social e multidimensional; portanto, implica que a formação do pedagogo não pode se restringir ao domínio de técnicas de ensino e ao estudo do indivíduo ou da relação professor-aluno-escola-conhecimento fora de um contexto. Em relação à educação especial, esse enfoque repercute na crítica a conceitos, políticas e atitudes vigentes. Como lembra Plaisance (2015, p. 234), “a ‘situação’ não se define pela deficiência; pode-se, por exemplo, ter uma deficiência motora, mas não se encontrar em situação de deficiência!” Sob esse argumento, o autor adota a expressão “pessoa em situação de deficiência” para assinalar que a situação depende da acessibilidade que o meio proporciona, ou seja, a condição de deficiência não é “do” indivíduo. educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 686 Todavia, como a acessibilidade a ser proporcionada depende do conhecimento das necessidades específicas voltamos ao dilema: ter de conhecer aspectos do campo da saúde sem isso implique adotar o “modelo médico”. O problema talvez esteja na dificuldade em compreendermos o desenvolvimento humano como um fenômeno biopsicossocial em constante reciprocidade de interação e entrelaçamento dos aspectos nele envolvidos. Tendemos a enfatizar um elemento, causalidade ou abordagem, perdendo essa complexidade. No tocante aos processos de desenvolvimento e aprendizagem de alunos com algum tipo de deficiência, a tendência é que se ponha em evidência o “problema” aparente, isto é, a deficiência em si mesma, o que por vezes leva os profissionais a desejarem saber sobre o diagnóstico. Conhecê-lo pode ser importante, mas não é determinante de uma personalidade ou de ritmo, predileções, dificuldades ou facilidades de aprendizagem. Afinal, o desenvolvimento humano não se restringe ou se confunde com um quadro biológico. Pessoas com síndrome de Down, por exemplo, não apresentam as mesmas dificuldades ou facilidades e estas não decorrem “da síndrome”, em si mesma, mas do entrelaçamento de fatores genéticos, neurobiológicos, afetivos, socioculturais se constituíram em contextos, numa história (pessoal, familiar, social), configurando uma subjetividade, como ocorre com qualquer ser humano. Por outro lado, em face dos estudos da neurociência, é fundamental que o pedagogo conheça particularidades do neurofuncionamento relacionadas a determinadas condições clínicas, pois tal conhecimento pode ser fundamental para a (re)definição de práticas e recursos de ensino e acessibilidade e, consequentemente, influir positivamente na aprendizagem,dignidade e autonomia do aluno. Reis et al. (2002) por exemplo, partiram do conhecimento da predisposição altas habilidades das pessoas com síndrome de Williams para a música ou como que a ela se relaciona e desenvolveram um método de ensino ; esses pesquisadores observaram que os programas educacionais existentes educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 687 até então para esse público focavam nos aspectos deficitários que caracterizam a síndrome e não nas potencialidades5. Outro exemplo é a bem-sucedida elaboração e uso de softwares voltados ao desenvolvimento da habilidade de reconhecimento de expressões faciais e dos significados a elas subjacentes, habilidade biologicamente deficitária em muitas pessoas com espectro autista, como discutem Baron-Cohen, Golan e Aswin (2009). Nesse caso, partiu-se do déficit orgânico inato, mas sob a crença de ele poderia ser reversível por meio da aprendizagem, sob recursos elaborados especificamente para o desenvolvimento da habilidade em questão e cuja utilização mantivesse os sujeitos (usuários dos softwares) intrinsecamente motivados. CONSIDERAÇÕES A educação de pessoas com deficiência segue como um desafio contemporâneo, agora à educação regular, em conformidade com o que preconiza a educação na perspectiva inclusiva (UNESCO, 1998). Essa perspectiva impactou a educação regular e a educação especial, que praticamente se desconheciam. A primeira passou a conhecer e a reconhecer as características e necessidades desse público, ao passo que a educação especial deixou de ter um caráter substitutivo do ensino comum e passou a ser incorporada a este como uma modalidade que o transversaliza oferecendo recursos que facilitem a aprendizagem. Essa atenção passou a ser direito legalmente assegurado, porém não em caráter clínico, terapêutico ou médico-psicológico, mas pedagógico (Daí o atendimento, na legislação brasileira, ser denominado educacional especializado). 5 A síndrome de Williams caracteriza-se por déficit intelectual, retratado em baixo desempenho em testes de inteligência, porém as pessoas que a apresentam manifestam, concomitantemente, altas habilidades lingüísticas e musicais , em contraste com habilidades matemáticas ,visuomotoras e visuoespeciais muito empobrecidas (REIS et al., 2002). educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 688 Nesse contexto, observa-se nos documentos nacionais de orientação político-pedagógica na perspectiva da educação inclusiva (BRASIL, 2005, 2010), tal como observou Garcia (2006) na legislação, uma ênfase às intervenções pedagógicas juntamente com a crítica ao “modelo médico” que historicamente justificou e norteou a educação especial ministrada em ambientes distintos da escolarização comum. Há que se reconhecer, no entanto, que a área da Saúde tornou a educação especial como possibilidade e continua a trazer contributos nesse campo, por isso a formação do pedagogo não pode prescindir de conhecimentos dessa área, porém sem perder de vista a multidimensionalidade do desenvolvimento humano e a interação entre essas dimensões na constituição subjetiva. Dessa forma, assumir uma educação inclusiva supõe incluir (também), na formação pedagógica, elementos que compuseram a história da educação especial PEDAGOGY AND HEALTH IN EDUCATION OF STUDENTS WITH DISABILITIES: BETWEEN OLD AND NEW INTER- RELATIONSHIPS Abstract: The article presents a reflection on the influence of the health area in the field of special education, particularly the education of people with disabilities. It recognized the historical importance of the area in the origins of education in the contemporary era, as well as the orientation of educational interventions. Special Education was characterized, in its constitution, by a medical model of intervention and apart from the common school system (regular). With the perspective of inclusive education at the end of the twentieth century began to be structured as a service that cuts across all levels of regular education and to take an eminently pedagogical character. It is noted, however, that the relevance of the criticism of the medical model and emphasis on social conditions that leave the subject in a situation of disability / dependence should not justify little evidence of the health area of knowledge given to teacher formation, especially in educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 672-691, maio/ago. 2016 689 Pedagogy courses. The knowledge of this area is closely related to the public differentials served by Special Education regarding the particularities of neurodevelopmental -including development processes - and learning, which are object of study and intervention of the pedagogue. Keywords: Special Education. Health. Inclusive education. Teacher formation. REFERÊNCIAS ALMEIDA JÚNIOR, A. Biologia educacional: noções fundamentais. 12.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958 . BARON-COHEN, Simon; GOLAN, Ofer; ASHWIN, Emma. Can emotion recognition be taught to children with autism spectrum conditions? Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. . Londres, v. 364, n. 1535, p. 3567–3574, dez. 2009. Disponível em: < http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2781897/> Acesso em: 21 ago. 2016. doi: 10.1098/rstb.2009.0191 BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. BRASIL. Ministério da Educação. Documento subsidiário à política de inclusão. rasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Especial, 2005. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Marcos político-legais da educação especial na perspectiva da educação inclusiva. 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