Reflexões acerca da movimento de renovação crítica da Geografia

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Reflexões acerca da movimento de renovação crítica da Geografia e
a produção de materiais didáticos
Bruno Azeredo de França
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
[email protected]
Nelson Diniz de Carvalho Filho
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
[email protected]
Introdução
O objetivo principal deste artigo é refletir sobre as transformações das concepções sobre a
Geografia e os seus conceitos fundamentais. Para tanto, analisamos estes elementos nas formas
com se apresentam nas obras de Pierre George e Yves Lacoste. Posteriormente, discutimos os
reflexos dessas transformações e desses debates na produção de livros didáticos. Nesse
momento, avaliamos não somente as concepções de Geografia que se apresentam, mas também
as teorias da educação mais ou menos explícitas nesses materiais.
Pierre George: Geografia ciência de síntese
O trabalho de Pierre George é muito mais importante, em nossa opinião, pelas questões que
suscita do que pelas respostas que elabora. Durante todo o texto, há uma preocupação em definir
o que seria a geografia e quais seriam as atribuições dos geógrafos. No entanto, por ser um texto
muito ambíguo, pelo próprio momento em que foi escrito, um período de transição entre o que se
convencionou chamar de geografia tradicional e o surgimento do movimento de renovação crítica,
George chega a conclusões bastante problemáticas.
Pois bem, após fazer um breve comentário sobre os antecedentes da geografia, George
apresenta uma proposta profundamente questionável: aquela que defini a geografia como uma
ciência de síntese. O debate é muito fecundo. O autor reflete, por exemplo, sobre o papel que as
disciplinas por ele chamadas “auxiliares” podem cumprir ao serem utilizadas pelos geógrafos. Até
que ponto estes profissionais necessitam tomar de empréstimo, controlar e operar com os
conceitos da pedologia, da geologia, da climatologia, da sociologia, da economia, sem perder de
vista sua própria identidade? Enfim, não é essa uma questão que, ainda hoje, está longe de ter
sido respondida de um modo completamente satisfatório?
Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3
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Trata-se do grande debate sobre a própria natureza da geografia. Ao afirmar, como já foi
mencionado, que a geografia seria uma ciência de síntese, entretanto, George apresenta esta
disciplina como uma ciência que, por suas características particulares, está acima das demais,
que seriam ciências relacionadas somente à análise. Um duplo equívoco, em nossa avaliação,
pois, por um lado, esta elaboração, aprofunda os problemas epistemológicos clássicos da
geografia, como as dicotomias homem-natureza, sociedade-espaço, totalidade-parte etc., e por
outro, não considera que toda ciência, na verdade todo saber, todo conhecimento, executa
análises e produz sínteses.
Mais a diante George elabora aquilo que seria o método do trabalho dos geógrafos. Aos
geógrafos caberia estudar o espaço a partir das situações. Segundo George:
“Uma situação é a resultante, num dado momento –
que é, por definição, o momento presente, em geografia –
de um conjunto de ações que se contrariam, se moderam
ou se reforçam e sofrem os efeitos de acelerações, freios
ou de inibição por parte dos elementos duráveis do meio e
das seqüelas das situações anteriores ”(GEORGE: 20).
Para nós este é um dos momentos mais ricos do seu trabalho. Essa concepção se
assemelha muito à de rugosidades, posteriormente produzida por Milton Santos e muito difundida.
E, nos parece, esta ideia da acumulação de diversos momentos históricos no espaço deveria ser
colocada no centro das preocupações da geografia.
Por último, seria importante refletir um pouco sobre aquilo que George, e outros autores,
chamaram de geografia ativa. Em nossa opinião, trata-se de um movimento ambíguo, que não foi
até às últimas consequências ao pensar as contradições derivadas do processo de produção do
espaço, e acabou servindo, em última instância, tanto aos interesses dos estados operários
burocratizados, quanto aos dos estados capitalistas, ao tomar para si a responsabilidade sobre os
problemas do planejamento estatal. De qualquer forma, apesar das ambiguidades, representou
um momento onde surgiu alguma polêmica sobre a geografia e o papel ou as atribuições dos
geógrafos.
Lacoste e o movimento de renovação crítica da Geografia
A geografia dos professores seria aquele saber desinteressado, despolitizado, apoiado
fundamentalmente na memorização. A geografia dos professores teria a função primordial de
esconder a verdadeira importância do saber geográfico, um saber estratégico, decisivo para
aqueles que detêm o poder. A geografia que se ensina nas escolas não é somente um saber que
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se encerra em si mesmo, mas uma espécie de ideologia que serve para criar uma representação
da realidade que não deixa ver a verdadeira funcionalidade dos raciocínios geográficos, isto
aqueles que consideram a organização espacial das sociedades humanas.
Por outro lado, a geografia dos Estados maiores – a serviço dos Estados maiores dos
Estados nacionais e dos Estados maiores das corporações capitalistas – é este saber
estratégico, que, nas palavras de Yves Lacoste, serve, antes de mais nada, para fazer a guerra.
Mas não somente para fazer a guerra. Seria um grave equívoco pensar dessa forma. Ela serve, na
mesma medida, para controlar e reproduzir sociedades dividas em classes e caracterizadas por
grandes desigualdades sociais, é um saber a serviço da dominação.
Há ainda uma terceira manifestação do pensamento geográfico, a geografia do espetáculo.
Esta forma de apresentação do pensamento geográfico, vinculado às mídias de massa, na opinião
de Lacoste, cumpre um papel parecido ao da geografia dos professores, mas talvez tenha sido
mais bem sucedida, ou mais eficaz, em mistificar a realidade, afinal atinge mais pessoas e chama
mais atenção, no mundo de hoje, do que os manuais de geografia escolar.
A espacialidade diferencial diz respeito a uma nova forma de experiência do espaço-tempo
que tem marcado o mundo. No passado, as sociedades possuíam um controle e um
conhecimento bastante claro de seus “espaços vitais” - a expressão é utilizada por Lacoste num
sentido completamente diverso daquele consagrado pela obra de F. Ratzel e os geopolíticos do
Terceiro Reich, diz respeito ao espaço necessária a reprodução das sociedades humanas o
espaço mais imediato etc. Com a mundialização do capital, cada vez mais vivemos em um
mundo marcado pela multiescalaridade, pela imbricação de diversas escalas, dos diversos
espaços, tudo isto sendo determinado pelas novas práticas espaciais que caracterizam este
momento do sistema mundo capitalista. Lacoste faz uma analogia com o sonambulismo, isto é,
os sonâmbulos anda sem saber porque num espaço que conhecem muito bem, nós, andamos
por um espaço que não conhecemos – conhecemos, quando muito, razoavelmente, a
extremidades da trajetória de nossos movimentos no espaço, por exemplo, o caminho da casa ao
trabalho – com objetivos bastante determinado, mas sobre os quais também não possuímos tanto
controle.
Lacoste dedica uma parte importante de sua obra à discussão sobre as relações entre o
marxismo e a geografia. Aqui nos parece que Lacoste chega a conclusões muito precipitadas.
Primeiro, apresenta os motivos para uma total ausência de referência ao espaço na obra de Marx
e dos marxistas – o autor apresenta uma exceção que diz respeito à obra de Gramsci e Rosa
Luxemburgo. Em segundo lugar, Lacoste afirma, com plena convicção, a impossibilidade de
construção de uma geografia marxista. Antes de mais nada, é preciso dizer que o movimento de
renovação crítica da geografia não se reduz ao marxismo e Lacoste, tendo vivido este momento,
não parece confirmar este equívoco, mas suas palavras podem confundir o leitor e apontar para
esta direção. Por outro lado, o debate sobre as relações entre a geografia e o marxismo não
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deveria se reduzir, pelo menos em nossa opinião, à viabilidade ou não de construção de uma
“geografia marxista”, e sim de como cada uma dessas manifestações do pensamento social
podem contribuir mutuamente para que ambos avancem para uma compreensão cada vez mais
rica da realidade e do espaço geográfico. Por último, outros autores, como Massimo Quaini, com
argumentações bem mais consistente sobre este debate, chegaram a conclusões opostas,
encontraram muitas referências, mesmo que nem sempre explícitas, ao espaço na obra de Marx e
dos marxistas, e estes autores, ainda de acordo com nossa opinião, parecem ter se localizado
melhor nesta polêmica.
Para que e para quem serve a Geografia?Qual é o papel desta ciência na sociedade?Qual
é o papel do professor de Geografia diante destes dilemas?Essas perguntas estão sempre em
debate, porém elas ainda não têm uma resposta que satisfaça a todos os pensadores da
Geografia.
A sociedade, em geral, pode não saber o quanto importante a Geografia é, na tentativa de
entendermos o mundo que vivemos, e mais do que isso, nos organizarmos espacialmente e
conseguirmos nos adequar e transformar a natureza, rompendo, assim com os obstáculos que
ela nos impõe.
Essa cegueira em torno da ciência Geográfica não é por acaso. O papel que os livros
didáticos e os professores cumpriram na construção da idéia da Geografia como uma disciplina
“simplória e enfadonha” foi, quase, perfeito.Dentro das salas de aula,a Geografia sempre foi
tratada como uma ciência despretensiosa e que tinha seu fim em si.A fragmentação dos
conteúdos através do sistema Natureza-Homem-Economia, faz com que a ciência não tenha uma
logicidade geográfica e parece ser um apanhado de ciências dentro de uma coisa que chamam de
Geografia.Uma das piores conseqüência disto é o processo de despolitização que podemos
observar no discurso geográfico.
Concomitantemente a isto, o Estado e seus aparelhos enxergavam a ciência geográfica e a
utilizava de forma completamente diferente dos professores em sala de aula.Para o Estado, a
Geografia assume um papel estratégico dentro do processo de construção da soberania e da
identidade nacional,e mais do que isso,a Geografia tem o papel de ser um “agente mapeador”
tanto dos processos naturais(chuvas,movimento de massas,domínio geológico de determinada
região) quanto dos humanos(movimentos migratórios,desenvolvimento industrial,movimentos
sociais)
Um dos motivos principais pelo qual Lacoste refuga o conceito de Região defendido por
Lablache é o alto grau de despolitização que este tipo de análise do espaço propicia a quem está
fazendo algum tipo de análise de um determinado espaço pré-regionalizado. Penso que Lacoste
está correto quando afirma isto, pois quando pensamos o espaço, não podemos desprezar as
ações políticas, internas e externas, que atuam numa determinada região em detrimento de uma
análise dos aspectos físicos.
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Pensar o conceito de região a partir do pensamento de Vidal de Lablache é negligenciar
todo o processo de interação nas áreas fronteiriças, ou seja, para Lablache, existe uma divisão
exata da superfície terrestre,onde não é possível observarmos áreas descontínuas.
Para Lablache,o Homem é somente um habitante de determinada região.Ele não é sujeito
transformador de sua realidade.Todos as suas necessidades e realizações estão condicionadas a
região a qual ele habita.Ele não enxerga o Homem como sujeito,para ele o espaço torna-se o ator.
É neste contexto que Lacoste apresenta o conceito de geografismos. Para ele, isso ocorre
quando o espaço passa realizar ações, ou seja, passa a ser sujeito.Por exemplo,a Rússia abre
fogo contra os EUA,o Brasil será a quinta maior economia do Mundo,a China produz 50 milhões de
produtos falsos por ano.
Concepções de Geografia em livros didáticos
O livro didático utilizado pela dupla é intitulado “Geografia do Brasil”. Este foi elaborado por
Marcos de Amorim Coelho e foi publicado pela Editora Moderna no ano de 1987, na cidade de São
Paulo. O livro possui 274 páginas e está estruturado em 24 capítulos, porém estes capítulos estão
aglutinados em cinco unidades.
Em relação às imagens (fotos) apresentadas no livro, podemos dizer que elas, de certa
forma, não facilitam a interpretação dos fenômenos que estão sendo abordados. A imagem da
capa (uma plantação de algodão), primeiramente, não parece ter alguma relação com o título do
livro, porém após o manuseio do livro, pode-se perceber que o autor utiliza esta imagem para
reforçar a idéia do Brasil como um país agroexportador.
Podemos notar uma grande quantidade de gráficos e tabelas. Isto ocorre tanto nos
conteúdos que chamamos, tradicionalmente, da Geografia Humana quanto nos da Geografia
Física.Então,podemos dizer que o autor se aproxima de alguma forma do que chamamos de “New
Geography”.A “matematização” da realidade e sua explicação através de tabelas e gráficos,traz
consigo distorções,pois não conseguimos apresentar os fenômenos sócias a partir de
médias,somas,multiplicações e todas as operações matemáticas que podemos fazer.
Os capítulos do livro, como apresentado anteriormente, estão organizados dentro de
unidades. A estruturação das unidades está baseada no sistema N-H-E. A unidade I,intitulada”O
Brasil socioeconômico:um pais de contrastes”,faz uma abordagem mais generalizada do país.A
segunda unidade,”As dimensões e a organização político administrativo do Brasil”,faz uma
abordagem político-econômico do pais,fala das micro e macro regiões apresentando os estados
que as compõe.Por estarem numa lógica de apresentação geral do País,estas duas primeiras
unidades não estão enquadradas no esquema N-H-E.A unidade III,”As bases físicas do território
Brasileiro”, trata estritamente de aspectos como:Estrutura Geológica,Relevo,Hidrografia,Clima etc.
A quarta unidade,”Geografia Humana do Brasil”,trata,quase que na sua totalidade,da Geografia da
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População.Faz uma apresentação inicial da “Formação étnica da população brasileira”(o índio,o
branco e o negro) e depois fala dos processos migratórios,as teorias malthusiana e
neo-malthusiana,estrutura da população brasileira.O último capítulo(quinto),”Geografia Econômica
do Brasil”, apresenta itens da Agricultura,pecuária,Extrativismo,Fontes de Energia,Atividade
Industrial e dos Transportes do Brasil.
Podemos perceber que a partir do terceiro capítulo, a fragmentação do conhecimento
geográfico é presente, ou seja, o autor utiliza conhecimentos de diversas áreas da Ciência,
aglomera num livro didático e chama esse aglomerado de conhecimentos de Geografia. Neste
momento podemos perceber a concepção de Geografia “pierregeorgeana” na estruturação e
concepção de Geografia do autor.
De certa forma, o que o autor faz quando estrutura seu livro desta forma, é o que Lacoste
aponta como a despolitização do discurso a partir da fragmentação do conhecimento, ou seja, o
livro não permite ao aluno uma articulação entre os aspectos físicos e humanos do espaço,ou
seja,não ensina ao aluno a ter um pensamento geográfico,como afirma Lacoste.
Conclusão
Podemos concluir que o movimento de renovação crítica da geografia e das teorias da
educação e seus reflexos nas práticas pedagógicas e na produção de materiais didáticos
apresentam profundas desigualdades. Se por um lado, a Geografia produziu novas interpretações
sobre o espaço, uma nova epistemologia, caracterizada fundamentalmente pela tentativa de
superação das dicotomias que lhe são características, por outro, essas novas concepções foram
apenas parcialmente incorporadas à produção de livros didáticos e ao cotidiano das práticas em
sala de aula. Aqui foi possível constatar um verdadeiro abismo entre a Geografia universitária e a
Geografia escolar.
A grande maioria dos livros didáticos ainda está impregnada por concepções tradicionais e
fragmentárias da Geografia e da prática pedagógica. A idéia de uma disciplina de síntese pode até
ser questionada no plano dos discursos sobre a Geografia em sala de aula, no entanto, os
materiais didáticos e a produção do conhecimento geográfico ainda não superaram os limites de
uma epistemologia fragmentária, dicotômica, que continua reproduzindo dualismo como
homem-natureza, sociedade-natureza ou sociedade-espaço. Impõe-se, pois, o desafio de
aproximar a prática cotidiana dos professores de geografia e os resultados mais recentes das
pesquisas epistemológicas. Este é, em nossa opinião, o principal desafio colocado diante da
Geografia neste momento, fazer a prática pedagógica cotidiana, a produção de materiais didáticos
a elaboração de currículos etc. refletirem os principais sucessos do movimento de renovação
crítica da Geografia.
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Bibliografia
LACOSTE, Yves. A geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. São Paulo:
Papirus, 1997.
GEORGE, Pierre. A geografia ativa. São Paulo: Difel, 1968.
AMORIN COELHO, Marcos de. Geografia do Brasil. São Paulo: Editora Moderna, 1987.
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