Guilherme Ranoya A emoção no projeto de desenho urbano 4º Simpósio de Arquitetura e Urbanismo Senac São Paulo 2012 O projeto iluminista destinava-se a emancipação do homem. Desde o fim da idade média, ou em muitos casos bem antes disso, a razão foi localizada como a própria definição do que significa ser humano: cogito ergo sum. Não foi diferente em relação à arquitetura e ao trabalho de se projetar os espaços urbanos; o pensamento racional e a busca por soluções objetivas aos problemas e funcionamentos urbanos também garantiram o lugar de destaque da razão nas práticas e na lógica projetual. Esta é, grosso modo, a matriz histórica do sistema de pensamento ocidental. O inicio do século XX foi marcado, fundamentalmente na filosofia, com a crise da razão, posta então sob suspeita. De um instrumento para emancipar, passou a ser vivida como repressiva. A crescente migração do campo à cidade, os ambientes fabris insalubres e a exploração do trabalho com regimes de até dezoito horas de dedicação diária são alguns dos efeitos colaterais de uma ciência implacável destinada ao domínio da natureza, que incluiu o próprio homem - como parte inexorável dela - em seu programa. Ainda que o século tenha sido marcado pelo eclipse da razão, sua hegemonia sob processos, análises e métodos foi dificilmente contestada. Em termos epistemológicos, manteve-se a premissa de uma assepsia racional como única forma possível para a produção do conhecimento: o distanciamento que evitava qualquer contato com aspectos subjetivos, pessoais, erráticos ou contaminados pelos fluxos incontroláveis da emoção. Evitá-la constituía algo tão crítico, que a própria imagem do homem equilibrado se apoiava na capacidade de controle emocional ou até da sua total supressão. Há poucas décadas, esta condição se pôs em mudança. Resultado dos problemas estudantis de maio de 68 na França e seus ecos ao longo de todo o mundo, da pressão pelos direitos das mulheres, homossexuais, negros e do turbilhão sócio-político da época, da contracultura, dos protestos contra a guerra do Vietnã, e nos diversos exercícios das formas de resistência aos modelos sociais considerados retrógrados, arcaicos ou ultrapassados, que permaneceram inaptos em fornecer as devidas melhorias no mundo como preconizados pela razão instrumental e o projeto iluminista. Sua hegemonia finalmente chegou a termo. Ponto de onde se estabeleceram iniciativas em todas as direções com o intuito de buscar, fora destes recalques, soluções para a condição humana. “Até recentemente, a emoção era uma parte pouco explorada da psicologia humana. Algumas pessoas acreditavam que fosse um resíduo de nossas origens animais. A maioria pensava em emoções como um problema que devia ser superado pelo pensamento racional lógico. E a maior parte das pesquisas se concentravam em emoções negativas como estresse, medo, ansiedade e raiva. Os estudos mais recentes reverteram completamente essa visão. A ciência hoje sabe que os animais mais avançados em termos evolucionários são mais emotivos que os primitivos, sendo que os seres humanos são os mais emocionais de todos.” (NORMAN, 2004:38). Se a emoção foi considerada um dia, como pontua Don Norman, um impasse ao avanço da humanidade, hoje é vista como elemento central de nosso devir. Curioso reconhecer que para as vanguardas do início do século XX a representação plena de nossa humanidade se dava pelo modelo da máquina e do cérebro, enquanto hoje a temos pela presença da sensibilidade. Um pensamento antropocêntrico atualmente é, em suma, um pensamento cuja centralidade se resolve na emoção e na sensibilidade humana. Não se trata de um elemento a mais para ser considerado em um projeto. Ela está presente em tudo. O sistema afetivo interfere diretamente em como entendemos o mundo. De forma bastante resumida, ela existe em nós para prover juízos e valores. Enquanto a cognição cuida dos significados, o sistema afetivo atribui a estes significados ou experiências um valor: são bons, ruins, maus, agradáveis, perigosos, seguros, confortáveis, incômodos, etc., e com isso retroalimenta o próprio sistema cognitivo. Os impulsos emocionais inundam nossa mente com neurotransmissores que mudam a forma como ela funciona, permitindo que diversas conexões semânticas ocorram, e consequentemente alterem as relações de significado. Para que algo nos faça sentido, todo esse conjunto - significados, juízos, subjetividades, objetividades, percepção - interage. O próprio problema da função é consideravelmente mudado quando colocado nesta perspectiva. Como afirma Norman, “objetos atraentes fazem as pessoas se sentirem bem, o que por sua vez faz com que pensem de maneira mais criativa. Como isso faz com que alguma coisa se torne mais fácil de usar? A resposta é simples: ao fazer com que se torne mais fácil para as pessoas encontrar soluções para os problemas com que se deparam.” (NORMAN, 2004:39) Sua tese é de que objetos agradáveis, belos ou que nos estimulem emocionalmente, também funcionam melhor; e isso não se resume a produtos, mas a todo o universo de coisas produzidas pelo próprio homem - em nosso caso presente, a própria cidade. Ele conclui que “precisaríamos de uma teoria mística para ligar a beleza e a função. Bem, foram precisos cem anos, mas atualmente temos uma teoria, baseada em biologia, neurociência e psicologia, não em misticismo.” (NORMAN, 2004:40). Até então, o discurso projetual institucionalizado - se é que mudou - afirmava que a funcionalidade deveria ser prioritária, e a estética algo decorrente ou complementar, quando não comprometesse o bom funcionamento das coisas: a descoberta de Norman é justamente que a beleza ou o afeto provocam esse bom funcionamento. A própria noção de função, haja visto, precisa ser melhor questionada. Sua raiz se encontra em pensamentos sociológicos, antropológicos e urbanísticos influenciados pelos avanços médicos, que tratavam a cidade e a sociedade como um órgão ou um corpo biológico. Esta metáfora é marcante no trabalho de Émile Durkheim, um dos pais da antropologia moderna. O bom funcionamento, analogamente, fazia referência ao nosso próprio corpo, e a maneira como veias permitiam às células transitar ao longo dele, de como cada orgão se especializava para manter o organismo vivo, e como o desempenho exemplar de cada atividade era objetivamente necessário para a saúde geral. Não apenas a metáfora fisiológica foi predominante para o conceito de função, como o pensamento marxista com o qual Durkheim e uma infinidade de outros pensadores do século XX também dialogaram, se apoiava na relação entre as partes e o todo de uma sociedade, instituindo como função a interação entre infraestrutura e superestrutura, ou seja, a reprodução nas relações de produção dos valores ideológicos instituídos. Seja qual for a origem real do conceito de função aplicado no urbanismo, o sentido atual do termo, ou do seu uso como norte projetual, é uma prática totalmente esvaziada. Concordamos com Rafael Cardoso ao criticar seu significado: “funcionalidade - termo equivocado em suas premissas” (2012:17), perdido entre a noção de função social (aquilo que preenche um hiato social e atende a demandas públicas), mecanização (aquilo que funciona como um relógio, como uma máquina), e recursividade (aquilo que possui recursos, que faz algo ser operado) ainda que sem um propósito objetivo. A critica de Cardoso é ainda mais dura, ao retomar os escritos de Victor Papanek: “Em termos semânticos, todas essas afirmações desde Horatio Greenough [escultor americano do século XIX, que escreveu textos precursores sobre as relações entre forma e função dos edifícios] até a Bauhaus alemã são desprovidos de sentido. A concepção de que aquilo que funciona bem terá necessariamente uma boa aparência serviu de desculpa débil para todo o mobiliário e os utensílios estéreis, com cara hospitalar, dos anos 1920 e 1930” (PAPANEK APUD CARDOSO, 2012:18) Se o propósito de um urbanista é dar vida a cidade, criá-la ou alterá-la para que faça maior sentido para pessoas, passamos a questionar se os critérios projetuais da modernidade estariam realmente em sintonia com estas expectativas. A vida está cheia de ambiguidade, dúvida, ironia ou comédia, de romantismo clichê ou de questões singelas demais ou insignificantes demais - que é preciso reconhecer, também fazem parte de nosso relacionamento com o mundo, aceite-se ou não. Também é preciso reconhecer que a estética “hospitalar” que Papanek tanto criticou, foi capaz de sensibilizar e criar beleza para uma sociedade que a encontrava no reconhecimento de ordenação, organização, hierarquia e clareza bem delineadas. Essa estética “hospitalar”, austera, objetiva, reta, representava muito bem sentimentos, desejos e valores típicos de um momento entre guerras. Contudo parece que condicioná-la a resultados secundários de uma relação funcional a privaram de assumir sua própria importância, ou impediram que sua expressão plástica adquirisse dignamente alguma autonomia. Ela foi acobertada, diminuída, relegada, até o ponto que se tornou ordinária. A modernidade fixou o olhar do urbanista para horizontes grandiosos. Brasília é o exemplo de como, por aqui, esta modernidade se traduziu em ineditismo e liberdade formal para uma escala faraônica, sem antes, claro, fazer sua devida reverência ao planejamento e racionalização do espaço. Niemeyer afirmava uma arquitetura de invenção, mas Lúcio Costa construía antes um discurso legível através de eixos, setores, direções e ocupações. Marcado pelo tom autoral de ambos, o projeto não é apenas a referência, mas a máxima de nosso raciocínio urbanizador. Com um exemplo dessa magnitude, parece infrutífero advogar a favor de uma visão preocupada com os pequenos espaços, com as relações entre pessoas, acontecimentos ou mesmo as trivialidades do cotidiano, que poderiam ser melhor acolhidos pelo espaço se ele fosse pensado de forma menos gloriosa. Christopher Alexander já instituia isso na década de 70, reiterando a importância destes elementos: “In order to define this quality in buildings and in towns, we must begin by understanding that every place is given its character by certain patterns of events that keep on happening there.” [Para aprimorar prédios e cidades, deve-se começar pelo entendimento que cada lugar ganha suas características pelos padrões de eventos que continuam a se repetir nele] (1979:55). O cuidado com essa identidade, significação e particularização em cada espaço parece perder-se ou se tornar secundário frente as dimensões almejadas para intervenções urbanísticas, como se nelas, fossemos apenas eventualidades em seus grandes sistemas. Nossa prática local vai em direção oposta ao pensamento, já com mais de trinta anos, de Alexander. Ainda sim, Brasília nos sensibiliza por ser única, e por ter sido projetada para ser assim. A inventividade adotada nas suas edificações consagradas também é um aspecto emocional bastante evidente: são feitas para surpreender. Niemeyer sempre contou com esse sentimento em seus projetos. É bem provável que eles nos arranquem mais sorrisos de admiração do que o plano piloto, mas isto não deveria ser uma regra. As piazzas no centro Roma, por exemplo, são convidativas: em contraste às ruas estreitas e irregulares, provém um sentimento de lugar, de centralidade; sua iluminação e o frescor das fontes durante o verão, ou os canteiros floridos, criam um espaço para ficar, que atraem pessoas de todas as idades durante longos períodos no dia. Já os grandes eixos de Haussmann em Paris fizeram dela o centro do mundo no século XIX, não para que carros pudessem fluir, mas para que a imponência e o orgulho de um império pudessem insuflar o espírito das pessoas que ali trafegavam. Os parques e jardins de Palermo em Buenos Aires dão ao bairro uma leveza e uma identidade por seu próprio desenho urbano. Uma roda gigante provisória no Tâmisa, para entreter pessoas em um evento, acabou se tornando um elemento permanente e um marco para Londres que rivaliza com outros pontos de reconhecimento internacional como a Tower Bridge ou o Big Ben. Todos estes exemplos causam algum tipo de emoção, e retiram do transeunte um sentimento ao mesmo tempo inesperado e realizado, ou como diz Alexander: “Yet, still there are those special secret moments in our lives, when we smile unexpectedly – when all our forces are resolved.“ [Não obstante, permanecem aqueles momentos interiores e especiais em nossas vidas, quando sorrimos inesperadamente – quando todas as forças em nós estão resolvidas] (1979:52). Todos estes exemplos foram planejados ou projetados mais para inspirar do que para responder uma demanda objetiva. Mas enquanto falamos de instituir sentido às coisas, ao espaço, às edificações e às cidades, toda a discussão central continua lidando com o problema da forma. Este, como o da função um se apoia noutro -, não está além de uma casca oca que sem significados, valores ou juízos. No geral neutra ou inerte em relação à nós mesmos, a forma como princípio projetual aceita qualquer sentido, e se acopla com o que for nela depositado. Esta maneira de se projetar, sem posicionamento ou sem intenção de trocas e diálogos genuínos entre o espaço e seu usuário, produz o parnasianismo urbanístico ou arquitetônico que tão bem conhecemos: cidades neutras, cidades padrões, cidades umas iguais a outras; formas em abundância, mas raras exceções, sem o estofo que Vilém Flusser cuidadosamente procurava demonstrar como sua devida substância: "O mundo material (materielle Welt) é aquilo que guarnece as formas com estofo, é o recheio (Füllsel) das formas. Essa imagem é muito mais esclarecedora do que a da madeira entalhada que gera formas, porque mostra que o mundo 'do estofo' (stoffiche Welt) só se realiza ao se tornar o preenchimento de algo." (2007:24) Enquanto se discute ostensivamente a morfologia urbana, perdemos uma oportunidade preciosa de discutir sua semântica, seu aspecto humano, e as maneiras de se projetar para que realmente toquem pessoas. Bibliografia ALEXANDER, Christopher. Timeless Way of Building. Oxford: Oxford University Press, 1979. CARDOSO, Rafael. Design para um mundo complexo. São Paulo: Cosac-Naify, 2012. FLUSSER, Vilém. O mundo codificado - por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac & Naify, 2007. NORMAN, Donald. The psychology of everyday things. New York: Basic Books, 1988. _______________. Design emocional. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2004.