Sousa

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Determinantes semântico-funcionais na integração gramatical
de orações completivas1
Gisele Cássia de Sousa
Faculdade de Ciências e Letras – Universidade Estadual Paulista (UNESP-Araraquara)2
[email protected], [email protected]
Abstract. Dik (1997) proposes that complement clauses must be classified as
different order entities, according to Lyons (1977). Based on this
classification, I intented to demonstrate that the type of entity represented by a
complement clause (predication, proposition, speech act) indicates the degree
of (in)dependence that this clause mantain with its main clause. Thus, the
analysis presented here corroborates the idea supported specially by Givón
(1985, 1990) that there is a narrow correlation between semantic and/or
cognitive properties and degrees of grammatical dependency/integration of
complement clauses.
Keywords. Functional Grammar; grammatical integration; complement
clauses.
Resumo. Dik (1997) propõe que as orações completivas sejam classificadas
como entidades de ordens diferentes, no sentido de Lyons (1977). Seguindo
essa classificação, busco demonstrar que o tipo de entidade que uma oração
completiva representa (predicação, proposição, ato de fala) é indicativo do
grau de (in)dependência que essa oração mantém com sua oração principal.
Assim, a análise apresentada aqui corrobora a idéia sustentada especialmente
por Givón (1985, 1990) de que há uma estreita correlação entre propriedades
semânticas e/ou cognitivas das orações completivas e graus de
dependência/integração gramatical dessas orações.
Palavras-chave. Gramática Funcional; integração gramatical; orações
completivas.
1. Caracterização semântica das construções completivas com enfoque no
predicado matriz
A forte influência exercida por fatores de ordem semântica e semânticocognitiva sobre o comportamento das orações completivas já há algum tempo vem
sendo comprovada. Possivelmente, os primeiros a defenderem a existência de uma
relação sistemática entre propriedades semânticas e a forma sintática que as orações
completivas assumem foram Kiparsky & Kiparsky, em estudo publicado em 1970.
Partindo da análise de construções completivas do inglês, mas assumindo
explicitamente que sua proposta seja válida também para outras línguas, esses autores
demonstram que a expressão da oração completiva em forma finita, introduzida pelo
complementizador “que”, ou não finita, encabeçada por verbos com flexões de gerúndio
e infinitivo, depende fortemente de significados do predicado matriz no qual a
completiva se encaixa e reflete o julgamento do falante sobre a verdade do conteúdo
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expresso na oração completiva. Com esse estudo, Kiparsky & Kiparsky foram também
os que primeiro demonstraram a distinção entre predicados factivos e não-factivos,
como reconhece Dik (1997). Em português, a diferença entre predicados factivos e nãofactivos pode ser vista em construções completivas como em (1a) e (1b):3
Factivo
(1) a. João sabe que Ana deixou o país.
a’. João não sabe que Ana deixou o país.
Não-factivo
b. João disse que Ana deixou o país.
b’. João não disse que Ana deixou o país.
Em (1a), independente de o predicado matriz (“saber”) aparecer afirmado (1a)
ou negado (1a’), o conteúdo da oração completiva, isto é, o fato de Ana ter deixado o
país, é entendido como um fato verdadeiro. Isso porque, conforme propõem Kiparsky &
Kiparsky (1970), “saber” é um predicado do tipo factivo, com o uso do qual “o falante
pressupõe que a oração encaixada expressa uma proposição verdadeira e faz uma
afirmação sobre essa proposição” (p. 348). Observe-se que, diferentemente de “saber”,
o verbo “dizer” em português não pressupõe que o conteúdo da completiva nele
encaixada seja um conteúdo verdadeiro, isto é, seja negado (1b) seja afirmado (1b’),
“dizer” encaixa conteúdos que tanto podem ser verdadeiros quanto podem ser falsos.
Um outro tipo de predicado cujo valor pressuposicional interfere na
interpretação da oração completiva que nele se encaixa é o que Kartunnen (1970)
identifica e denomina “predicado implicativo”. É característica desse tipo de predicado
pressupor como verdadeiro o conteúdo da oração que o complementa apenas em
sentenças afirmativas; em sentenças nas quais os verbos desse tipo aparecem negados, a
pressuposição é também negativa, isto é, a de que o conteúdo da oração completiva não
é verdadeiro ou real. Em português, um verbo do tipo implicativo é “conseguir”.
Observe-se, na construção em (2a), que o conteúdo da oração completiva é interpretado
como verdadeiro, isto é, entende-se que a prova foi adiada. Já em (2a’), em que
“conseguir” aparece acompanhado de negação, a interpretação é a de que a prova não
foi adiada.
Implicativo
(2) a. Ana conseguiu que o professor adiasse a prova.
a’. Ana não conseguiu que o professor adiasse a prova.
Não-implicativo
b. Ana quis que o professor adiasse a prova.
b’. Ana não quis que o professor adiasse a prova.
O verbo “querer” em português, por outro lado, comporta-se como nãoimplicativo. O conteúdo das orações que complementam esse verbo não é pressuposto
como verdadeiro ou real, nem como não verdadeiro, irreal, seja esse verbo afirmado,
como mostra (2b), seja negado, como em (2b’) acima.
Essa classificação dos predicados, em factivos/não-factivos e implicativos/nãoimplicativos, embora seja evidentemente crucial a uma abordagem semântica da
complementação oracional, focaliza muito mais os significados dos verbos que
selecionam uma oração como argumento do que significados dos complementos
oracionais propriamente ditos. Note-se que, nessa classificação dos predicados, o
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conteúdo do complemento oracional é apenas interpretado como factual/não-factual ou
realizado/não-realizado e em função de significados do predicado matriz. Nesses
estudos, não se propõe, como para os predicados, uma classificação semântica também
dos complementos oracionais.
2. Uma caracterização funcional das orações completivas
Uma proposta de se considerarem nas análises também os significados dos
complementos oracionais está em Dik (1997). Esse autor retoma a classificação
semântica dos predicados proposta por Kiparsky & Kiparsky (1970) e por Kartunnen
(1970), mas, indo além dela, oferece uma classificação também das orações completivas
de predicados, caracterizando-as como unidades semântico-funcionais distintas.
As orações que são argumento de predicados verbais se classificam, nessa
proposta de Dik (1997), em predicações, proposições e atos de fala encaixados,
conforme o tipo de entidade, no sentido de Lyons (1977), que a completiva representa, o
que, afinal, depende de significados do verbo matriz. Uma oração que funciona como
complemento do verbo “conseguir”, como em “Ana conseguiu que a prova fosse
adiada”, por exemplo, corresponde a uma predicação encaixada, porque representa o
estado-de-coisas (ou o evento), uma entidade de segunda ordem, que Ana conseguiu que
se realizasse. Uma oração completiva de um verbo como “saber” (em “João sabe que
Ana deixou o país”), por outro lado, equivale a uma proposição encaixada, a uma
entidade de terceira ordem, porque representa um objeto de conhecimento (aquilo que
João sabe), e não um objeto físico do mundo real. Orações que complementam verbos
dicendi, como “dizer” em “João disse que Ana deixou o país”, ou como “perguntar” em
“João perguntou se Ana deixou o país”, são, por sua vez, consideradas entidades de
quarta ordem. São atos de fala encaixados que, desse modo, representam um tipo de
entidade que se avalia em termos de condições de “felicidade”, não em termos de
realidade/irrealidade, como os estado-de-coisas, nem em termos de verdade/falsidade,
como no caso de conteúdos proposicionais.
Na teoria da Gramática Funcional, da qual Dik é o principal precursor, as
unidades semântico-funcionais, distinguidas a partir da classificação de entidades
proposta por Lyons (1977), ocupam diferentes posições na estrutura em camadas
(layered structure), um esquema abstrato presumivelmente subjacente à formação das
expressões lingüísticas e que está no centro do modelo funcionalista de Dik (1989,
1997). Sobre as diferentes unidades, nas diferentes camadas, atuam determinados
operadores (elementos gramaticais, simbolizados por ‘π’) e satélites (elementos lexicais,
simbolizados por ‘σ’), conforme as especificações que eles realizam em cada nível até a
formação completa da expressão lingüística (o ato de fala, revestido de força
ilocucionária). No esquema exposto a seguir, pode-se visualizar o modo como as
diferentes unidades se distribuem na estrutura em camadas e como elas são
especificadas pelos diferentes operadores e satélites. Note-se, a partir desse esquema,
que, das unidades que as orações completivas representam, a predicação ocupa a
camada mais baixa, a proposição ocupa a camada superior, e o ato de fala, a camada
mais alta da estrutura.
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ato de fala
proposição
π3 , σ3
predicação estendida
predicação central
predicação nuclear
predicado
π4 , σ4
π2 , σ2
π1 ,σ1
argumento
Quadro 1: Esquema de representação da estrutura em camadas da Gramática
Funcional (adaptado de Bolkestein, 1992)
A caracterização que as construções completivas recebem dentro da abordagem
da Gramática Funcional, apresentada em Dik (1997), deixa subentendida uma estreita
relação entre os tipos semânticos de predicados, classificados de acordo com as
propostas de Kiparsky & Kiparsky (1970) e de Kartunnen (1970), e o tipo de oração
completiva que pode ser argumento dos diferentes predicados. Embora referência
explícita a essa relação não seja feita em Dik (1997), ao longo da própria caracterização
que ali se apresenta há evidência de que essa relação existe e é assumida pela teoria da
Gramática Funcional. O que ocorre é que predicados implicativos e não-implicativos
são apresentados somente como tipos de predicado nos quais se encaixam orações
completivas que representam predicações; como predicados que servem de matriz a
proposições e a atos de fala encaixados, apenas os factivos e os não-factivos se
apresentam. A relação que se estabelece é, assim, entre predicados implicativos/nãoimplicativos e complementos oracionais que representam predicações encaixadas e
entre predicados factivos/não-factivos e orações completivas equivalentes a proposições
ou atos de fala, conforme se resume no quadro abaixo.4
Tipo de predicado
matriz
Tipo de oração
completiva
Implicativos
Predicação
Não-implicativos
Factivos
Proposição ou Ato de
Fala
Não-factivos
Quadro 2: Correlação entre propriedades semântico-funcionais de predicados
e de orações completivas
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A partir daí, pode-se dizer que também o significado do complemento oracional
é determinado, e pode ser previsível, a partir de propriedades semânticas do predicado
matriz, e não apenas a forma sintática do complemento oracional, como propõem
Kiparsky & Kiparsky (1970).
É evidente que a verificação dessa relação de determinação que há entre
propriedades semânticas do predicado matriz e o tipo semântico do complemento
oracional só é possível se também a oração completiva recebe uma caracterização
semântica, o que já demonstra a relevância que tem a abordagem da Gramática
Funcional para o tratamento das construções completivas. Caracterizar também os
complementos oracionais em termos semântico-funcionais, e não apenas os predicados
em que eles se encaixam, ainda se mostra relevante, no entanto, quando se consideram
outros aspectos da complementação oracional, como o grau de integração gramatical
que há entre uma oração completiva e sua matriz.
3. Tipo de entidade e integração gramatical das orações completivas
Conforme busco demonstrar nesta seção, o tipo de unidade semântico-funcional
que uma oração completiva representa, isto é, se ela corresponde a uma predicação, a
uma proposição ou a um ato de fala, parece refletir o grau de integração gramatical
(maior ou menor) que essa oração mantém com sua oração matriz.
Para comprovar essa idéia, adoto a proposta de Neves (1999) de se medir o grau
de integração dos complementos oracionais a partir da atuação de diferentes operadores
no complexo oracional formado por oração matriz e oração completiva. De acordo com
essa proposta, a livre atuação de um operador na oração matriz, sem afetar o conteúdo
da oração completiva, indica que complemento oracional e oração matriz funcionam
como duas unidades independentes, entre as quais há baixo grau de integração sintática.
Por outro lado, se o escopo de um operador ou satélite presente na oração matriz é
também o conteúdo da oração completiva, as duas orações funcionam como uma
unidade apenas, e há entre elas alto grau de integração gramatical. Cabe ressaltar que,
diferentemente de Neves (1999), a análise que apresento aqui se restringe a construções
com orações completivas finitas introduzidas por “que” e à atuação de apenas dois tipos
de operadores: de negação e de tempo.
Observe-se, primeiramente, que, em construções com predicado do tipo factivo,
como em (3) abaixo, oração matriz e oração completiva podem ser negadas
independentemente, isto é, o conteúdo na oração matriz é o conteúdo negado em (3’), e
o conteúdo da completiva equivale a (3’’):
(3) João não sabe que Ana não gosta de viajar.
(3’) João não sabe/desconhece um fato.
(3’’) Ana não gosta de viajar.
Em construções com predicado implicativo, por outro lado, a negação na oração
matriz anula a negação na oração completiva. O significado do complemento oracional
na construção em (4), a seguir, é o significado positivo (não-negado) em (4’).
(4) Ana não conseguiu que o professor não adiasse a prova.
(4’) O professor adiou a prova.
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Se o predicado matriz for do tipo não-implicativo, entretanto, a negação na
oração matriz não afeta o conteúdo do complemento oracional. Em (5) abaixo, o
conteúdo na oração matriz é o estado-de-coisas negado “João não quis”, e a oração
completiva expressa o evento que João não quis que acontecesse (“a prova não fosse
adiada”):
(5) João não quis que a prova não fosse adiada.
(5’) João não quis.
(5’’) A prova não fosse adiada.
Em construções com predicados não-factivos, a negação também opera
independentemente sobre o conteúdo da oração matriz e da completiva, conforme se
observa em:
(6) João não disse que Ana não vem.
(6’) João não disse.
(6’’) Ana não vem.
As construções em (3) a (6) revelam, assim, que não são afetadas pelo operador
de negação presente na matriz as orações completivas de predicados factivos, nãofactivos e de predicados não-implicativos. O único caso em que a negação na oração
matriz afeta também o conteúdo da oração completiva é o de construções com
predicado implicativo, como em (4), e, portanto, casos em que, como apontado na seção
anterior, a oração completiva representa uma predicação encaixada, uma entidade de
segunda ordem.
A partir das construções a seguir, analisa-se o modo como operadores de tempo
funcionam nesses diferentes tipos de construção completiva.
A construção em (7), abaixo, mostra que, com predicados factivos, o tempo do
evento na oração matriz pode ser diferente do tempo do evento expresso na oração
completiva:
(7) João sabe que Ana viajou há dez dias.
(7’) João sabe (presente)
(7’’) Ana viajou há dez dias (passado)
Em construções com predicados não-factivos, como em (8), os eventos na matriz
e na completiva também podem ser temporalmente independentes:
(8) João disse que Ana virá amanhã.
(8’) João disse (passado)
(8’’) Ana virá amanhã (futuro)
Se o predicado matriz de uma construção completiva for, no entanto, do tipo
implicativo, o tempo do evento no complemento oracional só pode ser o mesmo do
evento na oração principal, como mostra a construção em (9):
(9) Ana conseguiu que a prova fosse adiada ontem.
(9’) Ana conseguiu (passado)
(9’’) A prova fosse adiada ontem (passado)
A ocorrência de eventos temporalmente diferentes na matriz e na completiva
torna agramatical a construção em (9), como se observa em:
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(10) *Ana consegue que a prova fosse adiada ontem.
(10’) Ana consegue (presente)
(10’’) A prova fosse adiada ontem (passado)
Essa mesma restrição existe para construções com predicados não-implicativos,
como em (11) abaixo, isto é, para construções com predicados desse tipo, também não é
possível que os eventos na matriz e na completiva sejam diferentes quanto ao tempo,
como mostra (12):
(11) João quis que a prova fosse adiada ontem.
(11’) João quis (passado)
(11’’) A prova fosse adiada ontem (passado)
(12) *João quer que a prova fosse adiada ontem.
(12’) João quer (presente)
(12’’) A prova fosse adiada ontem (passado)
Além do tempo, predicados do tipo implicativo e não-implicativo determinam o
modo verbal de seus complementos oracionais. Note-se que, se as orações completivas
em (11) e em (12) apresentarem o modo indicativo, as construções também se tornam
agramaticais:
(13) *Ana conseguiu que a prova foi adiada.
(14) *João quis que a prova foi adiada.
A análise do funcionamento de operadores temporais mostra, assim, que tanto
orações completivas de predicados implicativos quanto orações que são argumentos de
verbos não-implicativos têm sua expressão de tempo dependente do tempo na oração
matriz, o que não ocorre com as completivas de verbos factivos e não-factivos.
O funcionamento dos operadores de negação e de tempo nas construções
completivas revela que apenas as completivas de predicados implicativos e nãoimplicativos são sensíveis à atuação de elementos presentes na oração matriz, com a
qual, de acordo com a proposta de Neves (1999), as orações completivas formam uma
unidade de significado. Essas completivas são, portanto, desse ponto de vista, mais
dependentes e mais integradas sintaticamente à oração nas quais elas se encaixam do
que as completivas de verbos factivos e não-factivos.
Uma vez que, conforme foi demonstrado anteriormente, as orações completivas
de predicados implicativos e não-implicativos representam, de acordo com a proposta
da Gramática Funcional (Dik, 1997), predicações encaixadas, o comportamento
diferenciado das completivas segundo a atuação dos operadores analisados aqui permite
considerar que completivas representativas de predicação são mais dependentes e mais
integradas à oração com que ocorrem do que aquelas completivas que correspondem a
proposições e a atos de fala encaixados, que funcionam como argumento de predicados
factivos e não-factivos. Isso, por outro lado, sugere que as orações completivas sejam
mais dependentes e, conseqüentemente, mais integradas à oração matriz quanto mais
baixo for, na estrutura em camadas da Gramática Funcional, o nível em que se situa a
unidade semântico-funcional que a completiva representa. Em outras palavras, o
comportamento das completivas analisadas aqui leva a crer que quanto mais alta está, na
estrutura em camadas, a unidade semântico-funcional que a completiva representa tanto
maior a autonomia da oração completiva com relação à sua oração matriz, e tanto
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menor o grau de integração do complemento oracional. E, inversamente, quanto mais
baixo o nível em que se situa, na estrutura em camadas, a unidade representada pela
oração completiva, menor é a autonomia dessa oração e maior é o seu grau de
integração gramatical.
4. Considerações Finais
Além do comportamento das completivas introduzidas por “que” quanto à
atuação dos operadores de negação e de tempo, dois outros fatos relacionados à
complementação oracional em português parecem comprovar a idéia de que há uma
correspondência direta entre a posição ocupada, na estrutura em camadas, pela unidade
semântico-funcional que a completiva representa e o grau de (in)dependência gramatical
dessa oração. O primeiro é que orações completivas representativas de atos de fala,
unidade semântico-funcional que ocupa o nível mais alto da estrutura em camadas (cf.
quadro 1), podem ocorrer de forma estruturalmente independente da oração matriz, em
construções em discurso direto, sem que haja nenhuma marca formal da ligação entre o
ato de fala e a oração que o introduz, como em:
(15) João disse: “Ana virá”.
O outro fato diz respeito às completivas não-finitas em português.
Complementos oracionais não-finitos podem corresponder, como se sabe, a orações
próximas à “dessentencialização” (o termo é de Lehmann (1988)), no sentido de que
elas não apresentam propriedades características de sentenças (como marcas
morfológicas de tempo e modo), mas propriedades tipicamente nominais. O vínculo
gramatical que esse tipo de oração mantém com a oração matriz é tão maior do que no
caso de uma oração completiva finita que a especificação temporal do evento que a
completiva expressa, por exemplo, dá-se unicamente pelo verbo da oração matriz, como
mostra a construção em (16):
(16) Ana conseguiu tirar nota na prova.
Na estrutura em camadas da Gramática Funcional, completivas não-finitas como
em (16) ocupam o nível da predicação central, em que operadores temporais não são
atuantes. Elas situam-se, assim, em um nível abaixo do das predicações, o que, então,
também estaria de acordo com a idéia de que quanto mais baixo o nível da estrutura em
camadas em que se situa a oração completiva menor é a sua autonomia com relação à
oração matriz e maior o seu grau de integração gramatical.
Pode ser, ainda, que a correlação existente entre o tipo de unidade semânticofuncional e graus de integração gramatical das completivas, conforme propus aqui, seja
observada também no que diz respeito à alteração formal das orações completivas em
um possível processo de mudança. As completivas finitas equivalentes à predicação,
unidade mais baixa na estrutura em camadas da Gramática Funcional, seriam, nesse
sentido, candidatas primeiras à dessentencialização, mais propícias à expressão na
forma de oração não-finita do que as completivas que representam proposições e atos de
fala, unidades hierarquicamente mais altas na estrutura em camadas.
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Notas
1
Este trabalho é parte de uma pesquisa maior, ainda em desenvolvimento, sobre o
comportamento das orações completivas em diferentes fases do português e que
resultará na Tese de Doutorado da autora. A pesquisa tem o financiamento da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP – proc. no. 04/01420-4).
2
Aluna de Doutorado do Programa de Pós-graduação em Lingüística e Língua
Portuguesa.
3
Ressalte-se, de antemão, que as considerações feitas neste trabalho se restringem a
orações completivas que ocupam a posição de argumento interno de predicados verbais,
com função sintática de “objeto direto”.
4
A restrição que significados pressuposicionais do predicado matriz impõem sobre o
tipo de entidade possível de ser selecionada como complemento explica, em certa
medida, por que uma oração introduzida pelo complementizador “se”, representativa de
conteúdos proposicionais por excelência, não aparece como argumento de predicados
implicativos e não-implicativos em português (cf. *Ana conseguiu se a prova fosse
adiada / *Ana quis se a prova fosse adiada), conforme apontei em trabalho anterior
(Sousa, 2006).
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http://www.gel.org.br.
Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 151 / 151
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