DOSSIER O salvador da Carismático jovem ministro a prosperidade a um país rico em dos Negócios Estrangeiros nas décadas petróleo e gás natural. Apoiado pelos de 60 e 70, Abdelaziz Bouteflika militares, fez-se eleger presidente ressurgiu politicamente em 1999, aos 62 e lançou de imediato uma ambiciosa anos, como o homem capaz de pacificar política de amnistia aos combatentes a sociedade argelina e devolver islamitas. A alta do preço dos texto Leonídio Paulo Ferreira* fotos Lusa om os partidos islamitas radicais ilegalizados há quase duas décadas e a oposição democrática a boicotar a ida às urnas, a reeleição em Abril de Abdelaliz Bouteflika para um terceiro mandato presidencial não foi surpresa. Tal Portugal como não foi surpresa a sua votação na ordem dos 90 por cento. O problema é que este novo triunfo e a sua margem não reforçam a legitimidade do homem que ganhou prestígio nos anos 60 como ministro dos Negócios Estrangeiros de uma Argélia campeã do terceiro-mundismo e que regressou Espanha Itália Mar Mediterrâneo Argel Sicília em 1999 como salvador de uma Argélia em guerra civil com os grupos islamitas armados. Conflito iniciado com a ilegalização da Frente Islâmica de Salvação (FIS) em 1991, após vencer a primeira volta das legislativas, transformou-se com o passar dos anos num caos sangrento, com diferentes responsáveis, População 33 milhões Área 2,4 milhões de km2 Línguas Árabe, francês, berbere Tunísia Religião islão 99 por cento; Marrocos cristãos e judeus um por cento Esperança média de vida Argélia Homens 71 anos; mulheres 74 anos Mortalidade infantil 27 por mil Moeda dinar Líbia Sara Ocidental Mauritânia Maiores exportações Mali Niger Chade O gigante magrebino 16 FÁTIMA MISSIONÁRIA MAIO 2009 Petróleo, gás natural (Portugal é um dos clientes) Taxa de desemprego 12,9 por cento Rendimento médio por habitante 3620 dólares Argélia DOSSIER hidrocarbonetos permitiu uma aposta quebra das cotações petrolíferas, a missão nas políticas sociais e a Argélia parecia de Bouteflika está agora mais difícil. E ter estar a regressar ao bom caminho. mudado a Constituição para disputar um Mas com a Al-Qaeda no Magrebe terceiro mandato, que venceu com 90 por a mostrar nova força e os cofres cento dos votos, faz a muitos suspeitar de do estado a minguarem, por causa da uma excessiva personalização do poder que causou cem mil mortos. Atentados à bomba e massacres de aldeias tornaram-se quase diários e nem sempre os suspeitos eram os grupos islamitas, ligados à FIS, como o Grupo Islâmico Armado (GIA), ainda mais radical no ódio aos militares e ao relativo laicismo que permitiram nas primeiras décadas de independência argelina. Um relatório governamental divulgado em 2006 atribui aos mili­ta­res o desaparecimento de seis mil pessoas durante a guerra civil dos anos 90. Poderão ter sido mais, pois muitas aldeias massacradas votaram em 1991 maciçamente na FIS. Por outro lado, muitos massacres foram actos de retaliação, do género “atacaste a minha aldeia, agora ataco a tua”, espécie de olho-por-olho, dente-por-dente. A tudo isto Bouteflika prometeu pôr fim quando voltou ao poder. Apoiado pelos militares e pelos quadros da Frente de Libertação Nacional (FLN), o antigo partido único, Abdelaziz Bouteflika acena aos jornalistas na campanha eleitoral que lhe rendeu um terceiro mandato presidencial sem precedentes, com 90,24 por cento dos votos MAIO 2009 FÁTIMA MISSIONÁRIA 17 DOSSIER Bouteflika lançou-se no diálogo com os grupos islamitas e aprovou uma lei de amnistia que permitiu a pacificação gradual da Argélia. Depois de toda a década de 90 marcada pelo terror (ao ponto de os estrangeiros terem quase desertado por completo), o novo século começou sob certa tranquilidade, com o presidente a revelar-se como um salvador da pátria. À medida que os activistas entregavam as armas, a capacidade de recrutamento das milícias ia também diminuindo, com a alta das cotações do petróleo e do gás natural a encherem os cofres do estado e a permitirem o regresso de muitas políticas sociais. De repente, os jovens deixavam de ter como única alternativa ao desemprego e pobreza a emigração para França. Os anos eram de expansão económica e até permitiram à Argélia pagar a sua dívida externa em 2006, o que dourou a imagem internacional do país e sobretudo de Bouteflika. Mas a violência insiste em marcar o quotidiano dos argelinos e para desagrado do presidente, alguns dos islamitas transformaram-se no braço da Al-Qaeda no Magrebe, reivindicando sucessivos ataques. Em 2007, chegaram a atacar em Argel um edifício da ONU, matando dezenas de pessoas. Atentado suicida em Hydra, Argel, junto do edifício das Nações Unidas para os refugiados 18 FÁTIMA MISSIONÁRIA MAIO 2009 Imigrantes argelinos em protesto nas ruas de Marselha, França. com a bandeira do seu país E esses atentados mostram que a pacificação levada a cabo por Bouteflika não foi totalmente conseguida. E até pode ser revertida. Pior ainda: a um ressurgimento do terror islamita vem somar-se agora a quebra nos preços DOSSIER dos hidrocarbonetos, principal fonte de divisas da Argélia. A manterem-se as actuais cotações, as receitas podem cair cerca de 60 por cento, o que significa um duro golpe nas aspirações de Bouteflika de consolidar economicamente o segundo maior país de África e o maior de toda a bacia mediterrânica, senhor ainda daquela que é a terceira capital mais próxima de Lisboa (só Madrid e Rabat ficam mais perto; Paris é já mais distante). Mesmo no período mais agudo da guerra civil, a Argélia permitiu grande margem de liberdade aos seus jornais e insistiu sempre em realizar eleições. Com uma diversidade de partidos, desde os islamitas moderados aos trotsquistas, o país fez questão de afirmar algumas credenciais democráticas raras no mundo árabe. Mas a recente mudança constitucional para permitir o terceiro mandato de Bouteflika é um rude golpe para quem esperava ver reforçar-se a democracia argelina. A vitória absoluta nas presidenciais arrisca-se a ser a transformação do poder de Bouteflika em poder absoluto, o que em nada servirá para resolver os problemas dos 33 milhões de argelinos. * jornalista do Diário de Notícias Eterno líder argelino Em 1974, foi um jovem e bigodudo Abdelalziz Bouteflika que presidiu à assembleia das Nações Unidas, na qual o líder palestiniano Yasser Arafat discursou pela primeira vez. O então ministro dos Negócios Estrangeiros argelino podia ser a companhia pre­fe­ rida do presidente Ben Bella para um joguinho de futebol, mas quando este morreu, em 1979, foi preterido para lhe suceder. E teria de esperar duas décadas para finalmente chegar à chefia do estado que ajudou a criar. Nascido em 1937 numa família argelina que vivia em Marrocos, Bouteflika ganharia créditos políticos na guerra da independência contra França. Comandante militar e destacado para uma missão secreta em território fran­cês, Bouteflika ocupou vários car­gos de ministro nos primeiros governos após a independência em 1962. Juventude, Desporto, Turismo e Negócios Estran­ geiros foram algumas das pastas que deteve. Afastado do poder e exilado desde 1981 por vontade própria na Suí­ ça e no Golfo Pérsico, volta à Argélia em 1987 e começa a defender a reforma democrática do país. No caos que se segue ao desmantelamento do partido islamita vencedor das eleições de 1991, Bouteflika vê a vice-presidência ser-lhe oferecida em 1994, mas recusa. E só cinco anos depois, com os militares a perderem poder, é que Bouteflika é finalmente eleito presidente, após a desistência de todos os adversários, em protesto contra a falta de clareza do escrutínio. Cedo começa a cumprir a promessa de reconciliação nacional: amnistia os islamitas e aposta em melhorar a reputação do regime. A recuperação económica, que consegue graças ao dinheiro do petróleo e do gás natural, vale-lhe uma vitória esmagadora nas eleições de 2004. Mas um segundo mandato marcado pela fraca resposta aos atentados reivindicados pela Al-Qaeda no Ma­gre­be e a alteração da Constituição para lhe permitir disputar um terceiro mandato – que obteve em Abril passado com mais de 90 por cento dos votos – contribuíram para degradar a sua imagem. Pouco conhecidos do público, cinco candidatos disputaram com Abdelaziz Bouteflika as eleições presidenciais de 9 de Abril A violência insiste em marcar o quotidiano dos argelinos e para desagrado do presidente, alguns dos islamitas transformaram-se no braço da Al-Qaeda no Magrebe, reivindicando sucessivos ataques MAIO 2009 FÁTIMA MISSIONÁRIA 19 DOSSIER Entre política e religião 1962 Argélia torna-se independente de França. 1963 Ahmed Ben Bella é eleito primeiro presidente. 1965 Golpe de estado contra Ben Bella liderado por Houari Boumedienne. 1976 Boumedienne introduz uma nova Constituição que confirma o seu compromisso com o socialismo e o papel da Frente de Libertação Nacional enquanto partido único. O islão é reconhecido como religião de estado. 1978 Boumedienne morre e é substituí­ do pelo coronel Chadli Bendjedid. 1986 A inflação e desemprego sobem por causa da queda dos preços do petróleo e do gás. 1988 Violentos protestos contra as condições económicas. 1989 A Assembleia Nacional Popular revoga a proibição de novos partidos políticos e adopta uma nova lei eleitoral que permite às formações da oposição disputarem eleições. A Frente Islâmica de Salvação (FIS) é fundada e 20 outros partidos autorizados. 1990 A FIS vence as eleições locais com 55 por cento dos votos. 1991 O governo convoca legislativas para Junho e planeia alterações ao siste­ Estudante do Alcorão. Durante o mês do Ramadão, o estudante deve ler ou recitar todo o livro sagrado ma eleitoral, incluindo restrições a fazer campanha eleitoral nas mesquitas. A FIS reage, convocando uma greve geral. É declarado o estado de emergência e as eleições são adiadas seis meses. Os líderes da FIS, Abassi Madani e Ali Belhadj, são detidos. Em Dezembro, na primeira volta das eleições, a FIS elege 188 deputados e tem a vitória pratica­ mente garantida na segunda volta. 1992 A 4 de Janeiro, a Assembleia Nacional Popular é dissolvida por decreto Perseguição aos cristãos Em Junho de 2008, quatro cristãos argelinos foram multados e condenados a penas de prisão suspensas por prática religiosa ilegal. Todos eram recém-convertidos, resultado da acção prosélita de missionários protestantes que actuam ilegalmente no país. Tal como acontece noutros países do Magrebe, a prática cristã é tolerada e existem várias igrejas, mas não é permitida a tentativa de conversão de elementos da maioria muçulmana. A acção dos missionários protestantes tem sido levada a cabo sobretudo nas montanhas da Cabília, uma região que escapou em grande medida à arabização e onde se pratica um islão menos ortodoxo. Mas 20 FÁTIMA MISSIONÁRIA MAIO 2009 mesmo com todos os polémicos esforços de proselitismo, os cristãos representam actualmente na Argélia cerca de 0,1 por cento de uma população de 33 milhões, a mais fraca percentagem entre todos os países do norte de África. Curiosamente, nos primeiros séculos depois da morte de Jesus, o actual território argelino surgia como um bastião da cristandade até os bizantinos, sucessores do Império Romano, serem derrotados no século VII pelos invasores árabes im­pregna­dos pela nova fé propagada a partir de Meca e Medina pelo profeta Maomé. Em poucas gerações, o islão tornou-se maioritário, o que nem sequer a colonização francesa dos séculos XIX e XX alterou, mesmo quando viviam no país um milhão de colonos franceses. Com a independência, em 1962, permaneceram na Argélia padres e freiras, que conviveram pacificamente com a sociedade islâmica até à erupção do extremismo religioso, nos anos 90. Em 1996, o arcebispo de Orão foi assassinado, assim como um grupo de monges católicos. Hoje, vivem na Argélia uns dez mil católicos e uns dez a 20 mil protestantes. As autoridades, apesar da nova lei de 2006 que reforça a proibição de proselitismo cristão, insistem não haver qualquer perseguição religiosa. DOSSIER presidencial e, no dia 11, o presidente Chadli demite-se, pressionado pela liderança militar. Toma posse um Conselho Superior do Estado, liderado por Mohamed Boudiaf. São proibidas as manifestações de rua e a FIS é desmantelada. A 29 de Junho, Boudiaf é assassinado por um dos seus guarda-costas. A violência aumenta e o Grupo Islâmico Armado (GIA) surge como o principal grupo por detrás destas operações. 1994 O coronel Liamine Zeroual é nomeado presidente do Conselho Superior de Estado. 1995 Zeroual é eleito para um mandato de cinco anos como presidente da República. 1997 As legislativas são vencidas pela recém-criada Reunião Nacional Democrática, seguida do Partido Islâmico moderado Movimento da Sociedade para a Paz. 1999 Depois de Zeroual decidir interromper o mandato e convocar eleições, o ministro dos Negócios Estrangeiros Abdelaziz Bouteflika é eleito presidente, após a desistência de todos os candidatos da oposição. Pouco depois, um referendo aprova a lei de Bouteflika sobre concórdia civil, resultado de negociações secretas com a ala armada da FIS, o Exército de Salvação Islâmico (AIS). Centenas de islamitas são perdoados. 2000 Continuam os ataques contra civis e forças de segurança por parte de um pequeno grupo que se opõe à amnistia. 2001 Inúmeros manifestantes morrem em confrontos entre forças de segurança Cristãos argelinos cantam na igreja de Tizi-Ouzou, aclamando o Evangelho, durante a missa e berberes, na Cabília, após a morte de um jovem que tinha sido detido. O partido de maioria berbere, Reunião para a Cultura e Democracia, sai do governo em protesto. Em Outubro, o governo dá à língua berbere estatuto oficial. 2002 A Frente de Libertação Nacional, do primeiro-ministro Ali Benflis, vence as eleições gerais marcadas pela violência e abstenção. 2003 Em Junho, Abassi Madani e Ali Belhadj são libertados após 12 anos de prisão. 2004 Bouteflika é eleito para um segundo mandato numa vitória esmagadora. 2005 Detenção de Nourredine Boudiafi, líder do GIA. O seu número dois é morto e as autoridades dão o grupo como desmantelado. 2006 Amnistia de seis meses determina que os militantes fugitivos que se entreguem serão perdoados, excepto os que tiverem cometido crimes graves. Atentado contra autocarro que transportava funcionários de uma petrolífera americana. O Grupo Salafita para a Prédica e o Combate (GSPC), recusa o diálogo e apela a mais ataques a estrangeiros. 2007 O GSPC passa a designar-se Al-Qae­ da no Magrebe. Explosão simultânea de sete bombas faz seis mortos em Argel. O exército reforça a acção contra os militantes islamitas numa onda de atentados. Em Abril, duas explosões fazem 33 mortos na capital. Dezenas de pessoas são mortas no confronto entre os militares e grupos armados que marcam a campanha para as eleições de Maio. Os partidos pró-governamentais mantêm a maioria absoluta. O número dois da Al-Qaeda, Ayman alZawahri, apela aos muçulmanos do Norte de África para limparem a sua terra de “espanhóis e franceses”. 2008 Bouteflika nomeia o ex-primeiro-ministro Ahmed Ouyahia para a chefia do governo. Em Agosto, 60 pessoas morrem em atentados a leste de Argel reivindicados pela Al-Qaeda do Magrebe. O parlamento aprova as alterações constitucionais que permitem a Bouteflika candidatar-se a um terceiro mandato 2009 Bouteflika vence as eleições com mais de 90 por cento dos votos. MAIO 2009 FÁTIMA MISSIONÁRIA 21