HIV Os 35 anos do boom da epidemia e a comunidade gay masculina Fábio Germano Agradeço à minha mãe, meu pai e meu irmão. Ilustrador: Felipe Thiele Revisora: Daniela Carrano Diagramadora: Gabriela Barreira Sumário Prefácio, 7 Capítulo I O nascimento da epidemia, 15 O massagista da AIDS, 17 Saunas - a concretização da liberdade sexual gay, 25 Meu pai morreu de AIDS, 37 A Era Coquetel, 43 Capítulo II O HIV e a pós-modernidade, 55 Itália, 59 O primeiro teste, 67 O novíssimo Gabriel, 77 O saquinho de prevenção de Thiago, 85 Fichas, 93 O “doador” de vírus HIV, 105 Posfácio, 111 · Prefácio · S er gay não me acarretou muitos problemas. Toda essa transição dolorosa e difícil que a maioria dos homosse- xuais relata não fez parte da minha história. É claro que houve repressão pelo jeito mais feminino, pela voz mais fina, pelos trejeitos. E acredito que até pela boa atuação na escola. O menino que anda com meninas e que tem as melhores notas. É minha essência ser gay. Tudo gira em torno da minha sexualidade. Não por minha vontade, mas pela sociedade ressaltar mais o fato da minha homossexualidade do que qualquer outra coisa. O intelecto, a sensibilidade, o olhar mais profundo, isso me jogou de certa forma nas “humanidades”. Seria muito irônico eu não ser um jornalista ou um historiador. Acredito que isso é reflexo de toda uma vivência gay. A sexualidade me tornou o que sou hoje. A sexualidade já me obrigou a mudar de rua. Me obrigou a entrar em briga que jamais entraria se fosse por vontade própria. Me obrigou a deixar de brincar com meninas na terceira série, se não me engano. Que pesar eu tenho disso. A sociedade forma toda a bagagem intelectual que uma criança tem. Eu costumo dizer que criança é um novo ser em um mundo velho – não fui eu quem disse isso, mas acredito tanto que já digo que é meu – o que chega ser torturante. Imagina dormir e quando acordar não se lembrar de nada e 7 Fábio Germano o imperativo latente e gritante, como um megafone dizendo: COMA, FALE, ANDE, ACORDE, DURMA. Só de pensar dá vontade de voltar para o útero. E como não poderia ser diferente a minha visão sobre ser gay foi transmitida a mim pelos meus pais, minhas tias, meu avô (nordestino castigado da vida, que teve um filho gay). Essa visão era péssima. Cresci pensando que brincar de boneca era tão errado quanto pegar dinheiro da carteira do meu pai. Que vestir a roupa da minha mãe era um pecado tão grande que a irmã da igreja tinha que vir orar por mim, pois uma legião de demônios estava possuindo minha alma. Nada que alguns anos de estudo não fizesse eu mudar minha percepção em questão de duas tardes pensando debaixo de uma árvore no quintal de casa. A fase de adolescência foi mais complicada do que simples xingamentos. Houve agressões. Houve dias que não dava para ir. Houve embrulhos no estômago quase que eternos. Mas a sexualidade estava ali, me moldando, me direcionando, ditando o que eu deveria ser. Todas as informações que chegavam a mim me diziam que eu seria como o Cazuza, caso fosse gay. Eu nasci em 1990, justamente a década que mudou toda a trajetória de qualquer gay de qualquer canto do planeta. A AIDS entrelaçou-se de uma forma forte e permanente na vida da maioria dos homossexuais, fossem crianças, adultos ou velhos. Mais uma vez a sexualidade me guiava. O medo da primeira relação sexual, a falta de conversa sobre o assunto com os pais, o próprio afastamento do meu pai, tudo decorrente da sexualidade. Mais maduro e com o percurso natural da vida ocorreu 8 HIV o primeiro beijo, a primeira transa. E o que é intrínseco ao gay, o primeiro teste de HIV. É claro que heterossexuais fazem o teste, mas isso não é intrínseco a eles. A mim, foi. E toda essa estória, por ironia do destino ou não, aconteceu em dose dupla. Minha mãe teve, os que vingaram, apenas dois filhos e os dois gays Como a mim, a sexualidade também guiou os percursos que meu irmão fez durante seus anos. Não sei por que cargas d’água – na verdade sei sim e sonhei muito em ir embora também - gays vislumbram uma vida melhor no exterior e foi o que ele fez, foi embora aos 21 anos e de uma certa forma fiquei sozinho, sem aquele parceiro para contar e compartilhar os acontecimentos. Uma pessoa negra volta para pais negros, um gay não volta, ele se resolve. O ano de 2013 foi marcado pelo viagem a Londres. Viagem que fez despertar o desejo em escrever sobre essa tamática. Quando criança eu via filmes deitado em um dos sofás e meu irmão no outro. Falávamos que o filme tinha uma cor azul esverdeada que trazia um ar sombrio e melancólico. Paisagens deslumbrantes, frias. O sonho de canadenses que sonham viver em um lugar quente. Eu e o Felipe sonhávamos em viver num lugar azul esverdeado. 10:45am, foi quando o voo pousou. Londres era exatamente igual aos meus sonhos. Era azul. O tempo era frio. E com uma certeza quase brega – quando se diz: essa viagem mudará minha vida – Londres foi uma catarse. Dentro de toda experiência quase que surrealista, a ruela subterrânea que entrei com meu irmão por volta de 11 da noite possuem imagem viva na minha memória. O consumo de drogas, os corpos malhados, o sexo explícito, a zoofilia, foi como um machado rachando meu crânio de “gay mal vivido” como dizem. 9 Fábio Germano Foram três meses de descobertas, mortes internas, nascimentos para o novo – que já é velho, pois existe no mundo a mais tempo do que eu tinha de vida -, e medo, muito medo. E permeando toda essa vivência, o HIV estava lá. De olho em mim. Batendo de frente. Me apresentado pessoas soropositivas, vivas, avermelhadas, fortes, e com desejo de viver muito maior do que de muitas pessoas. Não sei classificar a parte da comunidade gay que aprendeu a viver bem com o vírus, que tanto me amedrontava quando criança, mas de certa forma eu passei para o lado deles. Conheci um brasileiro morador de Londres, que já é residente há 8 anos . Conversando sobre meu estranhamento diante de tantas novidades, de tantas visões fora do que era habitual a mim, acabamos entrando no assunto que permeia a vida de todos os gays: HIV. Com um leve sotaque ainda carioca ele iniciou um longo monólogo sobre a libertação que a contaminação com o vírus traz. Quase que um colapso aconteceu entre minhas verdades, meus conhecimentos sobre o assunto e a novidade assustadora. Depois de ouvi-lo, eu de alguma maneira comecei a pensar como informar à sociedade que existe uma prática que se chama Bugchasing. E que essa prática é o exercício da atividade sexual com pessoas HIV positivas, a fim de contrair o HIV. Indivíduos envolvidos nesta atividade são referidos como bugchasers. Bugchasers procuram parceiros sexuais que são HIV positivo para o propósito de ter relações sexuais desprotegidas e se tornar HIV positivo; giftgivers são indivíduos HIV positivos que procuram dar o “presente” ao bugchaser. Essa novidade que veio a mim do meu próprio universo me deixou assustado e seria com plena certeza parte de algum projeto meu no futuro. 10 HIV A AIDS matou muitos de nós. Seja pelo seu poder de destruição, seja pelo simples fato da morte social. Morria-se de AIDS. Hoje em dia não mais? Que universo é esse que desafia o próprio ato de viver? A partir do estalo, do momento, do instante, em que a AIDS foi condicionada ao gay ela também passou a ser parte viva em minha vida. A sexualidade definiu minhas atitudes de criança a adulto. Na minha formação acadêmica não poderia ser diferente. Não nego o fascínio que esse mundo, do qual faço parte, me provoca. Vidas interrompidas, vidas livres, mas todas gays, todas tangenciadas/tocadas/sentidas pela AIDS. 11 Capítulo I · O NASCIMENTO DA EPIDEMIA · C omo a maioria dos gays que nasceram depois da década de 80, o HIV/AIDS de uma forma fantasmagórica andou do meu lado do nascimento até hoje, dia em que estou sentado em frente ao meu computador escrevendo as primeiras linhas desse livro-reportagem. É assustador o poder de um vírus tão pequeno, ele teve e tem a força de moldar minhas atitudes e as atitudes do restante do mundo para comigo. Eu nasci na década de 1990, em abril. Dois meses e alguns dias depois Cazuza morreu quase que agonizando em rede nacional. Esquálido, cabelos ralos, pele sem visgo, um moribundo quase que contando seus dias na terra. Agenor de Miranda Araújo Neto foi a alegorização do HIV/AIDS no Brasil. E as décadas de 80 e 90 foram palco do retrocesso das conquistas dos gays justamente por esse freio histórico que foi o HIV/AIDS em nossa comunidade. Além de ser o motor de milhares de centenas de mortes, esse vírus foi como as chagas em Cristo, só que para os gays. Ele marcou, sangrou, matou muitos de nós, homossexuais. Ele nasceu de uma maneira simbólica na década de 80, simbólica porque há teorias médicas que nos dizem que ele está entre nós há um bom tempo, mas definitivamente marcou seu lugar na história humana a partir de 1980. O teste 15 Fábio Germano positivo era atestado de morte. Os perfis de gays masculinos que viveram essa primeira fase do HIV/AIDS são o conteúdo desse primeiro capítulo. Mesclados a eles estão meus relatos e impressões sobre as histórias que ouvi. 16 · O MASSAGISTA DA AIDS · O prédio ficava em uma das travessas com a Avenida Rebouças. Prédio bem arborizado, de três andares, no fundo do terreno. O porteiro perguntou meu nome e aonde eu iria. “Só você ir até o último andar e pegar a escadinha a sua direita. Fica lá numa salinha”, fala, me acompanhando do portão até a porta do prédio, que estava trancada. Ele me recebeu na porta da sala. Pediu para eu tirar os sapatos e colocar num cantinho perto de uma mini cascatinha artificial de água. O cheiro do ambiente remetia a calmaria. Eu tenho certeza que existe um incenso que tem cheiro de calmaria. O tom de voz dele soava como se todos os problemas do mundo fossem se solucionar e viveríamos em uma comunidade, dessas que dividem desde a horta até o shampoo. Para mim, esses shampoos orgânicos não limpam a cabeça nem aqui nem na China. O som de um saxofone era a trilha sonora ao fundo. Sabe a trilha sonora que embala todas as novelas do Manoel Carlos, quando a cena entra naquele bar de madeira rústica e em pleno meio dia os empresários tomam aquele copo de uísque no estilo cowboy? Era assim o som ambiente. Ele é arquiteto, massoterapeuta, tem 58 anos. Ele me pediu, como outros personagens, que não usasse o seu verdadeiro nome, não queria de forma alguma ser vinculado a 19 Fábio Germano problemática da Aids. De uma estatura alta para a maioria dos brasileiros, ele possui traços bem característicos de italianos. Loiro, antes da calvície, ele tem um nariz grande projetado para frente com ossos bem visíveis. Bebe vinho e mora em um apartamento bem decorado, que fica abaixo da salinha que conversamos, onde trabalha nas segundas, quartas e sextas, com uma clientela exclusivamente feminina como massoterapeuta. Em 1986 ele começou a fazer os cursos que no futuro lhe daria a licença para exercer a profissão. Naquela época ele tinha pouquíssimos amigos. “Poderia contar nos dedos. Ainda posso, hoje”, fala me mostrando a mão. No final dos anos 80, o carimbo da morte, como ele se refere à Aids, começou a chegar próximo dele e dos poucos amigos. Ele tem uma postura de retração. Uma postura de camuflagem. Ele pensa nas palavras para poder falar. De uma família italiana muito católica, ele fala sobre o quão difícil era conversar sobre sua sexualidade com os pais. Como uma forma de ter contatos sexuais com outros gays, ele frequentou muitas vezes saunas. “Era um barato, exalavam sexualidade, tinha um ar de eroticidade muito grande”, diz com uma euforia por lembrar-se da sua juventude. As saunas foram a concretização da independência sexual do gay masculino. Com o início da epidemia, elas se tornaram alvo de pichações, protestos e viraram símbolo da doença. Quando a epidemia do HIV/AIDS começou, ele tinha por volta de vinte e cinco anos. Ele conta que o pânico foi generalizado. Os gays começaram a retrair seus desejos. Justamente quando tudo parecia correr às mil maravilhas, o fan- 20 HIV tasma da Aids inicia seu voo por cima do universo que tinha a liberdade sexual como uma das bandeiras mais fortes. Sem internet, a maioria das informações chegavam exclusivamente pela televisão. A televisão, quando tocava no assunto, mostrava alas inteiras de hospitais com pacientes “cinza, esquálidos, moribundos”. Foi ao longo dos anos iniciais que as informações de como se contaminava começaram a aparecer. Era o pânico e o medo que tomavam conta dos lugares onde antes havia liberdade e acolhimento. Nessa época ele estava namorando e seu namorado tinha um círculo grande de amizades. Foi por intermédio do companheiro que ele conheceu o primeiro gay soropositivo. Em um domingo, junto com o namorado, ele foi visitar esse amigo. Foi quando o preconceito começou a se desfazer como papel na água. O amigo que sentia muitas dores despertou nele uma vontade de ajudar. Foi assim que iniciou sua história com a Aids. Com massagens que aliviavam as dores musculares, ele cuidou do amigo até seu falecimento. Procurou uma ONG, onde começou o trabalho de voluntário, no bairro Vila Mariana. Tratou de travestis, de mulheres heterossexuais, de homens heterossexuais. Tratou de pessoas com o Sarcoma de Kaposi visíveis. Tratou o seu preconceito e medo com a ajuda que dava aos que precisavam. Ele escolheu a segunda-feira como o dia do seu ato voluntário. Chegava à ONG às cinco da tarde e ia embora às dez da noite, atendendo sempre o número máximo de pacientes possíveis. Ele acredita que naquela época, quando ainda não existia o coquetel e o diagnóstico positivo era atestado de morte, 21 Fábio Germano ele dava um alento, um carinho, um conforto, um “colinho” para os soropositivos. Ele perdeu 3 amigos. Ajudou-os até a morte. Ele viu a chegada do AZT ao mercado. O AZT (azidotimidina) ou zidovudina é um fármaco utilizado como antirretroviral, inibidor da transcriptase reversa, foi uma das primeiras drogas aprovadas para o tratamento do HIV/AIDS. Começou a participar de grupos de ajuda. Reuniões que tinham como objetivo debater sobre o assunto e esclarecer dúvidas, tanto de novos portadores, quanto dos que já estavam com grandes limitações por causa da doença. Foram 7 anos de trabalho voluntário. Para ele, o que mais doía era ver amigos tão próximos que outrora eram solares, felizes, bonitos, vivos, morrerem com dor, diarreia, febres altíssimas. “As pessoas se desfaziam na nossa frente,” finaliza com uma feição entristecida no rosto. 22 · SAUNAS - A CONCRETIZAÇÃO DA LIBERDADE SEXUAL GAY · D urante toda a pesquisa feita para a produção deste livro, uma instituição era presente em quase todos os textos que li sobre o começo da epidemia. A sau- na foi palco da concretização da revolução sexual ocorrida na década de 70 e 80. Achei necessário relatar minha experiência ao conhecer uma sauna na cidade de São Paulo. Chegou o dia e o Uber chegou em menos de cinco minutos. Morar na Augusta tem suas vantagens. No caminho eu fiquei apreensivo. Conheço muitas histórias de saunas. Muita droga, sexo sem proteção, luz avermelhada baixa e isso de alguma forma despertou em mim um estado de alerta. A sauna que nós fomos fica no Largo do Arouche, região central com altos índices de soropositivos. Quando o carro parou dei uma olhada rápida ao redor e imaginei quanta vida gay aquelas ruas já não tinham visto. Quantas histórias de amor. Quanto choro por causa de um teste que deu positivo. Quantos carnavais. Quantas lembranças. Vista do lado de fora a sauna é basicamente um grande caixote preto de frente para uma pracinha com alguns coqueiros. Nada que chame a atenção de alguém ao passar na porta. Não sei se fui eu que encarnei que aquilo era uma aventura, mas tudo é bem discreto e gatuno. O segurança não me pediu 25 HIV nenhum documento, só me viu entrar. Subi umas escadas e passei por uma porta, dessas que isolam o som do lugar. Já escutando a música, vejo um atendente atrás de um vidro, que me lembrou das atendentes das casas lotéricas, protegidas com um vidro de quase 7 milímetros de espessura. Eu e meu amigo pedimos o básico, que é toalha e chinelos. Paguei sessenta e cinco reais, por seis horas. Durante a semana esse valor cai para quarenta e cinco reais. Colei meu passaporte, porque estava sem o RG, no vidro para o atendente ver meu ano de nascimento. Eu acho que ele não viu nada. Era difícil enxergar naquela luz. Ou ele já estava com a irís bem regulada para aquela penumbra. Porém, olha para você ver, ao entrar a luz era avermelhada mesmo e em todos os cantos. Andando em meio ao labirinto iluminado pela aquela penumbra avermelhada fomos aos armários. Você pode ficar pelado, enrolado na toalha, de shorts ou como estiver a fim de ficar. Subimos uma escada que dá nas cabines. Há um corredor lateral, de onde nasce umas quatro ruelas, na qual cada ruela tem cerca de umas 12 cabines, a maioria pagas e algumas que são becos sem portas para o uso comunitário. E bota comunitário nisso. Demora uns vinte minutos para o seu olho se ajustar no meio daquela iluminação vermelha e em alguns lugares há penumbra total. Um breu, como diria meu avô. Me separei do meu amigo e fui explorar aos pouco o lugar. Primeiro fui em busca de uma luz que se destacava. Lá há um cinema, que passa filmes pornôs. Algumas pessoas se masturbavam vendo os filmes e outros apenas observavam, como eu. A música é bem semelhante à de baladas gays que 27 Fábio Germano tocam música eletrônica. Gemidos e gritos se misturam as batidas. Como já havia ouvido falar, vi muitos gays drogados ao ponto de perderem a noção de espaço e tempo. Já acostumado com a luz vermelha, conseguia ver que alguns estavam desidratados, pálidos e que pareciam estar ali há dias. No cinema, onde se tem mais claridade, vi uns dois pares transando sem preservativo. No chuveiro, que lembra as duchas de colégio americano ou de clubes, vi mais um casal transando sem proteção. Há o fetiche de ser olhado e de olhar. Mas tudo isso não era novidade para mim. De uma maneira diferente eu já tinha frequentado aquele ambiente em Londres. Não tinha a nomenclatura sauna, mas era bem semelhante. Existem preservativos em cada milímetro de cada um dos três andares da sauna. Tem restaurante que serve alguns pratos quentes e sanduíches frios. Uma piscina média e suítes no último andar. Na minha cabeça a sauna era sauna mesmo, com vapor e calor o tempo todo. Do jeito que eu entrei, eu sai, sequinho da Silva. Não tem o vapor de sauna nem o calor. No site você consegue ver a quantidade de homens presentes na casa, que quase sempre é mais de cem. A sauna foi uma instituição que nasceu com a revolução sexual / comportamental dos gays e de forma simbólica morreu quando a epidemia ganhou fama pela mortandade das pessoas. Foi de símbolo da liberdade para lugar com relação direta com a contaminação. _______ 28 HIV Augusto Q uem não é de São Paulo sabe o quanto a temperatura varia do dia pra noite. E foi em um dia desses, em que tudo mudou, do tempo ao humor, que conheci Nelson. Falo conheci, mas já éramos vizinhos, cerca de dois anos de pedidos de panelas e até um lugarzinho na geladeira para minha mãe esconder o bolo que seria para meus vinte e cinco anos. A porta do meu apartamento vai de encontro à dele quase que em linha reta. Mas antes de contar essa conversa que tivemos, acho necessário apresentá-lo. Nelson é designer de sapatos. Tem sessenta anos e de idas e vindas no elevador, ficamos amigos. Há uma troca. Sempre há uma troca. Eu às vezes o ajudo com coisas tecnológicas, que para dizer a verdade nem eu sei mexer direito, e ele como um contador de estórias relata o que já viu desses anos já vividos. Descente de russos, seus pais vieram para o Brasil na década de 60, depois de passarem por uma guerra civil, por fome e frio. Ao entrar na casa de Nelson você se depara com uma parede feita de painel. Nela as histórias são contadas em fotografias. Ornadas a um punhado bom de plantas e uma decoração com tecidos, máscaras africanas, luminárias que proporcionam uma penumbra, porcelanas. Um apartamento abarrotado de lembranças e cheio de vida que já se foi. Misturado a todo esse âmbito, anos de nicotina. Há na figura de Nelson camadas características de 29 algumas décadas. São visíveis as décadas de 70 e 80. Elas são visíveis nas suas roupas, no seu modo de falar, até no ato de fumar um cigarro atrás do outro, típico de pessoas dessa época. Cigarro era coisa fina, elegante. Era socialmente visto com bons olhos. Havia propaganda do cowboy forte, bonito… e que fumava. Tenho a sensação que Nelson era assim, bonito, forte... e que fumava. Em um dos nossos encontros no corredor, a espera do elevador, conversamos, junto de mais um amigo, sobre AIDS. E para a graça do meu anseio por histórias, Nelson já fechando sua porta, fala que sobre isso entende e que qualquer dia desses era só bater na porta que seria um prazer conversar sobre. Comprei um maço de Marlboro, que me parece ser uma boa companhia para Nelson e fui bater na sua porta, com pensamento que seria um bom tempo para jogar conversa fora e cobrar o que foi prometido. É com um abraço e um beijo muito afetuoso que ele sempre me recebe, ou qualquer um dos meninos que moram comigo. E aquele dia não foi diferente. Mas antes de chegar à sua porta, no corredor que dá quase de linha reta para o apartamento dele, muitas possibilidades passaram na minha cabeça. Será que Nelson é positivo? Será que ele vai me contar que vive há anos com o vírus? Talvez ele ache que eu fiquei soropositivo e que pode me ajudar de alguma forma. Não… acho que ele vai me contar que perdeu muitos amigos e que foi uma época que marcou sua vida. Os pensamentos se vão e o afetuoso beijo de Nelson entra em cena. De jeans, camiseta branca e um cigarro na mão, ele senta em uma poltrona e eu em um sofá de três lugares cober- Fábio Germano to por um pano estampado de discoteca dos anos 80. Bebendo suco de laranja, desses de caixinha de alguma multimarcas, apresenta a mim o seu relato de amor e como a AIDS tocou de perto sua vida. “Eu o conheci depois que voltei do exílio, por causa dessa merda de ditadura. Augusto era lindo. Esse aqui era ele”, me diz apontando para um porta retrato com moldura prateada e que centralizava uma foto de um caucasiano de bigode, que começava a ter sua experiência com a calvície. Foi durante as décadas de 70/80 que eles se conheceram. Augusto frequentava alguns bares da região central. Nelson me conta que esses bares das décadas de 60 e 70 praticamente foram extintos, que alguns sobrevivem em grandes hotéis. Eles começavam a funcionar a partir das 18 horas, recebiam uma clientela predominantemente masculina que antes de retornar às suas casas, se reunia com os amigos para beber uísque, gim, rum e aguardentes acompanhadas por pipoca, amendoim e alguns petiscos. “As cervejas eram pouco comuns e o fundo musical discreto era feito por piano, contrabaixo e bateria”, me conta soltando a fumaça pela boca na janela da sala. Durante a nossa conversa, Nelson foi até o quarto dos fundos, de um apartamento que antes era de três quartos, mas que um dos quartos se tornou um grande banheiro com paisagismo feito por ele. Revestido de pastilha que ficam na cartela de cores do verde, o banheiro de grande extensão tem um vidro ao fundo que separa a mini floresta, composta por vários tipos de plantas, do restante da área. De dentro da suíte, ele traz nas mãos um vinil da Elis Regina. Com o cigarro no canto da boca me diz que dançou com Augusto muitas músicas 32 HIV “daquela cantora incrível”. Já em pé com a barriga encostada no parapeito da janela, ele acende outro cigarro. Olha para as luzes da cidade e solta a fumaça. “Para mim, e tenho certeza que para ele também, foi amor à primeira vista. Não nos desgrudamos mais. Foi mesmo uma dessas histórias arrebatadoras. Nos divertimos muito. Bebemos, rimos, nos amamos. Fizemos o que tinha e o que não tinha para fazer naquela época”, pausa para mais uma tragada. Por causa de um desentendimento eles se afastaram. Um dia de muita bebida, ciúmes a flor da pele. Uma suposta traição. Acharam melhor dar um tempo. “Não sei quais foram as circunstâncias, mas a gente se reencontrou uns anos depois”, me diz tirando o rosto do lado de fora da janela e olhando em minha direção. Sentado em um bar onde sempre se encontravam, Nelson quando viu Augusto entrando pela porta sentiu que era melhor não perderem mais tempo. Foi ao bar pediu uma gim tônica, que era a bebida preferida de Augusto e com o coração disparado foi conversar para aliviar a saudade. Já era 1989, a Aids era uma realidade aterrorizante para a comunidade gay. Alguns amigos de Nelson já haviam morrido. Os clubes estavam cada vez mais vazios e o clima era cada vez mais de medo. Já era de conhecimento da maioria como se pegava o vírus. Notícias nos jornais pipocavam cada dia mais. O hospital Emílio Ribas era caminho temido por muitos daquela época. Depois daquela noite eles se reaproximaram. Começaram a jantar juntos mais vezes. Conversavam mais sobre pen- 33 Fábio Germano dências passadas. “Era o recomeço de um amor que nunca foi embora”, falou em minha direção e desejando que um dia eu pudesse viver um amor assim. Um dia caminhando na rua, Augusto sentiu um mal-estar muito forte. Sentou em um bar pediu uma água e ligou para Nelson para buscá-lo. Estranharam o que tinha ocorrido, mas não ao ponto de ir ao médico para saber o que era. Depois de uma semana Augusto começou a ter uma forte diarreia, noites febris e, com uma desconfiança atordoante, Nelson insistiu para o acompanhar ao hospital. Augusto foi diagnosticado com HIV. Nelson por um acaso do destino não se contaminou. Em 1990 Cazuza morre por complicações da Aids. Augusto foi morar com Nelson no mesmo apartamento que ele mora hoje. Os primeiros seis meses foram de pesadelos, febres altas, diarreia e perda de peso. “Ele foi morrendo aos poucos, num curto período de tempo”, relata com os olhos marejados de lágrimas. Revezando com a irmã de Augusto, Nelson cuidou do amor da sua vida por longos e doloridos 3 anos. Já com demência provocada pela toxoplasmose, Augusto estava em estado vegetativo. Nos seus últimos dias, ele foi para o hospital Emílio Ribas. No quarto, em um dia que a exaustão tomava conta de Nelson e da família, ele falou suas últimas palavras para o seu grande amor. “Eu ficarei bem. Você me fez muito feliz. Pode ir em paz. Um dia nos encontraremos para matar a saudade que essa viagem que você irá fazer provocará”. Depois de dois dias Augusto faleceu por falência múlti- 34 HIV pla dos órgãos e pneumonia. Nelson me garantiu que passaria por mais alguns anos de tortura, como o que ocorreu com ele na época da ditadura, só para poder passar mais uma noite segurando a gim tônica de Augusto enquanto ele dançava em um dos bares na Praça Roosevelt. Com um nó na garganta, acendi um cigarro e finalizei nossa conversa. 35 · “MEU PAI MORREU DE AIDS” · M .O. nasceu em 1990, trabalha em uma loja multimarcas em um dos caríssimos complexos de lojas de grifes em São Paulo. Ele não é gay. Automatica- mente não caberia no recorte que fiz para poder escrever esse livro-reportagem, mas de uma forma indireta o HIV/AIDS apareceu em sua vida quando o pai de 65 anos morreu em 2010, por uma pneumonia que o matou em menos de um mês. O pai de M.O. era gay. O pai de M.O. era soropositivo. Porém, M.O. não sabia. Ninguém sabia. Em meados de 2010 o pai de M.O. começou a tossir pela casa com uma frequência que chamava atenção. Dormia mal. Acordava várias vezes na noite. Reclamava muito das dores nas costas. Em um prazo muito curto ele passou de um aspecto saudável para alguém que sempre estava sentado no sofá ou tossindo ou reclamando demais. Colocando a mão dentro do bolso esquerdo da calça jeans, M.O. retira uma foto da carteira de couro, dessas bem desgastadas pelo uso. Ao abri-la já de cara estava uma foto dele com o pai. Na foto os dois pareciam irmãos. Um mais velho que o outro. A estrutura óssea do rosto era praticamente igual. Uma forma arredondada com bochechas altas e um cabelo cortado baixinho, o que diferia era que um era castanho claro e o outro já estava quase que por completo branco. 37 Fábio Germano “Por muito tempo moramos só eu e ele. Ele fazia os bicos dele. Vivia mexendo na casa”, falou enquanto fechava a carteira e a devolvia para o bolso. Um dia M.O. estava no trabalho, era início de outubro, o hospital particular onde o pai sempre ia ligou avisando da sua internação imediata. Automaticamente M.O. lembrou das tosses e de como o pai estava e logo imaginou que o motivo era aquele. Ao entrar no quarto o pai estava dormindo com uma aparência muito frágil. O médico avisou que a doença estava muito avançada e a pneumonia estava sendo tratada com antibióticos. “Ele nunca se tratou?”, perguntou o médico a M.O. De forma direta M.O. respondeu que ele teve pneumonia há uns anos, mas que não sabia que era necessário ficar tratando depois que o médico já havia dado alta. “Não estou falando da pneumonia. Estou falando do quadro avançado de AIDS que seu pai está. Estamos esperando o resultado do exame para ver o quanto o doença já está avançada”, falou saindo do quarto. Sentado em uma cadeira ao lado da cama, M.O. esperou o pai acordar sem entender o que estava acontecendo. Rezou. Chorou. Lembrou-se da mãe que já havia falecido. Depois de algum tempo o pai acordou. Ficou claro que M.O. já sabia do que estava acontecendo. “Pode ficar tranquilo, sua mãe morreu de infarto mesmo”, falou para M.O. O pai de M.O. sempre foi gay, a família tradicional paulistana não aceitou os primeiros passos para um possível momento de se assumir para toda aquela formalidade. A fa- 38 HIV mília com descendência espanhola que não possuía posses, mas que via a religião como salvação e os costumes como necessários para a base familiar, via a homossexualidade como um “afronto a Deus”. No ano que M.O. nasceu foi o mesmo ano que Cazuza morreu. Enquanto passava a reportagem no Fantástico, o pai se sentia com medo pela vida dupla que levava. Parou com os encontros que tinha com outros homens. Ficou sem dormir. Se reprimiu. Lembrou da família que dizia o quanto “pecaminoso” era ser daquele jeito. A relação com a companheira, mãe de M.O., já não era uma relação de desejo. Eram amigos desde a gravidez. O respeito era muito grande entre os dois. Ela sabia dos desejos do companheiro. Sabia das suas necessidades. Sabia das dores de alguém que não podia ser como é por medo de ser rejeitado pela família. Enquanto conversava comigo, M.O. parou a conversa para pensar o quanto o pai poderia ter sido feliz caso o HIV/ AIDS não tivesse ocorrido na humanidade. “Eu sinto que uma hora ou outra ele iria se assumir, teríamos de passar pela fase de aceitação, mas ele estaria aqui, vendo a construção da minha futura família”, fala e depois fica em silêncio. Em 1991, quando M.O. completou um ano, o pai descobriu a sorologia positiva. As frases que eram pronunciadas pela família ficaram martelando na cabeça dele. A culpa era tão forte que ele se fechou para qualquer tipo de felicidade. M.O. conheceu um pai nitidamente triste. “Às vezes nas conversas com minha mãe, ela me dizia o quanto o meu pai era vivo, feliz quando eles se casaram. Eu não conheci esse pai. 39 Fábio Germano Ele sempre foi fechado. Não tinha nem ideia da culpa que ele carregava”, conta, demonstrando uma quase empatia pelo pai. Foi na última grande conversa que eles tiveram, enquanto o pai tomava medicação intravenosa, que M.O. ficou sabendo da juventude dele. Das danceterias que ele tinha frequentado, da noite linda em que ele conheceu sua mãe, da saudade dos amigos que depois de casado ele nunca mais viu. Alguns desses amigos ele ficou sabendo de longe que morreram de AIDS. O pai, depois da década de 1990 e do resultado positivo, passou a viver de lembranças dos bons tempos e da culpa que o vírus traz consigo. Ele não conseguiu nem pensar sobre o assunto. Não conseguiu encarar o resultado e iniciar o tratamento, que na época não tinha garantias e os efeitos colaterais atestavam para o resto da sociedade a sorologia positiva. Ele nunca se tratou. Sentado havia dias ao lado da cama do pai, M.O. recebeu a notícia que a imunidade dele estava totalmente comprometida. M.O. revezava entre o trabalho, a faculdade e o hospital. Numa manhã de 2010 o pai morreu de uma parada respiratória. Ansioso para conhecer sobre as histórias do pai, M.O. procurou em caixas, vasculhou o velho armário da casinha do fundo, questionou a tia se ela sabia de alguma história do pai. Nada... não encontrou nada. Nada do passado feliz do pai. Nada dos antigos amigos. Nada daqueles anos felizes que foram interrompidos pela família e pelo boom da epidemia. “Ele foi tão importante para minha formação. Eu me tornei uma pessoa melhor por causa dos cuidados dele. Eu 40 HIV sei que seria difícil entender tudo, mas em pouco tempo eu estaria do lado dele. Ele não ficaria sem tomar o remédio um dia sequer, se dependesse de mim. Eu não consigo imaginar por quanto tempo isso magoou ele”, me fala com uma voz embargada por um nó na garganta. M.O. está com 26 anos. O primeiro filho já está nos planos para o ano que vem. Depois da morte do pai ele foi morar com a namorada e eles vão se casar em uma cerimônia pequena no antigo sítio do pai. Ele pensa em reformar a antiga casa do pai, que fica na Vila Mariana para torná-la seu lar. 41 · A ERA COQUETEL · A segunda era da história do HIV/AIDS vem com o avanço da medicina em direção ao controle da doença. Foi por volta de 1986 que surgiu o AZT, primeiro fármaco que demonstrava uma eficiência no tratamento da síndrome. A grande reviravolta foi na década de 1990, quando a associação de drogas passou a compor o que conhecemos hoje como coquetel. Essas drogas inibem as enzimas que reproduzem o vírus. Foi o começo da lenta mudança de pensamento de que a AIDS era mortal para ser considerada uma doença crônica, como a diabetes e a hipertensão. O médico infectologista Rico Vasconcelos responde algumas perguntas a fim de explicar a “Era coquetel”. _______ 43 HIV Quais foram os primeiros procedimentos tomados na área da medicina, a fim de produzir um fármaco, para o tratamento do vírus HIV? O desenvolvimento de novas drogas para tratamento e prevenção do HIV passa pelas fases habituais de uma pesquisa clínica. Inicialmente são feitos os estudos pré-clínicos, que não envolvem seres humanos, para demonstrar o efeito desejado da molécula em prova. Essa fase na maioria das vezes acontece nas bancadas de laboratório ou já com testes em modelos animais, sendo os macacos e sua versão do HIV, chamada SIV, os mais utilizados. Havendo sucesso na fase pré-clínica, passa-se para a etapa dos ensaios clínicos, que envolvem seres humanos, e em geral são compostas de 3 momentos: 1. Ensaios clínicos de fase I, onde a droga é testada em um grupo pequeno de voluntários saudáveis para avaliar a segurança do uso em humanos; Ensaios clínicos de fase II, em que a droga é usada em um grupo de algumas centenas de voluntários para avaliar, além da segurança, a eficácia desejada; e 3. Ensaios clínicos de fase III, onde a droga é usada em milhares de pessoas com a doença a ser tratada ou com o risco a ser evitado, para comprovar definitivamente a eficácia desejada da molécula. Todo esse processo, assim como o rigoroso controle por parte dos comitês de ética em pesquisa, são necessários para que qualquer droga seja aprovada para uso na medicina, seja ela um antirretroviral para HIV, um quimioterápico para câncer ou um antidepressivo. Isso tudo demanda tempo e investimento, e por isso a 45 Fábio Germano maior parte das novas moléculas são desenvolvidas pela indústria farmacêutica num prazo médio de 8 a 10 anos. Quais os efeitos que essas drogas provocavam? Qual o valor? Que laboratório produziu? Todas as drogas liberadas para uso em humanos têm seus efeitos desejados e os colaterais. Os efeitos desejados dos antirretrovirais são a supressão da replicação viral com a consequente indetecção da carga viral do indivíduo. Quando atingido esse objetivo não existe mais progressão da doença para a Aids e nem mais risco significativo de transmissão do vírus por via sexual desprotegida. Os efeitos colaterais dos antirretrovirais vão variar de acordo com a droga em questão e com a época que estamos analisando. Os antirretrovirais nas primeiras duas décadas de história de tratamento do HIV tinham mais efeitos colaterais, assim como mais comprimidos e tomadas por dia. São exemplos de efeitos colaterais dessa época a lipodistrofia (alteração da distribuição da gordura corporal), náuseas, vômitos, diarreia, alteração da coloração da pele e unhas, neuropatia periférica, pancreatite, litíase renal e etc. Conforme foram desenvolvidas drogas novas, os efeitos colaterais diminuíram, assim como o número de comprimidos e tomadas por dia. São ainda efeitos colaterais relatados pelos usuários dos antirretrovirais em uso atualmente no Brasil: sonolência e alteração do sono, insuficiência renal, aumento do colesterol e pele amarelada. Num futuro próximo teremos disponíveis no Brasil an- 46 HIV tirretrovirais com perfis ainda melhores de eventos adversos. Fale em termos médicos sobre os remédios que fizeram a composição do primeiro conjunto de fármacos. Quais as suas funções? Suas origens? O primeiro grupo de antirretrovirais desenvolvidos é o de Inibidores da Transcriptase Reversa Análogos de Nucleosídeos. São esses os medicamentos que impedem o vírus de duplicar sem material genético, impedindo assim a sua replicação. São exemplos de antirretrovirais dessa classe: Zidovudina (AZT), Didanosina (ddI), Estavudina (d4T), Zalcitabina (ddC) e Abacavir (ABC). Em relação aos laboratórios, onde eles se localizavam? Diversas indústrias farmacêuticas participaram do desenvolvimento de moléculas de antirretrovirais. Assim como nas demais áreas da medicina, a maioria das indústrias farmacêuticas são americanas e europeias. Comente sobre os anos 2000, de forma médica, a taxa de novas infecções caiu, porém ela volta a subir a partir do ano de 2005. A partir de 1996 é encontrado um meio de, com o uso diário de terapia antirretroviral, se manter um indivíduo que vivia com HIV com a replicação viral totalmente suprimida, ou seja, com a carga viral indetectável. Quando essa meta era atingida não havia mais progressão da doença para Aids e, ao contrário, havia recuperação de todo estrago que o vírus tinha causado na 47 Fábio Germano imunidade da pessoa. Dessa maneira, logo após o início dessa terapia antirretroviral já foi possível observar uma queda expressiva no número de mortes causadas pelo HIV em todo o mundo que usava esses medicamentos. Num momento posterior foi possível observar também uma queda no número de novos casos de infecção pelo HIV, o que foi atribuído posteriormente a algo que não se sabia ainda na época: ao se zerar a carga viral de um indivíduo que vive com HIV estamos também reduzindo de maneira significativa a chance dele transmitir seu vírus para outra pessoa. Esse efeito na redução do número de novos casos foi verificado por vários anos, até que nessa última década entramos numa fase de recrudescimento da epidemia, de causa multifatorial, envolvendo, entre outros aspectos, a diminuição das práticas preventivas por uma menor percepção de vulnerabilidade ao HIV, por um menor medo de uma eventual infecção e pelo aumento do número de trocas em média de parceiros casuais. Quais os novos tratamentos? A mais recente classe de antirretrovirais liberada para tratamento de pessoas que vivem com HIV foi a dos Inibidores de Integrase, com as drogas: Raltegravir, Elvitegravir e Dolutegravir. São medicamentos com bom perfil de efeitos colaterais, poucos comprimidos ao dia e excelente potência contra qualquer tipo de HIV. No final de 2016 o Ministério da Saúde brasileiro anunciou que a partir de 2017 o país vai passar a usar o Dolutegravir 48 HIV no lugar do Efavirenz como droga de escolha para pacientes virgens de tratamento que vão iniciar terapia antirretroviral, com isso se alinhando aos EUA e países europeus. Quais os medos futuros e as esperanças, em relação à medicina voltada para essa problemática? Atualmente vivemos um período de muitas esperanças dentro do mundo do HIV uma vez que conseguimos manter uma pessoa que vive com HIV saudável por toda a sua vida, sem transmitir seu vírus a seus parceiros, desde que esteja em terapia antirretroviral regular. Muitas pesquisas com o objetivo de atingir a cura do HIV estão em curso, algumas com resultados animadores, prometendo caso tudo dê certo nas fases dos ensaios clínicos, que nos próximos 10 anos tenhamos boas notícias para os pacientes. Já os medos se referem mais aos pacientes que não aderem de maneira adequada à terapia antirretroviral, fazendo com que possam vir a desenvolver cepas virais resistentes aos medicamentos disponíveis. Se a má adesão persiste em todos os esquemas antirretrovirais prescritos essa pessoa pode desenvolver um vírus que não pode ser controlado com nenhuma droga disponível na medicina, fazendo com que sejamos todos levados a uma realidade semelhante à das primeiras 2 décadas de epidemia de HIV, quando podíamos fazer muito pouco pelos pacientes que viviam com o vírus. Em resumo: esperança de termos um tratamento cada vez melhor para o vírus, conseguindo até chegar à cura; e medo da má adesão aos tratamentos, o que pode levar à multirresistência 49 Fábio Germano viral, impossibilidade de tratamento com as drogas disponíveis e Aids. De uma visão médica, caso se encontre a cura da AIDS, poderia surgir outra doença incurável? Presenciamos desde o início da humanidade o surgimento de diversas doenças infecciosas emergentes. Poucas foram tão devastadoras e significativas para os seres humanos como a epidemia de HIV. Digo isso não só pela questão médica, sintomas, tratamento e gerações que dizimou, mas também pelo impacto nas estruturas sociais e interações humanas, preconceitos que causou, estigmas que fortaleceu e exclusão social que causou. O desenvolvimento de uma cura para o HIV será sem dúvida muito bom para a humanidade, mas a revolução social que se espera que aconteça apenas depois da cura, já pode se iniciar agora, com a luta contra o preconceito, discriminação, estigma e exclusão que se tem por conta desse vírus. Uma opinião: Qual a melhor maneira de combater o preconceito? A melhor maneira de combater o preconceito é falar sobre o assunto. É estar sempre por dentro do que há de mais moderno e atualizado nele, e procurar continuamente lutar contra as desinformações, quase sempre causadas por visão preconceituosa e recheada de julgamento. 50 Capítulo II · O HIV E A PÓS-MODERNIDADE · C om o avanço da medicina novos comportamentos surgiram e outros mantiveram os antigos modos. Um deles é a prevenção em formato de Pep, que é o tratamento pós-exposição ao vírus dentro do período de 72 horas é uma realidade há algum tempo e que contribuiu para a mudança de pensamento acerca do HIV/AIDS. Em uma analogia simples, ela seria a pílula do dia seguinte em casos de exposição ao vírus. Outra novidade é a PrEP, realidade em outros países e estudo aqui no Brasil, funciona como uma estratégia na prevenção contra a contaminação com o HIV em pessoas não infectadas utilizando antirretroviral. De acordo com o site do projeto PreP Brasil, há duas formas principais de PrEP: a PrEP Oral em forma de comprimido e a PrEP Tópica em forma de gel. Os resultados iniciais dos ensaios clínicos de PrEP Oral indicam que essa estratégia de prevenção pode ser extremamente útil para a mudança de cenário necessária no combate a infecção pelo vírus HIV. O medo de adquirir a doença também faz parte deste capítulo. Os diversos tratamentos garantem boa vida aos portadores, mas o terror da década de 80 ainda existe e é retratado pelo perfil de um gay masculino que teve como resultado um falso positivo e um outro perfil de alguém que está lidan55 Fábio Germano do com a doença há apenas quatro meses. Por fim, os caçadores de vírus, pessoas que buscam se infectar por vontade própria, também fazem parte dos novos comportamentos em relação ao HIV. 56 · ITÁLIA · A primeira vez A o abrir a porta uma menina de cabelo quase laranja, com piercing no nariz, calça jeans cintura altura e um copo de bebida na mão me deu as boas vindas e me convidou para entrar. A porta de entrada ficava de frente para a cozinha, que era a única luz convencional que estava acesa na casa. Algumas pessoas já barravam o caminho até a sala. Era necessário se desculpar quase o tempo todo para chegar em algum lugar. O tema da festa era Britney. Ele estava completando 23 anos. Uma projeção de vídeos clipes era feita numa parede branca do mesmo lado esquerdo que ficava a porta de entrada. Uma mesa com bebidas como coca-cola, fanta, catuaba e vodka estava rodeada de pessoas. “Que bom que vocês vieram”, gritou Filipe do centro da sala, que estava cheia. Ele estava com uma peruca loira longa com franja. Blusa vermelha e uma calça de napa também vermelha. Salto altíssimo preto de “sola vermelha”, algo que ele sempre repetia quando alguém lhe afirmava que a roupa estava igual a da sua ídola, no seu videoclipe com maior repercussão. Cumprimentou meu amigo e eu. Foi a primeira vez que vi Filipe D’elia. 59 Fábio Germano A Pep, o Filipe e o chá F ilipe D’elia estava na cozinha fazendo um chá que tinha ganhado do amigo com quem ele divide o apartamento. Apartamento com piso de taco, que parecia ter sido lustrado por horas. A claridade da cozinha faz com que esse cômodo da casa se destaque do restante. Com um pé em cima do outro de forma que sua perna esquerda fazia um triângulo com a perna direita, ele esperava a água para o chá ferver. Sua cintura estava quebrada para a direita, fazendo seu casaco de frio pender no ombro. Calça jeans e o cabelo bagunçado, ele tinha acabado de acordar com o barulho do interfone. Tinha passado o dia na universidade. D’elia estuda comunicação na Universidade de São Paulo. Na espera pela fervura da água, ele questionou como andava a correria para cumprir os prazos, e assim iniciamos uma conversa. A água ferveu. Na ponta dos pés, ele se esforçou para conseguir alcançar a porta de um dos armários acima da sua cabeça. Com um impulso ele saltou e fez um movimento brusco para abrir a porta do armário. Uma bandeja prateada com um mini bule e com dois copinhos de cerâmica estavam logo no primeiro campo de visão. O jogo de utensílios para tomar chá lembrava objetos de feiras místicas. Algo entre a Índia e as coisinhas que se vende nas feirinhas de Ouro Preto. Ainda na ponta dos pés, ele pegou o jogo e com a mão trêmula retirou do armário e colocou no balcão da pia. Num movimento de semi rotação, ele se vira para o outro armário, agacha e pega uma lata dourada, que com os de- 60 HIV dos conseguia rodear o corpo dela. “Deram esse chá para o Pedro. Vamos experimentar”, disse, mostrando a latinha dourada. Colocou as ervas secas na água quente. Desligou o fogo. Colocou um prato em cima e esperou por volta de dez minutos. Despejou o chá dentro do mini bule. Organizou a disposição dos copinhos. Equilibrou a bandeja nas duas mãos e veio na minha direção, acenando com a cabeça para irmos sentar perto da janela na sala. Atravessamos o vazio da sala e passamos por um arco feito na arquitetura do apartamento, que divide a grande sala e uma pequena varanda ou a pequena sala. A janela é antiga e grande. O barulho dos carros, das pessoas, do vento, invade de maneira quase que grosseira e interrompe o início da nossa conversa. As cadeiras ficam em uma disposição onde são rodeadas de plantas. Uma é velha e possui um ar de restauração com estofado aveludado, na cor vinho desbotado. Já a outra lembra mais um banco alto com encosto, do que uma cadeira mesmo. Eu sentei na cadeira estofada e ele no banco alto. Do seu lado direito estava uma mesinha de pernas médias e de tampo retangular, material de madeira rústica. O jogo, com cara de Índia foi parar na mesinha com cara de banquinho. Filipe cruzou as pernas e se inclinou para a direita. Serviu o chá para mim. Entregou-me. Voltou a se inclinar e se serviu. “Acho melhor fechar a janela”, falou já fechando uma parte do vidro. Ele é de classe média alta. Nascido em Penápolis, município do estado de São Paulo. Possui cerca de 60 mil habitantes. Oeste Paulistano com uma colonização de lei de terras. 61 Fábio Germano Com as mãos ele abraçou o copinho de cerâmica levou em direção ao rosto e disse: “Vamos começar?”. Em julho de 2014 começou o intercâmbio que ele fez em Roma. Ao findar o primeiro mês, após sair de uma balada, aconteceu o sexo desprotegido com um casal. Um francês e um cubano. Ato rápido, sem pensar muito, regado a álcool e que fez com que Filipe sentisse o fantasminha, como ele diz, do HIV/AIDS pairando sobre ele. Sentando na cadeira com cara de banco alto, ele estava com a voz com uma leve vibração. A palavra “sozinho” foi a primeira dita depois de falar sobre o sexo desprotegido. Enquanto as outras pessoas tomavam seus cafés da manhã, Filipe voltava do apartamento do casal, que aparentemente estava em férias, com “um aperto no peito” provocado pelo medo da contaminação. No caminho para casa ele observava os ladrilhos das ruas que passava. A mente não parava de lembrar o que tinha acontecido havia pouco. Em casa ele começou uma busca por informações na internet. Fazendo uma pausa no relato, ele leva novamente o copinho de cerâmica à boca e finaliza o chá em silêncio. Olhando vagamente para frente, me diz que o HIV/AIDS está em seu entorno há muito tempo. Quando D’elia estava com dois anos de idade o tio Ronaldo Vecchia, que era jornalista assim como ele e que morava em São Paulo, morreu em decorrência da AIDS. A cidade de São Paulo, em que vive Filipe e que viveu o seu tio Ronaldo, concentra a maioria dos casos notificados de AIDS dentre todas as cidades do Brasil, sendo responsá- 62 HIV vel por cerca de 35% e 55% dos casos do país e do estado de São Paulo, respectivamente. Em 1991, 3,5% dos óbitos foram devidos a AIDS. Em 1992, foi de 3,8% e no primeiro semestre de 1993, quando Vecchia morreu, a AIDS foi responsável por 4,1 de todas as mortes. Também em 1991, a razão homem/ mulher era 6.1, enquanto no primeiro semestre de 1993 foi de 4.1. Em 1992 e primeiro semestre 1993, os intelectuais ocupavam o segundo lugar das profissões das pessoas que mais se infectavam. O tio era por parte de mãe. Mãe essa que cuidou do irmão. Sentiu todo o medo que a doença provocava na década de 90. Vecchia era assumidamente gay e faleceu solitário, gastando dinheiro para comprar uma possível droga vinda do México e de alguma forma sem entender essa doença. Filipe foi criado sobre os cuidados de uma mãe que viu os graves efeitos do HIV de perto. “Quando eu comecei a fazer matérias que abordavam temas tabus na sociedade, minha família começou a me comparar com meu tio. Eles viam fotos minhas no centro de São Paulo e começavam a me mandar mensagens com recados de cuidados”, ele me conta fazendo uma expressão de pesar no rosto. Ele pende novamente para a direita e pega o bule na mesinha. Com o corpo inclinado na minha direção, oferece mais chá e depois se serve. Além das plantas que ornavam suas costas, tinha um quadrado feito de luz de tubo na parede, que começou a piscar durante nossa conversa. D’elia descruza as pernas, levanta e bate a mão no interruptor. A luz apaga por um momento. “Tem que bater aqui e depois ligar de novo. Para 63 Fábio Germano parar de piscar”, me conta, olhando para a luz, o pequeno truque. Já sentado ele se inclina para frente para desamarrar o cadarço do tênis. “Vou voltar para a Itália”, disse já tirando um dos tênis. Em Roma depois do sexo desprotegido e da busca de informações na internet, ele dormiu. Ao acordar lembrou que seu prazo de até 72 horas para começar o tratamento de prevenção contra a contaminação com HIV estava chegando ao fim. Ele foi a um posto de saúde com referência em tratamentos relacionados ao HIV/AIDS, que ficava perto da sua casa estudantil em Roma. Foi questionado sobre sua sorologia e dos outros gays que ele teve relação sexual desprotegida. Enquanto seu sangue era tirado, lhe informaram que a melhor opção de prevenção nesses casos era o tratamento PeP. “A PeP, a profilaxia pós exposição ao HIV é uma estratégia de prevenção biomédica, baseada em uso de antirretroviral, que já estava regulamentado pelo Sistema Único de Saúde, desde 2010. Funciona para as pessoas que tenham exposições de risco eventuais. Como se fosse uma pílula do dia seguinte para gravidez, só que não é do dia seguinte, é o mês seguinte. A pessoa que tem um relação de risco, ela tem até 72 horas ou três dias para buscar algum serviço que ofereça essa estratégia. Ela faz um teste rápido e se negativo o teste rápido, mostrando que ela não tinha HIV de outras exposições, ela recebe o esquema de 28 dias de retroviral que reduz de maneira bastante eficaz a chance de se infectar”, diz o médico infectologista Rico Vasconcelos. 64 HIV Filipe D’elia teve muitas reações devido ao tratamento. Sentia muito enjoo, diarreia, dores de cabeça e pensou em desistir várias vezes. Conseguia se alimentar apenas de alimentos leves. Vomitava ao sentir o cheiro de fritura. Na época, ele foi visitar um amigo em Paris e disse que foi uma das piores partes do tratamento. No voo de Roma a Paris, sentiu diversas vezes calafrios e não se alimentou. Pedro, o amigo que morava na França, foi o único que soube, naquele tempo, dos acontecimentos. O relógio já marcava mais de nove da noite e chegava ao fim a nossa conversa. Ele se levantou e foi em direção ao quarto. O barulho de alguma coisa dentro de um frasco começou a me chamar atenção. Filipe vinha do quarto chacoalhando o frasco de plástico com o rótulo escrito em negrito TRUVADA, um dos remédios utilizados na Pep. O frasco vem com 30 comprimidos, mas o tratamento é feito por 28 dias. Os últimos dois comprimidos ficaram de lembrança na gaveta do criado mudo do seu quarto aqui no Brasil. Alguém destranca a porta da sala e entra com um punhado de sacolas. Era Pedro, que veio me cumprimentar e, como consequência, sendo o ponto da minha conversa com Filipe. 65 · O PRIMEIRO TESTE · O lá Pedro, tudo bem? Vamos refazer o seu teste, porque um deu positivo e o outro negativo. Foi assim. A seco. No pelo. Numa tacada só. De uma única vez. De repente, tudo ficou em suspensão. O still daquele momento para sempre. Estagnado. Preso. Sem saber se mover. Sem saber o que fazer. Normalmente é corriqueiro na vida de um gay masculino fazer o teste de HIV, ainda mais nós, nascidos na pósmodernidade, que quase nascemos à imagem e semelhança de Cazuza ou Renato Russo. Falo nós, porque Pedro tem 22 anos. Porém, podem acontecer os desvios. Pensamentos de que “isso não acontece comigo” ou que “eu nem penso nisso” ou “nunca tive contato com soropositivo”. Podem acontecer tantas curvas nessa estrada quase que reta, a qual todos nós, gays, sabemos que precisamos nos proteger, a qual somos todos um pouco infectologistas por necessidade e que às vezes damos aula sobre uma parte da medicina sem nem sequer passar na porta de uma escola com essa finalidade. Há curvas e elas são o motor principal de busca desenfreada sobre infor67 HIV mações referentes ao HIV/AIDS. Pedro é de classe média paulistana e sempre teve todas as informações possíveis à sua disposição. Mas antes, vamos começar contando que Pedro não é Pedro. Pedro é nome fictício, como muitas personagens preferiu não expor o nome. . Continuando… É tão engraçado, para não dizer trágico, que sempre começamos a perceber que estamos doentes com simples sinais do corpo. Quem mais poderia conhecer melhor o corpo do que quem vive nele? Você acorda em uma segunda-feira depois de se divertir com os amigos ou depois de apenas ter descansado e se sente com aquela sensação de que algo está fora do lugar. Uns pensam nessa situação por fração de segundos, levantam escovam os dentes, tomam banho e aquele sentimento só retorna no fim do dia. De uma forma reversa, alguns escovam os dentes, tomam banho e ao deitar aquela sensação volta, como se esse sentimento se personificasse e ficasse ali, na cama, nos esperando voltar. Têm pessoas que apenas ignoram esses sinais. Pedro estava há algum tempo com dor de garganta. Ardia, raspava, era quente, incomodava. Até aí uma garganta inflamada que qualquer um já teve. Nessa época ele estudava e trabalhava. Vida corrida, a melhor solução é seguir o protocolo. Antiinflamatório por uma semana e rotina que segue. Porém, o incômodo ardido não passou. Pedro trabalha em uma grande empresa do ramo televisivo e lá tem acesso a um ambulatório. Receita em mãos. Cinco dias de antibiótico e vida que segue, mas não seguiu. Próximo passo foi ir a uma endocrinologista. Tratamento passado por ela e vida que se- 69 Fábio Germano gue, mas também não seguiu. Se nem os médicos, que são médicos, cogitam a possibilidade de uma doença sexualmente transmissível, imagina nós?! Ao acordar em um sábado ordinário, o corpo estava tomado de manchas vermelhas. Feridas na garganta, um sangramento anal e agora manchas... Pedro listou mentalmente os sintomas e foi em busca de respostas na rede. SINTOMAS DE HIV. Foi isso que apareceu como resposta para sua pesquisa. Como uma avalanche, todas as frases doídas que de alguma forma Pedro se defendeu, agora lhe coloca quietinho deitado no chão do tapete do banheiro. SER GAY É ERRADO. VOCÊ PEGOU AIDS. VOCÊ VAI MORRER. O tempo entre a dúvida e a resposta é traiçoeiro. Te faz mal, te deixa enjoado, te deixa disperso. Seu brilho no olhar diminui. Pedro se questionava como viveria. Como seriam seus relacionamentos. Contaria ou não para a família. Se poderia se divertir. Beber, fumar, ficar na rua até tarde seriam problemas? Seria apático e muito magro? O que seria dali para frente? Há um prédio com tijolinhos a vista na Alameda Cleveland, 374, ali no bairro Santa Cecília. Lá funciona o Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) e o Serviço de Assistência Especializada (SAE). Na segunda-feira era esse o destino que Pedro visava. Passou a primeira etapa, que é não se deixar abater com a melancolia de repartições públicas, mas não venceu o desprezo da psicóloga que o atendeu. Rápida, incisiva, grossa, ela foi tudo que ele não precisa- 70 HIV va sentado naquela cadeira. Procedimentos terminados, sangue colhido, falas mecânicas da psicólogas já pronunciadas e a espera pelo anúncio do nome. O relógio dizia quarenta minutos depois, mas Pedro estava a mais de duas horas intercalando pensamentos de que nada aconteceria com as dores adiantadas da morte social que o HIV/AIDS provoca. Pedro de uma forma geral teve uma reação de ataque. Ele atacava tudo que vinha com otimismo, desde os próprios pensamentos até as palavras de conforto que a amiga que lhe acompanhou no dia lhe falou. Pedro. Chamava a mulher que carregava um punhado de envelopes nas mãos. Já dentro da sala de atendimento ele recebeu o resultado. Olá Pedro, tudo bem? Vamos refazer o seu teste, porque um deu positivo e o outro negativo. Naquele dia Pedro teve que fazer um exame de sangue minucioso. O teste rápido não foi capaz de dar com exatidão o estado de saúde em que ele se encontrava. Sífilis foi confirmada em estágio avançado e isso explicaria as manchas e as feridas na garganta e ânus. Porém, da mesma forma que ele contraiu a sífilis poderia ter se infectado pelo vírus HIV. Na internet ele achou o Centro de Referência e Tratamento de DST/AIDS-SP. Ele saiu do tratamento oferecido pelo município e foi para o oferecido pelo estado. Começa o tratamento da sífilis e refaz o teste de HIV. De qualquer ma- 71 Fábio Germano neira era necessário esperar quinze dias para a derradeira, sendo ela positiva ou negativa. Guerra é o confronto resultado de diferentes interesses de diferentes partes. Podemos ter várias partes ou apenas uma contra a outra. Essa guerra que descrevi é física, ela mata, destrói vidas, famílias. Há sangue, corpos, bombas, armas. Da mesma forma que ela acontece visível aos olhos, ela pode acontecer abstrata, idealizada. Nessa também podem acontecer mortes, vidas podem ser destruídas e famílias podem chegar ao fim. Pedro ficava entre o pensamento de que nada de mal iria acontecer e o pensamento de como poderia se matar. A guerra abstrata tomava conta dos seus dias. Em fração de segundos o olhar, que a pouco ria, mergulhava, sem previsão de volta, em uma tristeza tamanha. O medo fez Pedro se afundar em questionamentos. Faltou algumas vezes ao estágio, o qual ele era considerado muito promissor. Mentiu para os não muito próximos. Chorou em ombros amigos. Pensou que era o fim. Pensou que poderia viver bem com o vírus. Pensou. Chorou. Se martirizou. Pedro tinha medo de ficar fraco, de ficar feio, de ficar sozinho. Pedro tinha medo de ficar com a imagem semelhante à de Cazuza. Vários dias foram suportados na base desses calmantes fitoterápicos. Ao menor tremor que lhe acontecia ele tomava 3 ou 4 comprimidos de Pasalix. Em uma das noites que antecederam a busca do resultado, ele sonhou que era negativo. O coração se encheu de esperança, mas o despertar veio e a guerra foi instaurada novamente em sua mente. 72 HIV Há um termo que surgiu na Primeira Guerra mundial que é o Christmas truce, em inglês e Weihnachtsfrieden, em alemão. Em português Trégua de Natal, que foi usado para descrever o armistício informal durante a guerra. Na semana natalina, em 1914, os soldados alemães e britânicos se cumprimentaram, dividiram canções e até futebol jogaram. No dia do Natal trocaram presentes e alimentos. Pedro teve seu Weihnachtsfrieden, tanto que esqueceu o dia de buscar o resultado definitivo. Mas ao menor descuido, por coisa boba ele lembrou que precisava enfrentar um último dia de guerra ou começar outra guerra, essa com inimigo declarado e bem forte. Há um parque muito burguês dentro de um bairro ainda mais burguês em São Paulo. Há um cheiro de classe média e alta em cada pavimento desse bairro. Mas as cenas são triviais. Tem a babá de branco. Tem a patroa do lado da babá que carrega a criança. Tem criança loira. Tem o empresário que mora na região fazendo seu cooper. Tem uma senhora bem pintada, como diria meu avô ou bem maquiada, para os mais jovens. Tem a banca de jornal. Tem o vendedor de jornais. Tem o adolescente passeando com cinco cachorros. Tem o vendedor de picolé. Tem uma feirinha de artesanato. Um altar verde em meio a tantos prédios com seus apartamentos de valores estratosféricos. Foi nesse parque que marquei com Pedro 2 meses após ele receber o teste definitivo. Repassamos todos os acontecimentos. Pedro sorria com os olhos. Gesticulava muito. Ele se comunica muito bem. Pedro teve no seu primeiro teste, aos 21 anos, um falso positivo, isso pode ter sido decorrente ao grau avançado da sífilis ou a vacina contra a influenza H1N1. 73 Fábio Germano Pedro depois de algum tempo retomou suas atividades sexuais. Mesmo prometendo na angústia do momento que até o sexo oral seria feito com preservativo, ele não cumpriu essa promessa. Apenas a ideia de ser soropositivo fez com que Pedro morresse algumas vezes durante a espera do resultado. Hoje a vida está mais leve. Aquele fantasminha do HIV/AIDS foi embora, pelo menos por enquanto. 74 · O NOVÍSSIMO GABRIEL · E u sempre fui o mais novo da turma. Quando comecei a minha vida assumidamente gay, eu era sempre o mais novo da turma. Era meio óbvio eu ser o mais novo da turma, com 13 anos não é de surpreender que eu fosse o mais novo. Mas também fui o mais novo, caçula, da minha família por, se não me engano, uns 7 anos. Fiquei bastante tempo sendo a novidade para várias pessoas novas em vários lugares novos. Ouvi muito: Ah quando eu tinha a sua idade… E de alguma maneira eu sentia certo tipo de delay na maioria das pessoas que me rodeavam e que eram mais velhas do que eu. Ou não eram esclarecidas o suficiente sobre um assunto ou falavam algo sem nexo algum sobre a realidade em que estavam inseridas. Ou simplesmente não eram atualizadas em tudo que acontecia. A água correu debaixo da ponte, a roda da vida girou, ou qualquer baboseira dessas que significa que o tempo passou, e o hoje têm pessoas que me fazem sentir que quem está com o delay sou eu. Gabriel Justo, 22 anos, é uma dessas poucas pessoas que me faz sentir que sou um delay em forma humana.Há uma amplitude em Gabriel que eu não sou capaz de mensurar. Há algo tão novo, que apenas 4 anos de diferença entre nós se tornar uma fossa abissal. É de se parar e ficar impressionado com tanta informação que exala desde a roupa hipster até o 77 Fábio Germano mustache. Eu, quando novo, completava as frases das pessoas. Gabriel completou algumas frases minhas durante a entrevista. Há nele um português claro e correto, mas não chato e rebuscado. Se essa era é a da informação, sem um pinguinho de dúvida, Gabriel é filho dela. Inglês autodidata afiado na maioria das publicações em suas redes sociais. Nasceu no Carrão, distrito de São Paulo. Eu sempre imagino um carro enorme, como placa de boas vindas nesse lugar. Hoje morador de Sapopemba, já comprou perfume em Miami e já colocou seus pezinhos a mais de 300 metros de altura na Gran Torre, em Santiago. O sexo não é tabu para Gabriel. É um esclarecimento sem tamanho sobre questões que já foram motivo de medo para outras gerações. Gabriel sempre soube da existência da Aids. Sempre soube que havia pessoas contaminadas que transavam com pessoas não contaminadas. Referência é Cazuza para a maioria que nasceu depois dos anos 90, para ele não é diferente. Nós não vimos o que a Aids fez com a comunidade, caso não corremos atrás dessas informações, ficamos sabendo o básico . A Aids já não é arroz de festa na televisão. Gabriel sabe da maioria dos assuntos em voga. Eleições do estado de São Paulo. Impeachment. Esquerda contra direita. O Line-Up do Lollapalooza 2017. Sabe dessas terminologias moderníssimas. Porém, nunca conheceu ninguém que morreu de Aids. Corre fácil o assunto Aids na boca dele. Não há temor. Consciente ou inconsciente, a medicina de alguma maneira 78 HIV lhe dá esse ponto favorável em detrimento dos jovens gays adultos da década de 80. Para ele se tornar soropositivo equivale a ter um problema de coração crônico. A vida não será normal, mas continuará sendo vida. Fecho os olhos e imagino essa frase chegando aos ouvidos dos que se foram por causa da Aids no começo da epidemia. Gabriel tem um amigo que é um entusiasta de um programa novíssimo, como ele. Na linha do tempo de uma rede social, ele sempre postava algo relacionado com esse programa. E-mail enviado. Candidatura aceita. Gabriel passa a fazer parte do estudo PrEP Brasil. De acordo com Dr. José Valdez Ramalho Madruga, que é o atual coordenador do Comitê Científico de HIV/Aids da Sociedade Brasileira de Infectologia, desde 2010 várias pesquisas vêm comprovando que o uso diário de 1 comprimido que combina 2 antirretrovirais, o tenofovir (TDF) e a emtricitabina (FTC), comercializado com o nome de TRUVADA, é eficaz na prevenção da aquisição do HIV por via sexual. Entre homens que fazem sexo com homens (HSH) e travestis, a eficácia pode chegar a 99% se o indivíduo fizer uso regular do medicamento, ou seja, se ingerir 1 comprimido todos os dias da semana. Os estudos mostraram ainda que o uso diário do TRUVADA é seguro, pois os efeitos colaterais mais comuns foram leves e temporários, sem ocorrência de efeitos colaterais graves. Em 2012 a utilização do TRUVADA para a prevenção do HIV foi aprovada nos Estados Unidos. E recentemente, os Centros para o Controle de Doenças (CDC), uma agência do 79 Fábio Germano Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, recomendaram o uso dessa medicação para prevenção da infecção pelo HIV para pessoas sob maior risco de adquirir esse vírus. A Organização Mundial da Saúde (OMS), reconhecendo o potencial da PrEP para o enfrentamento da epidemia do HIV/AIDS, recomendou o desenvolvimento de estudos para avaliar como esta estratégia de prevenção pode ser utilizada no mundo, considerando as especificidades da epidemia, da cultura e dos sistemas de saúde, que variam amplamente entre os países. No PrEp Brasil Gabriel é um dos voluntários. No site em uma das abas está essa definição para o PrEP: A Profilaxia Pré-exposição (PrEP) ao vírus da imunodeficiência humana, o HIV, é uma estratégia de prevenção que envolve a utilização de um medicamento antirretroviral (ARV), por pessoas não infectadas, para reduzir o risco de aquisição do HIV através de relações sexuais. O medicamento ARV irá bloquear o ciclo da multiplicação desse vírus, impedindo a infecção do organismo. Há duas formas principais de PrEP: a PrEP Oral em forma de comprimido e a PrEP Tópica em forma de gel. Os resultados iniciais dos ensaios clínicos de PrEP Oral indicam que essa estratégia de prevenção pode ser extremamente útil para a mudança de cenário necessária no combate a infecção pelo vírus HIV. A PrEP Oral baseia-se no uso de medicamentos ARV para a prevenção da aquisição do HIV e sua eficácia parcial foi demonstrada entre homens que fazem sexo com homens (HSH) e heterossexuais. Intervenções de prevenção biomédica, como a PrEP, têm um grande potencial, especialmente se combinadas a testagem anti 80 HIV -HIV ampliada (mensal ou trimestral), diagnóstico e vinculação ao tratamento daqueles identificados como infectados pelo HIV. O estudo exige que os voluntários sejam homens que fazem sexo com homens (HSH), travestis e mulheres transexuais, ter idade igual ou superior a 18 anos, não ser infectado por HIV-1, ser disposto e capaz de fornecer consentimento livre e esclarecido por escrito, possuir qualquer uma das seguintes evidências de risco para aquisição de infecção pelo HIV-1, ter praticado sexo anal sem preservativo com 2 ou mais homens ou mulheres transexuais nos últimos 12 meses, ou ter dois ou mais episódios de sexo anal com pelo menos um parceiro HIV+ nos últimos 12 meses, ou ter praticado sexo com um homem ou mulher transexual e possuir diagnóstico de qualquer uma das seguintes doenças sexualmente transmissíveis nos últimos 12 meses: sífilis, gonorreia retal ou infecção por clamídia no reto. A Aids em si não assusta Gabriel. O âmbito da falta de informações que a maioria da sociedade se encontra é o que mais gera um temor nele. É o social. É o preconceito. Há cerca de um ano e meio no programa, Gabriel vê no remédio, tomado diariamente, mais uma forma de proteção e não como a assinatura da carta de alforria. Antes do primeiro comprimido de Truvada, ele passou por um psicólogo, um farmacêutico e fez uma “caralhada” de exames. Respondeu muitas questões de hábitos sexuais e passou por um exame clínico, igual a esses em que você fica pelado na frente do médico para ele lhe dar um atestado para poder entrar na piscina do clube, só que bem mais minucioso. 81 Fábio Germano Gabriel tinha informações que teria dores de cabeça, mal-estar e até eventuais diarreias. Não teve nada. No celular ele recebe mensagem de texto questionando se está tudo bem, caso não ele deve responder não e logo alguém entra em contato com ele. Caso estivesse seus 22 anos em 1984, Gabriel assume que teria um comportamento sexual completamente diferente. Depois de entrevistar Gabriel, uma vontade insana de escrever uma carta ao passado com destino ao Cazuza, cresceu em mim. O início seria assim: Querido Cazuza, hoje já não temos tanta música boa nacional. Quase ninguém usa bandana vermelha na cabeça ou amarrada no jeans rasgado, salvos aqueles saudosistas da sua gloriosa época. Hoje o obsoleto é regra do mercado capitalista. Hoje, meu querido, com os remédios em dia, você poderia estar entre nós. 82 · O SAQUINHO DE PREVENÇÃO DE THIAGO · T ome como verdade a frase: EU NÃO ENTENDO O PORQUÊ DE TOMAR A PREP SE NÃO É SÓ PELO SIMPLES FATO DE NÃO QUERER USAR CAMISINHA. Agora pode começar a leitura. Sai do elevador. Olhei para esquerda. Olhei para direita. Não sabia para qual direção ir. Nunca havia estado lá. Mas o ambiente repetia a visão de redação que eu tenho. Repartições, computadores, jornalistas e uma máquina de café. Alguns pedidos ficavam na faixa de 1 real, outros eram cortesia da máquina. Pensei em pegar um real na bolsa, mas lembrei de toda parafernália que estava lá. Apertei o café longo grátis. Enquanto esperava minha cortesia em forma de café, mandei uma mensagem para Thiago. Desculpei-me por chegar tão cedo e estava esperando sem pressa na copa. Fiquei de frente à máquina esperando aqueles longos minutos. Quando estou em um lugar totalmente novo, o tempo passa arrastado. Mas nem deu tempo de curtir a ansiedade da minha “síndrome de tempo arrastado em lugares desconhecidos” e Thiago já estava falando oi. Indo para um lugar mais apto para conversarmos, o 85 Fábio Germano tempo, o que eu estava fazendo, cidade de origem, foram alguns assuntos falados na caminhada entre o elevador e o banquinho de madeira. Thiago Araújo, 29, quase 30 anos, não sabe dizer quando ouviu as palavras HIV e hétero na mesma frase. A associação da comunidade gay com a doença sempre foi uma realidade, cresceu ouvindo essa conexão. “Era claro que caso você fosse gay provavelmente pegaria isso e morreria”, inicia a conversa puxando a perna esquerda e sentando em cima dela no banquinho dentro de um simulacro de praça, num complexo de prédios ali do lado do terminal Pinheiros. Hoje, ele trabalha na revista Veja, justamente a primeira lembrança em relação à doença foi a capa estampada por Cazuza, em 1990. Seguiu a linha da maioria dos entrevistados para este livro-reportagem, lembrou-se do cantor. Lembra também da mãe alertando sobre uma cabeleireira transexual supostamente soropositiva. Dois professores portadores do vírus, um deles do cursinho, que sempre ganhava algumas piadas pelas costas e o outro que morreu. Foi no centro de São Paulo, que comporta os bairros Consolação, Higienópolis, Santa Cecília, República, Barra Funda, entre outros, que ele sempre morou desde que se mudou da cidade interiorana de Viçosa, Minas Gerais, em 2011. Nasceu em João Monlevade. Em Viçosa teve o primeiro relacionamento, que foi um relacionamento heterossexual. Quatro anos, sem muitas dificuldades. Quatro anos de experiências. É recorrente no universo gay ouvir falar da necessidade de sempre ser o melhor em todas as atividades. Thiago me conta que se encaixa muito bem nesse papel. “Eu tinha a ne- 86 HIV cessidade de ser o melhor. Gostava muito de estudar. Não sei explicar direito, mesmo fazendo terapia”, me confessa dando uma risada e esticando a perna, onde ele estava sentado. Se recorda que aos 15 anos, já começou a estudar sobre o âmbito e as correlações acerca do HIV. O grande trânsito provocado pela hora do almoço fazia parte do ambiente em que conversávamos. Um grupo misto de homens e mulheres passava pra cá e pra lá. Alguns paravam e cumprimentavam Thiago. Com a voz rasteira, na intenção de não deixar alguém ouvir, ele conta sobre a sua “libertação” ao chegar em São Paulo. Com aquele recuo de quem fala sobre sexo com alguém que acabou de conhecer, ele ri, meio que envergonhado, falando que não lembrava quantos parceiros sexuais teve no primeiro ano de vivência paulistana. Tinha a perigosa ideia de que sendo ativo na relação sexual as chances de se infectar eram mais baixas. Chegou um momento que a consciência de que se continuasse com aquela maneira de vida sexual, mais cedo ou mais tarde, iria fazer parte de estatísticas. Comunicador nato, ele gesticula com as mãos de uma forma ansiosa falando sobre o índice de 2 para 10 gays que moram na região central serem soropositivos. Depois de um namoro, ele quis explorar mais o lado sexual passivo. Período que as preocupações aumentaram. “Se sangrar, se nas preliminares aconteceu algo sem camisinha, se isso, se aquilo....” Dentro do mundo dos medos que rondam a maioria dos gays masculinos, ele se deparou com o primeiro alerta. Em 2013 pegou sífilis de um sexo casual com um casal. Diferente das opções de prevenção que a maioria co- 87 Fábio Germano nhecia, ele começou a ler sobre a Impex, um dos primeiros estudos sobre a prevenção feita com antirretrovirais no mundo, que aconteceu em 2007. Foi a 4 infectologistas procurando por essa forma de prevenção. Em todos foi negado. Mesmo se quisesse pagar, cerca de mil dólares mensais, ele não poderia ter acesso. Como jornalista começou a escrever mais sobre o universo LGBT, um projeto chamado Gays Voices, em um grande veículo de comunicação. Participou de uma grande pesquisa da Abril voltada para saber o quanto brasileiros sabiam sobre DST. Conheceu pessoas da área como Fábio Mesquita, que era o diretor do Departamento de DST no Brasil. Conheceu Esper Kállas, médico famoso pelas pesquisas na área de desenvolvimento de vacina para o HIV. Foi nesse âmbito de trocas, que a informação do PreP Brasil chegou até ele. Thiago entrou no projeto em outubro. Em novembro já estava com a medicação de prevenção em mãos. Os exames minuciosos que eram feitos para entrar no programa o fizeram descobrir uma clamídia que despertou uma sensação de cuidado com a saúde. “Aí caiu a ficha que eu iria ser tratado, ou melhor, descobrir coisas da minha saúde de 3 em 3 meses”, me fala demonstrando um orgulho de fazer parte da PreP Brasil. Depois de 6 meses no projeto, ele conheceu o atual namorado. Mesmo com o risco baixo resolveu continuar. É algo satisfatório para ele se cuidar e cuidar do outro. Thiago não tinha e não tem o objetivo de tomar o Truvada como prevenção a fim de fazer sexo sem camisinha. Por isso ele é um perfil tão importante. Thiago quer apenas tirar qualquer possibilidade de se tornar soropositivo. Thiago quer 88 HIV apenas “transar sem medo”. Brincando com o copo em que eu tinha tomado café e com um dos braços dobrado em 90 graus apoiado no banco, ele fala sobre a importância da comunicação também como forma de prevenção. Ele sempre buscou conhecer os parceiros sexuais. “Há uma comunicação entre você e o outro. Conversar sobre também é uma forma de prevenir. Perguntar sobre o último exame ou questionar pontos que você acha importante também tira um dos riscos de se infectar, mas não tira todo o risco”, me diz se esforçando para que eu compreenda o motivo de utilizar um remédio como forma de prevenção sem ter o principal motivo, o sexo sem preservativo. Thiago de uma forma muito esclarecedora me fala sobre a importância social que uso do Truvada como prevenção poderá provocar caso utilizado pelo governo. “A questão não se resume à vontade de querer transar sem camisinha. Eu tomo, enquanto comunidade, se todas as pessoas começassem a tomar a PreP mais pessoas estariam mais seguras do que estão hoje em dia. Primeiro reduziria o estigma que está por trás dessa doença, que movimenta muitas coisas, como o tesão das pessoas. Eu tenho um amigo portador, que se limita às pessoas que ele acha que podem gostar dele naquela condição. A PreP vindo como mais uma forma de prevenção, poderia tirar essa limitação dele. O uso da PreP vem com muita informação, com muito conhecimento”, fala empolgado percebendo que era uma informação nova para mim. Thiago utiliza todas as formas de prevenção, inclusive o preservativo. Além do objetivo maior, que é evitar contrair a doença, essas formas conseguem desmistificar o assunto. 89 Fábio Germano Thiago me fez entender o porquê do uso da PreP ser tão importante, além da rasa ideia de fazer sexo sem camisinha. De uma forma indireta essa prevenção quebra a barreira entre o soropositivo e o restante da sociedade que não é. Ela quebra o medo, que muitos de nós, gays, temos, quando se fala em relação sorodiscordante. Ela vem como uma forma impressionante de mudança de pensamento e comportamento. Tira os gays do limbo em que foram jogados pelas AIDS. Devolve, de certa maneira, a nossa “arma maior” que é a liberdade sexual. “Eu acredito que a PreP veio para dar início a segunda revolução sexual, não só para homens que fazem sexo com homens, mas para todo mundo. Quando conseguirmos espalhar essa lógica barreiras construídas pela doenças irão se desfazer”, finaliza mostrando toda sua fé no avanço da medicina. 90 · FICHAS · D e frente para mim, ele estava com as duas pernas entrelaçadas em cima da cama. Cama alta por sinal. Um travesseiro com fronha, que exalava um cheiri- nho de amaciante, ficava dançando entre ficar em cima das pernas dele ou ficar jogado no centro da cama. Eu estava sentado em uma poltrona coberta por um tecido que lembra casa de Vó. Na minha direita estava um criado mudo. No topo, uma gaveta e um vão que expunha três frascos de plásticos de remédios e dois de vitaminas, dessas famosas que aparecem em comerciais com uma família feliz. “É para eu não esquecer de tomar”, diz ele apontando para o sudeste com a mão esquerda. Já sem sotaque, ele nasceu no Rio, mas já mora em São Paulo desde os 14 anos. Ele não foge a regra de que a maioria dos gays no Brasil têm como lembrança primeira, em relação ao HIV/AIDS, a figura do Cazuza morrendo em rede nacional, registrado pela revista Veja. Não foge à regra também quando se trata do medo em ser visto antes por ser portador do vírus do que qualquer outra coisa, por isso preferiu contar seu nome só para mim. A parede que fica de apoio à cabeceira da cama é pintada de uma cor moderna acinzentada. Um quadro de arte pop toma o papel do espelho. Algumas crianças dentro da 93 Fábio Germano piscina com boias coloridas, outras correndo, provavelmente brincando de pique- pega e uns adultos compunham a visão da meia janela aberta daquele sétimo andar. Uma cortina leve, que mais parecia um véu, com o balançar do vento simulava uma visão turva. São muito sensíveis as expressões dele conversando comigo. Atento, com uma educação extrema, eu não conseguia distinguir se era apenas uma boa criação que o moldou daquela forma ou se a condição de portador do vírus havia lhe mudado de alguma maneira tão profunda que a empatia exalava por todos os cômodos daquele apartamento de classe média alta, em um bairro americanizado, que fica longe do centro de São Paulo. Me contou que não se difere muito dos outros gays da sua idade, 29 anos. Gosta de socializar, sair para dançar, ler, por sinal agora está lendo alguns títulos relacionados com a Umbanda e um dos livros do Harry Potter. De uma forma bem organizada, esses livros ficam em uma mesa, que fica entre o tamanho médio e grande, no canto direto ao entrar pela porta do quarto. Na parede que faz fundo, três quadros de art pop. Perguntei sobre Andy Warhol, que é a única lembrança que tenho sobre esse estilo, mas de uma forma negativa com o rosto ele quebrou a tentativa de conexão que eu estava fazendo, falando de outro artista do movimento. Bem resolvido, a questão de se assumir não foi um problema. Nunca pensou em casar com mulher, a fim de se “curar”. Não quis repetir a história triste em que se constitui uma família para lá pelos quarenta anos viver uma vida dupla ou se “jogar no mundo”. Justamente por entender seus senti- 94 HIV mentos e ter uma clareza sobre o assunto, que o primeiro beijo foi em um menino, aos 17 anos. A relação com o núcleo familiar é baseada no diálogo. A mãe é psicóloga. O pai, depois da separação, foi morar fora, isso de certa maneira fez surgir um período de afastamento entre os dois, algo como a distância geográfica seria a melhor resposta para o porquê desse afastamento. Na formatura “o pé na porta veio com tudo”, e ele se assumiu para o pai em meio à música alta e o diploma de Relações Públicas. A primeira ficha Em 8 de julho de 2016, uma sexta-feira, o teste que nunca dava positivo, deu. Com um suspiro ele fecha os olhos por uma fração de segundo e de certa maneira volta ao passado. Soltando o ar pela boca, como que quisesse se aliviar do pensamento doloroso que foi aquele dia, ele me diz que foi o “pior dia”. Como um relâmpago de racionalidade, ele já muda o semblante e retoma a conversa. O fato de ser incurável e o preconceito ficaram martelando na sua cabeça depois que recebeu o resultado. Foi a primeira ficha, de muitas, que ele tomou consciência. Quase dois anos solteiro. Teve três relacionamentos seguidos, dois a três meses de diferença de um a outro. Ele gosta de manter um vínculo. Curte sair e ficar, mas é mais caseiro, prefere o tesão da proximidade, do que o tesão do desconhecido. O último relacionamento durou três anos, coisa “rara” nesses tempos. Quando ficou solteiro, conheceu gente, conhe- 95 Fábio Germano ceu lugares, teve alguns “rolos” e bem certo de si me fala que teve três momentos de risco durante sua vida. Como eram pessoas conhecidas com diálogo aberto sobre o assunto, tomou como verdade que estaria seguro. Ele sabia da forma de prevenção da profilaxia pós-exposição, PeP, mas, confiando na relação verdadeira que ele dava aos outros, não procurou por esse método. Deu três votos de confiança e recebeu um resultado positivo. Dois desses envolvimentos de risco tiveram cerca de dois meses. Um deles foi apenas uma transa que ocorreu depois de uma conversa em um aplicativo. Em um dos exames que fazia com alta periodicidade, o resultado para reagente para anticorpos do HIV, demorou muito a sair. Com todos os outros resultados já conferidos por e-mail, uma aflição surgiu no meio da vida tranquila entre trabalho, amigos e leitura. Feito em um laboratório particular, a página na internet estava escrita no canto inferior Western Blot, que é um método em biologia molecular e bioquímica para detectar proteínas em um extrato de tecido biológico, feito apenas após o resultado positivo do método Elisa, primeira maneira de testagem para o reagente para HIV. E uma observação que daria uma crise de ansiedade em muitas pessoas, do lado estava escrito: CARTA DE CONVOCAÇÃO. Ele estava infectado havia pouco tempo, o sistema imunológico não estava afetado e a carga viral estava cerca de 28.000. No dia da nossa conversa, ele estava completando o seu terceiro mês de tratamento, já com o status de indetectável. No dia em que pegou o resultado, ele estava sentado à mesa do trabalho. Ambiente bem característico de empresa. 96 HIV Repartição entre os lugares individuais, um de frente para o outro, o coração disparado, um eco envolvia seus sentidos, mas surgiu a ideia de procurar ajuda em um 0800 do ministério da saúde. Não conseguiu ligar do celular, nem do telefone, que é empresarial. Descendo as escadas, do prédio de três andares, ele encontrou com sua chefe, que também é amiga e contou sobre o resultado. Em um ato de solidariedade, ela lhe confessou que seu pai era soropositivo e que ficaria tudo bem. Essa sucessão de acontecimentos foi embalada por muita angústia e choro. A culpa veio como uma velha amiga e o abraçou como se há tempos eles não se viam. Com a ajuda da chefe, ele conseguiu marcar uma consulta com a médica que sempre cuidou da sua saúde. Sentado na cama e gesticulando muito, na tentativa de se expressar da melhor maneira possível, a fim de me passar o tempo, o espaço, as sensações daquele dia, ele se lembra da ansiedade que veio de frente a ele quando viu o reagente positivo escrito no papel, e me conta que sente de uma maneira verossímil todos os sentimentos daquele momento. Durante nossa conversa, a perturbação mental que aconteceu quando ele estava sentado na sua mesa de trabalho volta, em formato de flashes carregando porções menores de dores. Até dar a hora marcada com sua médica, ele e a sua chefe fizeram uma via sacra. Foram a um CRT, centro de referência e tratamento para HIV/AIDS, porém o centro estava em greve. Dando continuidade à via, eles foram para o Hospital Emílio Ribas, foi aconselhado por uma assistente social, que fez um trabalho de acolhimento. “Quando você descobre não há muito acolhimento. 97 Fábio Germano Nada te conforta”, me diz finalizando um desenho feito com a mão no ar, para se fazer entender sobre o caminho que tinha feito depois de sair do prédio em que trabalha. Depois da passagem pelo Emílio Ribas, chegou a hora de ir à médica, que o aconselhou sobre alguns procedimentos e já lhe passou o contato de um infectologista. Conversou com o infectologista e algumas dúvidas foram tiradas. A segunda ficha De uma forma bem madura, ele demonstra uma inteligência emocional, que difere de muitos entrevistados. Não sei se por ter acesso a uma boa educação e uma mãe psicóloga, mas ele me fala sobre a consciência da necessidade de “criar resistência emocional”, e que era necessário ser honesto com a família. Já na volta daquele dia cheio e doído, sua mãe, com aquele instinto quase infalível que mães têm, perguntou se estava tudo bem. A resposta foi não e a segunda ficha que a realidade positiva lhe pôs a mesa, estava na hora de ser resolvida. No exato lugar em que ele conversou comigo, a mãe recebeu a notícia. Era a mesma cama, a mesma parede acinzentada, os mesmos quadros de art pop, a mesma mesa encostada no canto esquerda ao entrar no quarto, a mesma vista meio turva para a piscina, só o medo e a angústia que eram em proporções maiores, a ponto de apertar o peito. A mãe não chorou na frente dele, foi firme. Aguentou o tranco de quem viu o surgimento da Aids. De quem viu as mortes no Jornal Nacional. Foi firme no momento “tão sem 98 HIV chão” quanto aquele. Para o pai o ato de contar se tornou de certa forma um “presente”. Ele sempre viaja para o Rio no aniversário do pai. Nesse último aniversário, ele fez questão de ir mais ainda porque o pai estaria sozinho, suas irmãs estavam viajando junto com a madrasta. Ele tentou reunir os amigos cariocas para fazer algo mais com cara de aniversário. No final todo mundo “deu para trás” e o frente a frente com o pai veio a calhar. O pai dele morou por muito tempo fora, teve contato com várias nacionalidades, crenças, culturas, um esclarecimento que veio de estudo e de vivência de mundo, mas isso não tirou o medo de contar. “Eu vou te contar um negócio que eu não contei para ninguém e eu quero entender o quanto você entende sobre esse assunto. Eu confio muito em você. Você é meu pai, por isso estou te contando”, mas ele nem precisou terminar o pai lhe interrompeu e disse: “Você tem Aids?” O amor paterno veio em forma de diálogo e ajuda financeira, que é muito importante nesse âmbito de descoberta. A terceira ficha Depois de vários exames, o melhor conjunto de remédios lhe foi proposto pelo seu médico, a partir daquele momento ele teve a consciência que não poderia esquecer, que teria que colocar na sua rotina o ato de tomar alguns comprimidos por dia. Ele não pode deixar de fazer a contagem dos frascos. Precisa se organizar para ter uma periodicidade nas idas ao médico. Ele já tem exames marcados para seis meses, 99 Fábio Germano para nove meses, para um ano. Ele comprou uma pasta com divisórias. Quando chegou no status de indetectável tomou quatro vacinas. Ele optou pela rede privada de tratamento, gasta em torno de 900,00 reais a cada consulta médica. No feriado, quando aconteceu nossa conversa, ele estava em casa, pois estava resfriado e agora um resfriado já não é mais tão inofensivo. Os remédios são pegos na rede pública. De fato a saúde se tornou uma prioridade na sua vida. Às vezes ele entra em uma “paranoia” que é causada pela situação em que o país se encontra. “Eu penso: e se acabar o SUS? Eu não tenho grana para bancar a importação do remédio, que é muito caro”, fala se agitando a fim de demonstrar a ansiedade que esse imaginário futuro cenário lhe provoca. Os remédios provocam uma diarreia contínua, um efeito colateral comum em alguns casos de tratamento. No fim de semana que antecedeu nossa conversa ele foi para uma balada, que acabou prolongada, o amanhecer chegou e junto com ele a vontade de ir ao banheiro. A consciência da mudança de vida é, além de mental, física, o corpo reage ao tratamento lembrando quase de tempo em tempo sua nova realidade. No criado-mudo em que se vê os frascos dos remédios está um de cálcio, maneira que o médico achou para amenizar o efeito colateral. Seu tratamento é feito com Tenofovir 300/3TC, que fica na classe de medicamentos que atuam sobre a enzima transcriptase reversa, tornando defeituosa a cadeia de DNA que o vírus HIV cria dentro das células de defesa do organismo, essa ação impede 100 HIV que o vírus se reproduza. A segunda droga é Ritovanir, inibidor da protease. Para finalizar a composição dos três medicamentos está o Fosamprenavir, também inibidor da protease. A quarta ficha Se dando um tempo na casa do pai, no Rio, ele trocou a foto de uma rede social e isso chamou atenção de alguma forma de um “paquera” que ele havia conhecido há algum tempo. O volume de troca de mensagens aumentou e junto veio a tensão de contar para a primeira pessoa que possivelmente iria acontecer algo, no âmbito sexual. Já de volta a São Paulo, ele marcou o primeiro encontro. À tarde, a ansiedade tomou conta das horas que antecederam o jantar. Para ele a melhor opção foi fechar os olhos e rezar. Ficou tão cansado de todo esse clima pré-encontro, que acabou dormindo. Em um bar, muito gostoso por sinal, na Rua Augusta, conversa vai, coversa vem, ele percebeu a ansiedade do outro para que tudo aquilo desse certo. O papo de ir ao motel chegou com tudo. Ele desviou, tentou outros assuntos, pensou muitas hipóteses. “Será que se eu conversar um papo mais safado ele vai pensar que sou promíscuo, depois de contar que tenho HIV? Será que conto de primeira? Será que não conto?”, dúvidas de como agir pipocavam na cabeça dele naquela mesa de restaurante, em clima de pré-romance. Um dever ético de contar tomou mais conta do que qualquer outro pensamento. Ele contou e viu “mil expres- 101 Fábio Germano sões” no rosto do outro. O outro ficou sem palavras, de repente ficou carinhoso, de repente teve um sentimento de empatia, de repente… Teve tantos de repentes que o que nunca havia acontecido, fez a quarta ficha cair. A partir daquele momento, contar ou não contar virou regra de pensamento, tornando mais uma vez a lembrança da vida positiva viva em sua mente. A noite acabou bem. Eles se relacionaram por um tempo, mas por coisas da vida não foi pra frente. Já estávamos conversando por cerca de uma hora. Conversamos sobre mais assuntos e ele me lembrou quantas fichas ainda estavam por vir. O quanto a sua vida tinha mudado naqueles quatro meses. Me levantei ao finalizar a entrevista. Observei por um tempo ao redor, a fim de tentar captar a essência dele. Olhei alguns detalhes. Perguntei sobre religião, sobre baladas, sobre estilo de roupas. Nos despedimos e na porta do apartamento ele me explicou a melhor maneira de pegar o ônibus para Avenida Paulista. Diferente de alguns entrevistados, ele me mostrou o poder que o HIV/AIDS ainda tem sobre as vidas modernas e como ele pode moldar os comportamentos. 102 · O “DOADOR” DE VÍRUS HIV · E le estava de bermuda e uma camiseta, ambos de um tecido tecnológico que retêm o suor quando se malha. Na mesinha redonda estava o meu café e também o dele. O Starbucks do Shopping Frei Caneca estava começando suas atividades daquele dia. Apenas a entrada do prédio fica disponível para os primeiros clientes. Normalmente são pessoas que saíram da academia de rede que tem ao lado ou as que vão ao supermercado. Ele me pediu para preservar seu nome e que aquela conversa fosse rápida. Dedilhando na mesa, ele riu lembrando de quantas vezes havia lhe pedido uma entrevista. Checou algo no celular, olhou ao redor e afirmou que estava pronto. Ele tem 38 anos, se infectou aos 27. Ele não sabe se foi um antigo namorado ou se foi uma tatuagem feita na Ásia com uma técnica milenar, na qual várias agulhas fixadas em longas hastes de bambu vão furando a pele e depositando a tinta. De uma maneira ou de outra, aquilo já não importa mais depois de tantos anos. Levantou a manga da camiseta, projetou o braço em minha direção e me mostrou uma tatuagem esverdeada em forma de ondas contempladas por um sol. Dobrando a perna e a puxando em sua direção, ele conta que a aceitação da ideia de ser um soropositivo demorou cerca de dois anos para acontecer. Foram 8 meses para contar 105 Fábio Germano ao melhor amigo. A mãe morreu sem saber e o pai está feliz não sabendo. Sua rotina mudou, porque a consciência que a doença dá muda seus comportamentos. Quando completou 8 anos de convívio com o vírus, no ano de 2012, começou a borbulhar o assunto sobre o novo aplicativo gay para encontros, o Grindr. Foi o momento em que uma virada, no sentido sexual da vida, aconteceu. Antes, o sexo era artigo de luxo. Honesto com quem transava ou iria transar, ele contava sempre sua sorologia. Os “não” foram sendo cada vez mais frequentes. Quando se intitulava soropositivo no aplicativo de uma forma estranha o número de mensagens dobrava em questão de dois ou três dias. Ele já tinha ouvido falar dos caçadores de vírus, mas achava que era algum desses fenômenos de bizarrices da Europa. Com uma risada de canto de boca, ele confessa que já falou para alguns usuários que tinham se infectado havia pouco tempo e que ainda não tomava remédio, só para não perder a transa. Em uma véspera de Natal, ele estava no Rio de Janeiro. Trabalhou das dez da noite às sete da manhã. Tomando um café na copa do escritório resolveu matar o tempo entrando no Grindr. Seu perfil estava sem foto, apenas com a sigla HIV +. Um rapaz com seus 23 anos iniciou a conversa perguntando o que estava fazendo e se estaria afim de sexo. Conversa vai, conversa vem, o rapaz lhe pediu de presente naquele ano o vírus HIV. Por ironia ou não, os doadores de vírus são chamados de “gifters”, os “presenteadores”, numa tradução ao pé da letra. Não foi a primeira vez que uma proposta daquela tinha 106 HIV lhe sido feita. Aquela foi uma em muitas que já aconteceram, tanto no Rio quanto em São Paulo. Ele já recebeu fotos de exames mostrando a carga viral de alguns soropositivos e essas cargas são assustadoramente altas. Quem já é positivo quer ficar com uma carga viral ainda mais alta, para isso transam com outros a fim de aumentar o número de vírus no sangue. Afastando a cadeira ele levantou e se direcionou ao balcão. Olhou alguns salgados por entre o vidro de proteção. Pensou alguns minutos e decidiu comprar apenas uma água. Tirou a carteira do bolso, pagou e retornou para a mesinha que estávamos conversando. “Você deve estar me achando um cara de outro mundo”, me disse fixando os olhos em mim. A fila da rede de cafés começou a crescer. Alguns executivos formavam um círculo, conversavam entre si e mexiam nos celulares. Alguns estudantes de teatro comentavam em voz alta sobre a dificuldade de uma cena que tinham encenado no dia anterior. Voltei meus olhos para ele e o questionei sobre as consequências que essa prática pode ter, caso crescesse. Levando a mão a boca, ele ficou em silêncio pensando por um tempo. Ensaiou uma resposta, mas logo recuou. Bebeu um gole de água. Abriu e fechou a garrafinha, dando a entender que precisava daquele tempo para pensar em algo. “Há desejos que nem sequer podemos imaginar. Acredito que isso seja um fetiche e que exista há um bom tempo, mas temos mais acesso a essa informação agora”, respondeu ele, checando o celular novamente. Olhou no relógio fazendo 107 Fábio Germano um gesto negativo. Entendi que estávamos chegando ao fim. Ele se despediu, levantou, deu a volta no cercadinho que tem na cafeteria e saiu pela porta automática do shopping. Diretamente ligado aos caçadores e doadores de vírus está a prática barebacking. De acordo com Léobon (2015), o termo barebacking significa, literalmente, cavalgar ou montar sem cela. Originalmente empregado nos rodeios norte-americanos como uma modalidade de esporte sem proteção, passou a ser usado no contexto da comunidade gay (norte-americana), em meados de 1990, de forma analógica, para designar o sexo sem preservativo. Para Crossley (2002), representa uma estratégia de resistência a um discurso normativo da saúde em relação ao sexo seguro. “São poucas pessoas que pensam desse jeito, mas eu as entendo. Tem muita gente para quem a angústia, o medo de vir a se infectar por HIV, a incerteza se pegou ou se não pegou, causam mais sofrimento psico do que o lidar com uma doença crônica. Então, tem gente que conta que cada vez que ela transava na vida, ela entrava naquele período de 28 dias de janela imunológica do exame, ela ficava paranoica, sem certeza se pegou ou não. Aí elas optam por tentar pegar o vírus logo, porque dessa maneira ela sairia desse sofrimento. O que precisamos fazer quando cruzamos com uma situação dessas é conscientizar a pessoa que é melhor não ter a doença. Não é igual ter a doença e estar tomando o remédio e não ter a doen- 108 HIV ça”, diz o infectologista que trabalha no estudo da PreP Brasil, Rico Vasconcelos. 109 · Posfácio · A ntes de todo o contato que eu tive com essas micro histórias, a palavra Aids me causava um certo tipo de ânsia, como se uma barreira se construísse para me proteger de todos os desenrolares decorrentes da temática. Eu perdia a audição. Perdia a direção... tudo a fim de não falar sobre o assunto. Todas as informações eram negativas. A morte estava nitidamente associada a essa doença. Precisei falar muito sobre o assunto para começar a entender todo o âmbito que circunda a síndrome, e é justamente o que não acontece na sociedade. No anseio em tratar o HIV/AIDS como assunto necessário de debate, fui questionado sobre uma possível apologia a doença. Fui visto com maus olhos por muitos que não entendem, como eu não entendia. Falar sobre, me fez sentir o medo das pessoas que cogitavam que eu me assumiria um soropositivo. Muitas vezes me sentia no lugar de alguém que iria contar o resultado reagente. Pessoas se afastavam, se esquivavam, mudavam de assunto, quando o rumo de uma conversa iniciada com “Qual o seu tema?” tomava lugar nos piores pesadelos da maioria dos gays masculinos. Ver que fui uma forma de acolhimento para as personagens desse livro-reportagem, apenas ouvindo as suas histórias, 111 Fábio Germano me fez pensar o quanto esse assunto precisa ser discutido. Ao meu redor fiz questão de falar em alto e bom som tudo o que ocorria referente ao caminho que foi chegar até aqui. Entender que amigos próximos mudaram suas visões por causa dos debates implementados em noites de muita conversa e vinho, é poder perceber que o que falta para acabar com o terrível monstro que é o preconceito, é o conhecimento. Ele é tão grande e poderoso que eu me senti errado várias vezes durante o percurso de apurar, escrever e editar. Pensei que minha forma de ver a questão por um viés mais realista e menos fantasmagórico, como gostamos de ver, era errado e que de certa forma estava banalizando a temática. Fui e voltei muitas vezes em pensamentos positivos e negativos. Já pensei que estava fazendo uma revolução. Já pensei que estava caçando sarna pra me coçar. Já pensei na desnecessidade do trabalho. Pensei… Pensei… E pensei. E foi esse processo de pensar que me desconstruiu a visão da morte social do soropositivo. Desconstruiu-me o medo de pronunciar a sigla: HIV. Desconstruiu-me o medo em me relacionar, seja uma amizade ou um amor, com alguém que carrega uma versão positiva para a doença. De alguém cheio de si, cheio de certezas, me tornei alguém cheio de nadas. Alguém que assume que não tem conhecimento nenhum sobre coisa alguma. Eu só não posso negar o poder desse vírus pequeno e meketrefe. Ele moldou o meu medo, mas também trouxe luz para o desconhecido. Se o objetivo de um trabalho final é estabilizar, finalizar tudo que foi visto, eu não consegui. Apenas consegui mais 112 HIV dúvidas, mais questionamentos, mais interrogações nessa busca de compreensão por tudo. Saio desse produto com a certeza da definição de preconceito: PRE é sufixo de antes, apriori; conceito é noção/concepção/ideia, está em qualquer dicionário, mas a maioria de nós não compreende. 113