O papel das redes sociais na música independente do Brasil

Propaganda
XIV Congresso Brasileiro de Sociologia
28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro (RJ)
GT25 - Sociologia da Cultura
Coordenação: Rogerio Proença Leite (UFS), Maria Celeste Mira (PUC/SP),
Edson Farias (UNB)
O papel das redes sociais na música independente do Brasil
Arthur Coelho Bezerra
Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós Graduação do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PGSA / IFCS / UFRJ)
Preâmbulo: sobre as transformações na indústria musical
Não é de hoje que a música deixou de ser apenas “arte” para tornar-se também
“negócio”. Desde as décadas de 1920 e 1930, época em que os frankfurtianos
Theodor Adorno e Walter Benjamin escreviam suas críticas ao fetichismo da
cultura, nos acostumamos a ouvir termos como “mercado fonográfico” e “indústria
do entretenimento”.
De lá pra cá, diversas formas de comercialização de produtos e serviços musicais
foram desenvolvidas, incluindo-se a invenção de novos suportes sonoros. Dos
primeiros fonógrafos de Thomas Edison à invenção do vinil, as novas técnicas de
reprodutibilidade promoveram uma grande ampliação do acesso ao produto
fonográfico, fazendo com que amantes de música pudessem levar o som de
orquestras inteiras para casa.
Mas se por um lado o acesso à música foi potencialmente ampliado, a estrutura
comercial da indústria fonográfica percorreu o caminho inverso. Na década de
1990, o domínio dos meios de produção nas mãos de poucas empresas chegou
ao ponto em que, dos 40 bilhões de dólares movimentados em média por ano,
90% encontrava-se concentrado em apenas seis empresas multinacionais
(Canclini, 2002, p. 58).
O Brasil, da mesma forma que nossos hermanos latino-americanos, sofre as
conseqüências desta desigualdade: além das multinacionais Sony, Warner,
Universal e EMI, raras são as empresas deste ramo – salvo exceções como
Biscoito Fino, Deck Disc e a “global” Som Livre – com suficiente capital financeiro
para investir em grandes estratégias de marketing de seus artistas e conseguir
bons contratos de distribuição de seus vídeos e discos. Além disso, práticas
escusas de trocas de serviços e pagamento de propinas para rádios e canais de
televisão – o conhecido jabá – fez com que a grande mídia fechasse as portas
para os artistas que não possuíam contrato com uma das empresas mencionadas.
2
Perto do fim do século XX, inovações tecnológicas no ramo da informática
promoveram profundas alterações nos hábitos de consumo musical dos agentes.
Por um lado, as novíssimas técnicas de reprodutibilidade digital permitiram que
fonogramas fossem replicados em larga escala por qualquer indivíduo – e com a
mesma qualidade dos originais, o que favoreceu a organização de uma poderosa
rede de comércio ilegal de produtos “piratas”. Ao mesmo tempo, a consolidação
de uma rede mundial de computadores interconectados e a possibilidade de
trocas de arquivos no sistema peer-to-peer (de uma pessoa a outra) quebraram o
monopólio de suportes físicos como CD e DVD.
Em paralelo a estas revoluções no âmbito da indústria fonográfica – e, arrisco a
dizer, talvez até fomentadas pelas mesmas – começam a surgir, em diversas
partes do Brasil, iniciativas de organizações autônomas de músicos, produtores e
demais agentes atuantes nos cenários musicais de suas localidades. Cientes da
dificuldade de acesso aos grandes meios de comunicação e de escoamento de
seus principais produtos e serviços – a saber, venda de fonogramas e produção
de espetáculos musicais –, estes agentes criam redes, cooperativas e
associações com diferentes formatos e estratégias de ação, porém sob a égide de
um objetivo comum: aumentar a representatividade de seus núcleos no mercado
musical brasileiro.
A Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin), uma destas redes,
reúne hoje 32 festivais das mais diversas regiões brasileiras, que atingem um
público de pelo menos 300 mil pessoas ao ano, fazendo circular mais de 600
bandas nacionais e internacionais. Somados, estes festivais movimentam uma
quantia superior a cinco milhões de reais ao ano, além de gerar pelo menos três
mil empregos fixos e temporários1.
1
Dados disponíveis em www.abrafin.org (consultado em 06/06/2009)
3
O Circuito Fora do Eixo, outro exemplo de rede associativa, foi concebido por
produtores culturais das cidades de Cuiabá (MT), Rio Branco (AC), Uberlândia
(MG) e Londrina (PR), e hoje conta com quase vinte estados integrados que
fomentam a circulação de bandas, o intercâmbio de tecnologia de produção e o
escoamento de produtos2. Além dos dois exemplos citados, ambos de caráter
nacional, várias outras iniciativas acontecem de forma localizada, como o Espaço
Cubo, em Cuiabá, A Monstro Discos, em Goiânia, a Rede Ceará de Música, a
Cooperativa de Músicos de São Paulo e a Rede Rio Música – que será o fio
condutor do presente artigo.
Metodologia e nota explicativa
Para os objetivos deste trabalho, pretendo abordar o conceito de redes sociais
utilizado por cientistas sociais nos anos 1950 e 1960 para, posteriormente, realizar
uma descrição da Rede Rio Música. A partir desta descrição, acionarei
argumentos de teóricos da chamada “escolha racional” para discutir as motivações
que permeiam a participação de agentes nesta rede, comparando os ditames
desta abordagem ao comportamento prático dos indivíduos participantes da Rede
Rio Música. A proposta subjacente a este método é alcançar um entendimento
mais amplo acerca dos interesses que pautam o comportamento destes agentes.
A escolha de tomar como objeto deste trabalho a Rede Rio Música deve-se à
proximidade que tenho com o grupo, através do trabalho que desempenho como
gestor do projeto Rede Rio Música no Sebrae/RJ. Tal gestão está condicionada a
uma participação ativa em todas as reuniões realizadas, o que me permitiu fazer
algumas observações sobre o comportamento dos indivíduos, além de realizar
uma breve pesquisa que será discutida adiante.
2
Dados disponíveis em www.foradoeixo.org.br/ver.php?Quem-Somos (consultado em 06/06/2009)
4
Sobre o conceito de redes sociais
Muito antes do desenvolvimento de uma rede mundial de computadores, quando
páginas virtuais de relacionamento como Myspace, Facebook e Orkut sequer
existiam, a expressão “redes sociais” já era utilizada por diversos pesquisadores
do comportamento de indivíduos em sociedade. Segundo Clyde Mitchell (1969, p.
1), o uso em estudos britânicos da palavra rede (network), enquanto conceito
analítico e não metafórico, data de 1954. Autores como Elizabeth Bott, Phillip
Mayer e Paul Epstein, dentre outros, desenvolveram estudos nas décadas de
1950 e 1960 sobre redes de familiares, amigos, colegas de trabalho e outros
grupos, com foco nas características das interconexões que pautam as relações
entre os agentes, de forma a explicar o comportamento destes.
As abordagens de cunho estrutural e funcionalista, tão em voga nas décadas de
1940 e 1950, exerceram uma grande influência tanto nas análises sociológicas
behaviouristas quanto em parte da sociologia norte-americana do período. O
comportamento dos agentes, sob esta perspectiva, passava a ser interpretado a
partir de sua participação em grupos e instituições sociais. De acordo com
Mitchell, foi nesta época em que alguns escritores começaram a trabalhar com a
noção de redes sociais, enquanto categoria analítica, para complementar análise
sociológicas e antropológicas (Mitchell, 1969, p. 8).
Ainda segundo Mitchell, o conceito de redes sociais foi acionado no campo das
ciências sociais para dar conta de dois problemas: a comunicação entre os
membros de uma rede, especialmente no tocante a definição de normas, e a
circulação de bens e serviços entre estes membros. Neste último caso,
particularmente interessante aos propósitos do presente trabalho, as análises
sociológicas procuram observar o uso que os agentes fazem de suas conexões
nestas redes com o objetivo de alcançar fins desejáveis.
5
A questão do interesse de indivíduos na participação de uma rede social será
apropriadamente discutida adiante, quando analisarmos a teoria da escolha
racional e suas aplicações na Rede Rio Música. Antes, entretanto, cabe
realizarmos uma breve exposição desta rede.
Sobre a Rede Rio Música
A Rede Rio Música (RRM) foi criada no ano de 2007, a partir de uma demanda da
então recém criada Área de Economia Criativa do Sebrae/RJ – uma instituição
sem fins lucrativos que recebe verbas do governo federal para desenvolver
projetos e serviços de interesse social, com a perspectiva de gerar emprego e
renda para micro e pequenos empreendimentos. Segundo os critérios utilizados
por Elizabeth Bott e Paul Epstein (apud Mitchell, 1969, p. 6), a RRM é considerada
uma rede “aberta” – no caso, a todos que queiram participar de seus encontros
quinzenais e de sua lista de discussão na internet.
Após a realização de reuniões com um primeiro grupo de produtores, músicos,
jornalistas e demais agentes da cadeia produtiva da música, o Sebrae/RJ
disponibilizou serviços de consultoria para a formatação de um planejamento
estratégico tri-anual. A mim, coube realizar a gestão do projeto, processo que
envolveu a distribuição das ações propostas ao longo dos três anos previstos, a
alocação de alguns participantes na coordenadoria das ações e o convite a
empresas e instituições para atuarem em parceria. Atualmente, estes parceiros
incluem universidades e centros de pesquisa como Universidade Veiga de
Almeida, Fundação Getúlio Vargas, Faculdades PUC-Rio e Universidade Estácio
de Sá, além do Instituto Overmundo, da casa de shows Circo Voador, do iMúsica,
da Funarte, do estúdio Arena e da Secretaria Municipal de Cultura.
O objetivo da Rede Rio Música, conforme definido pelos seus próprios
participantes, é “buscar soluções criativas e sustentabilidade para a produção
6
musical do Estado do Rio de Janeiro”. Este objetivo carrega a influência dos
objetivos estratégicos do Sebrae/RJ, valorizando conceitos do “mundo dos
negócios” como empreendedorismo, associativismo e pró-atividade. Neste
sentido, além de ações como produção de eventos de música na cidade e de
circuitos alternativos de shows pelo estado, há também realização de workshops,
ciclos de palestras e debates, participação em feiras de música, missões técnicas
e outras atividades.
Para descrever a RRM de forma apropriada, tomarei como base o levantamento,
realizado por Mitchell, dos estudos de redes sociais realizados até a década de
1960. Nele, o autor lista uma série de características, tanto de ordem morfológica
quanto a partir de critérios interacionistas, que foram utilizadas por diferentes
autores para descrever a estrutura destas redes e o comportamento de seus
membros.
As características morfológicas de uma rede social, referentes à estrutura da rede
em si, são ancoragem, acessibilidade, densidade e alcance. Já as de ordem
interacionista são conteúdo, direção, durabilidade e intensidade, aspectos muitas
vezes cruciais para o entendimento do comportamento social dos agentes em
questão (Mitchell, 1969, p. 20). Veremos adiante como estas características estão
configuradas na Rede Rio Música.
Aspectos morfológicos. Segundo Mitchell, uma rede social deve ser rastreada a
partir de um ponto inicial. Este ponto, denominado ancoragem, é geralmente
representado por um indivíduo específico (1969, p. 13). No caso da Rede Rio
Música, eu mesmo cumpri esta função inicial de ancoragem, agendando e
conduzindo reuniões do grupo e realizando o planejamento, o orçamento, a gestão
e o acompanhamento das ações do projeto. Entretanto, não realizei o trabalho
sozinho: desde o início, contei com o interesse e apoio de Rodrigo Lariú, produtor
e jornalista que participou ativamente do processo de sensibilização do públicoalvo do projeto. O primeiro grupo de participantes, uma vez envolvido com o
7
planejamento estratégico do projeto e com a coordenadoria das primeiras ações
desenvolvidas, formou a chamada “zona primária” desta rede social (Mitchell,
1969, p. 13).
A acessibilidade refere-se ao grau de compactação de uma rede social, medida
pela possibilidade de acesso dos membros uns aos outros. No caso da Rede Rio
Música, esta característica apresenta-se de forma extensa, uma vez que canais de
comunicação tais como celular e Internet são exaustivamente utilizados por seus
participantes. Quanto à densidade, cabe ressaltar que muitas das pessoas
envolvidas possuíam uma rede comum de amizades antes mesmo da formação
da RRM, uma vez que já desenvolviam atividades profissionais ligadas à música.
Entretanto, o conhecimento pessoal de todos, facilitado quando havia entre 15 e
20 pessoas nas reuniões, começa a se transformar com a chegada de muitos
novos membros, aumentando o número de participantes por reunião – de 20 para
50, 60 pessoas, o que dificulta o contato “cara-a-cara”.
Em relação ao alcance, embora todos os participantes tenham algum interesse em
música, pode-se detectar uma considerável heterogeneidade do grupo, que
envolve diferentes tipos de profissionais – músicos, produtores musicais, DJs,
jornalistas, advogados, designers – oriundos de diferentes regiões da cidade do
Rio de Janeiro, contando também com moradores de municípios como Niterói,
Maricá e Petrópolis. Embora a grande maioria dos grupos musicais seja de rock,
existem também representatividades em outros estilos como samba, mpb, música
instrumental etc.
Aspectos interacionistas. De acordo com Mitchell, o conteúdo de uma rede social
refere-se aos “significados que as pessoas de uma rede atribuem aos seus
relacionamentos”, que podem envolver assistência econômica, cooperação
religiosa ou simplesmente amizade (Mitchell, 1969, p. 20). Embora não se deva
perder de vista a presença e importância de aspectos como amizade, status ou
favorecimento pessoal, as transformações que a Rede Rio Música se propõe a
8
operar, conforme apontado em seu planejamento estratégico, estão calcadas em
dois interesses genéricos, sendo um de ordem econômica e um de ordem social, a
saber: o aumento da geração de emprego e renda para seus participantes e o
fortalecimento da cena musical independente como um todo.
Em relação à durabilidade, creio termos esclarecido que não se trata de um
projeto que mobiliza agentes para resolver um problema pontual, mas sim de uma
rede “em uso constante e que representa o caminho para inumeráveis transações”
(Mitchell, 1969, p. 26). A intensidade, por sua vez, refere-se ao “grau no qual
indivíduos estão preparados para honrar suas obrigações”, que reflete diretamente
a “força dos nós que unem as pessoas umas às outras” (Mitchell, 1969, p. 27-28).
No que tange os coordenadores de ações, ou seja, os agentes que assumem
responsabilidades perante a Rede, os comprometimentos adquiridos costumam
ser cumpridos. Cabe destacar que, na maioria dos casos, tais responsabilidades
não são atribuídas, mas sim pleiteadas pelos próprios participantes que, além de
possuírem interesses na realização das ações que coordenam, exercem
cobranças em relação aos seus pares para que estes também honrem seus
compromissos.
Finalmente, a direção de uma rede refere-se à orientação dos relacionamentos
internos, com foco nas demandas que podem ser geradas reciprocamente ou de
um participante a outro. A RRM possui participantes individuais, ou “pessoasfísicas”, e também empresas, “pessoas-jurídicas”, que podem tanto ser
beneficiárias quanto apoiadoras do projeto. A direção, neste caso, varia entre a
posição de quem oferta algo e de quem demanda algo, e traz à tona o conjunto de
interesses envolvidos na participação dos agentes.
Uma vez que a mencionada questão dos interesses é particularmente importante
para este trabalho, discutiremos, a seguir, a teoria da escolha racional e sua
análise a respeito da ação dos indivíduos em grupo.
9
Escolha racional e ação coletiva
A chamada "teoria da escolha racional" caracteriza-se por uma reelaboração do
conceito de racionalidade instrumental, inscrita no pensamento liberal do século
XVII. Os teóricos da escolha racional tendem a adotar uma abordagem particular
para o estudo da ação social, do indivíduo, do organismo social e dos sistemas e
estruturas.
Segundo Bruno Carvalho, tal abordagem possui um "viés normativo caracterizado
por pressupostos comportamentais que circunscrevem as ações dos agentes em
um modelo de maximização das oportunidades pessoais" (Carvalho, 2008, p. 15).
Na modernidade, esta noção se agrega à idéia de consumidor da teoria
econômica, vinculando um caráter estrategista aos agentes que, imbuídos pela
tendência individualista da economia de mercado, estariam constantemente
fazendo cálculos entre o custo despendido em cada ação e a possibilidade de
ganhos futuros.
Carvalho opera uma separação entre racionalidade “fraca” e racionalidade “forte”,
segundo os termos definidos por Donald Green e Ian Shapiro. A racionalidade
“fraca” ressalta a relação entre meios e fins, limitando-se a conceber os indivíduos
como “portadores de uma escala coerente e transitiva de preferências, de modo
que o conteúdo destas não é descrito a priori”. Já o conceito de racionalidade
“forte” descreve as atitudes dos agentes como “fundamentadas na maximização
de bens específicos, dirigidas basicamente para a obtenção de dinheiro, de
prestígio e de poder” (Carvalho, 2008, p. 66).
Embora haja muitas variantes inscritas nesta teoria, o individualismo é um ponto
fundamental para sua compreensão e distinção de outras perspectivas
sociológicas. A teoria da escolha racional parte do ponto de vista do indivíduo e
10
dos interesses a ele circunscritos, e não de várias pessoas interagindo em
conjunto.
Peter Abell enxerga as ações dos indivíduos como sendo otimamente escolhidas
em conformidade com o seu próprio bem-estar – sempre levando em conta as
preferências ideais deste indivíduo e as oportunidades ou limitações que enfrenta.
Segundo o autor, “indivíduos fazem o melhor que podem, dadas suas
preferências, acerca das oportunidades que se lhes apresentam” (Abell, 1996, p.
271).
Neste entendimento, o indivíduo surge como um ator com a preocupação apenas
de si mesmo, mesmo que haja, no meio do caminho, associativismos,
cooperações e definições de normas. A certa altura, Abell pergunta: “os grupos se
formam porque dão às pessoas a oportunidade de servirem ao grupo, ou porque
as pessoas servem a interesses próprios – ou, de fato, pelas duas razões?” (1996,
p. 266). Para o economista Mancur Olson, um dos precursores da teoria da
escolha racional, a resposta é clara: “as organizações ou associações existem
para promover o interesse de seus membros” (Olson, 1999, p. 18).
No livro A Lógica da Ação Coletiva, Olson procura entender os motivos pelos
quais as pessoas organizam-se em grupos. A onipresença de formas de
associativismo entre os seres humanos é explicada como um aspecto “natural”
dos homens, no sentido de uma “fundamental propensão da espécie a formar
associações ou se unir a elas” (Olson, 1999, p. 29). Tais associações remetem às
mais diferentes sociedades primitivas, de maneira que as visões evolucionistas
atribuem a mesma origem ou causa fundamental tanto a estes grupos quanto
àqueles encontrados nas sociedades modernas.
A concepção de ação coletiva que Olson apresenta em seu livro está alicerçada –
como o próprio autor faz questão de lembrar – em alguns pressupostos típicoideais, como a escolha racional orientada para fins capitalistas e o consenso
11
perfeito intrínseco às formas de organização. Olson se vale destas abstrações
para estabelecer uma teoria dos grupos sociais e das organizações, adotando a
premissa de que indivíduos se agregam para solucionar algo que, sozinhos, não
conseguiriam obter.
Embora possamos supor a existência de um interesse comum a todos os
participantes de uma determinada organização, para Olson estes indivíduos
também possuem interesses “puramente individuais, diferentes dos interesses dos
outros membros do mesmo grupo” (Olson, 1999, p. 20). Mais do que isso, a
crença do autor é a de que a ação coletiva nada mais é do que a maximização de
ações individuais. Ao individualismo característico da modernidade, seguir-se-ia
uma forma de ação conduzida pela execução de cálculos altamente reflexivos,
voltados para a relação custo/benefício tão cara aos economistas.
No entendimento do autor, a cooperação entre os homens só seria possível
mediante a constatação de que, se em determinado momento não vierem a
cooperar, estarão colocando em risco a própria consecução daquilo que almejam.
A realização de bens públicos, portanto, estaria na verdade vinculada ao próprio
egoísmo humano e não à idéia de cooperação desinteressada.
É importante frisar que a visão supracitada está longe de ser consensual nas
ciências sociais. Segundo pesquisas realizadas por François Chazel, a busca de
objetivos precede – e não é apenas resultado, como proposto pela teoria de Olson
– a realização de interesses individuais. Logo, “os fins pessoais comportam-se
antes como resultado do que como uma condição necessária para qualquer ação
coletiva” (Carvalho, 2008, p. 76).
Para Chazel, a teoria da escolha racional deveria atentar para as crenças sociais,
pois, em determinado momento, os agentes não possuem expectativa clara sobre
os ganhos pessoais que serão efetivamente alcançados. É exatamente a
centralidade das crenças, desconectadas de uma otimização ou divisão individual,
que permite explicar os mecanismos de emergência e mobilização das
organizações coletivas (Carvalho, 2008, p. 76).
12
Motivações dos participantes da RRM
Para tentar explorar a questão das motivações e interesses na prática, elaborei
uma pesquisa bastante simples, aplicada durante uma das reuniões da Rede Rio
Música. A pesquisa continha apenas duas perguntas, a serem respondidas por
escrito: a primeira, de múltipla escolha, foi relativa à atividade desenvolvida pelo
respondente – se é músico, produtor, jornalista ou “outro”, sendo necessário
discriminar a atividade neste último caso. A segunda pergunta, para ser
respondida discursivamente, foi bastante direta: “quais os motivos que levam você
a participar da Rede Rio Música?”.
Foram entrevistadas 22 pessoas, sendo três jornalistas, dois DJs, um divulgador,
um advogado, um pesquisador, um estudante, oito produtores e 11 músicos.3 Nas
respostas dadas pelos entrevistados, os termos “cadeia produtiva da música” e,
principalmente, “cena musical (independente)” foram amplamente utilizados.
Diversos verbos, todos relacionados a formas de ação, aparecem ligados a estas
expressões: impulsionar, ampliar, movimentar, discutir, observar, estimular,
fortalecer (duas vezes) e participar (seis vezes). A ampla incidência do verbo
“participar”, exatamente o mesmo utilizado na pergunta, mostra como “participar
da Rede Rio Música” significa, para alguns entrevistados, “participar da cena
musical”.
O vocábulo, no entanto, pode significar uma grande variedade de coisas. Para
alguns, tal participação tem um caráter preponderantemente profissional: três
entrevistados apontaram como motivo a geração de oportunidades de negócio,
quatro mencionaram o estabelecimento de contatos (networking) e um ressaltou a
troca de serviços.
3
O número total, maior que 22, se deve ao fato dos entrevistados poderem assinalar mais de uma resposta.
13
Para outros, no entanto, esta troca não necessita ser de serviços, mas sim de
idéias, como mencionaram os dois entrevistados abaixo. A segunda resposta foi
bastante taxativa neste sentido:
Troca de idéias, informações, vejo que existe seriedade, gosto da idéia de todos
trabalhando com o mesmo objetivo (entrevistado, músico e produtor).
Como o nome já diz, REDE, é isso que me faz participar da RRM, encontrar,
conversar, ouvir... comunicação. Me encontrar com as pessoas que fazem música
no RJ, trocar idéias, conhecer novas pessoas (produtores, músicos e DJs). Enfim,
ampliar meus horizontes dentro da perspectiva musical e conseqüentemente
pessoal (entrevistado, DJ).
Já o termo “aprendizagem” surge enquanto valor nas respostas de quatro
entrevistados. A demanda por informação e qualificação também figura no quadro
de interesses apresentado por dois respondentes. Não obstante, a resposta mais
plural acerca das motivações de um entrevistado é a que aparece transcrita
abaixo:
Primeiro de tudo, é porque adoro este clima de pessoas (inter)ligadas, inteligentes
e cabeças pensantes desenvolvendo estratégias para um bem comum. Segundo,
para absorver experiências, terceiro para contribuir com a causa, quarto porque já
tive uma banda e tratava meio amadoristicamente da parte que não era música,
quinto porque agora atuo na área de produção executiva (...) e sexto porque gosto
de vocês e me orgulho de fazer parte do projeto (entrevistado, músico e produtor).
A miríade de motivos apontados revela como é problemática a orientação segundo
a qual os motivos “importantes” são apenas os que abordam status, dinheiro ou
poder. Segundo Carvalho, “múltiplos objetivos acarretam confusão nas decisões
individuais e choques entre alternativas” (Carvalho, 2008, p. 67). Para Anthony
Downs, quando não levamos em consideração a “personalidade inteira de cada
indivíduo”, acabamos por não considerar “a rica diversidade de fins servida por
seus atos, a complexidade de seus motivos, a maneira pela qual toda parte da sua
vida é relacionada com suas necessidades emocionais” (Downs apud Carvalho,
2008, p. 67).
14
Na medida em que permanece indeterminada a esfera dos objetivos individuais, a
perspectiva não propõe o interesse, no sentido de uma maximização de bens
pessoais, como aspecto analítico essencial. O entendimento centra-se apenas na
livre ordenação, desde que coerente e transitiva, de preferências, que podem
valorizar quaisquer benefícios (Carvalho, 2008, p. 70).
Considerações finais
No presente trabalho, realizamos uma descrição detalhada de diversos aspectos
da Rede Rio Música, selecionados a partir de categorias analíticas estabelecidas
por estudiosos do conceito de redes sociais. Com isso, vimos que esta rede foi
formada com uma orientação especificamente voltada para interesses de caráter
econômico.
Entretanto, ao nos deparamos com a pluralidade de motivos declarados por cada
um dos entrevistados para justificar sua participação no grupo, percebemos que
tais razões extrapolam os objetivos que levaram à criação da RRM. Mais que isso,
pudemos observar que os diferentes interesses referentes à atuação destes
agentes colocam em xeque os limites que circunscrevem a teoria da escolha
racional.
O principal problema é que, ao tentar prever qual a escolha racionalmente
adequada que deverá orientar a ação dos indivíduos, a teoria da escolha racional
permanece indecisa entre dois tipos de conduta: aquela relacionada com os
ganhos imediatos de uma troca pessoal ou aquela conectada com os benefícios
relativos e incertos da manipulação de virtudes sociais (Carvalho, 2008, p. 73).
A fim de procurar tanto a agência individual quanto a estrutura de um ambiente
social complexo, os trabalhos da escolha racional tendem a apresentar o conceito
de racionalidade de forma dúbia, sem resolver as ambigüidades das definições
forte e fraca. Na medida em que não indica claramente o que deve ser tomado
como ação racional, a teoria passa a admitir qualquer ação em seu arcabouço,
tornando questionável seu poder de explicação (Carvalho, 2008, p. 74).
15
Conforme explica Max Weber, assim como existem os mais diferentes pontos de
vista, a partir dos quais podemos considerar como significativos os fenômenos que
nos cercam, “pode igualmente fazer-se uso dos mais diferentes princípios de
seleção para as relações suscetíveis de serem integradas no tipo ideal de uma
determinada cultura” (Weber, 1982, p. 105). É neste sentido que concluímos que a
busca por um entendimento amplo acerca das motivações dos indivíduos para
participação em grupos deve transpor o conjunto de valores de ordem econômica
e enxergar além dos interesses ligados ao favorecimento pessoal. Somente desta
forma, o pesquisador será capaz de abarcar um número maior de fatores que lhe
permitam compreender o comportamento dos indivíduos que participam de redes
sociais.
16
Referências bibliográfias:
ABELL, Peter. “Sociological Theory and Rational Choice theory”. In: Turner, Bryan.
The Blackwell companion to social theory. Oxford: Blackwell Publishers Inc, 1996.
CARVALHO, Bruno Sciberras. A escolha racional como teoria social e política:
uma interpretação crítica. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.
CANCLINI, Nestor García. Latinoamericanos buscando lugar em este siglo.
Buenos Aires: Paidós, 2002.
MITCHELL, Clyde. Social networks in urban situations. Manchester: Manchester
University Press, 1969.
OLSON, Mancur. A Lógica da Ação Coletiva. São Paulo: EDUSP, 1999.
WEBER, Max. A ‘objetividade do conhecimento nas ciências sociais”. In: COHN,
Gabriel. Max Weber: Sociologia. São Paulo: Ática, 1982.
17
Download