XIV Congresso Brasileiro de Sociologia 28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro (RJ) GT25 - Sociologia da Cultura Coordenação: Rogerio Proença Leite (UFS), Maria Celeste Mira (PUC/SP), Edson Farias (UNB) O papel das redes sociais na música independente do Brasil Arthur Coelho Bezerra Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PGSA / IFCS / UFRJ) Preâmbulo: sobre as transformações na indústria musical Não é de hoje que a música deixou de ser apenas “arte” para tornar-se também “negócio”. Desde as décadas de 1920 e 1930, época em que os frankfurtianos Theodor Adorno e Walter Benjamin escreviam suas críticas ao fetichismo da cultura, nos acostumamos a ouvir termos como “mercado fonográfico” e “indústria do entretenimento”. De lá pra cá, diversas formas de comercialização de produtos e serviços musicais foram desenvolvidas, incluindo-se a invenção de novos suportes sonoros. Dos primeiros fonógrafos de Thomas Edison à invenção do vinil, as novas técnicas de reprodutibilidade promoveram uma grande ampliação do acesso ao produto fonográfico, fazendo com que amantes de música pudessem levar o som de orquestras inteiras para casa. Mas se por um lado o acesso à música foi potencialmente ampliado, a estrutura comercial da indústria fonográfica percorreu o caminho inverso. Na década de 1990, o domínio dos meios de produção nas mãos de poucas empresas chegou ao ponto em que, dos 40 bilhões de dólares movimentados em média por ano, 90% encontrava-se concentrado em apenas seis empresas multinacionais (Canclini, 2002, p. 58). O Brasil, da mesma forma que nossos hermanos latino-americanos, sofre as conseqüências desta desigualdade: além das multinacionais Sony, Warner, Universal e EMI, raras são as empresas deste ramo – salvo exceções como Biscoito Fino, Deck Disc e a “global” Som Livre – com suficiente capital financeiro para investir em grandes estratégias de marketing de seus artistas e conseguir bons contratos de distribuição de seus vídeos e discos. Além disso, práticas escusas de trocas de serviços e pagamento de propinas para rádios e canais de televisão – o conhecido jabá – fez com que a grande mídia fechasse as portas para os artistas que não possuíam contrato com uma das empresas mencionadas. 2 Perto do fim do século XX, inovações tecnológicas no ramo da informática promoveram profundas alterações nos hábitos de consumo musical dos agentes. Por um lado, as novíssimas técnicas de reprodutibilidade digital permitiram que fonogramas fossem replicados em larga escala por qualquer indivíduo – e com a mesma qualidade dos originais, o que favoreceu a organização de uma poderosa rede de comércio ilegal de produtos “piratas”. Ao mesmo tempo, a consolidação de uma rede mundial de computadores interconectados e a possibilidade de trocas de arquivos no sistema peer-to-peer (de uma pessoa a outra) quebraram o monopólio de suportes físicos como CD e DVD. Em paralelo a estas revoluções no âmbito da indústria fonográfica – e, arrisco a dizer, talvez até fomentadas pelas mesmas – começam a surgir, em diversas partes do Brasil, iniciativas de organizações autônomas de músicos, produtores e demais agentes atuantes nos cenários musicais de suas localidades. Cientes da dificuldade de acesso aos grandes meios de comunicação e de escoamento de seus principais produtos e serviços – a saber, venda de fonogramas e produção de espetáculos musicais –, estes agentes criam redes, cooperativas e associações com diferentes formatos e estratégias de ação, porém sob a égide de um objetivo comum: aumentar a representatividade de seus núcleos no mercado musical brasileiro. A Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin), uma destas redes, reúne hoje 32 festivais das mais diversas regiões brasileiras, que atingem um público de pelo menos 300 mil pessoas ao ano, fazendo circular mais de 600 bandas nacionais e internacionais. Somados, estes festivais movimentam uma quantia superior a cinco milhões de reais ao ano, além de gerar pelo menos três mil empregos fixos e temporários1. 1 Dados disponíveis em www.abrafin.org (consultado em 06/06/2009) 3 O Circuito Fora do Eixo, outro exemplo de rede associativa, foi concebido por produtores culturais das cidades de Cuiabá (MT), Rio Branco (AC), Uberlândia (MG) e Londrina (PR), e hoje conta com quase vinte estados integrados que fomentam a circulação de bandas, o intercâmbio de tecnologia de produção e o escoamento de produtos2. Além dos dois exemplos citados, ambos de caráter nacional, várias outras iniciativas acontecem de forma localizada, como o Espaço Cubo, em Cuiabá, A Monstro Discos, em Goiânia, a Rede Ceará de Música, a Cooperativa de Músicos de São Paulo e a Rede Rio Música – que será o fio condutor do presente artigo. Metodologia e nota explicativa Para os objetivos deste trabalho, pretendo abordar o conceito de redes sociais utilizado por cientistas sociais nos anos 1950 e 1960 para, posteriormente, realizar uma descrição da Rede Rio Música. A partir desta descrição, acionarei argumentos de teóricos da chamada “escolha racional” para discutir as motivações que permeiam a participação de agentes nesta rede, comparando os ditames desta abordagem ao comportamento prático dos indivíduos participantes da Rede Rio Música. A proposta subjacente a este método é alcançar um entendimento mais amplo acerca dos interesses que pautam o comportamento destes agentes. A escolha de tomar como objeto deste trabalho a Rede Rio Música deve-se à proximidade que tenho com o grupo, através do trabalho que desempenho como gestor do projeto Rede Rio Música no Sebrae/RJ. Tal gestão está condicionada a uma participação ativa em todas as reuniões realizadas, o que me permitiu fazer algumas observações sobre o comportamento dos indivíduos, além de realizar uma breve pesquisa que será discutida adiante. 2 Dados disponíveis em www.foradoeixo.org.br/ver.php?Quem-Somos (consultado em 06/06/2009) 4 Sobre o conceito de redes sociais Muito antes do desenvolvimento de uma rede mundial de computadores, quando páginas virtuais de relacionamento como Myspace, Facebook e Orkut sequer existiam, a expressão “redes sociais” já era utilizada por diversos pesquisadores do comportamento de indivíduos em sociedade. Segundo Clyde Mitchell (1969, p. 1), o uso em estudos britânicos da palavra rede (network), enquanto conceito analítico e não metafórico, data de 1954. Autores como Elizabeth Bott, Phillip Mayer e Paul Epstein, dentre outros, desenvolveram estudos nas décadas de 1950 e 1960 sobre redes de familiares, amigos, colegas de trabalho e outros grupos, com foco nas características das interconexões que pautam as relações entre os agentes, de forma a explicar o comportamento destes. As abordagens de cunho estrutural e funcionalista, tão em voga nas décadas de 1940 e 1950, exerceram uma grande influência tanto nas análises sociológicas behaviouristas quanto em parte da sociologia norte-americana do período. O comportamento dos agentes, sob esta perspectiva, passava a ser interpretado a partir de sua participação em grupos e instituições sociais. De acordo com Mitchell, foi nesta época em que alguns escritores começaram a trabalhar com a noção de redes sociais, enquanto categoria analítica, para complementar análise sociológicas e antropológicas (Mitchell, 1969, p. 8). Ainda segundo Mitchell, o conceito de redes sociais foi acionado no campo das ciências sociais para dar conta de dois problemas: a comunicação entre os membros de uma rede, especialmente no tocante a definição de normas, e a circulação de bens e serviços entre estes membros. Neste último caso, particularmente interessante aos propósitos do presente trabalho, as análises sociológicas procuram observar o uso que os agentes fazem de suas conexões nestas redes com o objetivo de alcançar fins desejáveis. 5 A questão do interesse de indivíduos na participação de uma rede social será apropriadamente discutida adiante, quando analisarmos a teoria da escolha racional e suas aplicações na Rede Rio Música. Antes, entretanto, cabe realizarmos uma breve exposição desta rede. Sobre a Rede Rio Música A Rede Rio Música (RRM) foi criada no ano de 2007, a partir de uma demanda da então recém criada Área de Economia Criativa do Sebrae/RJ – uma instituição sem fins lucrativos que recebe verbas do governo federal para desenvolver projetos e serviços de interesse social, com a perspectiva de gerar emprego e renda para micro e pequenos empreendimentos. Segundo os critérios utilizados por Elizabeth Bott e Paul Epstein (apud Mitchell, 1969, p. 6), a RRM é considerada uma rede “aberta” – no caso, a todos que queiram participar de seus encontros quinzenais e de sua lista de discussão na internet. Após a realização de reuniões com um primeiro grupo de produtores, músicos, jornalistas e demais agentes da cadeia produtiva da música, o Sebrae/RJ disponibilizou serviços de consultoria para a formatação de um planejamento estratégico tri-anual. A mim, coube realizar a gestão do projeto, processo que envolveu a distribuição das ações propostas ao longo dos três anos previstos, a alocação de alguns participantes na coordenadoria das ações e o convite a empresas e instituições para atuarem em parceria. Atualmente, estes parceiros incluem universidades e centros de pesquisa como Universidade Veiga de Almeida, Fundação Getúlio Vargas, Faculdades PUC-Rio e Universidade Estácio de Sá, além do Instituto Overmundo, da casa de shows Circo Voador, do iMúsica, da Funarte, do estúdio Arena e da Secretaria Municipal de Cultura. O objetivo da Rede Rio Música, conforme definido pelos seus próprios participantes, é “buscar soluções criativas e sustentabilidade para a produção 6 musical do Estado do Rio de Janeiro”. Este objetivo carrega a influência dos objetivos estratégicos do Sebrae/RJ, valorizando conceitos do “mundo dos negócios” como empreendedorismo, associativismo e pró-atividade. Neste sentido, além de ações como produção de eventos de música na cidade e de circuitos alternativos de shows pelo estado, há também realização de workshops, ciclos de palestras e debates, participação em feiras de música, missões técnicas e outras atividades. Para descrever a RRM de forma apropriada, tomarei como base o levantamento, realizado por Mitchell, dos estudos de redes sociais realizados até a década de 1960. Nele, o autor lista uma série de características, tanto de ordem morfológica quanto a partir de critérios interacionistas, que foram utilizadas por diferentes autores para descrever a estrutura destas redes e o comportamento de seus membros. As características morfológicas de uma rede social, referentes à estrutura da rede em si, são ancoragem, acessibilidade, densidade e alcance. Já as de ordem interacionista são conteúdo, direção, durabilidade e intensidade, aspectos muitas vezes cruciais para o entendimento do comportamento social dos agentes em questão (Mitchell, 1969, p. 20). Veremos adiante como estas características estão configuradas na Rede Rio Música. Aspectos morfológicos. Segundo Mitchell, uma rede social deve ser rastreada a partir de um ponto inicial. Este ponto, denominado ancoragem, é geralmente representado por um indivíduo específico (1969, p. 13). No caso da Rede Rio Música, eu mesmo cumpri esta função inicial de ancoragem, agendando e conduzindo reuniões do grupo e realizando o planejamento, o orçamento, a gestão e o acompanhamento das ações do projeto. Entretanto, não realizei o trabalho sozinho: desde o início, contei com o interesse e apoio de Rodrigo Lariú, produtor e jornalista que participou ativamente do processo de sensibilização do públicoalvo do projeto. O primeiro grupo de participantes, uma vez envolvido com o 7 planejamento estratégico do projeto e com a coordenadoria das primeiras ações desenvolvidas, formou a chamada “zona primária” desta rede social (Mitchell, 1969, p. 13). A acessibilidade refere-se ao grau de compactação de uma rede social, medida pela possibilidade de acesso dos membros uns aos outros. No caso da Rede Rio Música, esta característica apresenta-se de forma extensa, uma vez que canais de comunicação tais como celular e Internet são exaustivamente utilizados por seus participantes. Quanto à densidade, cabe ressaltar que muitas das pessoas envolvidas possuíam uma rede comum de amizades antes mesmo da formação da RRM, uma vez que já desenvolviam atividades profissionais ligadas à música. Entretanto, o conhecimento pessoal de todos, facilitado quando havia entre 15 e 20 pessoas nas reuniões, começa a se transformar com a chegada de muitos novos membros, aumentando o número de participantes por reunião – de 20 para 50, 60 pessoas, o que dificulta o contato “cara-a-cara”. Em relação ao alcance, embora todos os participantes tenham algum interesse em música, pode-se detectar uma considerável heterogeneidade do grupo, que envolve diferentes tipos de profissionais – músicos, produtores musicais, DJs, jornalistas, advogados, designers – oriundos de diferentes regiões da cidade do Rio de Janeiro, contando também com moradores de municípios como Niterói, Maricá e Petrópolis. Embora a grande maioria dos grupos musicais seja de rock, existem também representatividades em outros estilos como samba, mpb, música instrumental etc. Aspectos interacionistas. De acordo com Mitchell, o conteúdo de uma rede social refere-se aos “significados que as pessoas de uma rede atribuem aos seus relacionamentos”, que podem envolver assistência econômica, cooperação religiosa ou simplesmente amizade (Mitchell, 1969, p. 20). Embora não se deva perder de vista a presença e importância de aspectos como amizade, status ou favorecimento pessoal, as transformações que a Rede Rio Música se propõe a 8 operar, conforme apontado em seu planejamento estratégico, estão calcadas em dois interesses genéricos, sendo um de ordem econômica e um de ordem social, a saber: o aumento da geração de emprego e renda para seus participantes e o fortalecimento da cena musical independente como um todo. Em relação à durabilidade, creio termos esclarecido que não se trata de um projeto que mobiliza agentes para resolver um problema pontual, mas sim de uma rede “em uso constante e que representa o caminho para inumeráveis transações” (Mitchell, 1969, p. 26). A intensidade, por sua vez, refere-se ao “grau no qual indivíduos estão preparados para honrar suas obrigações”, que reflete diretamente a “força dos nós que unem as pessoas umas às outras” (Mitchell, 1969, p. 27-28). No que tange os coordenadores de ações, ou seja, os agentes que assumem responsabilidades perante a Rede, os comprometimentos adquiridos costumam ser cumpridos. Cabe destacar que, na maioria dos casos, tais responsabilidades não são atribuídas, mas sim pleiteadas pelos próprios participantes que, além de possuírem interesses na realização das ações que coordenam, exercem cobranças em relação aos seus pares para que estes também honrem seus compromissos. Finalmente, a direção de uma rede refere-se à orientação dos relacionamentos internos, com foco nas demandas que podem ser geradas reciprocamente ou de um participante a outro. A RRM possui participantes individuais, ou “pessoasfísicas”, e também empresas, “pessoas-jurídicas”, que podem tanto ser beneficiárias quanto apoiadoras do projeto. A direção, neste caso, varia entre a posição de quem oferta algo e de quem demanda algo, e traz à tona o conjunto de interesses envolvidos na participação dos agentes. Uma vez que a mencionada questão dos interesses é particularmente importante para este trabalho, discutiremos, a seguir, a teoria da escolha racional e sua análise a respeito da ação dos indivíduos em grupo. 9 Escolha racional e ação coletiva A chamada "teoria da escolha racional" caracteriza-se por uma reelaboração do conceito de racionalidade instrumental, inscrita no pensamento liberal do século XVII. Os teóricos da escolha racional tendem a adotar uma abordagem particular para o estudo da ação social, do indivíduo, do organismo social e dos sistemas e estruturas. Segundo Bruno Carvalho, tal abordagem possui um "viés normativo caracterizado por pressupostos comportamentais que circunscrevem as ações dos agentes em um modelo de maximização das oportunidades pessoais" (Carvalho, 2008, p. 15). Na modernidade, esta noção se agrega à idéia de consumidor da teoria econômica, vinculando um caráter estrategista aos agentes que, imbuídos pela tendência individualista da economia de mercado, estariam constantemente fazendo cálculos entre o custo despendido em cada ação e a possibilidade de ganhos futuros. Carvalho opera uma separação entre racionalidade “fraca” e racionalidade “forte”, segundo os termos definidos por Donald Green e Ian Shapiro. A racionalidade “fraca” ressalta a relação entre meios e fins, limitando-se a conceber os indivíduos como “portadores de uma escala coerente e transitiva de preferências, de modo que o conteúdo destas não é descrito a priori”. Já o conceito de racionalidade “forte” descreve as atitudes dos agentes como “fundamentadas na maximização de bens específicos, dirigidas basicamente para a obtenção de dinheiro, de prestígio e de poder” (Carvalho, 2008, p. 66). Embora haja muitas variantes inscritas nesta teoria, o individualismo é um ponto fundamental para sua compreensão e distinção de outras perspectivas sociológicas. A teoria da escolha racional parte do ponto de vista do indivíduo e 10 dos interesses a ele circunscritos, e não de várias pessoas interagindo em conjunto. Peter Abell enxerga as ações dos indivíduos como sendo otimamente escolhidas em conformidade com o seu próprio bem-estar – sempre levando em conta as preferências ideais deste indivíduo e as oportunidades ou limitações que enfrenta. Segundo o autor, “indivíduos fazem o melhor que podem, dadas suas preferências, acerca das oportunidades que se lhes apresentam” (Abell, 1996, p. 271). Neste entendimento, o indivíduo surge como um ator com a preocupação apenas de si mesmo, mesmo que haja, no meio do caminho, associativismos, cooperações e definições de normas. A certa altura, Abell pergunta: “os grupos se formam porque dão às pessoas a oportunidade de servirem ao grupo, ou porque as pessoas servem a interesses próprios – ou, de fato, pelas duas razões?” (1996, p. 266). Para o economista Mancur Olson, um dos precursores da teoria da escolha racional, a resposta é clara: “as organizações ou associações existem para promover o interesse de seus membros” (Olson, 1999, p. 18). No livro A Lógica da Ação Coletiva, Olson procura entender os motivos pelos quais as pessoas organizam-se em grupos. A onipresença de formas de associativismo entre os seres humanos é explicada como um aspecto “natural” dos homens, no sentido de uma “fundamental propensão da espécie a formar associações ou se unir a elas” (Olson, 1999, p. 29). Tais associações remetem às mais diferentes sociedades primitivas, de maneira que as visões evolucionistas atribuem a mesma origem ou causa fundamental tanto a estes grupos quanto àqueles encontrados nas sociedades modernas. A concepção de ação coletiva que Olson apresenta em seu livro está alicerçada – como o próprio autor faz questão de lembrar – em alguns pressupostos típicoideais, como a escolha racional orientada para fins capitalistas e o consenso 11 perfeito intrínseco às formas de organização. Olson se vale destas abstrações para estabelecer uma teoria dos grupos sociais e das organizações, adotando a premissa de que indivíduos se agregam para solucionar algo que, sozinhos, não conseguiriam obter. Embora possamos supor a existência de um interesse comum a todos os participantes de uma determinada organização, para Olson estes indivíduos também possuem interesses “puramente individuais, diferentes dos interesses dos outros membros do mesmo grupo” (Olson, 1999, p. 20). Mais do que isso, a crença do autor é a de que a ação coletiva nada mais é do que a maximização de ações individuais. Ao individualismo característico da modernidade, seguir-se-ia uma forma de ação conduzida pela execução de cálculos altamente reflexivos, voltados para a relação custo/benefício tão cara aos economistas. No entendimento do autor, a cooperação entre os homens só seria possível mediante a constatação de que, se em determinado momento não vierem a cooperar, estarão colocando em risco a própria consecução daquilo que almejam. A realização de bens públicos, portanto, estaria na verdade vinculada ao próprio egoísmo humano e não à idéia de cooperação desinteressada. É importante frisar que a visão supracitada está longe de ser consensual nas ciências sociais. Segundo pesquisas realizadas por François Chazel, a busca de objetivos precede – e não é apenas resultado, como proposto pela teoria de Olson – a realização de interesses individuais. Logo, “os fins pessoais comportam-se antes como resultado do que como uma condição necessária para qualquer ação coletiva” (Carvalho, 2008, p. 76). Para Chazel, a teoria da escolha racional deveria atentar para as crenças sociais, pois, em determinado momento, os agentes não possuem expectativa clara sobre os ganhos pessoais que serão efetivamente alcançados. É exatamente a centralidade das crenças, desconectadas de uma otimização ou divisão individual, que permite explicar os mecanismos de emergência e mobilização das organizações coletivas (Carvalho, 2008, p. 76). 12 Motivações dos participantes da RRM Para tentar explorar a questão das motivações e interesses na prática, elaborei uma pesquisa bastante simples, aplicada durante uma das reuniões da Rede Rio Música. A pesquisa continha apenas duas perguntas, a serem respondidas por escrito: a primeira, de múltipla escolha, foi relativa à atividade desenvolvida pelo respondente – se é músico, produtor, jornalista ou “outro”, sendo necessário discriminar a atividade neste último caso. A segunda pergunta, para ser respondida discursivamente, foi bastante direta: “quais os motivos que levam você a participar da Rede Rio Música?”. Foram entrevistadas 22 pessoas, sendo três jornalistas, dois DJs, um divulgador, um advogado, um pesquisador, um estudante, oito produtores e 11 músicos.3 Nas respostas dadas pelos entrevistados, os termos “cadeia produtiva da música” e, principalmente, “cena musical (independente)” foram amplamente utilizados. Diversos verbos, todos relacionados a formas de ação, aparecem ligados a estas expressões: impulsionar, ampliar, movimentar, discutir, observar, estimular, fortalecer (duas vezes) e participar (seis vezes). A ampla incidência do verbo “participar”, exatamente o mesmo utilizado na pergunta, mostra como “participar da Rede Rio Música” significa, para alguns entrevistados, “participar da cena musical”. O vocábulo, no entanto, pode significar uma grande variedade de coisas. Para alguns, tal participação tem um caráter preponderantemente profissional: três entrevistados apontaram como motivo a geração de oportunidades de negócio, quatro mencionaram o estabelecimento de contatos (networking) e um ressaltou a troca de serviços. 3 O número total, maior que 22, se deve ao fato dos entrevistados poderem assinalar mais de uma resposta. 13 Para outros, no entanto, esta troca não necessita ser de serviços, mas sim de idéias, como mencionaram os dois entrevistados abaixo. A segunda resposta foi bastante taxativa neste sentido: Troca de idéias, informações, vejo que existe seriedade, gosto da idéia de todos trabalhando com o mesmo objetivo (entrevistado, músico e produtor). Como o nome já diz, REDE, é isso que me faz participar da RRM, encontrar, conversar, ouvir... comunicação. Me encontrar com as pessoas que fazem música no RJ, trocar idéias, conhecer novas pessoas (produtores, músicos e DJs). Enfim, ampliar meus horizontes dentro da perspectiva musical e conseqüentemente pessoal (entrevistado, DJ). Já o termo “aprendizagem” surge enquanto valor nas respostas de quatro entrevistados. A demanda por informação e qualificação também figura no quadro de interesses apresentado por dois respondentes. Não obstante, a resposta mais plural acerca das motivações de um entrevistado é a que aparece transcrita abaixo: Primeiro de tudo, é porque adoro este clima de pessoas (inter)ligadas, inteligentes e cabeças pensantes desenvolvendo estratégias para um bem comum. Segundo, para absorver experiências, terceiro para contribuir com a causa, quarto porque já tive uma banda e tratava meio amadoristicamente da parte que não era música, quinto porque agora atuo na área de produção executiva (...) e sexto porque gosto de vocês e me orgulho de fazer parte do projeto (entrevistado, músico e produtor). A miríade de motivos apontados revela como é problemática a orientação segundo a qual os motivos “importantes” são apenas os que abordam status, dinheiro ou poder. Segundo Carvalho, “múltiplos objetivos acarretam confusão nas decisões individuais e choques entre alternativas” (Carvalho, 2008, p. 67). Para Anthony Downs, quando não levamos em consideração a “personalidade inteira de cada indivíduo”, acabamos por não considerar “a rica diversidade de fins servida por seus atos, a complexidade de seus motivos, a maneira pela qual toda parte da sua vida é relacionada com suas necessidades emocionais” (Downs apud Carvalho, 2008, p. 67). 14 Na medida em que permanece indeterminada a esfera dos objetivos individuais, a perspectiva não propõe o interesse, no sentido de uma maximização de bens pessoais, como aspecto analítico essencial. O entendimento centra-se apenas na livre ordenação, desde que coerente e transitiva, de preferências, que podem valorizar quaisquer benefícios (Carvalho, 2008, p. 70). Considerações finais No presente trabalho, realizamos uma descrição detalhada de diversos aspectos da Rede Rio Música, selecionados a partir de categorias analíticas estabelecidas por estudiosos do conceito de redes sociais. Com isso, vimos que esta rede foi formada com uma orientação especificamente voltada para interesses de caráter econômico. Entretanto, ao nos deparamos com a pluralidade de motivos declarados por cada um dos entrevistados para justificar sua participação no grupo, percebemos que tais razões extrapolam os objetivos que levaram à criação da RRM. Mais que isso, pudemos observar que os diferentes interesses referentes à atuação destes agentes colocam em xeque os limites que circunscrevem a teoria da escolha racional. O principal problema é que, ao tentar prever qual a escolha racionalmente adequada que deverá orientar a ação dos indivíduos, a teoria da escolha racional permanece indecisa entre dois tipos de conduta: aquela relacionada com os ganhos imediatos de uma troca pessoal ou aquela conectada com os benefícios relativos e incertos da manipulação de virtudes sociais (Carvalho, 2008, p. 73). A fim de procurar tanto a agência individual quanto a estrutura de um ambiente social complexo, os trabalhos da escolha racional tendem a apresentar o conceito de racionalidade de forma dúbia, sem resolver as ambigüidades das definições forte e fraca. Na medida em que não indica claramente o que deve ser tomado como ação racional, a teoria passa a admitir qualquer ação em seu arcabouço, tornando questionável seu poder de explicação (Carvalho, 2008, p. 74). 15 Conforme explica Max Weber, assim como existem os mais diferentes pontos de vista, a partir dos quais podemos considerar como significativos os fenômenos que nos cercam, “pode igualmente fazer-se uso dos mais diferentes princípios de seleção para as relações suscetíveis de serem integradas no tipo ideal de uma determinada cultura” (Weber, 1982, p. 105). É neste sentido que concluímos que a busca por um entendimento amplo acerca das motivações dos indivíduos para participação em grupos deve transpor o conjunto de valores de ordem econômica e enxergar além dos interesses ligados ao favorecimento pessoal. Somente desta forma, o pesquisador será capaz de abarcar um número maior de fatores que lhe permitam compreender o comportamento dos indivíduos que participam de redes sociais. 16 Referências bibliográfias: ABELL, Peter. “Sociological Theory and Rational Choice theory”. In: Turner, Bryan. The Blackwell companion to social theory. Oxford: Blackwell Publishers Inc, 1996. CARVALHO, Bruno Sciberras. A escolha racional como teoria social e política: uma interpretação crítica. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008. CANCLINI, Nestor García. Latinoamericanos buscando lugar em este siglo. Buenos Aires: Paidós, 2002. MITCHELL, Clyde. Social networks in urban situations. Manchester: Manchester University Press, 1969. OLSON, Mancur. A Lógica da Ação Coletiva. São Paulo: EDUSP, 1999. WEBER, Max. A ‘objetividade do conhecimento nas ciências sociais”. In: COHN, Gabriel. Max Weber: Sociologia. São Paulo: Ática, 1982. 17