0.9 A electrostática de meios materiais

Propaganda
0.9. A ELECTROSTÁTICA DE MEIOS MATERIAIS
0.9
35
A electrostática de meios materiais
Como sabemos, a matéria vulgar é composta de átomos, os quais são constituı́dos por um
núcleo maciço de carga positiva e por electrões de carga negativa. A massa dos electrões é
quase duas mil vezes inferior à massa do núcleo mais leve (o do átomo de hidrogénio, composto de um único protão), pelo que não é de estranhar que as propriedades dos materiais
sejam determinadas sobretudo pela estrutura electrónica dos materiais, permanecendo os
núcleos em posições relativamente estáveis. As propriedades eléctricas/electrónicas dos
materiais10 decorrem das propriedades dos átomos que os constituem e da forma como
estes átomos estabelecem ligações (de natureza electrostática) entre si, sobretudo através
dos electrões das camadas atómicas mais externas (electrões de valência).
A compreensão das propriedades dos materiais não pode pois ser levada a cabo sem o
estudo do comportamento dos electrões, o que exige a intervenção da mecânica quântica.
Um dos resultados principais da teoria quântica de sólidos consiste na quantificação dos
nı́veis de energia dos electrões em bandas de energia, quase-contı́nuas. Uma distinção
básica surge então entre os materiais cujas bandas se encontram completamente preenchidas e os materiais em que tal não acontece. No caso em que as bandas se encontram completamente preenchidas, a condução eléctrica não é possı́vel e os materiais são isoladores
eléctricos; havendo nı́veis de energia por ocupar dentro das bandas, torna-se possı́vel a
condução eléctrica através da promoção dos electrões para esses nı́veis, e os materiais
são condutores eléctricos, designando-se esses electrões por electrões de condução e essas
bandas por bandas de condução. Os electrões de condução têm pois a possibilidade de se
movimentar pelo material, razão pela qual são também designados por electrões ”livres”.11
Do ponto de vista macroscópico, as propriedades destas duas classes importantes de
materiais podem ser compreendidas e descritas adequadamente com o recurso às leis fundamentais da electrostática complementadas por esta ideia básica: os condutores dispõem
de electrões livres; os isoladores não, estando os electrões essencialmente localizados nos
átomos, embora a aplicação de campos eléctricos possa originar o aparecimento de dipolos
eléctricos à escala atómica.
10
E as propriedades mecânicas, térmicas, ópticas e magnéticas...
Esta brevı́ssima introdução deixa obviamente quase tudo por explicar, em particular a existência de
materiais com propriedades semicondutoras ou a condução em liquı́dos como os electrólitos... Somente
como curiosidade, acrescente-se que os semicondutores podem ser pensados como isoladores em que
a Natureza ou o fı́sico/engenheiro arranjou forma de controlar a promoção electrões para a bandas
de condução. Quanto aos electrólitos, os iões desempenham aqui um papel fundamental na condução
eléctrica.
11
36
0.9.1
Materiais condutores
Conforme apontámos, a ideia básica que justifica as propriedades eléctricas dos materiais
condutores é a existência de electrões livres. Desta propriedade e das leis básicas da
electrostática podem ser extrı́das consequências de grande alcance.
Condutores em equilı́brio electrostático
Por equilı́brio electrostático entende-se a situação em que não ocorre movimentação de
cargas de um ponto de vista macroscópico, isto é, não existem correntes eléctricas a circular no material. No entanto, uma vez que os condutores possuem electrões de conducão,
livres de se movimentar sob a acção de um campo eléctrico, a condição de equilı́brio
electrostático corresponde pois a afirmar que o campo eléctrico no interior do material
condutor é nulo:
E = 0, no interior de um condutor em equilı́brio electrostático
(117)
donde resulta imediatamente, da lei de Gauss (55) e do facto de o campo ser conservativo (ver a eq. 70):
ρ = 0
V = constante
(118)
Cavidades no interior de condutores
Obviamente, se existirem cavidades no interior dos condutores, nada impede que o
campo eléctrico no seu interior assuma um valor qualquer, em função das cargas que
existam na cavidade. No entanto, numa situação estática, as cargas livres no interior do
condutor rearranjam-se quase instantaneamente de forma a garantir que o campo eléctrico
permaneça nulo no interior (ou, por outras palavras, enquanto o campo não for nulo no
interior do condutor, este não terá atingido a situação de equilı́brio electrostático...). A
lei de Gauss permite-nos extrair algumas conclusões imediatas sobre este rearranjo:
• a densidade de carga continua a ser nula em equilı́brio, pelo que a haver distribuição
de cargas, terá que ocorrer à superfı́cie do condutor;
• se considerarmos uma superfı́cie de Gauss contida no volume do condutor (cf. fig
6), E = 0 implica que o fluxo através da superfı́cie de Gauss é nulo, pelo que a carga
total contida na superfı́cie de Gauss é também nula, para qualquer superfı́cie de
Gauss contida no volume; então, havendo uma carga não nula na cavidade, haverá
necessariamente uma carga total na superfı́cie interior do condutor que a cancela
exactamente.
0.9. A ELECTROSTÁTICA DE MEIOS MATERIAIS
37
E=0
E¹ 0
Figure 6: Uma cavidade no interior de um condutor, supondo-se que existem cargas
na cavidade que justifiquem E = 0 na cavidade. No entanto, no interior do condutor em
equilı́brio o campo continua a ser nulo, o que se justifica por uma redistribuição de cargas.
• do argumento anterior, segue-se necessariamente que haja uma acumulação de carga
na superfı́cie exterior do condutor; se o condutor estiver inicialmente neutro, a
carga acumulada na superfı́cie exterior é simétrica da carga acumulada na superfı́cie
interior.
Então, uma vez que as cargas num condutor se distribuem à superfı́cie, aplicam-se as
conclusões gerais que extraı́mos para o campo nas superfı́cies de carga:
• a continuidade das componentes do campo paralelas à superfı́cie implica, sendo
E = 0 no interior, que o campo no exterior no tenha componente paralela, isto é,
o campo no exterior de um condutor é sempre perpendicular à superfı́cie.12 Daqui
segue-se imediatamente que a superfı́cie de um condutor em equilı́brio electrostático
é uma superfı́cie equipotencial.
• a descontinuidade das componentes do campo perpendiculares à superfı́cie implica,
sendo E = 0 no interior, que o campo no exterior é σ/0 , sendo σ a densidade
superficial em cada ponto da superfı́cie.
12
Este resultado também se pode compreender da seguinte forma: se houvesse componente do campo
paralela à superfı́cie num condutor em equilı́brio, esta componente forçaria as cargas livres da superfı́cie
a uma corrente superficial, e portanto não se verificaria a condição de equilı́brio.
38
Gaiola de Faraday
Note-se que, no caso em que não existe inicialmente carga no interior da cavidade
de um condutor, então o campo eléctrico no seu interior permanece sempre nulo, independentemente do campo electrostático existente no exterior do condutor. Uma forma de
proteger zonas do espaço da acção de campos electrostáticos, consiste pois em rodeá-las
de um material condutor. Este procedimento é designado por gaiola de Faraday.
Efeito de pontas
Note-se que a densidade de carga à superfı́cie do condutor não é necessariamente
constante e varia com o raio de curvatura. Podemos aperceber-nos disso através do modelo
simples esquematizado na fig. 7, que representa duas esferas condutoras carregadas ligadas
por um fino fio condutor, o qual assegura que as duas superfı́cies formam uma única
superfı́cie condutora equipotencial. Sendo V = kq/r o potencial à superfı́cie de uma
esfera, temos assim:
ra
rb
Figure 7: Duas esferas condutoras de raios ra e rb , ligadas por um fino fio condutor.
k
Qa
Qb
Qa
ra
=k
⇔
=
ra
rb
Qb
rb
(119)
A densidade superficial de carga em cada da esferas relaciona-se então por:
σa
=
σb
Qa
4πra2
Qb
4πrb2
=
Qa rb2
rb
=
2
Qb ra
ra
(120)
Então, sendo o campo à superfı́cie E = σ/0 , a relação entre os campos à superfı́cie
de cada uma das esferas é:
Ea
σa
rb
=
=
Eb
σb
ra
(121)
0.9. A ELECTROSTÁTICA DE MEIOS MATERIAIS
39
A relações (119), (120) e (121) dão-nos um conjunto de informações extremamente
relevantes e práticas:
• da equação (119) resulta que a carga tende a acumular-se na esfera de raio maior;
uma forma de escoar carga indesejada de superfı́cies condutoras consiste pois em
ligar essas superfı́cies a objectos condutores que sejam muito maiores (ligar à Terra);
um condutor ligado à Terra permanece assim com uma carga praticamente nula à
superfı́cie e funciona assim como uma gaiola de Faraday invertida, protegendo o
exterior de quaisquer campos eléctrostáticos existentes nas suas cavidades.
• a densidade de carga, e logo o campo eléctrico, é muito mais intenso na proximidade
de superfı́cies de raio pequeno (e logo com uma curvatura elevada, como acontece
numa ponta). Este efeito também é designado efeito de pontas: o campo eléctrico
é particularmente intenso nas proximidades de uma ponta carregada. Este efeito
é abundantemente usado em conjunção com a ruptura dieléctrica de um isolador
(que abordaremos mais adiante) em diversas aplicações tecnológicas: por exemplo,
junto da ponta de um pára-raios o campo é suficientemente intenso para tornar o ar
condutor nas proximidades, o que o torna um caminho preferencial para a descarga
do raio; a carga acumulada na superfı́cie dos aviões também é descarregada para a
atmosfera através de pequenas pontas metálicas instaladas na fuselagem. Durante
estas descargas ocorre a ionização do ar e correspondente emissão de luz. 13
13
Estes fenómenos de luminescência são conhecidos dos marinheiros desde a antiguidade, pois são
observados junto das pontas dos mastros, recebendo por vezes a designação de ”fogo de Sant’Elmo”.
Recorde-se que Camões descreve brevemente o fenómeno n’Os Lusı́adas
Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marı́tima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
Canto V, 18
Download