Filosofia da educação e pesquisa educacional: movimentos em

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José Pedro Boufleuer, Paulo Evaldo Fensterseifer
Filosofia da educação e pesquisa educacional:
movimentos em direção ao diálogo
José Pedro Boufleuer*
Paulo Evaldo Fensterseifer**
Resumo
Partindo da noção de “interlocução de saberes” como modo desejável de articulação dos diferentes
campos disciplinares que pretendem oferecer contribuições para o campo da pesquisa educacional, o presente artigo busca situar os âmbitos da filosofia e da educação na perspectiva de qualificá-los como polos dialogantes e em movimento de aproximação. Nesse sentido, reflete sobre o que
se põe do lado da educação e do lado da filosofia como campos específicos do saber, cada qual
com suas tarefas e seus desafios, e na perspectiva de um diálogo fecundo. Na sequência, o artigo
aponta para alguns movimentos de aproximação entre a filosofia da educação e a pesquisa educacional, considerando dimensões como a historicidade de todo o conhecimento, a constituição de
competências específicas em cada campo de saber, a disposição para a crítica, movimentos que se
orientam por uma noção de racionalidade que se amplia por meio dos espaços de entendimento
intersubjetivo e que se põem na perspectiva de um modo de filosofar já não mais metafísico.
Palavras-chave: Filosofia da educação. Pensamento pós-metafísico. Pesquisa educacional. Teoria
educacional.
Recebido: 2/02/2016 – Aprovado: 13/06/2016
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v23i2.6534
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Docente do Programa de Pós-Graduação em
Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. E-mail: jospebou@
unijui.edu.br
**
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação
nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]
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Filosofia da educação e pesquisa educacional: movimentos em direção ao diálogo
Introdução
A chamada de artigos para a composição deste dossiê que integra o presente
número da Revista Espaço Pedagógico foi motivada, ao que tudo indica, por um
debate estabelecido no âmbito do Grupo de Trabalho Filosofia da Educação, da Associação Nacional de Pós-Graduação, Pesquisa e Educação. Na edição de 2015 da
reunião nacional da entidade, realizada em outubro, na cidade de Florianópolis, a
temática que motiva este chamado de textos foi também a que instigou a encomenda do minicurso conduzido pelo professor Claudio Almir Dalbosco (Universidade de
Passo Fundo): As relações entre filosofia da educação e pesquisa educacional. Um
dos objetivos desse minicurso foi o de orientar algumas ações desse grupo de trabalho nos próximos anos, o que significou, também, instigar seus membros a realizar
investigações acerca da temática nos próximos anos. Assim, e de acordo com o
relatório da 37ª Reunião Anual encaminhado pela coordenação do respectivo grupo
de trabalho, o “minicurso tratou de questões urgentes no campo educacional, em
geral, e no campo da filosofia da educação, em particular: O que seria propriamente
uma questão educacional? O que seria uma questão educacional do ponto de vista
filosófico? Como enfrentar a fragilidade teórica do campo investigativo educacional
e o que isso representa na formação das novas gerações de pesquisadores?”1
Instigados a entrarmos nesse debate e, agora, em face do convite que nos foi
feito, impossibilitados de fugir desse, comparecemos com as “ferramentas” de pensamento das quais temos feito uso ao longo desses últimos anos em aulas que ministramos conjuntamente no Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciên­
cias da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul e em
diversos ensaios teóricos em que nos arriscamos a apresentar nossas percepções do
campo filosófico e educacional, sempre ao modo de algumas pretensões de validez.
Com o subtítulo deste texto – movimentos em direção ao diálogo –, pretendemos sinalizar para determinados pressupostos e algumas condições que acreditamos fundamentais para a criação de um contexto propício ao diálogo, não só entre
a filosofia da educação e a pesquisa educacional, mas também entre os diversos outros campos do saber que pretendem oferecer suas contribuições para a educação.
Os movimentos que sinalizamos se sustentam em uma compreensão do caráter
do conhecimento humano que parte significativa da filosofia contemporânea tem
produzido, a partir do que se torna possível estabelecer indicativos para uma interlocução qualificada entre as diversas ciências que, de alguma forma, têm algo a
dizer sobre os processos de aprendizagem humana, em especial os implementados
por meio de instituições formais de educação.
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A inspiração inicial nos vem do saudoso mestre Mario Osorio Marques. Convidado a escrever um capítulo para o livro em homenagem ao filósofo Ernildo Stein,
lançado por ocasião do seu aniversário de 60 anos, bem ao seu estilo conciso de
expressar no título tudo o que o seu texto passaria a dizer, escreveu: “O educador
recorre ao filósofo: um depoimento”. No texto que segue, após rápida justificativa
do próprio título, há um depoimento de como um educador, no caso, ele próprio,
pode compreender melhor certas questões do seu campo de atuação valendo-se
das rigorosas reflexões empreendidas pelo filósofo, compreendido como aquele que
nutre o seu pensamento lendo “os filósofos da tradição e os contemporâneos, sem
nunca deixar de se ocupar com o que têm eles a dizer aos homens de nosso tempo
e com a produção filosófica própria, desde o lugar social em que entre nós se situa”
(MARQUES, 1996, p. 530).
Não é o caso de aqui indicar acerca de quais questões ou temas o nosso mestre
educador aprendeu com o seu amigo filósofo. O que interessa é destacar o modo de
compreensão das relações entre o campo da educação e o da filosofia que se expressa em um título assim tão singelo. Quem recorre, recorre a partir de um lugar. No
caso, o lugar da educação e de suas questões teóricas e práticas. Recorre não para
ouvir do outro o que deve pensar ou como deve agir, mas para estabelecer “relações
entre profissionais, isto é, entre pessoas situadas em lugares sociais diversos – no
caso a Filosofia e a Educação enquanto formas solidárias, organizadas e sistemáticas de uma comunidade provida dos saberes pertinentes a sua esfera de ação [...]”
(MARQUES, 1996, p. 530). O que se pressupõe, portanto, é que um profissional
busca a outro para entabular um diálogo, considerando as questões que se põem
em seu próprio âmbito de atuação.
Bem sabemos que Mario Osorio empenhou-se muito em circunscrever o campo
próprio da educação, no sentido da constituição de uma unidade e uma identidade próprias com base nas quais pudesse ser estabelecido um efetivo diálogo com
outras disciplinas ou campos profissionais. Sem esse “estatuto próprio”, entendia
ele, o campo da educação não consegue ser mais do que um “ponto sincrético das
assim chamadas ciências da educação” (MARQUES, 1996, p. 530), submetendo fatalmente os educadores às ingerências fragmentárias dos mais diferentes campos
de saber.2
Para indicar esse necessário diálogo entre os educadores e os diversos campos profissionais ou de saber, Mario Osorio propunha que o próprio processo de
formação já fosse conduzido ao modo de uma efetiva interlocução de saberes, sugerindo, inclusive, que a nomenclatura das disciplinas expressasse essa perspectiva
dialogante com títulos como Filosofia e Educação, Sociologia e Educação, Antropologia e Educação, etc. Entendia ele que sem uma boa ancoragem nas questões
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postas pelo campo da educação, os profissionais não passariam de joguetes das
injunções provindas dos demais campos de saber, com o sentimento recorrente de
terem que recomeçar da estaca zero, reaprendendo tudo em função de algum novo
viés que viesse a ser estabelecido. Hoje, poderíamos dizer que a ausência de uma
perspectiva dos próprios educadores, que estivesse “construída no debate público
e numa prática reflexiva direta, original e radical” (MARQUES, 1996, p. 530), tem
produzido a “necessidade” de uma “educação continuada”, no estilo de reciclagens
motivadas por esse ou aquele viés específico, dando lugar a um sentimento de desorientação geral, mesmo após anos de inserção nesse campo profissional.
E o que nos poderia ensinar esse modo como Mario Osorio concebia a relação
da educação com as diferentes áreas de saber, isto é, como interlocução de saberes
postos em diálogo? Especificamente, de que forma isso nos inspiraria um modo
de situar as possíveis relações e contribuições da filosofia da educação para com
o conjunto da pesquisa educacional? Para além da necessidade de situar o que
constitui uma questão de educação e uma questão de educação sob o ponto de vista
da filosofia, como um debate assim inspirado enfrentaria o que se tem diagnosticado como fragilidade teórica do campo investigativo da educação? O caminho que
vislumbramos é o da qualificação dos “polos dialogantes”, o da educação e o da filosofia, de modo que fique cada vez mais claro de que modo e acerca do que devem se
instigar mutuamente, considerando as questões urgentes e cruciais que se colocam
nos respectivos âmbitos, obviamente sob o pano de fundo da condição humana no
mundo. É em torno dessas questões que pretendemos articular algumas reflexões
na sequência desse texto.
O que se põe pelo lado da educação
Algo se põe tão somente na perspectiva própria de algum olhar, de alguma
referência que permite o pensamento reflexivo. A própria educação só se põe como
questão ou em suas questões a partir de alguma forma de pensar. A capacidade
de pensar pode ser compreendida como capacidade de emoldurar, de estabelecer
algum tipo de contorno que faz as coisas aparecerem de uma determinada forma.
O pensamento puro, sem contingências, sem injunções de qualquer ordem, é, como
se costuma dizer, prerrogativa de Deus. Mas isso tão somente para afirmar o modo
propriamente humano de ver as coisas, isto é, sempre situado, sempre sob alguma
perspectiva.
Com essa observação inicial estamos dizendo que não é o caso de procurar algo
como um pensar da educação em si, que fosse isento de toda e qualquer perspectiva
inspirada por algum campo de saber e que fosse algo como um olhar específico do
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educador. Os sujeitos que pensam e fazem educação são, por isso, sujeitos condicionados, capazes de olhar as coisas de determinada maneira, sem jamais poderem se
apresentar como isentos de qualquer perspectiva. Assim, o coletivo de educadores
de uma escola é constituído por sujeitos com formações distintas, cada qual vendo
as questões que se põem no âmbito da escola a partir de sua particular forma de
analisá-las e compreendê-las. O mesmo se pode dizer acerca dos que se ocupam
com a pesquisa em educação. Aqui, também, há particulares e distintas formas de
ver e compreender questões, ou de vislumbrar alternativas.
Se, pela forma como os sujeitos se constituem, podemos ver similitudes entre o
coletivo de educadores de uma escola e o conjunto de pesquisadores em educação, o
que em regra os distingue é a necessidade que o primeiro grupo tem de se entender
sobre o que fazer na prática cotidiana, de deliberar, de fazer escolhas. E isso põe a
exigência de que esse grupo, para além de suas perspectivas específicas, constitua-se como coletivo “no debate público e numa prática reflexiva direta, original e radical” (MARQUES, 1996, p. 530), como nos lembra Mario Osorio Marques. Interessa,
para a constituição desse coletivo, já não tanto a defesa do próprio modo de ver as
coisas, mas a capacidade de pensar com outros e com eles aprender, de entabular
um diálogo sob a premência das circunstâncias práticas e diante da necessidade
da ação.
Já ao conjunto dos pesquisadores em educação, mesmo endereçando suas análises e proposições ao campo das práticas, essa exigência de algum tipo de entendimento parece não se colocar da mesma forma. Pode-se observar, aí, uma cada
vez maior especialização dos campos de estudos, com a respectiva constituição de
grupos articulados em torno de enfoques específicos e nem sempre inclinados a confrontarem seus pontos de vista com outros pesquisadores do campo educacional. Ao
se organizar em grupos e linhas, os pesquisadores têm, em geral, aprofundado o
seu isolamento e atuado, progressivamente, de forma paralela aos demais grupos e
linhas. Cria-se, assim, uma sensação de conforto pela limitação a uma interlocução
com os pares que assumem um mesmo viés e pela renúncia ao debate com o diferente, evitando-se, com isso, o contraditório. Isso resulta, ao que tudo indica, em
uma pesquisa que fala cada vez mais para os educadores, mas cada vez menos com
os educadores, considerados em seu conjunto.
Alguém poderia objetar com o argumento de que é tarefa da pesquisa restringir-se exatamente a isso, ou seja, a produzir pontos de vista para os educadores,
deixando para os coletivos diretamente vinculados a contextos práticos a produção
de algum tipo de entendimento sobre o que fazer na escola na segunda-feira pela
manhã, quando chegam os alunos. A propósito disso, queremos lembrar de uma
manifestação recorrente da coordenadora da área da educação na Coordenação de
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Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), no triênio passado. Sempre
cobrada nas instâncias superiores de como a área posicionar-se-ia acerca dos grandes problemas educacionais do país, a titular apresentava para os coordenadores
dos programas de pós-graduação uma questão que se punha mais ou menos nos
seguintes termos: – Acerca de quais questões educacionais, nós, os pesquisadores
da área, teríamos como expressar um entendimento básico comum, acordado entre
nós como conquista da pesquisa que temos feito? A resposta dos inquiridos sempre
se dava ao modo de um silêncio geral na plateia. Era como se cada um pensasse
consigo mesmo: Alguém ousará dizer alguma coisa? Alguém estará a fim de pagar
o ônus da construção de um entendimento com quem pouco ou talvez nunca tenha
conversado?
Talvez uma manifestação possível fosse a alegação de que a pressão por publicação, da própria Capes, é tanta, que não sobra tempo para conversar com outros
fora de nosso campo específico de estudos ou de nos inteirarmos de suas produções, mesmo que eventualmente tratem dos mesmos problemas que acreditamos
estar enfrentando. Enquanto isso, porém, sobra indignação pelo fato de institutos
privados serem chamados a opinar sobre os problemas da educação ou de serem
contratados para assessorar órgãos públicos responsáveis pela gestão das redes de
ensino. Ao mesmo tempo, manifesta-se indignação pela desconsideração das entidades de pesquisa na constituição, por exemplo, do grupo de especialistas chamado
pelo Ministério da Educação para a proposição de uma Base Nacional Comum Curricular, ou pelo fato de a metodologia de trabalho ter sido estabelecida à revelia do
entendimento da área.
Embora as analogias sejam sempre perigosas, já que com base nelas podem-se pensar coisas muito distintas, o que se apresenta com relação à educação é
algo parecido com o que ocorre com o paciente que recebe diagnósticos dos mais
diferentes especialistas, mas que precisaria é de ter um médico que o escutasse,
que ouvisse suas histórias, suas queixas e preocupações. No campo da medicina,
geralmente, o último a ser procurado costuma ser o psiquiatra. Se, nesse caso, o
paciente passa a receber o tratamento efetivo de um sujeito em que ele pode dizer
a sua palavra e constituir-se efetivamente como um interlocutor, no caso da educação, parece também ser necessário que a partir dela se expressem entendimentos,
percepções, pontos de vista, ao modo de um debate público aberto à crítica recíproca das diferentes posições. O polo dialogante que aqui reclamamos para o campo
da educação, como já argumentamos, não é isento de perspectivas, mas se constitui
pela disposição ao debate por parte de todos os que pensam e fazem a educação. Um
debate que mesmo feito em âmbitos restritos não se exima de uma pretensão de
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universalidade, isto é, de ser baseado em posições passíveis de justificação diante
de quaisquer interlocutores.
O que se põe pelo lado da filosofia?
Mesmo que por filosofia possa-se entender coisas bastante diversas e que algum entendimento do que lhe é próprio seja como espectro de temas dos quais trata
ou como modo específico de abordá-los, há coisas que podemos dizer acerca desse
campo que consideramos passíveis de algum acordo entre os filósofos.
Voltemos ao texto de Mario Osorio, já apresentado, quando ele caracteriza
o filósofo, ao qual recorre com vistas a uma interlocução, como “alguém que lê os
filósofos da tradição e os contemporâneos, sem nunca deixar de se ocupar com o que
têm eles a dizer aos homens de nosso tempo e com a produção filosófica própria,
desde o lugar social em que entre nós se situa” (MARQUES, 1996, p. 530). Temos,
assim, um possível indicativo do que é próprio da filosofia ou de quem se apresenta
como interlocutor a partir do campo filosófico: um leitor da tradição filosófica e que
estabeleça com ela um diálogo em função das questões postas pelo tempo presente.
Isso indicaria que ninguém é filósofo pelo simples fato de reprisar o pensamento
da tradição. Seria preciso pôr-se a pensar a partir da confluência da tradição com
as questões que no presente se colocam, explicitando sentidos novos e atuais por
meio de uma hermenêutica da tradição, condição que é indispensável para que um
pensamento se mantenha vivo. Assim, dialogar com a tradição que se tem compreendido como sendo filosófica, inserindo-se efetivamente como partícipe e, por que
não, como cúmplice desse diálogo, é o que nos parece ser uma condição de quem se
apresenta como interlocutor da filosofia em outros campos de saber.
E do que tem tratado esse diálogo filosófico? Seria possível indicar alguma temática recorrente que permitisse dizer que toda essa tradição têm algo em comum
e que, por isso, nos autorizaria chamá-la de filosófica? A essa questão responderíamos dizendo que, em sentido amplo, a filosofia trata das questões do mundo humano. Mundo esse que nos é comum e ao qual adentramos ao nascer e que recebemos
como herança das gerações passadas.
O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida, tanto no passado quanto no futuro: preexistia
à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isto o que temos em comum,
não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes
e aqueles que virão depois de nós (ARENDT, 2002, p. 65).
Sobre a origem e os primórdios deste mundo nada sabemos, a não ser aquilo
que nossa inteligência permite conjeturar com base no que hoje somos como espécie
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que se apresenta de modo diferenciado comparativamente às demais. A filosofia,
em função dos registros que dispomos, sempre buscou tornar reflexiva essa experiência de termos um mundo humano. Ao se dar conta de que já não habitamos um
cenário natural e que erigimos uma espécie de palco para a realização de nossas
vidas, a filosofia buscou saber dos limites e possibilidades do conhecimento humano, tematizando as formas instauradas de interação com o meio e com os demais.
Em meio a isso, põe-se a questão: poderiam os homens, diante da indeterminação
do seu modo ser, encontrar algum critério para a condução de suas vidas, alguma
orientação que permitisse atitudes ou escolhas pelo menos razoáveis? Com base
nessa questão, implícita em toda a tradição filosófica, emergiram os seus grandes
temas, como o da racionalidade, da validade do conhecimento, da justiça, da ética,
da política, dentre outros objetos de reflexão.
Com essa indicação genérica acerca do campo da filosofia e daqueles que costumamos chamar de filósofos, quais condições consideraríamos fundamentais para
que esse profissional apresente-se como interlocutor potencial e qualificado no
campo educacional?
Indicaríamos como uma primeira condição para um efetivo diálogo a ser estabelecido com o educador, ou o coletivo dos educadores, a do reconhecimento do
caráter histórico das diferentes áreas e respectivos conhecimentos que se pretendem pertinentes à educação. Levar a sério essa historicidade quer dizer que a educação é uma obra inacabada e que, por isso, é preciso implicar a todos na tarefa de
pensá-la e realizá-la. A historicidade de todos os conhecimentos pressupõe, por sua
vez, a superação de um pensamento metafísico e, com isso, a emergência de novas
percepções acerca das relações entre teoria e prática.
Para o pensamento metafísico, que se estabeleceu na esteira de Platão, a
verdade (do conhecimento) assume o caráter de representação, de apreensão das
essências. Em seu esforço de resolver o embate entre o “ser-para-sempre”, de Parmênides de Eléia, e o “eterno vir a ser”, de Heráclito de Éfeso, Platão estabeleceu a
dicotomia entre ser e vir a ser, entre essência e aparência. Em decorrência, acabou
identificando ser com “ideia” (eidos), conferindo-lhe um caráter ontológico, sendo
que esse ser constituir-se-ia no objeto da episteme (ciência). Já ao vir a ser atribui
um caráter transitório, temporal, relegando-o a objeto da doxa (opinião). Como
consequência prática, passou-se a entender que o saber rigoroso (episteme-ciência)
pode responder de forma definitiva “o que é o ser”, com o que seria possível aprender “de vez” o ser de algo, por exemplo, o da educação. Nesses termos, o verdadeiro
conhecimento acerca da educação já está dado ou em algum momento se dará, bastando, então, conhecê-lo e ensiná-lo. Sob tais pressupostos, tudo se resume a uma
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adequada aplicação do conhecimento, diante do que algo como uma interlocução de
saberes torna-se totalmente dispensável.
Nossa intenção, obviamente, é trilhar outra forma de pensar as questões que
se põem sob o ponto de vista da teoria e da prática, bem como as que demandam o
diálogo da filosofia com a educação e a produção do conhecimento em seu âmbito.
Alinhamo-nos, assim, a um modo de pensar que denominaremos pós-metafísico, ou
pelo menos não metafísico. Nesse outro modo de pensar se reconhece a historicidade radical de toda pretensão de conhecimento e se tem a compreensão de que a
verdade, por ter “endereço” e “fazer aniversário”, é sempre parcial, haja vista ser
produto de conflitos, acordos, confluências, sempre passíveis de revisão à medida
que um novo ponto de vista se coloca no debate. É a própria finitude humana que
nos leva a reconhecer que a verdade do conhecimento não é uma questão que se
resolve “de vez”, devendo, por isso, compreender-se sempre em seu caráter de provisoriedade, aberto às sempre novas circunstâncias que forem se apresentando e
para as diferentes possibilidades de compreensão dos indivíduos e grupos.
O que estabelecemos, aqui, é uma espécie de “divisor de águas” entre duas
formas de pensamento, que chamamos, respectivamente, de metafísica e não metafísica (ou pós-metafísica). Assim, ou vai-se em busca de um conhecimento sobre a
educação na perspectiva de encontrar uma resposta em definitivo, que permitiria,
por assim dizer, encerrar essa busca; ou, então, vai-se em busca de um conhecimento vislumbrado da educação, que se entende ao modo de uma proposição e que exige
justificação na perspectiva de que se torne um conhecimento reconhecido como válido. Enquanto que na primeira forma de busca o conhecimento é entendido como
dado “de vez”, seja como revelação ou como descoberta, na segunda forma de busca,
é entendido como algum tipo de solução construído no tempo histórico e passível
de revisão. Enquanto que a primeira forma, em função do seu estatuto metafísico,
permitiria uma aplicação à revelia dos sujeitos históricos, a segunda, em função do
seu estatuto de mera proposição, requereria sempre a consideração das perspectivas dos sujeitos envolvidos em sua aplicação.
Trata-se de um rompimento com as teorias objetivadoras do ser e de uma convergência com Kant, que reconhece, mesmo escandalizado, que a razão humana é
incapaz de explicar o que é a realidade (PAVIANI, 2009, p. 117). De outra parte, é
preciso reconhecer que a ciência, de fato, lida com pretensões de validade dos seus
enunciados, tomando-os “como se fossem a realidade”.
Destaque-se, portanto, que, na modernidade, é a partir de Kant que foi se
desfazendo a percepção de que existe um conhecimento essencial, “de modo que
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hoje sabemos que todo conhecimento resulta de um ‘botar-se’ do homem no mundo,
com suas condições e/ou como intérprete, com o que ele sempre traz a marca do
humano, sendo, a rigor, uma criação sua” (NEITZEL; BOUFLEUER, 2015, p. 37).
Dizer que todas as áreas do conhecimento são criações humanas, porém, não quer dizer
que elas são irrelevantes, que carecem de objetividade, ou que a seu respeito se pode dizer
ou ensinar qualquer coisa. É exatamente pelo fato de os conhecimentos serem talhados ao
nosso modo de ver as coisas, ao nosso modo de percebê-las em seu alcance ou significado,
que temos a configuração do mundo humano que, enfim, é tudo o que temos. Não há outro
mundo senão este que erigimos através das objetivações simbólicas concernentes aos nossos modos de ser e de interagir com os outros e com o meio. Dito de outro modo, o mundo
é aquilo que se apresenta como algo para nós, como âmbito acessível à reflexividade e horizonte de possibilidades, num desafio constante à liberdade e ao risco das escolhas (2015,
p. 38).
E, continua o texto:
Podemos dizer que no tempo histórico atual, e no que se expressa através das produções e
pelos autores mais reconhecidos, a filosofia hoje se compreende como não mais metafísica,
isto é, como proposição. Trata-se do reconhecimento de que estamos todos num mesmo barco, como que à deriva, sem que ninguém saiba melhor, e antes de todos, para qual direção
seguir. Diante dessa percepção assume-se, então, o desafio de um acerto de perspectivas
com todos os envolvidos. [...] E para podermos viver em sociedade, bem como para educarmos as novas gerações, precisamos definir, por nossa conta e risco, em quais verdades
vamos acreditar e sob quais regras pretendemos assentar nossas relações de reciprocidade
(2015, p. 40-41).
O reconhecimento da impossibilidade de um saber totalizante não deve significar imobilismo frente às possibilidades de saber (que nunca parte do “grau zero”),
mas ser entendido como um convite para que nos coloquemos no movimento de
constituição dos saberes, buscando a compreensão dos argumentos que avalizam
sua pretensa validade. E se somos obrigados a reconhecer esses limites do conhecimento que o pensamento moderno e contemporâneo nos deu a conhecer, talvez seja
o momento de revermos os nossos sonhos, considerando a sua defasagem em relação às suas possibilidades, como afirma Mario Osorio Marques no texto já referido:
Constitui-nos educadores a paixão pela emancipação humana sob a condução do princípio
da esperança. Somos, por isso, perdidamente sonhadores e, como tais, de continuo sujeitos
à melancolia dos sonhos desfeitos. Em nossa generosidade esperançosa somos propícios ao
exagero, a ignorar nossos limites, os limites da finitude humana e das coisas com que lidamos. Apressamo-nos correndo o risco de nos distanciarmos dos mais lentos, isolando-nos no
narcisismo e no voluntarismo. E, quando se desfazem as ilusões, quando o sol cresta nossas
asas de cera, somos tentados a descrer da própria humanidade, em vez de perceber que no
desmoronar-se do nosso sonho desfaz-se a irrealidade dele, não o princípio da esperança
que nos leva a esperar apesar de tudo (1996, p. 534).
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Tendo chegado a esse ponto, somos compelidos a dizer que o caráter da interlocução da filosofia com o campo da educação depende de que lado nos pomos
ante esse “divisor de águas”. Mesmo que possamos dizer que o conjunto da filosofia
ocupa-se da condição humana, a indicação de suas possíveis contribuições para a
educação estará vinculada diretamente à percepção do seu estatuto, no caso de
nossa eleição, um estatuto não mais metafísico.
Movimentos em direção a um diálogo ampliado na pesquisa em educação
Tendo como que tomado partido em favor de um estatuto não mais metafísico
da filosofia, propomo-nos, agora, indicar alguns possíveis movimentos que os filósofos da educação poderão realizar como interlocutores potenciais do campo educacional. Isso significa, fundamentalmente, contribuir com a explicitação das condições
capazes de tornar a interlocução dos saberes efetiva e fecunda. Em perspectiva
habermasiana, significa lembrar-se das condições de racionalidade dos procedimentos discursivos, sem qualquer pretensão de ocupar algum lugar privilegiado
dentre os que se põem a argumentar. Em suas relações para com os demais campos
de saber, cabe à filosofia “travar relações com a auto-compreensão falibilista e com
a racionalidade metódica das ciências experimentais... [sem] pretender um acesso
privilegiado à verdade [...]” (HABERMAS, 1990, p. 47).
a) Primeiro movimento – estudar com vistas ao domínio do “estado da arte” do
campo investigativo.
Coerentes com a postura aqui assumida, entendemos que um primeiro movimento consiste em refazer a trajetória daqueles que pensaram antes que nós o
campo de nossa investigação, de modo que seja possível pensar à luz dos caminhos
já andados, o que significa, em termos acadêmicos, vir a ter o domínio do “estado
da arte”. Trata-se daquele movimento de aprendizagem que, tradicionalmente, é
entendido como “estudar”, mas que obviamente pode ser tomado sob a forma de
investigação preliminar constitutiva da formação para a pesquisa. Sobre a importância dessa formação, inclusive para que a novidade possa ser produzida, Tardif
nos lembra que:
[...] apesar de ocupar hoje uma posição de destaque no cenário social e econômico, bem
como nos meios de comunicação, a produção de novos conhecimentos é apenas uma das
dimensões dos saberes e da atividade científica ou de pesquisa. Ela pressupõe, sempre e
logicamente, um processo de formação baseado nos conhecimentos atuais: o novo surge e
pode surgir do antigo exatamente porque o antigo é realizado constantemente por meio dos
processos de aprendizagem. Formações com base nos saberes e produção de saberes constituem, por conseguinte, dois polos complementares e inseparáveis (2002, p. 36).
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Filosofia da educação e pesquisa educacional: movimentos em direção ao diálogo
Cabe destacar que esse movimento de contínua atualização do “estado da arte”
de nosso campo de estudos nunca pode ser abandonado, mesmo quando se avança
para novas etapas da pesquisa, como a da efetiva produção de conhecimento novo.
Isso vale, de modo especial, para aqueles que vão se ocupar com a docência. Bachelard (1977), nesse sentido, afirma que todo professor deveria fazer voto secreto
de continuar sendo estudante para o resto de sua vida. Sobre isso, vem a calhar,
também, a frase atribuída ao filósofo e escritor espanhol Miguel de Unamuno y
Jugo, acerca da leitura, e que aqui podemos entender como uma forma de estudar:
“Ler muito é um dos caminhos para a originalidade; uma pessoa é tão mais original
e peculiar quanto mais conhecer o que disseram os outros”.
b) Segundo movimento – o caráter condicionado das soluções, ou a questão dos
“problemas das soluções”.
Um possível segundo movimento vincula-se à percepção de que as soluções
que produzimos para um determinado problema derivam de possibilidades interpretativas que se põem no âmbito das teorias ou dos paradigmas que, explícita ou
implicitamente, assumimos. Com isso, as soluções que apresentamos carregam o
DNA desses referenciais que as forjaram, implicando, para além de suas possibilidades, possíveis reducionismos ou limites. A necessária suspeita com relação às
soluções dadas põe, assim, a questão dos “problemas das soluções”. Começamos,
então, a perceber que a “casa” que enxergamos é expressão de um projeto que a
antecedeu. Logo, diferentes projetos resultam em diferentes “casas”.
Perceber a dependência das soluções apresentadas em relação aos referenciais
que as forjaram é condição para a desconstrução do realismo ingênuo que toma o
imediato como possibilidade única de objetivação. Mas, mais do que isso, é condição
para avançarmos para outra etapa de elaboração. Como afirma Castoriadis:
Pode ser que a situação atual perdure, até que seus efeitos se tornem irreversíveis. Recuso-me, por isso, a fazer da realidade virtude, e concluir do fato ao direito. Temos o dever de nos
opor a esse estado de coisas, em nome das ideais e dos projetos que fizeram essa civilização,
os quais, agora, nos permitem o questionamento (1992, p. 182).
c) Terceiro movimento – avançar para novas compreensões pelo desenvolvimento de uma “inteligência de navegação”.
Propomos como um terceiro movimento o arriscar-se na aventura pelo caminho de novas compreensões acerca das problemáticas com as quais nos ocupamos.
Em referência ao processo da formação acadêmica, trata-se do movimento que seria mais propriamente correspondente à etapa do doutorado. Já não se trata de
apenas dissertar sobre um assunto, considerando o produzido na área, mas de,
efetivamente, dizer algo de novo, mesmo que seja em função de uma nova organização de dados já existentes ou de percepções já estabelecidas. Tomando a metáfora
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da “casa”, poderíamos dizer que nossa formação superior nos autoriza pressupor
que, para além de bons construtores de casas (pedreiros, carpinteiros...), podemos
“engenhar casas”.
Esse movimento que nos permite o engenho da novidade, porém, só é possível
com uma sólida formação conceitual, “conhecimento poderoso”, no dizer de Michael
Young (2007), pois é essa formação que nos potencializa a produzir novas soluções
diante de novos problemas ou de contextos diferenciados. Para essa potencialização do pensamento, além de ler os autores contemporâneos com reconhecimento na
área, é fundamental a leitura dos autores considerados clássicos, que, em regra,
são os que foram lidos pelos que obtiveram reconhecimento entre nós. Enfim, para
aventurar-se no caminho de novas compreensões acerca dos temas que enfrentamos, é preciso produzir, mediante uma sólida formação teórico-conceitual, o que
denominamos “inteligência de navegação”.
Enfrentar a questão conceitual significa resistir ao “praticismo” que em boa
medida tomou conta do campo educacional, o que possivelmente tenha a ver com
o não reconhecimento nos educadores em geral da condição de “intelectuais da
educação”. Isso sugere que fiquemos alertas para os “perigos” a que determinada
compreensão de uma “epistemologia da prática” pode nos levar e para o “barateamento” ou o reducionismo de noções como a do “aprender a aprender”.
Assim como não há quem possa falar do ponto de vista da filosofia sem ter lido
filósofos, assim também não é possível constituir-se como interlocutor do campo
educacional sem ter lido autores que sobre o fenômeno educacional se debruçaram
e que, por isso, mereceram o título de clássicos da área. Cabe, ainda, destacar que a
realidade, inclusive a da prática educacional cotidiana, não se qualifica e nem se dá
por algum movimento intrínseco a ela. A solução dos problemas práticos, ou algum
indicativo nessa direção, requer um tipo de pensamento que descola da realidade,
que a tensiona em função de perspectivas que a inteligência humana é capaz de
estabelecer. É esse o campo da teoria e que, por isso, não pode ser negligenciado.
Assim, para estabelecer uma interlocução fecunda, dentro do campo educacional e
junto a outras áreas do saber, é preciso ter e cultivar ideias.
O movimento que propomos vai, portanto, na direção de um saber de natureza
conceitual. É ele que nos permite não apenas estabelecer novas compreensões acerca dos problemas que nos afligem, como também inaugurar novas configurações de
problemas, dada a ampliação da nossa capacidade de interrogação, de problematizar o real dado e de imaginar alternativas.
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d) Quarto movimento – a disposição para a crítica como condição intrínseca à
produção do conhecimento.
O quarto movimento é o da disposição à crítica. Essa disposição refere-se ao
entendimento de filosofia anteriormente explicitado e não se separa dos demais
movimentos. Como se pode observar, cada vez mais a produção de pesquisa é submetida a processos de avaliação e de crítica. Quando desejamos publicar os resultados de nossas investigações, temos de ir em busca de uma legitimação de
nossas convicções com nossos pares. Isso significa que as ideias ou propostas que
apresentamos têm o caráter de pretensões de validez em busca de uma certificação
social. Trata-se, portanto, de um posicionar da filosofia em perspectiva não mais
metafísica, em que a racionalidade de toda proposição é produto da covalidação
intersubjetiva.3
O processo de investigação, assim entendido, prepara-nos para a interlocução
com outros campos do saber, uma vez que ele nos ensina a lidar com a crítica.4 Essa,
na verdade, deveria ser reconhecida sempre como homenagem aos nossos esforços.
Só no embate, que pressupõe a crítica recíproca, é que podemos visualizar, na sua
radicalidade, a noção iluminista de “educar para a autonomia”. Rohden, inspirado
no pensamento kantiano, afirma que “[...] a educação mesma tem que ser superada
pelo educando, no momento em que ele se assume como sujeito do conhecimento
e se torna capaz de educar” (2000, p. 168). Assim, a tarefa da educação realiza-se
quando o educando “Torna supérfluo o professor, mas não uma comunidade científica ou uma comunidade de vida, da qual, mesmo escolhendo-a, não pode prescindir
em seu processo de individuação” (2000, p. 168-169). Isso pressupõe que, em seu
estágio final, o educando seja capaz de fazer uso próprio de sua razão, em sentido
aberto, ao modo de um “colocar-se virtualmente no lugar de outros”, ao modo de um
“pensar com outros” (2000, p. 170). Autonomia intelectual ou teórica, portanto, não
dispensa a opinião do outro, o ponto de vista diverso, mas a capacidade de conduzir
o próprio pensar levando a sério as observações ou críticas recebidas.
Considerações finais
Com os quatro movimentos aqui sinalizados, demarcamos condições e pressuposições que, sob o ponto de vista da filosofia, podem ajudar a criar um contexto
propício para a interlocução de saberes no âmbito da educação. A filosofia da educação, tradicionalmente compreendida como uma das disciplinas de fundamentos
da educação, pode desempenhar uma importante tarefa na proposição e/ou garantia de um ambiente de discutibilidade crítica, tanto mais qualificado quanto mais
aberto, que aqui propusemos.
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Retomando o entendimento de Rohden, de que a autonomia pressupõe o “pensar com outros”, algo como um “colocar-se virtualmente no lugar de outros” (2000,
p. 170), podemos afirmar que a formação de quem vai educar ou pesquisar em educação necessita desenvolver a capacidade de uma efetiva interlocução. A percepção
do caráter intersubjetivo de todo o conhecimento válido, já que demanda a comunicação e o entendimento com os outros, permite concluir que o esforço de investigação acaba com o realismo ingênuo frente às teorias e põe sob suspeita qualquer
objetificação de nossas práticas. Por isso, também, pode-se dizer que aquele que faz
a experiência da pesquisa não será mais o mesmo em relação às suas crenças. Mesmo que elas permaneçam, não serão mais um “destino”, mas uma opção. Se essas
crenças carregam um sentido de saber humano, esse sentido já não terá o caráter
de algo que “se dá”, de forma evidente e necessária, e, sim, como uma possibilidade
de ver as coisas, como uma proposição que permanece válida em função de uma
percepção que se constituiu intersubjetivamente.
O conjunto dos movimentos aqui sinalizados leva a entender que alguém se
torna competente no campo da educação, seja como docente ou como pesquisador,
à medida que vai aprofundando a sua relação com o saber cultural a partir do
qual se dirige aos outros, ou que constitui a perspectiva desde a qual se apresenta como interlocutor em relação a outros profissionais. Nós nos formamos como
humanos, educadores e pesquisadores com base no que herdamos das gerações
que nos antecederam, daí nossa dívida com a tradição, mas, fundamentalmente,
constituímo-nos (individualizamo-nos) pelo que não repetimos, pelo que acrescentamos de novo à tradição, pelo que produzimos como pesquisa em função de nossa
singularidade existencial, pelas perspectivas que assumimos. “A aprendizagem
[pesquisa] enquanto ação comunicativa, constitui-se, assim, no meio através do
qual se formam e se reconstroem a cultura, a sociedade e a singularização da personalidade” (MARQUES, 2000, p. 31).
Tomando a metáfora weberiana de cultura como teia de significados na qual
nos inserimos tecendo-a, poderíamos dizer que o ingresso no campo da pesquisa
educacional revela nossa inserção nessa teia de significados que é a educação. Os
esclarecimentos possibilitados pela reflexão filosófica, junto com o exercício da pesquisa, potencializa-nos e auxilia a tecê-la.
A inserção no campo educacional, como docentes ou pesquisadores, deveria
propiciar o reconhecimento da gênese dos saberes aí implicados. Assim, arriscamos dizer que a grande contribuição da investigação é apropriar-se e potencializar
essa gênese em sua dimensão cognitiva e ético-política. Isso porque achamos muito
improvável que alguém que não domine as razões do seu saber seja capaz de mobilizar o desejo das novas gerações na direção desse saber. Daí que não seria exagero
afirmar que sem investigação não há docência que se sustente.
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Cabe lembrar que o nosso vínculo com o mundo “não está nunca pronto”, o que
impossibilita qualquer noção definitiva dos sentidos e das possibilidades de nossa
educação e, também, das novas gerações. Nesse “jogo sem fim” com o mundo, vamos nos formando continuamente por meio de processos de investigação inesgotáveis, uma vez que o real é sempre mais rico do que qualquer forma de apreendê-lo.
É preciso, portanto, não abandonar a atitude reflexiva de natureza filosófica. Por
isso, dos “filósofos da educação” espera-se a disposição de participar do debate político sobre os rumos da educação sem querer resolver teoricamente os problemas
de natureza política. No entanto, isso não nos isenta de buscarmos, pelas nossas
investigações, qualificar o debate pela razoabilidade dos argumentos com os quais
nos apresentemos na cena pública.
Philosophy of education and educational research: movements towards dialogue
Abstract
Taking into account the “knowledge interlocution” as a desired manner of articulation of the different disciplinary fields which intend to offer contributions to the field of educational research,
the present article aims at situating the areas of philosophy and education in the perspective of
qualifying them as dialoguing poles and in a movement of approximation. In this sense, it reflects
about what is set on the side of education and on the side of philosophy as specific fields of knowledge, each one with its own tasks and challenges, and in the perspective of a fruitful dialogue.
In the sequence, the article points to some movements of approximation between philosophy of
education and educational research, considering dimensions like the historicity of all knowledge,
the constitution of specific competences in each knowledge field, the disposition for criticism, movements which are oriented by a notion of rationality which is magnified through the spaces of an
intersubjective understanding and which are set in the perspective of a manner to philosophize
which is no longer metaphysical.
Keywords: Philosophy of education. Educational research. Educational theory. Thought post-metaphysical.
Notas
Conforme relatório apresentado aos membros do GT Filosofia da Educação.
Toda essa problemática foi encarada pelo autor no livro Pedagogia: a ciência do educador (MARQUES,
1990), em que circunscreve o campo da educação como o da compreensão, organização e condução dos
processos educativos, demarcando o objeto propriamente dito dos educadores.
3
Por intermédio do outro, sabemos que não estamos enlouquecendo. Isso nos lembra Mario Osorio Marques:
“Louco não é quem perdeu a razão, mas quem acha que tem razão sozinho” (ano, p. ??).
4
Costumamos afirmar aos alunos que quem não aprendeu a lidar com a crítica ainda não está apto à vida
acadêmica.
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