Reconhecimento do número gramatical e

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José Ferrari Neto
RECONHECIMENTO DO NÚMERO GRAMATICAL E
PROCESSAMENTO DA CONCORDÂNCIA DE NÚMERO NO
SINTAGMA DETERMINANTE NA AQUISIÇÃO DO
PORTUGUÊS BRASILEIRO
Dissertação apresentada ao Departamento
de Letras da PUC/RJ como parte dos
requisitos para a obtenção do título de
Mestre em Estudos da Linguagem
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Letícia Maria Sicuro Corrêa
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Departamento de Letras
Abril de 2003
1
José Ferrari Neto
Reconhecimento do número gramatical e processamento
da concordância de número no sintagma determinante
na aquisição do Português Brasileiro
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo programa de Pósgraduação em Letras do Departamento de Letras do Centro
de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela
Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof.ª Drª. Letícia Maria Sicuro Corrêa
Orientadora
Departamento de Letras – PUC/RJ
Profº. Drº. Jürgen Heye
Departamento de Letras – PUC-Rio
Prof.ª Drª. Marina Rosa Ana Augusto
UNICAMP
____________________________________________
Profº. Drº. Jürgen Heye
Coordenador Setorial do Centro de
Teologia e Ciências Humanas
Rio de Janeiro,
de
2003.
2
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do
autor e do orientador.
José Ferrari Neto
Graduou-se em Letras (Português/Literatura) pela UCP
(Universidade Católica de Petrópolis) em 1999. Obteve o
título de especialista em Língua Portuguesa ao concluir o
curso de pós-graduação latu-sensu na UFRJ (Universidade
Federal do Rio de Janeiro) em 2000. Trabalhou como
docente de Língua Portuguesa em várias instituições de
ensino em Petrópolis/RJ. Atua, desde 2001, como
pesquisador do LAPAL (Laboratório de Psicolingüística e
Aquisição da Linguagem), da PUC/RJ.
Ficha catalográfica
Ferrari Neto, José
Reconhecimento do número gramatical e processamento da
concordância de número no sintagma determinante na aquisição
do português brasileiro / José Ferrari Neto ; orientadora: Letícia
Maria Sicuro Corrêa.
– Rio de Janeiro : PUC-Rio,
Departamento de Letras, 2003.
112 f. : il. ; 30 cm
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, Departamento de Letras.
Inclui referências bibliográficas
1. Letras – Teses. 2. Aquisição da Linguagem. 3. Número
gramatical. 4. Teoria lingüística. 5. Psicolingüística. 6.
Bootstrapping. I. Corrêa, Letícia Maria Sicuro. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
Letras.. III. Título.
CDD: 400
3
DEDICATÓRIA
Dedico esta dissertação primeiramente a Deus, Nosso Senhor, por criar algo tão
enigmático e fascinante como a linguagem humana, e nos dotar de espírito,
capacidade e vontade para mergulhar na árdua tarefa de decifrar os segredos que
ela encerra. Em segundo lugar, a meus pais, José Geraldo e Roberto Luís, e a
minha mãe Maria Cristina, que certamente torceram e continuam torcendo muito
por mim. E, por fim, a mim mesmo, por ter perseverado neste duro e difìcil
caminho que é a vida de pesquisador, a despeito de todas as tentações, desânimos,
estresses e desesperos que pontuaram a elaboração deste trabalho. A todos vocês,
e a mim, um brinde a nossa conquista.
4
AGRADECIMENTOS
Quando resolvi, ao final do curso de graduação, participar da seleção para um
programa de mestrado, não foram poucos aqueles que me advertiram sobre as
dificuldades da vida de pós-graduando. Mais de uma vez ouvi da boca de exmestrandos coisas terríveis acerca dos professores, em sua ampla maioria
descritos como seres irascíveis e impacientes, que quase escravizavam os alunos
com exigências absurdas e os humilhavam na hora da avaliação. Os colegas
também as críticas não os poupavam, tidos como egoístas, mal-humorados e
capazes de negar a mais simples ajuda a um companheiro em apuros. E que me
preparasse para a cara feia dos familiares e amigos, os quais passariam a me ver
como um ser arrogante e prepotente, só preocupado com uma pesquisa sem pé
nem cabeça. Aprovado na seleção, temi pelo pior e rezei muito no dia da
matrícula. Hoje, em vias de defender esta dissertação, percebo o quão enganado
eu fui. Em realidade, não pude encontrar ambiente melhor e mais acolhedor, tanto
da parte de alunos e funcionários quanto dos professores e orientadores, amigos e
familiares. Nunca teria sido capaz de concluir este trabalho sem a inestimável
ajuda daqueles que me cercaram durante dois anos. Meus agradecimentos,
portanto, devem se dirigir ao pessoal do LAPAL (Érica, Cristina, Marisa, Renata,
Diogo e Claver, todos vocês são parte desta dissertação !); à Rosana, Rosane,
Samara, Lígia, e todas as outras mães que gentilmente permitiram que seus filhos
e alunos participassem dos testes; à minha professora e orientadora Letícia (não
sei de onde você conseguiu tirar paciência para me orientar !); ao CNPQ, pela
bolsa de estudos concedida e religiosamente paga; e, em especial, à minha esposa
e assistente Luciana, que durante o dia aturava meu nervosismo e mau-humor, à
tarde sofria junto a mim realizando testes e coletas de dados, e à noite ainda tinha
de dormir sozinha, enquanto eu varava madrugadas diante do computador...
5
RESUMO
Este trabalho consiste em uma caracterização inicial das habilidades de
processamento presentes nas crianças que adquirem o sistema de número
gramatical em português. Foi realizada uma coleta longitudinal de dados de
produção durante 4 meses com 2 crianças de 24-28 meses e 21-25 meses, cujo
objetivo foi obter dados de produção lingüística semi-espontânea que permitissem
identificar exemplos de produção de formas flexionadas em número. Realizaramse também 3 experimentos de reconhecimento de imagens, com crianças de 18 a
28 meses e 30 a 42 meses, os quais visavam a verificar (i) se a criança distingue
nome flexionado em número de nome não-flexionado; (ii) se a criança percebe
onde se localiza a marca de número no português em palavras de seu vocabulário
e em pseudo-palavras que remetem a objetos inventados; e, por fim, contrastar
dados de experimentos semelhantes relativos a gênero gramatical, de modo a
averiguar se crianças processam concordância de número no DP. A hipótese de
trabalho que orienta esta dissertação é a de que a informação relativa a número
contida nos elementos que formam a categoria funcional Determinante (D) é
crucial para a identificação do sistema de número no português. Os valores
relativos a número identificados nos elementos da categoria D como marcado/não
marcado são interpretados semanticamente como singular e plural por meio do
mecanismo da concordância, sendo a identificação do número gramatical mais
custosa do que a do gênero gramatical em virtude de o número ser um traço
opcional e de este traço veicular informação semântica a ser associada a classes
morfofonológicas identificadas no Det e no Nome. O modelo de língua assumido
nesse estudo é o sugerido pelo Programa Minimalista (Chomsky, 1995).
6
ABSTRACT
This work is concerned with the acquisition of the Portuguese number system.
Longitudinal production data of two children (24-28 months and 21-25 months)
were collected for 4 months in order to verify whether there is evidence of the use
of number inflected forms. 3 picture-identification experiments were carried out
with children ranging from 18 to 28 months and 30 to 42 months, whose aim was
to verify (i) whether children would distinguish number inflected from number
uninflected nouns (ii) whether they would process number agreement in the DP
and the extent to which they would perceive number incongruence and
ungrammaticality as far as number agreement in the DP is concerned. Both nouns
from children’s vocabulary and pseudo-nouns were used. The latter was indented
to constraint semantic information to the number affix.
These data were
contrasted with the results on gender (Name, 2002), which suggest that young
children (mean age 24 months) perceive gender incongruence between D and N in
the processing of a DP. The working hypothesis of this study is that children
identify morphological information concerning number and gender within the
closed class of determiners. The fact that number is basically an optional feature,
which can be expressed in the Noun, would nevertheless, make the acquisition of
grammatical number to be relatively more demanding than the identification of
grammatical gender. The linguistic framework assumed here is the Minimalist
Program (Chomsky, 1995).
7
Sumário
1. Introdução:.........................................................................................................9
1.1. Hipótese de Trabalho................................................................................10
1.2. Objetivos...................................................................................................12
1.3. Justificativa da Proposta...........................................................................13
1.4. Contexto Teórico e Escopo do Trabalho...................................................14
1.5. Apresentação da Categoria Lingüística de Número..................................18
1.6. Problemas Relativos à Aquisição do Número Gramatical........................20
1.7. Organização do Trabalho..........................................................................21
2. Revisão da Literatura:......................................................................................22
2.1. O Número em Português..........................................................................22
2.2. O Número nas Diferentes Línguas...........................................................25
2.3. A Aquisição do Número Conceitual.........................................................30
2.4. A Aquisição do Número Gramatical.........................................................36
2.5. Considerações Finais................................................................................42
3. Fundamentação Teórica...................................................................................45
3.1. O Problema da Aquisição sob a Perspectiva da Criança..........................45
3.2. O Programa Minimalista (Chomsky, 1995).............................................48
3.2.1. O Número Gramatical no Programa Minimalista.........................49
3.2.2. A Concordância no Programa Minimalista...................................50
3.2.2.1.A Concordância no DP............................................................53
3.3. A percepção das propriedades fônicas do estímulo acústico pelos
bebês.........................................................................................................55
3.4. A percepção de morfemas pelo bebê........................................................56
3.5. Sensibilidade Precoce dos Bebês aos Determinantes e Desenvolvimento
da Cognição Numérica..............................................................................58
3.6. O Bootstrapping........................................................................................58
3.7 Conclusão...................................................................................................59
4. Metodologia.....................................................................................................61
4.1. O Paradigma da Tarefa de Seleção de Imagens.......................................61
4.2. A Coleta Longitudinal de Dados..............................................................63
5. Dados Longitudinais e Experimentos: ............................................................65
5.1. Análise da Coleta Longitudinal de Dados.................................................66
5.2. Experimento 1 – Percepção das Crianças à Presença de Morfema de
Número no Nome......................................................................................70
5.3. Experimento 2 – Sensibilidade das Crianças à Concordância de Número
no DP (com voz sintetizada e nomes reais)..............................................79
5.3.1. Comparação dos Resultados entre Número e Genero....................85
5.4. Experimento 3 - Sensibilidade das Crianças à Concordância de Número
no DP (sem voz sintetizada e com nomes inventados).............................90
5.5. Conclusão..................................................................................................95
6. Conclusão Geral...............................................................................................97
7. Anexos............................................................................................................100
8. Bibliografia....................................................................................................110
8
1. Introdução:
Este trabalho consiste em uma caracterização inicial das habilidades de
processamento do número gramatical em fase inicial (de 18 a 42 meses) da
aquisição do português brasileiro. A partir da análise dos resultados de uma coleta
longitudinal de dados de produção e de uma série de experimentos, buscou-se
caracterizar o reconhecimento do número gramatical e o processamento da
concordância de número no sintagma determinante na aquisição do português
brasileiro.
Esta dissertação está vinculada ao Projeto Integrado do Grupo de Pesquisa
Processamento e Aquisição da Linguagem do LAPAL (Laboratório de
Psicolingüística e Aquisição da Linguagem da PUC/RJ), onde são desenvolvidas
pesquisas experimentais com o objetivo de prover modelos teóricos a serem
tomados como base para o estudo do desenvolvimento lingüístico de crianças. O
contexto teórico no qual estes modelos são desenvolvidos é o de uma teoria de
aquisição da linguagem que tem por objetivo conciliar Teoria Lingüística com
teorias do processamento lingüístico. Teorias de aquisição de linguagem que são
propostas em termos unicamente lingüísticos ou psicolingüísticos tendem a deixar
de lado elementos fundamentais no processo, como a definição do estágio inicial
de aquisição e do objeto a ser adquirido (como é o caso de teorias desenvolvidas
no âmbito da Psicolingüística e da Psicologia do Desenvolvimento), ou o modo
como a criança segmenta porções do input em unidades perceptuais
lingüisticamente relevantes (como acontece nos modelos baseados unicamente em
uma teoria de língua). Daí a necessidade de se buscar uma conciliação entre estas
duas disciplinas.
No que tange à teoria lingüística, a corrente gerativista, das suas primeiras
formulações até os seus desenvolvimentos mais recentes, tem se preocupado com
o problema da aquisição da linguagem, procurando definir o estágio inicial do
processo e aquilo que é de fato adquirido, numa perspectiva que concebe a
linguagem como um sistema cognitivo biologicamente especificado. Assim, tal
vertente de estudos lingüísticos se nos afigura como relevante para os propósitos
aqui pretendidos, razão pela qual esta dissertação nela se baseará.
9
A aquisição da linguagem vista pelas mais recentes formulações da teoria
gerativa, tais como o Modelo de Princípios e Parâmetros (Chomsky, 1981) e o
Programa Minimalista (Chomsky, 1995) tratam o problema da aquisição em
termos de princípios universais comuns às diversas línguas do globo, e de
parâmetros a serem fixados pela criança no decorrer do seu desenvolvimento
lingüístico. A enorme variação observada entre as línguas seria produto das
diferentes possibilidades de fixação destes parâmetros, os quais estariam restritos
à força dos traços das categorias funcionais.
1.1 - Hipótese de Trabalho
A hipótese de trabalho que orienta esta dissertação é a de que a informação
relativa a número contida nos elementos que formam a categoria funcional
Determinante (D) é crucial para a identificação do sistema de número no
português. Os valores relativos a número identificados nos elementos da categoria
D como marcado/não marcado são interpretados semanticamente como singular e
plural por meio do mecanismo da concordância. Estudos recentes demonstram que
crianças em fase de aquisição são sensíveis tanto aos determinantes (Holle &
Weissenborn 2000) quanto a propriedades fônicas destes mesmos determinantes
(Name 2002; Name e Corrêa, 2002), dando, portanto, suporte a esta hipótese aqui
assumida, no que concerne às classes morfológicas identificadas no âmbito da
categoria D. A presente dissertação pretende investigar o quanto de informação
relativa a número a criança pode reconhecer no âmbito do DP1, bem como
averiguar suas habilidades no que se refere à concordância de número.
Por outro lado, esta dissertação pretende traçar um paralelo entre os
processos de aquisição de gênero e de número, visando fundamentalmente ao
estabelecimento de distinções entre as duas categorias e entre os dois processos. O
traço de número em português guarda significativas diferenças em relação ao
traço de genêro. Em primeiro lugar, o traço de gênero é predominantemente um
1
DP (determiner phrase). Abney (1987) sugere que a categoria funcional D também projeta níveis
X’’ através da combinação da projeção X’ com um especificador. Segundo esta hipótese, os NPs
seriam de fato DPs, projeções da categoria D e não da categoria N. O papel de NP seria o de
complemento de D. A este respeito, ver também Fukui e Speas (1986) apud Raposo (1992).
10
traço intrínseco, que se apresenta arbitrário para o falante da língua.
Conseqüentemente, o valor assumido por este traço precisa ser armazenado na
entrada lexical do item vocabular. Já o traço de número, por sua vez, é um traço
opcional para a grande maioria dos nomes em português2. Desta forma, o valor
assumido por este é conceitualmente interpretável e dependente da referência num
particular contexto de enunciação, o que só não ocorre com o traço de gênero em
um subconjunto dos nomes [+animados].
A aquisição do número gramatical parece ser afetada pela opcionalidade
do traço de número (Corrêa, Name e Ferrari-Neto, 2003). A explicação para tal
dificuldade reside no fato de um traço opcional requerer processamento semântico
adicional.. Daí a previsão de que a aquisição do número é mais demorada e
custosa do que a do gênero, em virtude de envolver processamento semântico
adicional. Procurar-se-á verificar esta previsão por meio de uma comparação dos
resultados dos experimentos sobre aquisição do número realizados no âmbito
desta dissertação com os resultados obtidos por Name (2002) a respeito da
aquisição do gênero gramatical.
Deve ser notado que o número gramatical pode ter manifestações
diferentes em diferentes línguas. Cabe à criança o modo como o número se
apresenta na língua em aquisição. No PB, o número se apresenta
morfologicamente crucialmente em D (dialetos não padrão) assim como em D, N,
Adj, V, Particípio (dialeto padrão), havendo muita flutuação em um mesmo
falante. Pode ser, portanto que a própria fixação dos parâmetros relativos a
número gramatical seja uma dificuldade para criança. Neste estudo, procuraremos
verificar onde a criança (imersas em dialeto predominantemente padrão) identifica
informação semântica relativa a número – no Determinante, no Nome ou em
ambos.
2
Para a distinção entre traço intrínseco e traço opcional, bem como para exemplificação dos
mesmos, ver item 3.2.2
11
1.2 - Objetivos
Nesta dissertação busca-se descrever o reconhecimento do número
gramatical e o processamento da concordância de número no sintagma
determinante na aquisição do sistema de número gramatical em português, além
de comparar esta aquisição com a aquisição do sistema de gênero, com base em
experimentos com dados do português, feitos com crianças entre 18 e 28 meses e
com crianças de 30 a 42 meses, e por meio de um estudo longitudinal que analisou
dados de produção lingüística de duas crianças falantes nativas de português.
Tanto os experimentos quanto o estudo longitudinal concentraram-se na análise da
manifestação do número gramatical nos elementos que formam o DP. Pretendeuse, com isso, determinar algumas competências básicas necessárias para a
aquisição do número gramatical em uma etapa inicial.
Assim, esta dissertação se concentra nas etapas iniciais do processo de
aquisição, quando, a despeito de a produção lingüística da criança ainda ser
bastante limitada, já há um contínuo desenvolvimento de habilidades perceptuais
relevantes para o processamento do material lingüístico e conseqüente aquisição
da língua em questão. É preciso pressupor a presença de habilidades perceptuais
que permitam o processamento da informação relativa a número, em seus aspectos
fônicos e distribucionais (o que estaria na alçada de uma teoria do processamento
lingüístico) e a existência de um programação biológica que possibilite um
tratamento lingüístico à informação processada (o que estaria no âmbito de uma
teoria de língua).
Assim, um dos objetivos gerais deste estudo é construir uma
caracterização preliminar das habilidades perceptuais necessárias para a
identificação da informação relativa a número gramatical (o que e quanto de
informação a criança é capaz de retirar do input); combinada com uma descrição
do número gramatical baseada na teoria lingüística (o que de fato deve ser
adquirido e o que a criança já sabe acerca de número gramatical), obedecendo
assim à perspectiva teórica assumida. Um outro objetivo geral é a elaboração de
uma revisão crítica da literatura sobre a aquisição do número gramatical e do
número conceitual em português e em outras línguas, bem como sobre a aquisição
12
do gênero, desejando-se com isso mostrar o que já foi pesquisado sobre o assunto,
e ao mesmo tempo justificar o enfoque teórico aqui assumido.
No que tange aos objetivos específicos, esta dissertação pretende:
•
Caracterizar o que se apresenta como um problema para a criança
no que diz respeito a número gramatical, no processamento do
material lingüístico da fala, especificando preliminarmente o que
seria requerido da criança, em termos de habilidades perceptuais,
para que ela adquira o sistema de número em uma língua.
•
Analisar dados de produção lingüística de crianças em fase de
aquisição, com vistas a verificar como a criança formula
lingüisticamente informação relativa a número conceitual.
•
Verificar as habilidades da criança no que concerne à presença de
morfema de número no nome, bem como a habilidade de
processamento de concordância de número no DP.
•
Comparar o processo de aquisição do número com o processo de
aquisição do gênero, visando com isso a uma melhor caracterização
de ambas as categorias, bem como a uma descrição mais explícita
das diferenças entre ambos os processos.
1.3 - Justificativa da Proposta
O presente estudo concentra-se na caracterização dos processos de
aquisição do número por crianças falantes de português, considerando-se a
possibilidade de esta caracterização ser estendida às demais línguas, portanto
fazendo parte de uma teoria geral de aquisição. Justifica-se tendo em vista a quase
inexistência de trabalhos sobre tal tema com dados do português. Seu enfoque
básico incide sobre a necessidade de se obterem dados preliminares do grau de
reconhecimento da criança à informação relativa a número presente no input
13
lingüístico, além de comparar o processo de aquisição do número com o
mecanismo de aquisição do gênero, visando evidenciar possíveis diferenças entre
as duas categorias. Justifica-se, também, em virtude de este tema apresentar
potencialmente dados relevantes para estudos sobre deficiências específicas de
linguagem (DEL). Este trabalho também constitui-se no início de um estudo mais
avançado, a ser elaborado em etapa acadêmica posterior, o qual visa a estudar a
aquisição do sistema de número considerando-se as possíveis influências dos
diferentes sistemas de concordância de número co-existentes, cujas manifestações
morfológicas variam de acordo com a classe social, sobre o processo de aquisição
do número gramatical.
1.4 - Contexto Teórico e Escopo do Trabalho
Uma teoria de língua de base gerativa tem por objetivo básico determinar o
estado inicial em que se acha uma criança submetida a um input lingüístico
qualquer. Tal teoria de língua deve igualmente fornecer uma descrição do estado
final do processo, ou seja, do estado estável de aquisição de uma língua. No que
tange ao número gramatical, é preciso dotá-lo de um status tal que seja possível
explicar a sua aquisição por qualquer falante normal (que não apresente
deficiências cognitivas específicas para a língua) de qualquer língua do mundo.
Em outros termos, é preciso inserir a categoria de número em uma teoria de língua
que dê o suporte teórico básico para a explicação do que deve ser adquirido,
representando assim o marco inicial de qualquer descrição do processo. Iniciandose a abordagem do problema da aquisição de número pelo que tange à Teoria
Lingüística, recorre-se ao modelo de Princípios e Parâmetros (Chomsky, 1981) e à
sua formulação mais recente, o Programa Minimalista (Chomsky, 1995), uma vez
que essa proposta teórica apresenta a língua como um sistema cognitivo,
comprometendo-se, portanto, com a questão da aquisição da linguagem.
Sendo assim, o pressuposto teórico que orienta esta dissertação é a de que
existe uma programação biológica, específica da espécie humana e voltada
unicamente para a linguagem, responsável pela aquisição de uma primeira língua,
definida como um conjunto inato de mecanismos que atuam sobre os dados
lingüísticos primários aos quais a criança está exposta. Esta programação é
14
conhecida como Gramática Universal (GU)3 e, no âmbito do modelo Princípios e
Parâmetros, vem sendo formalmente caracterizada como uma série de princípios
universais pertencentes à faculdade de linguagem, e de parâmetros não-marcados
que têm seu valor fixado por meio do contato com a língua materna. No Programa
Minimalista, assume-se que a GU corresponde a um sistema computacional
lingüístico que atua sobre os dados do input. A GU é concebida como o estágio
inicial do processo de aquisição de linguagem, sendo as diferentes línguas do
globo diferentes combinações de parâmetros ativados. Nesta perspectiva, o
problema da aquisição pode ser posto em termos de fixação de valores
paramétricos por parte da criança, com base nas informações extraídas do input
lingüístico que lhe é oferecido.
Além disso, é mister relacionar a informação relativa a número lingüístico
a um sistema de processamento do material fônico, cuja função básica é permitir à
criança processar os enunciados lingüísticos a que é submetida, retirando deles a
informação necessária para a aquisição. Isto está no âmbito de uma teoria do
processamento lingüístico e de aquisição de linguagem. No que diz respeito à
teoria psicolingüística, a questão reside no fato de que a criança que processa o
material lingüístico o faz de alguma forma, extraindo dele a informação relevante
para a aquisição. Neste ponto, a articulação com uma teoria de língua é inevitável,
uma vez que o processo de aquisição da linguagem é intimamente dependente
daquilo que é definido como o problema de aquisição, ou seja, daquilo que é
concebido como objeto da aquisição, e quaisquer hipóteses formuladas acerca da
natureza desse objeto devem considerar as capacidades discriminatórias da criança
ao processar o input lingüístico4. Muitas dificuldades surgem no estudo da
aquisição justamente por não se levar em conta esta interação. Uma teoria de
aquisição formulada estritamente no âmbito de uma teoria lingüística não permite
a caracterização do modo como a informação presente no input é processada,
assim como uma teoria integralmente psicolingüística não explicita que unidades
lingüísticas são processadas por um parser (processador sintático), ou seja, não
3
Do inglês Universal Grammar
Isto significa dizer que cabe à teoria lingüística especificar o objeto a ser adquirido, ao passo que
à teoria psicolingüística cumpre determinar de que modo este objeto é percebido, delimitado e
extraído do input pela criança (a esse respeito, ver Correa, 2000)
4
15
levam em conta o que se apresenta como um problema de aquisição para a
criança.
Resultados de pesquisas sobre percepção da fala por bebês indicam que
estes possuem capacidades relevantes para o processamento lingüístico, ainda que
nem sempre se possa dizer que esteja havendo processamento lingüístico, em
sentido estrito. Tais capacidades são cruciais para a aquisição de uma língua. No
entanto, é preciso que as informações identificadas nos dados lingüísticos
primários sejam processadas com base em conhecimento lingüístico especificado,
sob pena de não serem considerados relevantes. O fato de uma criança processar
informação lingüística já desde os primeiros meses de vida (cf. Shi, Werker e
Morgan, 1999), pode ser indicativo não só da existência de um aparato
processador complexo, mas também de uma GU ampla e rica.
Do ponto de vista de uma criança que está adquirindo número, sua tarefa é
primeiramente reconhecer que porções do input contêm informação relevante
neste sentido (Bloom & Wynn, 1997). Assim, ela deve ser capaz de discriminar
diferenças fonéticas (como as existentes entre as diversas realizações do morfema
de plural português –s), variações morfológicas (os vários morfemas e alomorfes
de número), sintáticas (como no caso do número indicado por padrões de
concordância) e semânticas. Note-se que, mesmo que o bebê seja perceptualmente
capaz de fazer estas distinções, tais informações só se tornam relevantes para ele
quando consideradas à luz de uma programação biológica geneticamente
especificada, responsável pelo tratamento lingüístico da informação processada.
Conforme já foi dito anteriormente, o modelo de Princípios e Parâmetros e o
Programa Minimalista concebem esta programação biológica inata em termos de
princípios universais e parâmetros a serem fixados pelo contato com uma língua
materna qualquer. Embora não fique muito claro o que seja exatamente um
parâmetro de variação no que concerne ao número gramatical, cremos poder
assumir esta proposta nesta dissertação, articulando-a com uma teoria do
processamento lingüístico.
Na problemática da aquisição de linguagem, deve-se ainda considerar a
atuação de outros domínios cognitivos sobre o processo de reconhecimento de
16
unidades lingüísticas que especificam informação relativa a número presentes nos
dados primários. A hipótese assumida por modelos gerativistas é a da
modularidade cognitiva. Segundo esta hipótese, o mecanismo de aquisição de
linguagem é específico dela, não apresentando interface óbvia com outros
componentes do sistema cognitivo, no sentido de que remete a um sistema
computacional
lingüístico,
concebido
como
um
módulo
cognitivo.
O
funcionamento desse módulo irá, não obstante, depender de relações de interface
entre este e outros sistemas cognitivos necessários ao desempenho lingüístico.
Assim sendo, o mecanismo de aquisição da linguagem permite que a criança
perceba sons vocais como realizações lingüísticas, que identifique padrões que
possam ser processados por meio do sistema cognitivo da língua. Esse mecanismo
deverá permitir também que a criança relacione padrões fônicos a propriedades
semânticas, dado que a operação do sistema da língua resulta em informação
passível de ser interpretada por sistemas conceptuais. No caso do número
gramatical, a criança deverá perceber categorias morfológicas como marcada/não
marcada a partir de padrões fônicos recorrentes. Deverá identificar também as
propriedades semânticas que podem ser vinculadas a estes padrões fônicos. Em
português brasileiro, o morfema de número se faz presente necessariamente no
Determinante e não necessariamente no nome. A criança deverá identificar essas
distinções morfológicas e interpretá-las semanticamente. (Corrêa, a sair).
Estudos recentes com bebês mostram que desde muito cedo eles são
capazes de discernir quantidades numéricas e efetuar cálculos (Wynn, 1998,
Wynn et al. 2002, Starkey et al. 1990); a maneira como a informação concernente
a estas quantidades também tem sido pesquisada (Pascale-Noel & Seron, 1997,
Gelman et al. 1986), assim como a aquisição de palavras numéricas (Bloom &
Wynn, 1997).
A questão assim é saber se a criança percebe distinções morfofonológicas
no âmbito dos determinantes e se a criança faz uso de seu conhecimento numérico
na interpretação dessas formas, o que seria indicativo do processamento da
concordância de número no âmbito do DP.
17
O problema da aquisição de número, portanto, deve ser estudado sobre a
perspectiva da Teoria Lingüística (que deve fornecer um modelo de língua a ser
adquirido, estabelecendo o estádio inicial do processo), e da Teoria
Psicolingüística (responsável pelos modelos de processamento do sinal acústico
que contém a informação relativa a número, descrevendo o processo de
aquisição), buscando estabelecer interfaces entre o sistema da língua e os sistemas
conceptuais (responsáveis pela informação semântica relativa a número), e
perceptuais (responsáveis pela identificação da porção do input relativa a número
gramatical).
1.5 - Apresentação da Categoria Lingüística de Número:
Pode-se definir número como uma categoria gramatical que leva em conta
a quantidade de indivíduos designados nos nomes (Câmara Jr., 1992). Essa
categoria tem sido objeto de estudo de lingüistas e psicolingüistas durante
décadas, interessados na manifestação lingüística desta categoria (em termos
fonológicos, morfossintáticos e semânticos), em sua representação mental (em
termos de acesso e representação lexical), nos problemas relativos à sua posição
na estrutura do sistema computacional da língua (como um traço formal ou como
uma categoria funcional), e em sua aquisição. As descobertas apontam, ao
contrário do que possa parecer à primeira vista, para uma matéria extremamente
complexa, de grande dificuldade descritiva e de formalização complicada, devido
à riqueza com que o número gramatical se manifesta nas diferentes línguas do
globo.
O uso do termo “categoria”, na tradição dos estudos lingüísticos e
gramaticais, é pouco consistente e uniforme. Embora de larga aceitação, seu real
sentido ainda não é totalmente determinado. Sua acepção mais freqüente é a de
“classe” ou “conjunto”, referindo-se a qualquer grupo de elementos reconhecidos
na descrição de línguas particulares (cf. Lyons, 1979). Essas “classes” ou
“conjuntos” seriam traços universais da linguagem humana: cada língua
manifestaria, em sua forma particular, categorias universais, como o tempo, o
modo, o caso, o gênero, etc. O número seria, assim, uma destas categorias
universais.
18
De fato, o caráter universal da categoria gramatical de número poderia ser
atestado pelo fato de estar presente em grande parte das línguas conhecidas no
mundo5. Sua manifestação mais comum é a distinção entre “um” e “mais de um”,
freqüente em muitas línguas estudadas. Essa distinção, correspondente aos
conceitos de “singular” e “plural”, se baseia claramente no reconhecimento de
seres e coisas que podem ser enumeradas. Contudo, deve-se ter em mente que tal
distinção nem sempre é óbvia, e que os conceitos de “um” e “mais de um” são, em
grande parte, determinados pela estrutura lexical de cada língua. Daí a
diferenciação
entre
nomes
“contáveis”
e
“não-contáveis”,
que
varia
consideravelmente de língua para língua. Por exemplo, a palavra “uva” é contável
em português e inglês (“grape”), podendo ir ao plural uvas/grapes; o mesmo não
ocorre em russo e alemão, onde “uva” é traduzido respectivamente como
vinograd/traube, sendo considerados nomes não-contáveis. Em francês “uva”
(“raisin”) pode ser usado no singular como nome contável (“Prenez un raisin” =
coma uma uva), ou no singular como nome não-contável (“Voulez vous du raisin
?” = Quer uva ?)6 (cf. Lyons, 1979).
Merecem também destaque certas diferenciações semânticas decorrentes
da manifestação da categoria gramatical de número. Em primeiro lugar, há a
questão dos nomes ditos “coletivos”, cujo significado intrínseco designa “mais de
um” (em realidade um grupo de seres ou coisas), apesar de assumir morfologia
singular. A determinação de um nome como coletivo também parece variar de
língua para língua, sendo complexa uma análise neste sentido (Lyons 1979). Em
segundo lugar, há aqueles nomes lingüisticamente indecomponíveis (no sentido de
que eles não se reduzem a uma forma singular), porém interpretáveis
semanticamente como um conjunto de partes ou atos: núpcias ou funerais são
exemplos típicos em português (Câmara, 1970). Por fim, há aqueles nomes cuja
distinção mórfica singular/plural leva a uma distinção semântica para além do
“um” e “mais de um”. É o caso de açúcar, cujo plural açúcares não só denota
5
Corbett (2000) cita resultados de estudos com uma língua amazônica, o pirahã, a qual não possui,
ou pelo menos não foi ainda observada, nenhuma marca formal de número. Em kawi (língua
javanesa), existe apenas a indicação do número através de quantificadores (“muitos”, “todos”, etc).
Também o chinês clássico não possui marcas formais de número.
6
Esta frase exemplifica a estrutura de partitivo obsevada em francês. Em português, pode-se notar
construções semelhantes, tais como “Ele bebeu da água” ou “Ele comeu do bolo”, ainda que pouco
usuais.
19
“mais de um” como também parece indicar outros tipos de açúcar (refinado,
mascavo, etc. ) (cf. Câmara, 1970).
Também os valores do número vão muito além da conhecida distinção
singular/plural. Em verdade, estudos revelaram oposições entre singular, plural,
dual (“dois seres”, como havia no indo-europeu e no grego antigo, e que deixou
um resquício em português na palavra “ambos”), trial (três seres, como em certas
línguas fijianas), quadral (quatro seres) e paucal, (alguns seres) (cf. Corbett,
2000). Isto não se falando das nuances semânticas que por vezes assumem o
singular e o plural, que podem indicar totalidades indeterminadas ou números
genéricos, como em “Eu vi cachorros”, “Eu comi carne a vida inteira”, etc.
1.6 - Problemas Relativos à Aquisição do Número Gramatical
Como se vê, o estudo da categoria lingüística de número pode assumir
contornos muito mais sinuosos do que parece à primeira vista. No que se refere à
aquisição, as questões que se colocam são: o que é que a criança deve adquirir ?
Que conhecimentos, lingüísticos e não-lingüísticos, ela já deve possuir para que a
aquisição se dê sem problemas (como de fato já acontece, uma vez que, a despeito
de toda a variação observada, a criança adquire o sistema de número em tempo
razoavelmente curto e com alta proficiência)? Que tipo de informação semântica e
morfofonológica deve ser retirada do input ? Estas questões são altamente
relevantes em qualquer estudo sobre o processo de aquisição do número
gramatical. Esta dissertação pretende prover algumas evidências favoráveis à
hipótese aqui assumida, a de que a informação fônica contida no determinante é
crucial para que a criança fixe o valor do parâmentro relativo a número. Tal
hipótese pressupõe que aquilo que deve ser adquirido é o valor do parâmetro
relativo ao traço de número; que a informação relevante para inicialização do
processo de aquisição do número está nos determinantes; e que existe uma
programação biológica inata codificada em uma GU.
20
1.7 - Organização do Trabalho
Esta dissertação apresenta a seguinte estrutura: no Capítulo 2 são
mostradas uma descrição da categoria de número em português e uma breve
exposição da manifestação do número gramatical nas diversas línguas. Neste
mesmo capítulo são apresentadas resenhas de estudos sobre aquisição do número
gramatical e sobre desenvolvimento do número conceitual. O Capítulo 3 trata da
fundamentação teórica deste trabalho – são apresentadas e discutidas definições
relativas à caracterização do número na Teoria Lingüística (como um traço formal
ou como uma categoria funcional), e à formalização do mecanismo de
concordância, além da apresentação do conceito de bootstrapping. O Capítulo 4
cuida da explicitação da metodologia adotada para a obtenção dos dados
pesquisados. Finalmente, o Capítulo 5 apresenta e discute os resultados
experimentais.
21
2. Revisão da Literatura
No capítulo anterior, foi apresentada a categoria gramatical de número,
juntamente com algumas de suas propriedades e características. Neste capítulo,
será feita uma caracterização da manifestação desta categoria, primeiramente no
português, e a seguir nas diversas línguas do globo. Será também apresentado um
breve resumo dos principais trabalhos que tratam da aquisição do número
conceitual e de sua possível influência na aquisição do número gramatical,
buscando-se com isso ilustrar o caráter de maior transparência semântica da
categoria de número, em face à opacidade da categoria de gênero.
2.1 - O Número em Português
Em português, a descrição da categoria lingüística de número recebeu
tratamento amplo em Câmara Jr. (1970). Após o surgimento destes estudos,
alguns outros autores também se dedicaram à descrição da manifestação do
número em português, como Moraes (1992). A sistematização que se segue é
baseada nos estudos de Câmara Jr. (1970).
O idioma português admite dois valores para número: singular e plural,
correspondendo, respectivamente, a oposição entre um e mais de um. O singular
corresponde morfologicamente a uma forma geral não marcada (morfema Ø) e o
plural uma forma morfologicamente marcada com uma desinência de número
plural que, em português, é manifestada morficamente pela desinência /-s/ em
posição posvocálica final, e fonologicamente pelo arquifonema /S/, o qual
representa os quatro alofones da desinência de número: /s/, /z/, /∫/ e /Ζ/.
Em sua descrição, Câmara Jr. destaca a situação especial dos coletivos,
nomes em que a forma singular envolve uma significação de plural. Neste caso, a
língua interpreta uma série de seres homogêneos como uma unidade superior, o
que leva a determinação do valor do número no singular, de acordo com esta
unidade e não com seus elementos constituintes: multidão (coleção de pessoas),
rebanho (coleção de cabeças de gado). Está claro que tais nomes também
possuem flexão, pois podem indicar mais de um conjunto: multidões, rebanhos.
Outro caso especial é o dos nomes privativamente plurais, interpretados como um
22
contínuo de atos ou partes constituintes integradas: as férias, as núpcias, as
algemas, etc. Tais vocábulos não possuem singular mórfico correspondente.
Câmara Jr. também chama a atenção para os plurais estilísticos, aqueles
usados não para indicar oposição singular-plural, mas para provocar no ouvinte
uma conotação de exaltação ou humildade. Presentes desde o antigo latim, que os
agrupava em uma categoria chamada pluralia tanta, estas formas de plural são
utilizadas muito mais estilisticamente, para acarretar no ouvinte uma reação
afetiva, do que gramaticalmente, para marcar um plural oposto ao singular. Em
português são referidos como o plural de modéstia, ou como o plural majestático.
Tirando estas excepcionalidades, poucas complexidades são observadas na
descrição do número em português, segundo Câmara Jr. Uma delas está nas
mudanças morfofonológicas exigidas por certas palavras, o que ocasiona
diferentes alomorfes. Assim, nomes terminados no singular em –s (precedidos de
vogal tônica), -r, -z e –n formam o plural com o acréscimo do alomorfe –es: paíspaíses, pilar-pilares, vez-vezes, cânon-cânones. A presença da vogal átona
justifica-se pela impossibilidade de, em português, surgirem grupos silábicos
formados por –rs,-zs, etc. (ainda que possa ocorrer em –ns, como em prótonprótons). Outro caso de alomorfia ocorre com nomes terminados em –l,
precedidos de vogal diferente de –i, cujo plural é expresso através da forma –is:
jogral-jograis, coronel-coronéis. Quando os nomes terminados em –l forem
precedidos da vogal –i, pode ocorrer a queda do –l e o acréscimo de –s (fuzil-fuzis,
funil-funis) ou queda do –l mais o acréscimo do alomorfe –eis (fóssil-fósseis,
míssil-mísseis).
Ainda, entre os casos de alomorfia foneticamente condicionada, estão os
nomes terminados em –x e –s, que, quando precedidos de vogal átona, não sofrem
variação: tórax, cútis. Nestes casos, o plural tem de ser indicado através de
marcação no determinante: estes tórax, as cútis. Os casos de metafonia também
podem ser elencados aqui. Trata-se de nomes cujo plural implica não só acréscimo
da desinência de número mas também de alteração no timbre da vogal do radical:
corpo-corpos, ovo-ovos). Esta metafonia configura-se como uma marca
redundante de plural, da mesma forma que acontece com o plural de certos
23
diminutivos, os quais tanto o substantivo primitivo quanto o derivado apresentam
marca de plural: anel-anéi(s)=zinhos, fogão-fogõe(s)zinhos.
O último caso listado por Câmara Jr. em sua descrição é o dos plurais dos
nomes terminados em –ão. Certo número deles forma o plural com o acréscimo
do morfema –s (todos os paroxítonos e um número pequeno de oxítonos: sótãosótãos, cristão-cristãos); a maioria (inclusive os aumentativos em –ão), além do
acréscimo do –s, apresenta alternância da vogal e da semivogal: balão-balões,
valentão-valentões; e, finalmente, um número reduzido apresenta, além do –s,
uma alternância da semivogal (alemão-alemães, capelão-capelães). Câmara Jr.
ressalta, no entanto, que para alguns destes nomes não há ainda uma forma de
plural definitivamente fixada, sendo que esta variação livre não é tão freqüente
quanto sugerem as longas listas de plurais em –ão presentes nas gramáticas
escolares.
O quadro a seguir resume a descrição do número em português feita por
Câmara Jr.:
•
Morfema de Plural = -s
•
•
Ex.: país - país-es
Alomorfe –es
pilar – pilar-es
Nomes terminados no singular
vez
- vez-es
em –s (precedidos de tônica), -r,
cânon – cânon-es
-z e –n
•
•
Ex.: jogral – jogra-is
Alomorfe –is
coronel – coroné-is
Nomes terminados em –l,
lençol
– lençó-is
precedidos de vogal diferente de
azul – azu-is
i
Ex.:
fuzil
– fuzi-is (crase entre o i do
Nomes terminados em –l
radical
e o i do alomorfe)
precedidos de i tônico
barril – barri-is
Ex.:
fóssil
– fóss-eis
Alomorfe –eis
réptil – répt-eis
Nomes terminados em –l
táctil
– táct – eis
precedidos de i átono
Ex.: o tórax – os tórax
Alomorfe –Ø
o simples – os simples
Nomes terminados em –x e –s
a
cútis – as cútis
precedidos de vogal tônica
Ex.: ovo – ovos
Plurais Metafônicos
corpo – corpos
(plural redundante – acréscimo da
desinência e alteração no timbre da
vogal)
•
•
•
•
•
•
Ex.: bola-s, carro-s
24
Ex.: anel + zinho = anei-zinho-s
• Duplo Plural
cão + zito = cãe-zito-s
(plural de nomes diminutivos derivados)
Ex.:
caixão
– caixões
• Nomes terminados em –ão
cristão – cristãos
apresentam tripla possibilidade
pão – pães
de plural (muitos em variação
livre e sem forma definitiva
fixada)
Ex.: as férias
• Nomes privativamente plurais
as núpcias
as bodas
os óculos
Alofones do Morfema de Plural (foneticamente condicionados)
/s/ - fricativa alveolar surda = pás, nós
/z/ - fricativa alveolar sonora = más notícias (dialeto mineiro)
/∫/ - fricativa alveopalatal surda = maus comentários
/Ζ/ - fricativa alveopalatal sonora = más notícias (dialeto carioca)
2.2 – O Número nas Diferentes Línguas
No que diz respeito à expressão da categoria lingüística de número nas
diversas línguas do globo, um exame cuidadoso revela uma gama rica e variada de
manifestações (Corbett, 2001). É possível encontrar indicações da categoria de
número na sintaxe de um nome, na morfologia, no léxico e na fonologia A
semântica do número também é muito diversificada, havendo distinções entre
valores de número muito além da conhecida oposição singular/plural, isto não se
falando das nuances semânticas que por vezes assumem o singular e o plural.
Uma destas distinções semânticas é o que Corbett (2001) chama de
número genérico (general number). Há línguas no mundo nas quais um nome
pode ser expresso sem referência a um valor específico. Um exemplo de língua
que apresentaria um número genérico seria o bayso, falado em certas regiões da
Etiópia. São as seguintes as flexões de número para esta língua:
Lúban foofe (“Eu vi leão”)
Lúban –titi foofe (“Eu vi um leão”)
Lúban-jaa foofe (“Eu vi alguns leões”)
Lúban-jool foofe (“Eu vi muitos leões”)
25
Observa-se que o singular, nesta língua, é expresso através de desinência
específica, o que a diferencia do português, no qual o singular, como já vimos, é
forma não marcada. A não-marcação de um nome em bayso corresponde à
expressão do número genérico, o qual expressa um ser ou mais de um ser,
indeterminadamente. O português apresenta uso semelhante, diferindo do bayso
somente no fato de que não apresenta desinência específica para este fim (em
português o número genérico é um uso especial do singular ou do plural)7.
Como grande parte das línguas ocidentais fazem apenas a distinção
singular/plural, há uma tendência em achar que tal oposição é a única existente.
Entretanto, o número gramatical pode apresentar valores muito mais variados. Já o
antigo indo-europeu apresentava oposição entre singular, plural e dual (relativo a
dois seres). Muitas línguas atuais também assumem tal distinção, como é o caso
do sérvio superior (upper sorbian), uma língua eslava falada entre Berlim e a
fronteira da Polônia. Em línguas com o número dual, o plural fica restrito a grupos
de três ou mais seres:
ja (“eu”)
mój (“nós dois”)
my (“nós”)
ty (“você”)
wój (“vocês dois”)
wy (“vocês”)
hród (“castelo”)
hrodaj (“dois castelos”)
hrody (“castelos”)
Há também o número trial (três seres), o quadral (quatro seres) e o paucal
(alguns seres)8. Em línguas que apresentam o trial (como o larike, das Ilhas
Molucas) o plural se restringe a grupos de quatro ou mais seres. As que
apresentam o quadral (como o sursurunga, falado na Melanésia), o plural se refere
a mais de quatro seres. E as que apresentam paucal em seus sistemas de número
gramatical podem opô-lo ao singular e plural (como no bayso), ao singular, plural
e dual (caso do yimas, da Papua Nova Guiné), ou ao singular, plural, dual, trial e
paucal (como em lihir, também da Papua Nova Guiné). E, conforme já visto na
Introdução, há também o caso do pirahã, língua da Amazônia, que,
7
Ver, a esse respeito, o artigo de Anna Muller “A Expressão da Genericidade no Português do
Brasil”. Revista DELTA, nº 2, vol. 18, ano 2002
8
As denominações “dual” e “trial” constam do vocabulário da língua portuguesa, segundo o
Dicionário Eletrônico Houaiss, versão 1.0, possuindo acepção semelhante a que lhes confere
26
aparentemente, não apresenta nenhuma distinção de número gramatical,
constituindo-se assim em uma rara exceção entre as línguas do mundo.
Além destas distinções semânticas e morfológicas, as línguas também
possuem uma grande variedade de modos pelos quais o número é expresso. O
tagalog, língua oficial das Ilhas Filipinas, tem um sistema de expressão do número
gramatical que consiste na presença de um item lexical (um morfema livre) para a
indicação do número. O mesmo acontece com o miskitu, uma língua caribenha
falada na Nicarágua:
Bahay (“casa”) - mga bahay (“casas”)
(tagalog)
Tubig (“água”) – mga tubig (“copos”)
(tagalog)
Aras (“cavalo”) – aras nani (“cavalos”)
(miskitu)
A configuração sintática da frase também pode contribuir para a
identificação do número de um nome, através do mecanismo da concordância. Tal
situação acontece quando não há marcas de plural visíveis no controlador da
concordância (nome que determina a flexão dos determinantes e adjetivos a ele
relacionados). Corbett dá um exemplo do inglês:
Those goats are eating the washing
Those sheep are doing nothing about it.
Na primeira oração, goats é o controlador da concordância e, por
apresentar a marca de plural –s, exige a presença do determinante plural those,
além do verbo flexionado na 3ª pessoa do plural. Na segunda oração, sabemos que
sheep é plural somente pela presença de determinante e de verbo plurais, já que
sheep não apresenta marca de número.
Em amele, idioma falado em certas
regiões da Nova Guiné, existem as seguintes configurações sintáticas, onde se
pode perceber que a determinação do número da palavra dana (“homem”) é
especificada pela presença de certos morfemas livres na oração:
Corbett. O mesmo não acontece no caso das denominações “quadral” e “paucal”, inexistentes em
português. Manteve-se por este motivo as denominações e os significados originais.
27
Dana uqa ho-i-a (“O homem veio”) – uqa = singular
Dana ale ho-si-a (“Os dois homens vieram”) – ale = dual
Dana age ho-ig-a (“Os homens vieram”) – age = plural
Alterações morfológicas para a expressão de número gramatical são
igualmente freqüentes e variadas. Existem línguas como o russo, por exemplo,
que apresentam bases distintas para a fixação do morfema de número. O russo
pode adicionar um morfema de singular ou um morfema de plural a uma mesma
base, como é o caso de komnat- (“sala”), base cujo singular é komnata e cujo
plural é komnaty. Porém, para o nome krylo (“asa”), o singular é feito sobre a base
kryl- e o plural sobre a base kryl´j-.
Muitas vezes acontece algum tipo de
mudança morfofonológica no radical de uma palavra para distinguir valores de
número gramatical: uma mostra seria o plural de uma palavra em shilluk, como
kiy, cujo correspondente singular é realizado pela alternância entre vogais longas e
breves (kîy/kíy). Redobros e modificações internas no radical são observados em
línguas como o ilocano púsa (“gato”) plural púspusa (“gatos”), e no inglês goose
(“ganso”) plural geese (“gansos”).
Em algumas línguas, percebe-se a presença de morfemas, semelhantes a
clíticos, cuja função é indicar o número da palavra a qual está ligada. Clíticos são
formas dependentes, e este fator diferencia esta forma de marcação de número
daquela que apresenta uma palavra específica para a mesma marcação (como nos
exemplos do tagalog vistos anteriormente). Uma língua que apresenta clíticos
plurais é o dogon, do Níger:
Ene ge mbe (“as cabras”) onde mbe é um clítico ligado à ene (“cabra”)
Encontram-se casos de línguas em que os itens lexicais possuem mais de
uma marca de número, normalmente quando ocorre juntamente com um morfema
de número um morfema derivacional. A palavra do bretão bag (“barco”) faz o
diminutivo singular em bagig e o plural em bagou, donde se conclui que os
morfemas de diminutivo e plural são, respectivamente, -ig e -ou; quando se forma
o diminutivo plural bagouigou, percebe-se que foram adicionados ao radical dois
28
morfemas de plural. Por fim, têm-se os casos de marcação de número realizados
por supleção heteronímica, de que são exemplos as palavras inglesas person
(“pessoa”) e people (“pessoas”) e as russas celovek (“pessoa”) e ljudi (“pessoas”).
A supleção é comum no sistema pronominal de muitas línguas, como a oposição
entre os pronomes retos no português eu-nós/tu-vós, e no inglês I/we, e também
em certas formas verbais (é/são, is/are) etc.
Não são apenas as manifestações morfofonológicas e semânticas do
número que são múltiplas e variadas. Também a sintaxe e os usos afetivos e
expressivos possuem formas muito diferenciadas. Não é do âmbito desta
dissertação apresentar todas estas variações. Para tanto, recomenda-se a leitura do
estudo sobre a manifestação do número elaborado por Corbett (2001).
Tendo em vista, portanto, semelhante variação, é mister preocupar-se com
uma teoria de aquisição que, conjugando teoria de língua com teorias de
processamento, dê conta do fato de que a criança, mesmo diante de tamanha
diversidade, consegue processar o material lingüístico de que dispõe e adquirir o
sistema de número de uma língua. Em outros termos, é preciso elaborar uma
teoria de aquisição da linguagem capaz de explicar a aquisição do número
gramatical em qualquer língua em que um sistema de número se apresente e sob a
perspectiva da criança que processa uma língua. Duas perguntas daí se impõem: o
que deve em verdade ser adquirido ? Como se dá esta aquisição ? Sendo assim,
para que a criança venha a adquirir o sistema de número de uma língua, é
necessário que ela seja capaz de processar o material lingüístico que ouve, e isto
pressupõe a existência de habilidades perceptuais precoces na criança, que lhe
permitam segmentar o fluxo da fala em unidades lingüísticas relevantes. Também
é preciso que a criança estabeleça relações entre o material lingüístico processado
com as propriedades lingüísticas especificadas em um programa biológico,
admitindo-se assim a presença de um conhecimento lingüístico inato, capaz de
prover uma leitura lingüística dos segmentos processados, e que se constituiria no
estágio inicial da aquisição.
Deste modo, a resposta a primeira pergunta é que não são regras
morfológicas ou morfemas livres ou presos que devem ser adquiridos. Na
29
realidade, o que de fato a criança adquire são parâmetros relevantes para a língua
em questão. Já a resposta a segunda questão remete à hipótese do boostrapping,
segundo a qual a criança identifica padrões fonológicos, morfológicos, sintáticos e
semânticos que inicializariam o programa biológico, permitindo assim que a
criança reconheça a maneira como categorias e relações gramaticais se
manifestam na língua que está sendo adquirida. A hipótese do bootstrapping será
discutida em mais detalhes no capítulo 3.
2.3 - A Aquisição do Número Conceitual
Na problemática da aquisição de linguagem, mais precisamente na
aquisição do número gramatical, deve-se considerar a atuação de outros domínios
cognitivos sobre o processo de reconhecimento de unidades lingüísticas que
especificam informação relativa a número presentes nos dados primários. A
hipótese assumida por modelos gerativistas é a da modularidade cognitiva. Por
esta hipótese, o mecanismo de aquisição de linguagem é específico dela, não
apresentando interface óbvia com outros componentes do sistema cognitivo. A
relação existente entre língua e outros domínios da cognição, ou do
comportamento humano é indireta, e a aquisição da linguagem, aqui entendida
como uma fixação de valores de parâmetros biologicamente especificados em GU,
provavelmente se faz sem recurso a outros módulos da cognição. Com relação à
aquisição de número, somente a observação do conhecimento que a criança possui
sobre numerosidade à época da aquisição e das possíveis relações que seriam
passíveis de serem estabelecidas entre este conhecimento e o conhecimento da
língua é que permitiriam saber se há ou não interferências do conhecimento
numérico sobre a aquisição de número e, se houver, em que nível e em que etapa
do processo a numerosidade interferiria na aquisição.
Starkey, Spelke & Gelman (1990) apresentaram um estudo levado a cabo
com crianças de 6 a 8 meses, que consistia em detectar correspondências
numéricas entre conjuntos de entidades presentes em diferentes modalidades
sensoriais. Foi elaborada uma série de experimentos cujo objetivo básico era
detectar equivalências numéricas entre conjuntos disparatados de itens, incluindo
entre estes itens objetos visíveis e eventos audíveis. Estes experimentos
30
forneceram evidências de que bebês percebem cores e sons, formas e movimentos,
mas também percebem o número de entidades distintas numa seqüência de sons
ou cena visível. Além disso, descobriu-se que bebês podem relacionar o número
de entidades de um conjunto com as de outro conjunto, detectando assim relações
entre as próprias entidades e conjuntos destas entidades. Estas descobertas de
Starkey, Spelke e Gelman sugerem que bebês são capazes de operar em um nível
abstrato que pode funcionar como ponto de partida para o raciocínio numérico. Os
experimentos conduzidos tentam esclarecer os processos que subjazem às
habilidades numéricas dos bebês, descobrindo-se que bebês claramente podem
proceder a computações numéricas – estabelecendo relações de correspondência –
sobre representações de conjuntos de entidades. A afirmação mais importante,
contudo, é que a emergência das primeiras habilidades numéricas não depende do
desenvolvimento da linguagem, do desenvolvimento de ações complexas, ou da
aquisição de um sistema de contagem específico de uma cultura ou língua – o
estudo de Starkey, Spelke e Gelman aponta para o fato de que o número é um
domínio natural da cognição e suporta uma abordagem do desenvolvimento
cognitivo racionalista e especifica por domínio. Bebês não parecem ser dotados de
habilidades gerais para sentir e aprender. Eles parecem ter capacidades para
formar e transformar representações em domínios particulares do conhecimento.
Em cada um destes domínios, o conhecimento irá se desenvolver.
Em outro trabalho igualmente interessante, Wynn e Bloom (2002)
estudaram o comportamento de bebês de 5 meses em tarefas envolvendo número.
O objetivo dos autores era descobrir se as habilidades numéricas de um bebê
procedem de capacidades exclusivamente dedicadas à cognição numérica ou se a
origem destas habilidades está em capacidades cognitivas não-numéricas gerais,
tais como uma sensibilidade a traços perceptuais ou mecanismos de localização de
objetos. Controlando em seus experimentos variáveis como comprimento do
contorno, área, densidade e outros, descobriram evidências que suportam a
afirmação que bebês podem representar o número em si mesmo, sugerindo assim
a existência de uma capacidade de discriminação específica para número nos
bebês. As respostas dadas pelos sujeitos nos testes não poderiam ser baseadas em
nenhum outro atributo perceptual.
31
Wynn (1998) resume as habilidades infantis na manipulação da
numerosidade:
•
Bebês podem discriminar pequenos números de entidades diferentes.
Quando repetidamente são apresentados a eles telas com um dado número
de objetos visuais (digamos, dois) os bebês ficam aborrecidos e seu tempo
de fixação do olhar sobre as telas diminui, mas eles recuperam o interesse
se são apresentados a uma tela que contém um novo número de objetos
(digamos, três). Estas descobertas sugerem que bebês possuem uma
sensibilidade para o número de per si.
•
Bebês podem enumerar entidades que não são objetos materiais, como
ações físicas. Eles têm de dividir uma seqüência contínua em “unidades de
ação” discretas e então enumerá-las. Estudos mostraram que bebês de seis
meses também são capazes de enumerar seqüências de ações heterogêneas.
Há, igualmente, evidências de que bebês podem enumerar sons e, além
disso, marcar um número de sons da mesma forma que objetos materiais.
•
Bebês podem computar suas representações de número. Eles não são
apenas sensíveis ao número: eles também podem proceder a uma
computação numérica. Isto foi demonstrado primeiro em uma série de
experimentos nos quais a bebês de 5 meses foram mostradas operações de
adição e subtração simples sobre pequenos conjuntos de objetos. As
respostas numéricas foram em alguns casos consistentes com as operações,
em outros casos inconsistentes.
Para Wynn (1998) evidências como as apontadas acima indicam que a
natureza do conhecimento numérico é muito diferente daquela apontada por
teóricos de linha empiricista. Segundo tais teóricos, as crianças obtêm uma
percepção e um conhecimento acerca dos fatos numéricos, como contagem,
adição ou subtração, através da manipulação física dos objetos (coletar e separar
objetos, por exemplo). Os estudos de Wynn parecem não comprovar abordagens
empiricistas, pois, afirma Wynn, muito antes de poderem manipular objetos os
32
bebês já são capazes de perceber e estabelecer relações numéricas entre entidades
e conjuntos pequenos de entidades.
No que diz respeito à representação mental do número, muitos modelos
foram propostos. Pascale-Nöel e Seron (1997) apresentam três destes modelos:
a) McCloskey et al. (1985,1992, apud Pascale-Nöel & Seron, 1997)
De acordo com McCloskey et al. (1985) representações semânticas dos
números são abstratas e únicas, isto é, são independentes do formato usado
(verbal, arábico, romano, analógico, etc.) e da modalidade do estímulo
apresentado (auditivo ou visual). Nesta perspectiva, a compreensão do numeral
requer que ele seja traduzido para uma representação abstrata interna, enquanto
sua produção requer que sua representação semântica interna seja traduzida para
um formato de output adequado. McCloskey et al. postulam uma arquitetura
cognitiva com três componentes principais: dois sistemas periféricos – um para a
compreensão de numerais e outro para sua produção – e um nível central para
representação semântica dos números. McCloskey et al. assumem a existência de
representações específicas de números (arábicos, fonológicos ou grafêmicos) mas
estas representações são encapsuladas em módulos-satélites de input e output e
exercem um papel apenas no reconhecimento periférico e estágios de produção.
Cálculos, comparações de tamanho, julgamentos de paridade e outros processos
aritméticos operam com representações abstratas.
a) Campbell & Clark (1988,1992, apud Pascale-Nöel & Seron, 1997).
Campbell &Clark apresentarm um modelo (Modelo de Codificação
Complexa (encoding-complex model)) no qual postularam que conceitos de
número são representados por códigos específicos para formato e modalidade.
Existem códigos verbais (isto é, códigos articulatórios, auditivos, ortográficos e
motores para variadas palavras numéricas faladas e escritas) e códigos não-verbais
(isto é, códigos visuais e motores para dígitos, imaginários e outros códigos
análogos para magnitude e representações visuais e motoras combinadas para
várias atividades relacionadas a número, como contar os dedos ou usar um ábaco).
Todos estes códigos internos são associativamente conectados em uma complexa
33
rede que pode ser ativada diretamente sem mediação de um código central. Cada
um destes códigos internos pode ser usado para algum tipo de processamento
numérico.
c) Dehaene (1992, apud Pascale-Nöel & Seron, 1997)
O modelo de Código Triplo (Triple-code model) pode ser visto como uma
tentativa de acomodar os postulados de modularidade de McCloskey et al. (1985)
e a assunção de Campbell & Clark (1988) de múltiplos e específicos códigos
internos. Mais precisamente, Dehaene propõe a existência de três diferentes
códigos para representar números mentalmente: um código auditivo verbal, um
código arábico visual e um código de magnitude analógico. A comunicação entre
estas representações é feita através de caminhos de tradução. O modelo também
especifica quais códigos internos são usados para quais operações numéricas. Em
outras palavras, o modelo assume que as mesmas representações de base seriam
usadas em uma dada tarefa toda vez que fosse apresentado um formato de
numeral. Portanto, o código verbal seria usado para a contagem e recuperação de
fatos aritméticos, enquanto cálculos com muitos dígitos ou julgamentos de
paridade seriam mediados através do código arábico; a magnitude analógica seria
usada para comparação ou quantidade aproximada.
Em um estudo sobre a natureza das representações mentais do número,
feito com adultos em idade universitária, Pascale-Nöel & Seron (1997)
descreveram uma série de seis experimentos que visavam descobrir se números
apresentados em diferentes formatos ativariam as mesmas representações
semânticas. As conclusões a que chegaram foram as de que, dependendo da
estrutura léxico-sintática do numeral a ser processado, diferentes representações
intermediárias são ativadas (pelo menos com adultos assim ocorre, pouco sabendo
se o mesmo acontece com bebês). A natureza das representações que baseiam o
desempenho em tarefas numéricas e aritméticas permanece um tema em aberto. O
que se sabe é que crianças jovens (2 a 3 anos) podem representar a numerosidade
quando esta não é maior do que dois ou três (cf. Gelman e Gallistel, 1986).
Com base nestes estudos, pode-se afirmar que desde muito cedo os bebês
desenvolvem suas habilidades de raciocínio numérico, o que parece indicar, a
34
exemplo do que é proposto por Chomsky para as línguas humanas a existência de
um dispositivo inato para a aquisição e desenvolvimento do conhecimento
numérico e aritmético. Este dispositivo teria natureza modular, sendo
exclusivamente dedicado à cognição numérica, assim como a GU o é para a
linguagem. Daí concluir-se que o conhecimento da numerosidade provavelmente
influi marginalmente na aquisição do número gramatical – as evidências aqui
descritas sugerem que o conhecimento matemático e o conhecimento lingüístico
se desenvolvem paralelamente, havendo alguma intersecção entre ambos os
sistemas, mas sem influência recíproca (a este ponto, ver o item 5.1). Não há, ao
que parece, estudos conclusivos a respeito, estudos que levem em conta apenas
língua e cognição numérica – tal questão aguarda ainda maiores pesquisas.
Apenas o trabalho de Brysbaert, Fias e Nöel (1998) concentra-se
especificamente nesta questão. Nele, os autores buscaram evidências da influência
da chamada Hipótese de Sapir-Whorf sobre a cognição numérica. Segundo esta
hipótese, a língua que as pessoas usam interferiria no modo como a realidade é
percebida. Uma série de experimentos com falantes de francês e holandês foram
elaborados para descobrir efeitos de Sapir-Whorf na cognição numérica. Como as
línguas possuem sistemas de codificação numérica diversos, os sujeitos eram
ideais para o teste. As descobertas destes experimentos estão alinhadas com o
previsto pelo modelo de codificação complexa proposto por Campbell & Clark
(1988/1992). De acordo com este modelo, operações matemáticas são
desempenhadas num código específico que depende do formato do input.
Portanto, um problema apresentado em formato arábico provavelmente ativará o
mesmo código não verbal para sujeitos falantes de francês e holandês, e nenhuma
diferença de linguagem é esperada. Todavia, um problema apresentado em
formato verbal vai ativar representações relacionadas com a língua, o que poderia
incluir propriedades particulares da língua dos nomes dos números. Portanto, é
previsível aqui um “efeito de Whorf”, como de fato foi observado neste
experimento. Os resultados evidenciam a idéia de que o sistema numérico é
largamente autônomo do sistema da língua (exceto talvez durante a fase de
aquisição), o que não significa que o efeito de Whorf não possa existir em outras
áreas da cognição humana. O efeito de Whorf não deve ser considerado como
uma manifestação do determinismo lingüístico, mas sim uma indicação de quão
35
extensa uma parte do sistema cognitivo pode ser penetrada por processos de
linguagem, ou é um módulo encapsulado, independente da linguagem.
2.4 – A Aquisição do Número Gramatical
No que diz respeito a sua aquisição, tem havido relativamente poucos
trabalhos sobre o número. Contudo, a pesquisa neste campo inclui alguns estudos
bastante interessantes. De um modo geral, a pesquisa sobre aquisição do número
subordina-se à pesquisa sobre a aquisição da morfologia. Estuda-se a aquisição do
número do ponto de vista da aquisição de regras morfológicas. Assim, línguas
morfologicamente mais ricas têm sido mais estudadas, como é o caso do alemão
(cf. Corbett, 2000).
Um dos primeiros e mais interessantes trabalhos nesta área é o de Berko
(1958, apud Saporta, 1961), sobre a aquisição da morfologia do inglês por
crianças nativas. Seu objetivo era identificar a natureza do conhecimento
envolvido na aquisição de regras morfológicas. Num experimento famoso, Berko
submeteu crianças em idade pré-escolar a um teste que consistia em eliciar
formas de plural de palavras inventadas, além de eliciar outras formas flexionadas.
Mostrava-se à criança um cartão contendo uma figura com um nome falso a
nomeá-la. “Isto é um wug”; em seguida mostrava outro cartão, desta vez com duas
figuras. “Agora há outro. Há dois deles. Agora há dois...?”. Outras formas lexicais
inventadas foram usadas neste experimento. Berko dividiu os sujeitos da pesquisa
em dois grupos, um com crianças entre quatro e cinco anos e outro com crianças
entre cinco e sete anos, e descobriu uma diferença significativa na habilidade dos
grupos em produzir formas plurais (o grupo mais velho obteve um desempenho
significativamente superior). Ela descobriu também diferenças de desempenho
causadas pelo tipo de alomorfe usado (o desempenho das crianças foi melhor
quando o morfema requerido foi /-s/ ou /-z/ e pior quando o plural correto exigia o
alomorfe /-ez/). A conclusão a que Berko chegou foi a de que o vocabulário das
crianças contém as marcas de plural /-s/ e /-z/ e o alomorfe /-ez/ e o desempenho
no uso de cada marca é diferenciado, sendo o plural em /-ez/ mais complicado em
36
virtude de sua irregularidade. A cuidadosa metodologia deste trabalho tornou-o
um clássico nos estudos sobre aquisição da morfologia.
O trabalho de Cazden (1968) sobre a aquisição de flexões nominais e
verbais do inglês é outro estudo digno de nota. Cazden propõe a existência de
quatro estágios na aquisição do plural. No primeiro, as crianças não produzem
nenhuma forma de plural. No segundo, são produzidos plurais ocasionais, e as
formas de plural são sempre corretas. No terceiro estágio, há um acentuado
crescimento na produção de plurais e as crianças começam a produzir
superregularizações. No quarto e último estágio, o plural é produzido em 90% dos
contextos obrigatórios, sendo os falantes assim considerados proficientes no
domínio do plural. Este estágio é alcançado entre 25 e 34 meses. A transição do
primeiro para o segundo estágio ocorre quando as crianças começam a produzir
fragmentos estocados não analisados de falas ouvidas previamente, as quais
incluem formas de plural. A passagem do segundo para o terceiro estágio
representa um importante fenômeno: a criança formula uma regra produtiva e a
utiliza de forma indistinta. A transição do terceiro para o quarto estágio representa
um período de consolidação, generalização e revisão das regras criadas no terceiro
estágio.
Mervis e Johnson (1991) apresentam um estudo de caso cujo objetivo é
prover um conjunto de dados sobre a aquisição do morfema de plural por parte de
uma criança (o próprio filho de Mervis, Ari), e considerar as implicações destes
dados para as teorias e modelos de aquisição da linguagem. Mervis e Johnson
elaboraram um diário do desenvolvimento lexical de Ari, iniciando a coleta aos 10
meses de idade e continuando até os 21 meses, com notas estendidas até 30 meses.
Segundo estes dados, Ari adquiriu o morfema de plural com a idade de 1 ano, 8
meses e 7 dias (as autoras seguem a orientação de Brown (1973) e Cazden (1968),
os quais consideram que uma criança adquire o plural quando ele é produzido em
90% dos contextos obrigatórios). Uma nova periodização da aquisição do plural,
diferente da de Cazden, foi elaborada neste estudo. Para Mervis e Johnson, a
aquisição do morfema de plural se faz conforme os seguintes estágios:
37
a)
Pré-plural (até a idade de 1 ano, 6 meses e 4 dias): Durante este
período, o morfema de plural nunca foi usado. Corresponde ao
primeiro estágio de Cazden.
b)
Transicional (1 ano, 6 meses e 5 dias até 1 ano, 8 meses e 6
dias): Durante este período, o morfema de plural foi usado em
algumas ocasiões. Formas de plural para palavras cuja pronúncia
é considerada não-fechada (not close) nunca foram produzidos.
Este estágio foi dividido em dois: I – Transicional pré-regra
(1;6.5 – 1;7.15): Durante este período, Ari não produziu erros de
supercategorização. Portanto, ele não demonstrou possuir uma
regra para formar plurais. Corresponde ao segundo estágio de
Cazden. II – Transicional pós-regra (1;7.16 – 1;8.6): Este
período começa com os erros de superregularização e continua
até os plurais serem usados em 90% dos casos obrigatórios.
Corresponde ao terceiro estágio de Cazden.
c)
Plural Infantil (Child Plural, 1 ano, 8 meses e sete dias até 1 ano,
11 meses e 28 dias): Este estágio estende-se do tempo em que
Ari usou os plurais em 90% dos contextos obrigatórios até ele
não mais cometer erros de flexão de palavras cujos radicais
foram estabilizados em seu vocabulário. Corresponde ao quarto
estágio de Cazden.
d)
Plural Adulto (a partir de 1 ano, onze meses e 29 dias): Do início
deste estágio, Ari demonstrou dominar completamente o
morfema plural. Ari já era capaz, nesta etapa, de perceber e
corrigir os seus erros.
Durante o período de aquisição estudado, Ari cometeu 5 tipos de erros:
•
Formações Regressivas (Back Formations): O primeiro e mais
freqüente tipo de superregularização foi a formação regressiva
de nomes terminados em /S/ ou /Z/, permitindo uma forma de
singular na qual a consoante final foi deletada (“plier” para
“pliers”.
•
Marcas regulares de nomes que possuem morfema zero para
plural: o segundo erro mais freqüente envolvia a adição de
38
morfemas de plural regulares em nomes cujos plurais são
idênticos às formas do singular.
•
“Mass Nouns”: foram registrados 3 casos de adição de
morfemas de plural regulares no final de nomes como “água”,
“macarrão”, etc.
•
Nomes irregulares tratados como regulares: o tipo menos
freqüente de superregularização envolveu a adição de
terminações regulares a radicais de nomes que possuem uma
forma de plural irregular (“mans” ao invés de “men”).
•
Adição de morfemas de plural a adjetivos
•
Uso de formas de plural em contextos de singular obrigatório
•
Erros envolvendo quantificadores (“many” , “much”)
Os dados obtidos na coleta longitudinal de dados levada a cabo nesta
pesquisa fornecem evidências compatíveis com a divisão em estágios de aquisição
proposta por Cazden (1968) e Mervis & Johnson (1991). Tendo em vista que os
sujeitos nos quais se baseou a coleta tinham idade entre 24 e 28 meses à época de
realização da coleta (inserindo-se, portanto, no último dos estágios sugeridos por
Cazden, e no final do estágio de plural infantil proposto por Mervis & Johnson)
era de se esperar que a sua produção de plurais se fizesse de acordo com as
características descritas para esses estágios por ambos os autores. Observou-se, na
análise dos dados da coleta, que os sujeitos que dela participaram produziram os
plurais nos contextos em que ele foi exigido, sem cometer erros de flexão tais
como superregularizações e troca de morfemas (para maiores detalhes sobre os
procedimentos usados para coletar dados de produção e sobre os resultados
obtidos, consultar os itens 4.2 e 5.1).
Koehn (1994) e Köpcke (1998) elaboraram trabalhos baseados na
aquisição do inglês e do alemão. Ambos partem de um crítica aos modelos
morfológicos fundamentados em Item e Processo (IP models) como os de Berko
(1958), argumentando que mecanismos diferentes de regras estão envolvidos no
processamento de informação morfológica. Ao termo “regras”, Koehn e Köpcke
preferem a palavra “regularidade”, para expressar os padrões distribucionais de
39
variação alomórfica. As principais evidências contra os modelos IP foram feitas a
partir de um experimento conduzido por Bybee e Slobin (1982) em uma tarefa de
elicitação. Eles sugeriram que a omissão de uma terminação morfológica depende
não somente de certas regras ou de certos alomorfes, mas também da forma básica
do item lexical ao qual deveria ser adicionado. As crianças testadas por Bybee e
Slobin produziram formas de pretérito regulares e irregulares, e pôde-se notar que
as crianças mostraram uma significativa tendência a não colocar o afixo de
pretérito /-ed/, /-d/ ou /-t/ em verbos terminados em /t/ ou /d/ respectivamente. Isto
significa que as crianças tendem a não alterar verbos como “want”, tomando-o
como uma forma já marcada para pretérito. A conclusão foi a de que as crianças
inicialmente não operam com com regras de afixação de formas básicas mas sim
levam em consideração um modelo de forma desejada, ou seja, formulam
generalizações relativas aos modelos desejados, como formas de pretérito ou de
plural. A assunção básica desta abordagem reside no fato de que não apenas
existem formas básicas e formas derivadas através de afixação, mas que também
podem ser formuladas generalizações a respeito das propriedades fonológicas de
uma classe, como por exemplo a classe das formas de plural. Esta assunção
implica que afixos em geral não estão armazenados independentemente dos
radicais com os quais ocorrem e que a estrutura de formas morfologicamente
complexas é identificada através da comparação com outras formas que contém os
mesmos elementos. Na questão da aquisição da linguagem, as regras devem ser
induzidas através da comparação entre formas relacionadas que estão
representadas no léxico mental. Isto quer dizer que no mínimo uma certa
quantidade de formas morfologicamente complexas devem ser processadas e
extraídas do input como um todo, e estocadas no léxico mental como tais. Classes
de palavras podem ser estabelecidas a partir de formas que contêm os mesmos
traços semânticos e fonológicos. No nível mais abstrato, esquemas podem
envolver traços fonológicos específicos de uma dada classe morfológica (como o
plural, por exemplo). Para o inglês, um esquema poderia ser enunciado como “um
nome que termina em /s/ ou /z/, respectivamente, provavelmente é uma forma de
plural”. Os estudos de Koehn (1994) e Köpcke (1998) apresentam evidências
favoráveis a esta visão.
40
Em português, a aquisição do número recebeu pouca atenção de
pesquisadores e estudantes, o que causou uma certa escassez de estudos
concernentes a esta área.
Inicialmente, tem-se o trabalho de Massotti (1977) sobre a aquisição das
regras de plural de substantivos. Trabalhando com crianças de 6 a 10 anos de
idade, Massotti pretendeu controlar as variáveis envolvidas no processo de
aquisição, quais sejam, segundo ela, idade, escolaridade, maturação, sexo e nível
sócio-econômico. Sua hipótese é a de que a aquisição depende de tais variáveis,
sendo a sócio-econômica a mais relevante. A pesquisa também aponta para uma
ordem de aquisição das regras de plural de acordo com o nível de complexidade
das mesmas (regras mais complexas são adquiridas posteriormente) propondo
então um modelo de ensino de plural que obedeça a esta ordenação (Massotti
propõe que as regras de plural sejam ensinadas na escola de acordo com as sua
ordem de aquisição). A metodologia de pesquisa foi baseada nas experiências de
Berko (1958) e os dados empíricos obtidos levaram à depreensão de diferentes
gramáticas, de acordo com a produtividade apresentada pelas crianças nos testes
aplicados.
Palhares (1981), em sua dissertação de mestrado, nos apresenta uma
pesquisa sobre a aquisição das regras de formação do plural das palavras
terminadas em –l ou em –u assilábicos. Por meio de um teste, aplicado a 120
crianças de 5 a 10 anos, procurou-se verificar como se dá a aquisição das regras
de plural de palavras com terminação –l ou –u. A escolha desta questão deveu-se
ao fato de que a aquisição do plural de tais palavras é de fato problemática, uma
vez que o –l pósvocálico é pronunciado como a semivogal /w/, principalmente no
dialeto da área do Rio de Janeiro. Em posição posvocálica, o fonema /l/ tem uma
variante velar cuja realização é muito próxima da semivogal /w/. Deste modo, ao
se formar o plural de uma palavra pouco usual que possua o ditongo final
terminado pela semivogal /w/, não se tem meio de saber se a palavra termina com
/w/ ou /-l/. Este fenômeno irá ter influências na formação do plural das palavras
terminadas em –al, -el, -il, -ol e –ul, provocando a confusão destes plurais com os
das palavras terminadas em ditongos correspondentes. Os resultados mostraram
41
que o desempenho das crianças vai aprimorando-se ao longo do tempo, de acordo
com o domínio do conhecimento do vocabulário.
Cappellari & Zilles (2002) apresentam uma análise de dados longitudinais
da fala de uma criança de 4 a 8 anos de idade, extraídos do Banco de Dados do
Projeto DELICRI (Desenvolvimento da Linguagem da Criança em Fase de
Letramento, conduzido pelo Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRS). O propósito do trabalho não é, todavia, investigar o
surgimento da marcação de plural na fala infantil, haja visto que os dados desta
pesquisa foram coletados em uma série de entrevistas realizadas com uma criança
de 4 anos de idade, gravadas durante um espaço de tempo de 4 anos; e a
emergência da marcação de plural na fala infantil ocorre por volta dos 2 anos de
idade. O objetivo é na realidade descobrir em que medida a fala da criança é
comparável à do adulto, no que diz respeito à influência de variáveis lingüísticas e
extralingüísticas que ambas sofrem. Para tanto, a autora recorre aos resultados
obtidos por Scherre (1996) em sua pesquisa sobre a variação da concordância
nominal no português falado, para caracterizar o plural na fala do adulto; e aos
dados de Lamprecht (1997) sobre a aquisição do plural por parte de crianças
bilíngües, para caracterizar o plural na fala da criança. Os resultados obtidos
parecem favorecer a visão de que as crianças na faixa etária observada
apresentam, no que toca à marcação de plural, um comportamento bastante
semelhante aos dos adultos, o que comprova que ambas as falas (a do adulto e a
da criança) parecem ser afetadas pelas mesmas variáveis lingüísticas e
extralingüísticas.
2.5– Considerações Finais:
Conforme pôde ser atestado pela leitura deste breve histórico, trabalhos
sobre aquisição de número têm sido relativamente pouco freqüentes na literatura
sobre aquisição da linguagem. A rigor, somente o trabalho de Mervis e Johnson
(1991) cuida especificamente do assunto, ao passo que os demais o citam dentro
do contexto maior da aquisição da morfologia. Em português, a situação ainda é
mais dramática, uma vez que as pesquisas neste campo foram realizadas com
sujeitos em idade um tanto avançada (para além dos 2 anos de idade), como nos
42
trabalhos de Massotti (1977), Palhares (1981) e Cappellari & Zilles (2002). A
presente dissertação vem suprir esta lacuna, iniciando um trabalho específico em
aquisição do número gramatical com dados do português, efetuando experimentos
com sujeitos em idade precoce (entre 18 e 42 meses).
Os trabalhos acima resenhados apresentam problemas em comum, a
despeito do rigor metodológico com que foram conduzidos e do seu inegável
valor. Em primeiro lugar, faltou definir exatamente aquilo que deve ser adquirido.
Em Berko (1958), Cazden (1968), Mervis & Johnson (1991), Koehn (1994) e
Köpcke (1998), o objeto a ser adquirido é concebido em termos de regras
morfológicas de formação de plural. Tal concepção pressupõe uma visão de
língua como um sistema de regras,e , ainda que modelos de língua possam admitir
entre os seus componentes conjuntos de regras, não fica claro, nos textos
resenhados, qual o lugar das regras morfológicas de formação de plural no sistema
total da língua. Em outras palavras, faltou especificar o que é exatamente uma
regra gramatical. Igualmente são ignoradas questões acerca dos conhecimentos
prévios que a criança deve possuir para chegar a formulação de uma regra
gramatical.
Além disso, a maneira como as crianças chegam a formular uma regra
também não se acha muito explícita. De um modo geral, afirma-se que a criança
observa as diferentes manifestações lingüísticas do número gramatical e induz
destes dados uma regra genérica de formação de plural, armazenando as
irregularidades em um léxico. Contudo, nada é dito sobre quais informações
presentes no input lingüístico são relevantes para que a criança adquirindo número
gramatical induza regras gramaticais, nem sobre como estas informações são
processadas pela criança (em realidade não são especificadas as habilidades
perceptuais necessárias para o processamento dos dados lingüísticos primários e
consequente retirada de informações relevantes para a aquisição do número
gramatical)
Portanto, tais estudos carecem ou de um modelo de língua que defina com
clareza o que deve ser adquirido, assim como especifique quais conhecimentos
devem estar disponíveis previamente na criança. Eles carecem também de um
43
modelo de processamento que permita explicitar o modo como é processado o
sinal acústico. Como já foi afirmado anteriormente, entende-se que o processo de
aquisição de linguagem fica melhor compreendido se se considerar teoria de
língua conjuntamente com teoria de processamento, e isto parece não ter sido
observado por nenhum dos estudos em questão.
44
3 – Fundamentação Teórica
Neste capítulo, procurar-se-á mostrar, através de uma argumentação
expositiva, os pressupostos teóricos nos quais se fundamenta a pesquisa aqui
desenvolvida. O objetivo é delinear um quadro teórico sob cuja perspectiva os
resultados dos experimentos realizados no âmbito desta dissertação possam ser
analisados e discutidos. Busca-se igualmente a construção de uma sustentação
teórica para as hipóteses aqui assumidas.
3.1 – O Problema da Aquisição da Linguagem sob a Perspectiva da
Criança
Nos capítulos anteriores, verificou-se que a informação relativa a número
gramatical se manifesta na maioria das línguas conhecidas. Da mesma forma,
observou-se que esta manifestação é muito variada, aparecendo de maneira muito
diversificada na fonologia, morfologia, sintaxe e semântica. Entretanto, viu-se
também que o morfema de número é um dos primeiros a se manifestar na fala da
criança em fase de aquisição.
Tal situação leva-nos a um interessante paradoxo: se, por um lado, a
manifestação linguística do número é extremamente variada, mesmo dentro de
uma
determinada
língua
(se
se
considerarem
também
as
variações
sociolinguísticas presentes em qualquer língua), por outro, o número é adquirido
de maneira relativamente fácil e rápida, ou seja, em torno de 3 anos. A observação
deste curioso fenômeno é fundamental na teorização sobre os processos de
aquisição do número gramatical, em particular, e da linguagem como um todo.
Segundo Corrêa (2002), uma teoria de aquisição de linguagem deve
forçosamente encarar duas questões fundamentais: determinar o que de fato está
sendo adquirido pela criança e explicitar o processo mediante o qual a criança
adquire aquilo que deve ser adquirido. A primeira questão pressupõe uma teoria
de língua e representa o marco zero de qualquer teorização sobre a aquisição de
linguagem. Já a segunda assume uma teoria de processamento linguístico e
45
configura-se como aquilo que deve ser explicado por uma teoria do processo de
aquisição.
Como esta dissertação versa sobre aquisição de linguagem, não se pôde
furtar a encarar as questões acima delineadas, pois quaisquer questões relativas à
compreensão do mecanismo de aquisição da linguagem devem levar em
consideração não só a definição do que é tomado como problema de aquisição
mas também a formulação de hipóteses acerca das habilidades de processamento
lingüístico presentes na criança em fase de aquisição.
A perspectiva teórica assumida nesta dissertação busca conciliar um
modelo de língua com um modelo de processamento. Tal perspectiva propõe um
modelo de identificação da informação relativa a número fundamentada no modo
como é estabelecida, pela criança, uma relação entre aquilo que é captado
perceptualmente (informação de natureza acústica) com aquilo que é fornecido
por um programa biológico (informação de natureza genética). Formula-se o que
se apresenta como um problema de aquisição do número gramatical pela criança
com base no Programa Minimalista (Chomsky, 1995), e na hipótese do
bootstrapping (Pinker, 1987, Morgan & Demuth, 1996) considerando-se que a
percepção de regularidades (padrões de natureza sintática, morfológica,
fonológica e semântica) presentes principalmente no âmbito do vocabulário das
categorias funcionais, permite a inicialização do programa biológico responsável
pela identificação das categorias e relações gramaticais da língua em aquisição.
Acompanhando este raciocínio, o problema da aquisição do sistema de
número em qualquer língua pode ser formulado em termos de um processo que
compreende duas fases: uma segmentação, pela criança, do input linguístico que
lhe é oferecido, seguida do estabelecimento de uma relação entre esta informação
e o programa biológico responsável pelo tratamento linguístico desta informação,
de modo a reconhecer nos dados segmentados a informação relativa a número.
Assim posto, quaisquer hipóteses formuladas segundo tal pensamento devem
pressupor a existência tanto de habilidades perceptuais muito sensíveis presentes
na criança desde os primeiros meses de vida, quanto a de uma dotação biogenética
46
encarregada de guiar o processamento linguístico, e que se constituiria no estágio
inicial do processo de aquisição.
Nesta fundamentação teórica, portanto, deve ser apresentado um modelo
de língua que assuma um conhecimento linguístico inato, o qual permitiria a
determinação exata daquilo que será adquirido, assim como deve ser igualmente
apresentado um modelo de processamento que possibilite relacionar os dados
processados com a informação biologicamente especificada.
Com relação ao modelo de língua, recorreu-se ao quadro teórico fornecido
pela teoria linguística de base gerativa, em sua vertente chomskyana, qual seja a
sua formulação mais recente, o Programa Minimalista (Chomsky, 1995,1999).
Procurar-se-á explicitar não só a definição de número gramatical proposta por esta
teoria de língua (número como um traço formal φ presente na entrada lexical dos
itens lexicais), mas também os mecanismos de concordância de número que
atuam no âmbito do DP. No que se refere ao modelo de processamento, buscar-seá mostrar a hipótese do bootstrapping como uma teorização válida sobre o que e
quanto de informação perceptual é preciso para que a criança relacione os dados
linguísticos primários provenientes do ambiente no qual se acha inserida com a
informação biológica especificamente linguística geneticamente especificada,
além de citar quais são as habilidades perceptuais que a criança possui na fase de
aquisição de linguagem.
A hipótese assumida por esta dissertação é a de que a informação relativa a
número presente nos elementos que formam a categoria Determinante é crucial
para a fixação do(s) parâmetro(s) relativo(s) ao traço de número. Tal hipótese, à
luz do Programa Minimalista, concebe o número como um traço formal φ,
constante da entrada lexical dos itens lexicais, e pressupõe que a criança seja
capaz de segmentar o fluxo da fala de modo a identificar a porção do input
lingüístico relativa a número, bem como sugere a disponibilidade precoce das
categorias funcionais na criança em fase de aquisição. Nos itens a seguir, buscarse-á explicitar em mais detalhes o acima exposto.
47
3.2 – O Programa Minimalista (Chomsky, 1995,1999)
O Programa Minimalista (1995) é uma das mais recentes versões da Teoria
Lingüística de base gerativa chomskyana. Ele não se constitui como um novo
modelo teórico da gramática gerativa, muito ao contrário: partindo do modelo de
Princípios e Parâmetros, o Programa Minimalista propõe uma série de orientações
teóricas que visam especificar as condições que a faculdade da linguagem humana
deve satisfazer para se desenvolver, bem como determinar as propriedades que
esta faculdade deve possuir. O Programa Minimalista é motivado pela idéia de
que devem ser evitados postulados teóricos não estritamente necessários à teoria,
daí o adjetivo “minimalista”.
O Programa Minimalista propõe dois níveis de representação, os quais
atuam como níveis de interface com os sistemas de desempenho. O nível de
representação PF (Phonetic Form) funciona como nível de interface com o sistema
A-P (articulatório-perceptual) e o nível LF (Logic Form), por sua vez, age como
interface com o sistema C-I (conceptual-intensional). Apenas estes níveis de
representação (PF e LF) são assumidos pela teoria. Chomsky propõe o conceito de
spell-out, como o momento em que a derivação separa os objetos distintos de cada
nível de representação.
Uma língua particular L é concebida, dentro do Programa Minimalista,
como um procedimento gerativo que constrói pares (π, λ). π é a representação
correspondente à Forma Fonética (PF) e λ a representação correspondente à
Forma Lógica (LF). Os pares (π,λ) são interpretados nas interfaces A-P
(articulatória-perceptual) e C-I (conceitual-intencional), respectivamente, como
instruções para sistemas de desempenho. PF e LF são os únicos níveis de estrutura
lingüística, tendo sido eliminados os níveis Estrutura-S e Estrutura-D. Uma língua
L especifica uma série de computações, ditas derivações, responsáveis pela
geração de expressões. Uma expressão de L é pelo menos um par (π,λ) que
satisfaça ao Princípio de Interpretação Plena (Full Interpretation, ou FI), segundo
o qual as interfaces PF e LF não possuem elementos que não possam ser
interpretados por elas em seus respectivos sistemas de performance.
48
Para dar origem a uma derivação, o sistema computacional mapeia uma
matriz de escolhas lexicais A no par (π,λ). Esta matriz indica quais os itens
escolhidos e quantas vezes cada um é selecionado na formação de uma expressão
L, formando assim uma numeração (conjunto de pares (LI, i) onde LI é um item
do léxico e i o seu índice, entendido como o número de vezes que LI é
selecionado). Sendo N uma numeração, o sistema computacional mapeia N em
(π,λ) e cada vez que um item de N é selecionado, subtrai-se 1 de seu índice. O
processo termina quando o índice é reduzido a zero e o resultado é uma derivação
S que satisfaz ao Princípio FI e a considerações de economia.
3.2.1 - O Número Gramatical no Programa Minimalista
Dentro do modelo minimalista, as línguas humanas seriam formadas por
um sistema computacional e por um léxico. O léxico especifica os elementos que
o sistema computacional seleciona e integra para gerar expressões da língua.
Pode-se conceber o léxico como o lugar onde estão representadas as propriedades
idiossincráticas dos itens lexicais (concepção que não difere muito das versões
anteriores da teoria gerativa). Estas propriedades configurar-se-iam como uma
espécie de “exceções” – tudo aquilo que não é produto de princípios gerais, ou
seja, não é resultado de operações sintáticas estaria codificado no léxico.
Um item lexical armazenado no léxico é composto por traços, como por
exemplo o traço categorial, que indica a que categoria o item em questão pertence
(N, A, V, etc.) e os traços de concordância (pessoa, número, gênero) chamados de
traços φ. Uma entrada lexical típica conteria uma relação som-sentido, uma matriz
fonológica, uma matriz semântica e traços formais não previsíveis, como o traço
plural de um item como “óculos” ou o gênero gramatical, mas esta entrada lexical
não precisaria especificar propriedades previsíveis a partir de outras propriedades
também presentes. Assim, a entrada lexical de “livro”, por exemplo, não
necessitaria especificar que “livro” tem caso ou traços φ, pois isso decorre do fato
de pertencer à categoria N que, presumivelmente por princípios de GU, apresenta
esta espécie de traços.
49
Os traços opcionais de uma ocorrência particular de um dado item lexical,
como, por exemplo, um traço de caso acusativo ou número plural, podem ser
acrescidos ou no momento em que o item é selecionado para a numeração ou no
momento em que é introduzido na derivação. Não é plausível que tais traços
sejam determinados pela posição da palavra na configuração da oração, uma vez
que o item é tomado isoladamente, sendo os traços determinados ainda que não
exista estrutura.
A especificação de caso e de traços φ é em princípio acrescentada a um
item lexical (como um nome) provavelmente no momento em que é selecionado
para a numeração. Diz-se em princípio, pois leva-se em conta aqui apenas o
mecanismo gerativo, e não as intenções e escolhas do falante. Estas só poderão ser
consideradas quando o modelo for adaptado a situações de produção e
compreensão, o que ainda não ocorreu. Desta forma, na numeração, o caso e os
traços φ são especificados alguns pela entrada lexical (os chamados traços
intrínsecos, como o traço de gênero e o traço categorial) outros pela operação que
forma a numeração (os chamados traços opcionais, como o traço acusativo ou de
plural).
3.2.2 - A Concordância no Programa Minimalista
Como foi dito anteriormente, as línguas humanas, segundo o modelo
minimalista, são formadas por um léxico e por um sistema computacional que
atua sobre os dados armazenados no léxico. Todo item do léxico nada mais é do
que um conjunto de traços enfeixados sob uma mesma entrada lexical, traços estes
que representam informações fonológicas, semânticas e formais. Sob esta ótica, o
número gramatical é um traço formal, um traço φ, assim como o de gênero e o de
pessoa. Somente traços formais, como os traços φ e traços categoriais são
acessíveis ao sistema computacional e podem ser passados para LF para serem
interpretados.
Traços podem ser interpretáveis ou não-interpretáveis, intrínsecos ou
opcionais. Um traço é interpretável quando pode ser lido nos níveis de interface. É
intrínseco quando o seu valor já está especificado na entrada lexical e é opcional
50
quando o seu valor varia, sendo especificado quando selecionado para a
numeração. A manifestação desta opcionalidade é morfológica tanto nos nomes
quanto nos determinantes (presença ou não do morfema de número).
O traço de número é opcional para a grande maioria das palavras em
português, à exceção de um certo grupo de palavras que só se usam no plural
(como, férias, núpcias, bodas, etc., conforme o exposto no capítulo 1, as quais
apresentam traço de número intrínseco), Para um outro grupo de palavras cuja
terminação em –s é puramente acidental, o traço de número é opcional, como se
pode concluir a partir da existência de formas de plural de palavras como lápis ou
pires (o lápis/os lápis, o pires/os pires).
No que toca à interpretabilidade, há uma grande discussão a respeito de
onde o traço de número deve ser interpretável, ou nos nomes ou em outros itens.
Chomsky postula que o traço de número é interpretável somente no nome e nãointerpretável nos determinantes (de modo geral, segundo postula o Programa
Minimalista, categorias lexicais possuem traços [+ interpretável], ao passo que
categorias funcionais possuem traços [- interpretável]). Há, no entanto, trabalhos
que consideram a possibilidade de o traço interpretável de número estar no
determinante (cf. Magalhães, 2002). Nesse caso, a identificação do núcleo em que
o traço de número se faz interpretável seria um parâmetro a ser fixado. No caso do
português do Brasil, uma vantagem de se aceitar a interpretabilidade do traço de
número nos determinantes seria a possibilidade de explicar em termos sintáticos o
que acontece em algumas variantes dialetais brasileiras, nas quais o morfema de
plural não aparece em todos os itens que formam o DP (Scherre, 1988).
De acordo com o Programa Minimalista, o movimento de traços em que se
baseia a concordância seria motivado pelo Princípio da Interpretação Plena, o qual
exigiria a eliminação de traços não-interpretáveis nos níveis de interface da
língua. Desta maneira, traços [- interpretável] de categorias funcionais seriam
pareados com os traços [+ interpretável] de categorias lexicais e atraídos,
provocando um movimento sintático. Após este processo de concordância (aqui
entendida como uma operação de checagem), haveria a eliminação de traços [-
51
interpretável]. Vê-se, portanto, que traços [-interpretável] precisam ser checados e
eliminados, no curso da derivação.
Ao
lado
das
distinções
intrínseco/opcional
e
interpretável/não-
interpretável, há também a distinção forte/fraco. Um traço é forte se ocasiona
movimento na sintaxe aberta (aquela que ocorre antes do ponto de spell-out),
tendo assim expressão morfofonológica (envio de material morfofonológico à
Phonetic Form). Um traço é fraco se o movimento acontece na sintaxe encoberta
(aquela que ocorre antes do ponto de spell-out) não possuindo manifestação
morfofonológica.
Depreende-se do acima exposto que o mecanismo de concordância, no
Programa Minimalista, é concebido como uma operação de checagem de traços, e
sua manifestação morfofonológica um produto da força dos traços envolvidos, os
quais podem promover movimento sintático ou na sintaxe aberta ou na sintaxe
encoberta. Assim, tem-se que, no português, no que tange à concordância de
número, este traço seria forte, provocando a checagem na sintaxe aberta, com
envio de material morfofonológico para a PF.
A Teoria Lingüística admite a existência de dois mecanismos de
concordância: a checagem de traços como operação Agree, que ocorreria no
âmbito da sentença, e a checagem de traços como operação Concord (Chomsky,
1999), que se processaria entre os elementos que formam o DP. Num primeiro
momento, a discussão se concentrou na concordância entre sujeito, verbo e objeto,
mas, com a proposta de Abney (1987) sobre a estrutura do DP, passaram a surgir
interessantes trabalhos sobre a manifestação de gênero e de número no nome
(Picallo, 1991, Ritter, 1993), e sobre a concordância entre Nome e Determinantes
(Carstens, 2000). Este último é altamente relevante para a pesquisa aqui
desenvolvida, uma vez que a hipótese de trabalho assumida por esta dissertação é
a de que a informação relativa a número contida nos elementos que formam a
categoria funcional Determinante (D) é crucial para a fixação do parâmetro
relativo a número no português. Acresce, ainda, o fato de que tal estudo propõe
uma configuração para a categoria de número gramatical diversa das inicialmente
propostas por Chomsky. Este estudo será apresentado e discutido a seguir.
52
3.2.2.1 – A Concordância no DP
Na Teoria de Checagem proposta (Chomsky, 1995), as relações de
checagem ocorrem entre núcleo e especificadores. Para checar seus traços [interpretável], um elemento de uma categoria funcional atrai o núcleo de uma
categoria lexical no seu domínio. O núcleo se move para a posição Spec
(especificador) da categoria funcional, checando seus traços [+ interpretável] com
os traços da outra categoria, os quais são posteriormente eliminados.
Uma forma variante desta operação de checagem é a que acontece entre
Determinante e Nome, ou seja, entre núcleo e complemento (checagem in situ).
Chomsky vale-se do termo Concord para separar a concordância com movimento
(Agree), da concordância que envolve somente concatenação (merge),
com
checagem de traços in situ, i.e., sem alçamento do Nome para uma posição de
especificador.
Carstens (2000) afirma que esta operação de checagem entre Determinante
e Nome aconteceria diferentemente. Ela assume um nível intermediário entre NP
e DP, o NumP, que seria uma projeção do número (Num) na sintaxe. A categoria
lexical D teria traços interpretáveis de pessoa e não-interpretáveis de gênero e
número; Num, por sua vez, teria traço interpretável de número e N teria traço
interpretável de gênero. O traço não-interpretável de gênero de D motivaria o
alçamento de N, que seria alçado primeiramente para NumP, onde receberia
número, e, em seguida, para D. N seria adjungido a D (o esquema a seguir foi
retirado de Name, 2002)
DP
D
[α pessoa]
NumP
Num
NP
[β número]
N
[γ gênero]
XP
53
A proposta de Carstens, além de cuidar especificamente da concordância no
DP, traz embutidas interessantes modificações das formulações iniciais de
Chomsky (1995). A mais notável delas é a criação de uma categoria funcional
para o número, o qual, segundo esta concepção, sairia do âmbito do léxico
(deixaria de ser tratado como um traço formal presente na entrada lexical do
nome) para ser incluído na sintaxe (como uma projeção).
No que tange aos objetivos deste trabalho, importa sobremaneira estabelecer
uma articulação entre as formalizações do mecanismo de concordância
apresentadas e a aquisição da linguagem. Dito de outro modo, cumpre determinar
de que maneira uma criança que está processando o material acústico à sua volta
retira dele a informação necessária para a fixação do valor relativo aos traços,
notadamente o de número. Tanto na concepção de Chomsky quanto na de
Carstens, há uma relação de concordância entre nome e determinante na qual os
traços envolvidos já estão especificados na gramática do adulto, (na proposta de
Carstens, o problema seria determinar o quão precocemente estaria disponível a
categoria funcional NumP, já que a presença de categorias funcionais no período
inicial de aquisição da linguagem tem sido alvo de muitas controvérsias).
Assumindo-se um sistema computacional inato, comum às diferentes línguas, este
teria de ser capaz de atuar a despeito de o número do nome não ter traço com
valor especificado, como é no caso da aquisição de itens lexicais (nomes novos)
Para elucidar esta questão, é necessário estabelecer como ponto de partida o
fato de que uma criança que adquire uma dada língua o faz processando os
enunciados à sua volta. Uma teoria de aquisição de linguagem, seja ela de base
empirista ou de base racionalista, não pode se furtar a inserir este fato em seus
modos de teorização. Assim, torna-se altamente relevante determinar as
habilidades perceptuais e competências processuais básicas que subjazem o
processamento de enunciados lingüísticos por parte da criança adquirindo uma
língua.
A criança precisa identificar informação morfofonológica do morfema de
número. Observe-que, pelo menos no português do Brasil, a realização fonológica
do morfema de número ser muito variada, sendo a alofonia expressivamente vasta
54
neste caso (vide seção 2.1), o que pode ser uma dificuldade inicial para a criança.
Entretanto, se for assumido que a criança é capaz de delimitar determinantes e
nomes no fluxo da fala, e que é igualmente capaz de identificar o morfema de
número presente nos elementos da categoria D como indicativo de elemento
marcado e não marcado e de que é capaz de lidar com a idéia de numerosidade,
ela terá de interpretar o morfema de número como indicativo de numerosidade
relativa ao referente de um DP.
No português brasileiro, o morfema de número pode estar presente somente
no D. Com isso, é crucial que a concordância entre D e N possa se estabelecer
para que a informação quanto à numerosidade que diz respeito ao referente do DP
seja reconhecida no D. Para isso, é necessário o processamento da concordância
no DP. Caso a criança extraia informação de número exclusivamente do nome,
não há evidência de que essa concordância se estabelece.
Comparativamente ao gênero, a identificação do morfema em questão talvez
não seja bastante para o desencadeamento da operação do sistema computacional
lingüístico, já que o caráter predominantemente semântico mais visível da
categoria de número acarreta informações a mais a serem processadas, o que
tornaria a sua aquisição mais custosa.
Para que as hipóteses de trabalho aqui assumidas sejam apreciadas, é preciso
assumir uma série de habilidades perceptuais presentes precocemente na criança.
Estas habilidades são apresentadas a seguir.
3.3 - A percepção das propriedades fônicas do estímulo acústico de
fala pelos bebês
As habilidades discriminatórias das crianças em fase de aquisição face ao
input lingüístico ao qual são submetidas é condição sine qua non para a aquisição
da linguagem. Pesquisas recentes têm mostrado que os bebês já de muito cedo são
sensíveis a certas propriedades fonéticas. Estas mesmas pesquisas também
apontam para uma sofisticação crescente das habilidades discriminatórias da
55
criança, o que a permite segmentar o sinal acústico de fala de modo a extrair
informações relevantes para a aquisição de sua língua materna.
Dehaene-Lambertz (1999), em um estudo sobre as bases cerebrais da
percepção de fonemas nos adultos e nos bebês, registrou os potenciais evocados
em bebês de três meses em tarefas de discriminação fonética e acústica.
Diferenças significativas na distribuição da voltagem no escalpo sugerem que
redes neuronais diferentes são ativadas segundo a natureza da modificação.
Existiria então, no bebê, como também no adulto, uma organização em redes
especializadas para o tratamento de estímulos auditivos.
A evolução das habilidades perceptuais ocorrida no primeiro ano de vida
indica que a criança desenvolve uma série de competências que podem ser
relevantes para o processamento do material lingüístico. Admite-se que tais
competências permitem a criança extrair do material lingüístico informações sobre
regularidades de sua língua, tais como propriedades fonotáticas (cf. Friederici &
Wessels, 1993), unidades supra-segmentais (padrões prosódicos e melódicos de
unidades lingüísticas), distribuição estrutural (posição de determinados itens nas
sentenças – Shady, 1996). Além disso, crianças em fase de aquisição são capazes
de diferenciar contrastivamente as vogais e as consoantes possíveis nas línguas
humanas, especializando-se em seguida no reconhecimento de vogais e
consoantes de sua língua materna. Ao atingir a idade média de seis meses, perdem
a sensibilidade a contrastes entre vogais que não sejam de sua língua; e por volta
de 10 a 12 meses, esta perda se estende às consoantes (Peperkamp & Dupoux, no
prelo, Polka & Werker, 1994, Werker & Tees, 1984).
3.4 - A percepção de morfemas pelo bebê
Dentre os estudos sobre a percepção de morfemas pelo bebê destaca-se o
de Gerken et al. (1990). Neste trabalho, buscou-se averiguar a importância dos
morfemas funcionais para a segmentação do fluxo da fala e identificação das
categorias gramaticais por parte de crianças em fase de aquisição. Morfemas
funcionais, como artigos e desinências verbais, por exemplo, possuem
propriedades distribucionais sistemáticas que as tornam adequadas para
56
funcionarem como pistas para a segmentação da fala. Nos experimentos
registrados por Gerken et al., sujeitos com dois anos de idade em tarefas de
imitação de sentenças que continham morfemas funcionais ingleses e não-ingleses
omitiram mais os primeiros do que os segundos. As sentenças foram controladas
em seus fatores segmentais e supra-segmentais, e os resultados apontaram para a
evidência de que as crianças são capazes de usar morfemas funcionais nas fases
iniciais da aquisição de linguagem para proceder à segmentação da fala e
identificação de categorias.
O fato de crianças freqüentemente falharem na produção de morfemas
funcionais em sua fala espontânea (omitindo-o algumas vezes) poderia indicar que
elas os ignoram durante a fase de aquisição. Na realidade, conforme afirmam
Gerken et al., as crianças podem detectar morfemas funcionais no input
linguistico, mas omiti-lo na sua fala natural por limitações na produção da fala.
O trabalho de Name (2002), sobre a aquisição do sistema de gênero em
português, apontou evidências de que as crianças identificam a informação
relativa a gênero presente nos elementos da categoria funcional Determinante (D)
para atribuir o valor do traço intrínseco de gênero de nomes [- animado], o qual é
arbitrário ao falante da língua. Essa atribuição de valor ao traço dos nomes seria
dada pela identificação da variação morfo-fonológica na categoria D, o que, em
outras palavras, significa dizer que a criança percebe o morfema de gênero
presente no determinante. Através do mecanismo gramatical de concordância, o
valor do traço de gênero identificado na variação do determinante seria transferido
ao nome. O trabalho de Name (2002) também proveu evidências de que bebês são
sensíveis à incongruência de gênero entre elementos do DP, sugerindo que a
sensibilidade à concordância gramatical está presente desde muito cedo na
criança.
Os trabalhos acima citados parecem indicar uma disposição precoce da
criança para a segmentação e identificação de morfemas no fluxo da fala.
Contudo, acredita-se, com base nos resultados mostrados pelos estudos acima, que
é possível o desenvolvimento de uma pesquisa que clarifique estas questões,
57
objetivando assim uma melhor compreensão do processo de aquisição da
linguagem.
3.5 – Sensibilidade Precoce dos Bebês aos Determinantes e
Desenvolvimento da Cognição Numérica
Höhle & Weissenborn (2000) observaram a sensibilidade de crianças
adquirindo o alemão aos determinantes, valendo-se da técnica de escuta
preferencial. Os resultados vistos apontam para uma sensibilidade a itens
funcionais e a determinantes. Para o português, tem-se o trabalho de Name (2002),
cujos resultados sugerem que crianças brasileiras aos 15 meses (idade média) são
sensíveis à forma fônica dos elementos da categoria Determinante da língua que
estão adquirindo, o português brasileiro.
No que diz respeito ao desenvolvimento da cognição numérica, foram
visto no Capítulo 2 uma série de trabalhos a este respeito. Com base neles, é
possível afirmar que bebês desenvolvem suas habilidades de raciocínio numérico
bastante cedo. Tal desenvolvimento provavelmente influi apenas indiretamente na
aquisição do número gramatical – as evidências aqui descritas sugerem que o
conhecimento matemático e o conhecimento lingüístico se desenvolvem
paralelamente, mas com algumas intersecções. A coleta de dados de produção
lingüística realizada no âmbito desta dissertação provê algumas evidências neste
sentido. Todavia, a literatura carece de estudos conclusivos a esse respeito (cf.
item 2.3).
3.6 – O Bootstrapping
A hipótese do bootstrapping é uma proposta de processamento relativa à
aquisição da linguagem que visa a explicar o modo como a criança processa o
material lingüístico de que dispõe, retirando dele informações relevantes para a
aquisição da língua em questão. Hipóteses de bootstrapping concentram-se na
teorização dos processos envolvidos na identificação, por parte da criança em fase
de aquisição, das regularidades sintáticas, morfológicas, fonológicas e semânticas
58
que permitem a inicialização do programa biológico responsável pela aquisição de
linguagem.
Existem várias teorias que levam em conta o bootstrapping, como as de
Pinker (1987) e a de Gleitman (1990), respectivamente conhecidas como
bootstrapping semântico e bootstrapping sintático. Interessa aqui sobremaneira a
versão do bootstrapping fonológico (Morgan & Demuth, 1996) a qual afirma que
uma análise da fala levada a cabo pela criança permite a obtenção de informações
relevantes sobre a estrutura da língua em aquisição. A identificação de padrões
fonotáticos e distribucionais presentes no input lingüístico desencadeariam o
reconhecimento das estruturas gramaticais subjacentes.
Na base do conceito de bootstrapping fonológico está o fato de que,
mesmo que haja uma programação biológica inata, sob forma de uma GU, a tarefa
da criança ao adquirir uma dada língua é assaz complexa, exigindo-se que ela
perceba regularidades específicas de sua língua, como o padrão fonológico, a
ordem de palavras, etc. Não obstante, a aquisição não se consuma apenas a partir
do que a criança recebe como estímulo externo, uma vez que a identificação dos
elementos da língua a partir do processamento do material lingüístico é que vai
permitir a alavancagem das categorias lingüísticas comuns a todas as línguas
naturais, permitindo que a criança relacione os elementos extraídos dos
enunciados com essas categorias.
Desta forma, é necessário que a criança esteja apta ao processamento do
material lingüístico desde o início da aquisição da linguagem. Conforme visto
acima, no item 3.3, vários estudos apresentam evidências experimentais que
sugerem que a criança analisa o material lingüístico nos dois primeiros anos de
vida, o que acaba por justificar um estudo que assuma a hipótese do bootstrapping
fonológico.
3.7 - Conclusão
As hipóteses que orientam esta dissertação pressupõem que a criança seja
capaz de processar o material lingüístico ao qual é submetida. Pressupõem
59
igualmente a existência de um mecanismo de aquisição inato, responsável por
conferir um tratamento lingüístico à informação processada.
Foi visto neste capítulo um conjunto de trabalhos que dão suporte teórico
às hipóteses aqui assumidas. Descreveram-se os processos de concordância no
âmbito do DP, juntamente com as habilidadas perceptuais disponíveis na criança
em fase de aquisição. Registrou-se ainda uma teorização acerca do modo como é
desencadeado o programa biológico responsável pela aquisição da linguagem.
No entanto, algumas questões permanecem em aberto, as quais se
constituem nos objetivos a que este trabalho visa. Portanto, a seguir, será vista
uma série de experimentos, os quais buscam prover evidências acerca da
percepção das crianças à presença do morfema de número no nome e do
processamento da concordância de número no DP. Além disso, busca-se
evidenciar o caráter mais custoso da aquisição do sistema de número gramatical,
face à aquisição do gênero gramatical, dada a natureza semanticamente mais
visível do número. Por fim, a análise dos dados de produção obtidos em uma
coleta longitudinal pretende jogar alguma luz sobre o desenvolvimento da
expressão lingüística do número gramatical e do número conceitual na fala da
criança, por meio do registro de exemplos de formas flexionadas em número e
exemplos de concordância entre Determinante e Nome, além de outras
manifestações lingüísticas do conhecimento da numerosidade.
60
4. Metodologia
Este capítulo está voltado para a descrição da técnica experimental
utilizada nos experimentos levados a cabo neste estudo. Optou-se pelo paradigma
da tarefa de seleção de imagens (picture identification task), em dois
experimentos, um dos quais requereu o uso da voz sintetizada. Além disso,
realizou-se igualmente um estudo longitudinal, o qual consistiu de uma coleta de
dados de produção feita durante um período de 4 meses.
4.1. O Paradigma da Tarefa de Seleção de Imagens
O modelo experimental da tarefa de seleção de imagens é especialmente
válido quando o objetivo de um dado trabalho é a investigação das habilidades de
percepção e compreensão lingüísticas de uma determinada população. Pode ser
aplicada a adultos e crianças, indistintamente.
O objetivo básico desta metodologia é fazer com que o sujeito, adulto ou
criança, aponte para uma imagem, escolhida dentre uma série de outras imagens
semelhantes
oferecidas
como
estímulo.
Pode-se
também
observar
o
direcionamento do olhar do sujeito para uma certa figura, o que é particularmente
interessante com crianças, as quais nem sempre apontam para a imagem. Neste
caso, é também necessário contar o tempo decorrido entre a nomeação e a fixação
da imagem escolhida, o que é feito off-line por dois observadores diferentes.
Uma vantagem deste tipo de experimento é que ele pode ser realizado em
qualquer lugar onde o sujeito se sinta à vontade, como a sua própria casa, creche
ou escola. Evitam-se assim eventuais constrangimentos advindos do fato de o
sujeito não se habituar ao local de experimentação. Qualquer lugar, desde que este
seja calmo, silencioso e imperturbável, é apropriado para a execução desta
técnica.
Descrição da Técnica
Material:
61
•
Pranchas de imagens contendo de duas a quatro figuras. Estas pranchas
podem ser organizadas em um álbum de pranchas impressas, ou dispostas
na tela de um computador portátil;
•
Marionete de mão com um alto-falante acoplado
•
Aparelho de CD-Player portátil
•
CD com estímulos sonoros gravados
•
Caixas de som portáteis, que servem como amplificadores de som
•
Câmera de vídeo para a filmagem da sessão de experimentação
•
Brinquedos variados usados na familiarização
Procedimento:
•
Inicialmente, procede-se a uma familiarização entre o experimentador e o
sujeito, em especial quando este é uma criança. Nesta fase são utilizados
alguns brinquedos, para facilitar a integração entre experimentador e
sujeito.
•
Uma vez que a interação entre experimentador e sujeito tenha atingido um
grau satisfatório, é mostrada à criança uma marionete, a qual se
apresentará à criança como um boneco falante, mas que na realidade
apenas gesticula durante a execução do CD com os estímulos gravados.
Esta etapa tem por objetivo acostumar a criança à voz do boneco, bem
como criar uma atmosfera lúdica para a execução do experimento.
•
O experimentador mostra em seguida ou o álbum com as pranchas ou o
computador portátil já preparado para exibir as imagens. É proposta então
a “brincadeira” ou o “jogo”: o boneco pede e a criança aponta para uma
determinada imagem
•
Há uma etapa inicial no experimento na qual as imagens são mostradas
apenas para que a criança se acostume com a tarefa. As duas primeiras
pranchas possuem esta finalidade.
•
São apresentadas à criança um total de 16 pranchas-teste
O experimento acima valeu-se do uso da voz sintetizada, previamente
gravada, uma vez que se pretendeu evitar o estranhamento da criança à frases
agramaticais, as quais não são produzidas por falantes normais. Uma variante
62
desta técnica foi também utilizada, desta vez sem o uso de voz sintetizada, porque
os estímulos apresentados às crianças não continham frases agramaticais. Neste
caso, o próprio experimentador produz os estímulos, incitando as crianças a
responder (apontar) ao que é proposto.
4.2. A Coleta Longitudinal de Dados
A coleta longitudinal de dados é um dos métodos de pesquisa mais antigos
e usados de que se tem notícia. Tem sido usada desde o final do século XVIII em
estudos descritivos que visavam registrar a evolução de certas formas de
comportamento humano. São muito conhecidos, nos estudos de aquisição de
linguagem, os famosos diários, nos quais eram registrados dados de produção
lingüística de crianças.
Os objetivos básicos de uma coleta de dados são, em primeiro lugar,
descrever a evolução das habilidades lingüísticas de uma criança, especialmente
no tocante à produção de fala; e, em segundo lugar, obter dados de fala que
permitam prover evidências favoráveis às hipóteses assumidas por uma pesquisa.
Não há uma forma fixa de se proceder a uma coleta de dados. Em
realidade, as maneiras variam muito em função do tipo de dado que é relevante
para a pesquisa em questão. Procura-se, no entanto, seguir determinadas regras
básicas, o que permite a obtenção de dados mais confiáveis, como, por exemplo,
registrar dados de fala produzidos em situação mais natural possível, realizar
sessões de coleta em intervalos regulares, interagir com a criança durante as
sessões, etc.
Para a pesquisa realizada no âmbito desta dissertação, importou sobretudo
o registro de formas plurais. As sessões de coleta foram realizadas durante 4
meses (de outubro a janeiro) com duas crianças que contavam, à época do início
da coleta, com 1 ano e 10 meses de idade. As sessões eram feitas semanalmente, e
duravam cerca de 15 minutos. Procurou-se estimular (embora sem forçar) a
produção de formas plurais, através de atividades lúdicas com objetos repetidos
em número variado (como 3 carrinhos, 2 bonecas, 5 bolinhas, etc.). Usaram-se
63
também livros e álbuns de figuras, os quais exibiam várias figuras com desenhos
que variavam em número. As sessões foram conduzidas por uma assistente de
pesquisa, especialmente treinada para tarefas envolvendo crianças em idade
precoce, e por um experimentador que filmava toda a sessão. Posteriormente, foi
realizada a transcrição e a análise dos dados obtidos.
64
5. Dados Longitudinais e Experimentos
Este capítulo contém a apresentação de uma coleta longitudinal de dados
de fala espontânea e de 3 experimentos que seguiram o paradigma da tarefa de
seleção de imagens, os quais foram realizados com vistas a verificar: se e quando
a criança apresenta evidência de número gramatical em sua fala; se e quando a
criança reconhece morfema e número no nome e se crianças de 18 a 28 meses
processam concordância de número no DP.
A coleta longitudinal de dados de fala espontânea teve por objetivo
principal prover exemplos de formas flexionadas em número e de concordância
entre os elementos do DP advindos da fala de duas crianças com idade de 24
meses no início da coleta (escolheu-se esta faixa etária em virtude de ser nesta
fase do desenvolvimento lingüístico o momento em que as formas de plural
aparecem mais frequentemente, conforme o exposto no Capítulo 2). Procurou-se
registrar exemplos de formas flexionadas em número, bem como exemplos de
concordância entre Determinante e Nome e outras manifestações lingüísticas de
conhecimento da numerosidade.
Os experimentos relatados neste capítulo buscam prover evidências
compatíveis com a hipótese sobre aquisição do sistema de número apresentada na
Introdução desta dissertação, segundo a qual a informação relativa a número
contida nos elementos que formam a categoria funcional Determinante (D) é
crucial para a fixação de parâmetros relativos a número no português (ainda que,
conforme o item 1.1, não seja claro como a fixação paramétrica relativa a número
é caracterizada), considerando-se que os valores assumidos pelo traço formal de
número podem ser identificados no âmbito do Determinante (conforme item 3.5).
Os valores relativos a número são posteriormente atribuídos ao nome por meio do
mecanismo da concordância. O número do nome pode ser atribuído pelo
mecanismo lingüístico da concordância independentemente de sua realização
fonológica. Tal hipótese pressupõe a existência de habilidades discriminatórias
que permitam à criança relacionar os elementos às suas categorias e de
65
capacidades lingüísticas que lhe permitam estabelecer a concordância entre
Determinante e Nome.
O experimento 1 diz respeito à identificação do morfema flexional de
número adjungido ao nome e da informação semântica por ele veiculada. Ele foi
realizado em duas partes: a primeira, com crianças com idades entre 18 e 28
meses; e a segunda, com crianças entre 30 e 42 meses.
O experimento 2 visa à obtenção de evidências sobre a habilidade da criança
em reconhecer a informação relativa a número dentro da categoria D e relacionála a um nome por meio da concordância. Neste experimento, foram usados como
estímulos apenas nomes que designavam objetos reais. Estes resultados foram
comparados com os resultados obtidos em Name (2002) relativos ao
processamento da concordância de gênero, com vistas a prover evidências
compatíveis com a hipótese de que a aquisição do número é mais demorada e
custosa do que a do gênero, em virtude de envolver processamento semântico
adicional. O experimento 3 assumiu o mesmo objetivo do que o experimento
anterior, todavia foram usados como estímulos, além de nomes que designavam
objetos reais, também nomes que nomeavam objetos e seres inventados (nãoreais), de forma a concentrar a informação semântica no morfema de número. A
idéia por trás da diferença entre os dois experimentos é a necessidade de se
verificar se a criança processaria a informação de número veiculada no morfema
de número quando esta é crucial para a realização da tarefa de identificação de
gravuras.
5.1 – Análise da Coleta Longitudinal de Dados
A coleta de dados de produção foi feita com duas crianças, uma do sexo
masculino e outra do sexo feminino, sem relação de parentesco entre si, ambas
com idade semelhante (24 meses no início da coleta), e ambas oriundas de classe
social média da cidade de Petrópolis (RJ). Foram realizadas sessões filmadas,
sempre em locais onde a criança se sentia mais à vontade (em creches ou em suas
próprias residências). As sessões duravam em média 15 minutos, durante os quais
uma assistente de pesquisa, por intermédio de atividades tais como jogos,
66
brincadeiras e diálogos, buscava eliciar exemplos de produção lingüística relativa
a número ou à numerosidade. Foram usados livros, álbuns de figuras e brinquedos
variados para ajudar nas atividades. As sessões ocorriam uma vez a cada quinze
dias. A seguir, será apresentado um resumo destas sessões. Os exemplos de
produções
lingüísticas
marcados
nas
tabelas
encontram-se
transcritos
foneticamente em tabela anexa (vide Anexo 1, no capítulo 7).
Criança: Y*
Perído de acompanhamento longitudinal: de 13/10/2002 a 17/02/2003
Número de sessões gravadas: 08
Duração de cada sessão: 15 minutos (em média)
Tipos de situação de interlocução: Emissão espontânea
Emissão eliciada
• repetição imediata da fala do
adulto
• complementação no DP
(como em aqui tem duas....)
• resposta a pergunta QU para
identificação de objeto
• outra
Tabulação da produção de nomes ou DPs com marca morfológica de plural de
cada criança por sessão em função do(s) elemento(s) morfologicamente
marcado(s) do tipo de situação de interlocução
Sessão
Criança: Y*
Situação
1
D
N
2
3
Elemento morfologicamente marcado
DN
D
N
DN
D
N
DN
D
4
N
DN
Produção espontânea
Produção eliciada
Repetição
Complementação
Resposta
Outra
Total
X
X
X
Sessão
Criança: Y*
Situação
5
D
N
6
7
Elemento morfologicamente marcado
DN
D
N
DN
D
N
DN
D
8
N
DN
Produção espontânea
Produção eliciada
Repetição
Complementação
Resposta
X
X
67
Outra
Total
Criança: A*
Período de acompanhamento longitudinal: de 17/10/2002 a 17/02/2003
Número de sessões gravadas: 08
Duração de cada sessão: 15 minutos (em média)
Tipos de situação de interlocução: Emissão espontânea
Emissão eliciada
• repetição imediata da fala do
adulto
• complementação no DP
(como em aqui tem duas....)
• resposta a pergunta QU para
identificação de objeto
• outra
Tabulação da produção de nomes ou DPs com marca morfológica de plural de
cada criança por sessão em função do(s) elemento(s) morfologicamente
marcado(s) do tipo de situação de interlocução
Criança: A*
Situação
1
D
N
Sessão
2
3
Elemento morfologicamente marcado
DN
D
N
DN
D
N
DN
D
4
N
DN
Produção espontânea
Produção eliciada
Repetição
Complementação
Resposta
Outra
Total
X
XX
X
Sessão
Criança: A*
Situação
5
D
Produção espontânea
Produção eliciada
Repetição
Complementação
Resposta
Outra
Total
N
6
7
Elemento morfologicamente marcado
DN
D
N
DN
D
N
DN
D
8
N
DN
X
X
Os dados obtidos com esta coleta não permitem afirmar que crianças no
período de 24 a 28 meses de idade já produzem exemplos de concordância no
68
âmbito do DP, haja vista que não foi registrado nenhum exemplo deste tipo.
Ressalva-se o fato de que procedeu-se a esta coleta durante um período de tempo
relativamente curto, o que não possibilitou a observação de um número maior de
exemplos. O que estes dados permitem dizer é que crianças nesta idade já são
capazes de produzir formas flexionadas em número, denotando que o morfema de
número foi, de algum modo, percebido pela criança na fala do adulto e registrado
na fala da criança. Os exemplos acima também sugerem que a criança já tem
noção do valor semântico do morfema de número.
Os exemplos de formas flexionadas em número apareceram somente no
Nome, em situações de produção eliciada. Tais exemplos sugerem que crianças
em fase de aquisição já são capazes de flexionar corretamente alguns nomes em
número, o que sugere algum domínio do sistema de flexão dos nomes em número,
ainda que de forma parcial. A presença de um alomorfe do morfema de número (es, presente em flor-es, forma produzida por ambas as crianças participantes)
também evidencia um conhecimento de alomorfia, embora não se saiba precisar
em que nível se dá este conhecimento (se se trata de mera memorização, ou de
respeito às regras de estrutura silábica, etc.). Observaram-se ainda casos de flexão
de nomes em número obtidos por repetição.
É importante ressaltar a presença constante de marcações lingüísticas que
indicam conhecimento de numerosidade (ver anexo 1, no capítulo 7). Conforme já
visto no capítulo 2, seção 2.3, a criança já desde muito cedo apresenta evidências
de um conhecimento numérico, sendo capazes de realizar pequenos cálculos e de
reconhecer quantidades. Lingüisticamente, este conhecimento se manifesta muito
visivelmente, por meio de formas lingüísticas indicativas de número conceitual
um tanto variadas (repetição de palavras, como em “peixe, peixe, peixe”, uso de
pronomes, como em “a bola, a outra bola”, contagem de pequenas quantidades de
itens, etc). O registro de tais formas, que parecem indicar o desenvolvimento
paralelo do conhecimento de número conceitual e do sistema de número
gramatical, pode ser explicado pelo fato de a criança buscar outros meios
lingüísticos para expressar seus conhecimentos sobre numerosidade que não seja o
sistema de flexão e concordância de número, indicando alguma intersecção entre
o sistema da língua e outros sistemas cognitivos. Todavia, o desenvolvimento
69
daquilo que é especificamente lingüístico, no caso, o sistema de número
gramatical, parece obedecer a padrões particulares, denotando assim uma
especificidade no que toca à aquisição e desenvolvimento de conhecimento
estritamente lingüístico.
Relacionando-se estes os dados com os de Mervis & Johnson (1991),
observa-se que a emergência do morfema de número se faz no nome em idade
compatível com os dados do inglês. O fato de a informação de número estar
exclusivamente presente no nome, no determinante ou em ambos não é
determinante de diferenças no desenvolvimento. Contudo, os dados são de uma e
duas crianças, no inglês e no português, respectivamente. Seria interessante ter a
idade média de emergência dessa marca nas duas línguas para atestar se a
informação de número em elementos de uma classe fechada facilita a
identificação do morfema.
5.2 – Experimento 1: Percepção das Crianças à Presença do Morfema
de Número no Nome
O experimento aqui proposto visa a verificar se a criança é sensível à
presença morfema de número no nome e se é capaz de atribuir a ele o significado
de “pluralidade”. Valendo-se do paradigma da tarefa de seleção de imagens,
conforme o descrito no item 4.1 desta dissertação, o experimento consistiu de uma
apresentação de um álbum com desenhos-alvo (desenhos que apresentavam uma
mesma figura de forma individual e multiplicada), e desenhos distratores,
seguidos de um enunciado lingüístico produzido pela assistente de pesquisa, a
qual alternava frases que apresentavam nomes sem morfemas de plural com
presença de determinantes (ex.: “Mostre o gato para mim” – condição-controle),
com frases que continham nomes com morfemas de plural sem determinantes
(ex.: “Aqui tem patos ?” – condição teste), num total de 16 frases (oito de cada
tipo). A razão de não se colocarem determinantes nas frases com nomes no plural
foi verificar apenas se as crianças identificam a presença do morfema de número
no nome, e não se processam concordância de número. Considerou-se como
resposta correta na condição-teste apontar para o desenho que apresente figuras
multiplicadas.
70
O álbum contendo os desenhos foi previamente preparado, assim como as
frases que serviram como estímulo (vide Anexo 2 para a lista de frases utilizada e
exemplo de prancha de desenhos). O experimento foi todo filmado, para posterior
análise das respostas dadas pelas crianças. Cada sessão experimental durou em
média 15 minutos, e o experimento foi dividido em duas partes: na primeira os
participantes foram crianças com idades entre 18 e 28 meses; na segunda, os
participantes foram crianças entre 30 e 42 meses.
Parte I:
- Objetivo:
1. Verificar a sensibilidade das crianças à presença do morfema de
número adjungido a nomes em frases do português, bem como
investigar se elas reconhecem a informação semântica expressa por
este morfema.
- Variável Independente: presença do morfema de número no nome
- Variável Dependente: número de respostas correspondentes às figuras
multiplicadas
- Condições Experimentais:
1. Condição-Teste: Frases que apresentavam nomes com morfemas de plural
Ex.: Aqui têm vacas ?
2. Condição-Controle: Frases que apresentavam nomes e determinantes que
não continham morfema de plural
Ex.: Mostre o carro pra mim ?
- Hipótese:
1) Com base na presença de nomes flexionados em número verificados na
coleta de dados, tem-se a hipótese de que a criança entre 18 e 28 meses
identifica o morfema de número adjungido aos nomes, bem como
reconhece o valor semântico por ele expresso.
71
- Previsões:
1) O número de respostas correspondentes a figuras multiplicadas será maior
na condição-teste do que na condição-controle.
- Método:
Participantes: 8 crianças de 18 a 28 meses de idade (idade média 22,9 meses)
11 crianças participaram das atividades, porém 3 não puderam ser
aproveitadas, por não terem respondido ao mínimo de 2 frases por condição.
Estímulos:
- Álbum com 18 páginas, correspondendo a 18 pranchas, cada uma
contendo 4 figuras: 1 figura-alvo, sempre no plural, e 3 figuras distratoras.
Controlou-se a animacidade dos alvos, assim, metade dos alvos era de
nomes animados e metade era de nomes inaminados, constituindo assim
dois grupos de tipos de pranchas, 1 (inanimados) e 2 (animados). As
figuras distratoras correspondiam uma ao singular do alvo, outra a um
desenho diferente do alvo (para saber se a criança identifica corretamente a
figura-alvo) e um desenho inventado. Também foi controlada a
animacidade dos distratores, sendo que metade deles era de animados e
metade de inanimados, constituindo assim 4 subtipos de pranchas, a, b,c,d.
A posição da figura-alvo foi variada. As duas primeiras pranchas foram
usadas como treinamento.
- 1 lista de frases. Cada criança ouviu 8 frases por condição, sendo 4 com
alvo animado e 4 com alvo inanimado, o que perfaz um total de 16 frasesestímulo. Intercalaram-se alvos animados e alvos inanimados.
Procedimento:
Tarefa de Identificação de Imagens (conf. seção 4.1)
72
- Resultados e Discussão:
A contagem dos dados considerou o número de escolhas da figura
multiplicada em ambas as condições.Os dados em percentuais e os resultados de
testes t(student) aparecem na lista e no gráfico a seguir:
Experimento 1 (18 a 28 meses)
Média
Desvio Padrão
Condição-Teste
50%
0,283473
p<
t (df 7) =
0,046705
2,410998
Idade Inicial =
Idade Final =
Media de Idade =
18 meses
26 meses
22,9 meses
% de Respostas Válidas
Média de Respostas Válidas
Condição-Teste
73,4%
5,87 por criança
Condição-Controle
28,1%
0,208725
Condição-Controle
85,9%
6,87 por criança
73
Experimento 1 (Crianças de 18 a 28
meses)
Média de Acertos (%)
100%
80%
60%
50.0%
40%
28.1%
20%
0%
1
Condições Experimentais
Condição-Teste
Condição-Controle
Ainda que o número de respostas correspondentes à figura multiplicada
seja pequeno (50% das respostas válidas), há uma diferença marginalmente
significativa entre as condições (p=.05). É possível pois, que as crianças estejam
sensíveis à presença do morfema de número, embora o processamento semântico
do número seja difícil para ela. Uma explicação provável para essa dificuldade é
que a informação semântica contida na raiz dos nomes usados nos estímulos
interfere na execução da tarefa, fazendo com que as crianças mostrem os
desenhos, baseadas apenas no reconhecimento da figura, não levando em conta a
informação semântica expressa pelo morfema de número. A fim de verificar a
sensibilidade da criança ao morfema de número realizou-se este mesmo
experimento, desta vez valendo-se de sujeitos de faixa etária mais elevada,
conforme o apresentado a seguir.
74
Parte II
- Objetivo:
1. Verificar se as crianças de 30 a 42 meses identificam a presença do
morfema de número adjungido a nomes em frases do português, bem
como o grau de reconhecimento da informação semântica expressa por
este morfema, aumenta com a idade.
- Variável Independente: presença do morfema de número no nome
- Variável Dependente: número de respostas correspondentes à figura multiplicada
- Condições Experimentais: As mesmas do experimento anterior
- Hipótese:
1. Com base na presença de nomes flexionados em número verificados na
coleta de dados, tem-se a hipótese de que a criança entre 30 e 42 meses
identifica o morfema de número adjungido aos nomes, bem como
reconhece o valor semântico por ele expresso.
- Previsões:
1. O número de respostas correspondentes à escolha de figuras multiplicadas
será maior na condição-teste do que na condição-controle.
- Método:
Participantes: 12 crianças de 30 a 42 meses de idade (idade média 38,6 meses)
Todas as crianças que participaram das atividades puderam ser
aproveitadas, por terem respondido ao mínimo de 2 frases por condição.
Estímulos:
75
Os mesmos do experimento anterior
Procedimento:
Tarefa de Identificação de Imagens sem voz sintetizada (conf. seção 4.1)
Os resultado dos testes t (student) obtidos por este experimento na nova
faixa etária pesquisada foram os seguintes:
Experimento 1 (30 a 42 meses)
Média
Desvio Padrão
Condição-Teste
70,8%
0,221906
p<
t (df 11) =
0,000203
5,441252
Idade Inicial =
Idade Final =
Media de Idade =
36 meses
42 meses
38,6 meses
% de Respostas Válidas
Média de Respostas Válidas
Condição-Teste
100%
8 por criança
Condição-Controle
28,1%
0,1696
Condição-Controle
100%
8 por criança
76
Experimento 1 (Crianças de 30 a 42
meses)
100%
Média de Acertos (%)
80%
70.8%
60%
40%
28.1%
20%
0%
1
Condições Experimentais
Condição-Teste
Condição-Distratora
Os resultados do teste comparativo entre as médias obtidas na condiçãoteste (t (df 11) = 5.44, p < 0002) sugerem que crianças com idade média de 38,6
meses não só identificam o morfema de número adicionado aos nomes, mas
também
reconhecem
a
informação
semântica
contida
neste
morfema.
Possivelmente, nesta faixa etária, a influência da informação semântica expressa
pela raiz dos nomes presentes nos estímulos é menor do que na faixa etária
anterior. Comparando-se os resultados obtidos na Parte 1, tem-se uma diferença
expressiva, conforme mostra o gráfico a seguir.
77
Experimento 1 = Gráfico Comparativo
Média de Acertos (%)
100
80
60
40
70.8
50
28.1
28.1
20
0
18 a 28 meses
30 a 42 meses
Faixas Etárias
Condição Teste
Condição Singular
Uma análise de variância ANOVA com design fatorial 2(idade) X 2
(presença de morfema) em que idade foi um fator grupal e presença de morfema
medida repetida foi realizada e foi conduzida e obteve-se um efeito principal de
presença de morfema F(2,18) = 24.43 p<.0001. Idade e a interação entre idade e
presença de morfema não atingiram o nível de significância, embora essa
interação tenha se aproximado deste p=.1. Um teste t que comparou o número de
respostas esperadas do grupo de crianças de 18 a 28 meses com as respostas das
crianças de 30 a 42 meses revelou, contudo, um efeito significativo de idade t(17)
= 2,16 p < 0.04 . Isso demonstra que a ausência de efeito de idade obtido na
ANOVA deve-se ao fato de o número de respostas na condição controle ter-se
mantido inalterado.
Os resultados acima permitem chegar à conclusão de que crianças com
idades entre 30 e 42 meses são sensíveis à presença do morfema de número no
material lingüístico ao qual são submetidas, e conseguem associar a este morfema
uma significação específica. O mesmo não se pode dizer das crianças entre 18 e
28 meses, o que não quer dizer que elas sejam de todo modo insensíveis – na
78
realidade, os resultados obtidos podem ter sido afetados pelo fato de a
metodologia adotada não ter se concentrado na informação semântica
exclusivamente do morfema de número, deixando-a concomitante com a
informação semântica expressa pelo radical dos nomes utilizados no experimento.
O fato de a criança ser sensível ao morfema de número no nome não
garante, contudo, que ela tenha identificado o sistema de número do português,
pois isso envolve concordância gramatical. Para conferir se a criança processa
concordância de número no DP, foi proposto o experimento descrito a seguir.
5.3 – Experimento 2: Sensibilidade das Crianças à Concordância de
Número no DP (com voz sintetizada e nomes reais)
Conforme o exposto na Introdução desta dissertação, a hipótese de
trabalho que norteia a pesquisa aqui desenvolvida é a de que a informação relativa
a número presente nos determinantes é crucial para a identificação do sistema de
número em português. Uma vez identificada esta informação, o valor do traço de
número do nome independe da presença do morfema de número adjungido a este,
dado que D e N se relacionam sintaticamente por concordância. Tal hipótese
pressupõe que a criança processe concordância de número no âmbito dos
elementos que formam o DP. Para prover evidências compatíveis com essa
hipótese foi realizado o experimento exposto abaixo.
O experimento aqui proposto se baseou no estudo conduzido por Name
(2002) sobre a aquisição do gênero em português. Seu objetivo principal é obter
evidências sobre a habilidade da criança em processar informação relativa a
número dentro da categoria D e relacioná-la com um nome através da
concordância, considerando-se que, em português, a informação relativa a número
pode manifestar-se morfo-fonologicamente no somente no Determinante ou no
Determinante e no Nome.
Foram elaboradas frases com determinantes no singular e no plural,
relacionados com nomes conhecidos pelas crianças. Para tanto, valeu-se do
Inventário MacArthur, adaptado para o português na versão de Teixeira (1999),
79
uma lista de palavras conhecidas por crianças de 18 a 26 meses, tanto no que toca
à produção quanto à compreensão, construída a partir de um questionário
preenchido pelos pais. Com base nesta lista, foram escolhidos 16 nomes
facilmente reconhecíveis sob forma de desenho.
Os estímulos sonoros foram gravados por uma falante nativa do português
e sintetizados através do programa SoundForge9. A sintetização de voz foi
necessária para se evitar estranhamentos da criança a frases modificadas.
Realizou-se o experimento principalmente em casas de família que
tivessem crianças, do sexo masculino ou feminino, na faixa etária especificada,
mas outros lugares também foram visitados: creches, escolas maternais e jardins
de infância, etc. Todas as crianças eram oriundas de classe social média, sendo
naturais da cidade de Petrópolis (RJ). A duração média de cada sessão
experimental foi de 20 minutos, sendo todas elas filmadas. Seus objetivos
principais foram:
a) Verificar a sensibilidade da criança à informação morfo-fonológica
relativa a número presente nos itens que formam a categoria Det;
b) Verificar a sensibilidade da criança à concordância de número entre Det/N
Variáveis:
- Independente: expressão do número no DP.
- Dependente: número de respostas correspondentes à figura multiplicada
Condições Experimentais:
ƒ
Redundante – RED
Determinante plural e Nome plural
Exemplo: Ache as bolas pro Dedé
9
O Sound Forge é um software que permite o trabalho com arquivos de informação sonora tipo
wmv, possibilitando a gravação, edição e sintetização de estímulos sonoros. Ele é produzido pela
Sonic Foundry Inc., e, no âmbito da pesquisa aqui desenvolvida, utilizou-se a versão 5.0
80
ƒ
Não-redundante – NRED
Determinante plural e Nome singular
Exemplo: Mostre as estrela pro Dedé
ƒ
Agramatical – AGRM
Determinante singular e Nome plural
Exemplo: Ache o gatos pro Dedé
ƒ
Condição Controle – CON
Determinante singular e Nome singular
Exemplo: Ache o pato pro Dedé
A razão de se terem escolhidos as condições experimentais RED, NRED e
AGRM foi o fato de o português apresentar o morfema de número adjungido ora
ao Nome, ora ao Determinante, ora ao dois simultaneamente, e o experimento
visou a identificar de onde a criança retira a informação relativa a número, se
somente do Nome (condição AGRM, assim chamada por não fazer parte da
gramática do português); se somente do Determinante (condição NRED, freqüente
em alguns dialetos sociais do português do Brasil); ou se do Determinante e/ou do
Nome (condição RED, considerada a concordância padrão). O singular foi
considerado apenas como condição controle.
Hipóteses e Previsões:
a) A criança identifica a informação relativa a número a partir da
informação contida no Determinante.
Previsão: O número de acertos na condição RED será igual
ao na condição NRED.
b) A criança identifica a informação relativa a número a partir da
informação contida no Determinante e no Nome.
81
Previsão: O número de acertos na condição RED será maior
do que na condição NRED e maior do que na condição
AGRM.
c) A criança identifica a informação relativa a número a partir da
informação contida no Nome.
Previsão: O número de acertos na condição RED será igual
ao da condição AGRM.
Método:
Participantes: crianças entre 18 e 28 meses
Um total de 13 crianças, com idade entre 20 e 28 meses, participou do
teste. Deste, 3 foram eliminadas da contagem de dados por não terem respondido
ao mínimo de 25% de estímulos por condição.
Estímulos:
•
Álbum com 18 páginas, correspondendo a 18 pranchas, cada uma
contendo 4 figuras: 1 figura-alvo, sempre no plural, e 3 figuras
distratoras. Utilizaram-se igualmente as mesmas figuras, desta vez
reproduzidas na tela de um computador portatil por um software
especialmente desenvolvido para esta pesquisa. Controlou-se a
animacidade dos alvos, assim, metade dos alvos era de nomes
animados e metade era de nomes inaminados, constituindo assim
dois grupos de tipos de pranchas, 1 (inanimados) e 2 (animados).
As figuras distratoras correspondiam uma ao singular do alvo,
outra a um desenho diferente do alvo (para saber se a criança
identifica corretamente a figura-alvo) e um desenho inventado
(uma vez que a criança, ouvindo um estímulo não-gramatical,
pudesse considerá-lo uma palavra nova). Também foi controlada a
animacidade dos distratores, sendo que metade deles era de
animados e metade de inanimados, constituindo assim 4 subtipos
82
de pranchas, a, b,c,d.. A posição da figura-alvo foi variada. As duas
primeiras pranchas foram usadas como treinamento.
•
4 listas de frases, todas começando por duas perguntas-treinamento
e com duas variações de perguntas (“Ache.../Mostre...”). Cada
criança ouviu 4 frases por condição, sendo 2 com alvo animado e 2
com alvo inanimado, o que perfaz um total de 16 frases-estímulo.
A ordem dos estímulos em cada lista obedeceu a um critério que
levava em conta a necessidade de se intercalarem tipos e subtipos
de pranchas, sem que houvesse repetição contínua de um ou de
outro. Assim, as listas apresentavam uma ordem como 1A, 2B, 1C,
2D... Foram feitas quatro listas correspondendo a 4 ordens
diferentes de apresentação das diferentes condições. Antes da
apresentação da lista, as crianças ouviram uma série de saudações
com o intuito de se familiarizaram com a voz da marionete (“Oi!”,
“Tudo Bem?”, “Que lugar legal”).
Procedimento:
Tarefa de Identificação de Imagens com voz sintetizada (conf. item 4.1)
Exemplos de frases e pranchas utilizadas podem ser vistos no Anexo 3.
- Resultados e Discussão:
Os percentuais obtidos e os resultados da aplicação de testes t (student)
estão registrados na lista e no gráfico que são apresentados abaixo.
Experimento 2 (18 a 28 meses)
Média
Desvio Padrão
Idade Inicial =
Idade Final =
Media de Idade =
Cond. RED
42,5 %
0,334373
Cond. NRED
47,5 %
0,321671
Cond.AGRM
52,5 %
0,299305
Cond. SING
50,0 %
0,235702
20 meses
28 meses
25 meses
83
% de Resp.Válidas
Media de Resp.Válidas
Cond. RED
95,0 %
3,45
Cond.NRED
92,5 %
3,36
Cond.AGR
97,5 %
3,54
Cond. SING
90,0 %
3,27
Gráfico Experimento 2
Média de Acertos (%)
100.0%
80.0%
60.0%
42.5%
52.5% 50.0%
47.5%
40.0%
20.0%
0.0%
1
Condições Experimentais
Condição RED
Condição AGRM
Condição NRED
Condição SING
p<
t (df 9) =
REDxNRED
0,33089
1,01335
REDxAGRM
0,13475
1,603746
p<
t (df 9) =
NREDxAGRM
0,321208
1,034708
NREDxSING
0,405687
0,861806
p<
t (df 9) =
AGRMxSING
0,411327
0,851192
REDxSING
0,196911
1,366268
84
Os resultados não revelaram diferenças significativas entre as médias nas
diferentes condições. Embora os desenhos das figuras tivessem sido identificados
muito satisfatoriamente, nenhuma das previsões se confirmou. Ao que parece,
dado o número relativamente semelhante de respostas correspondentes à figura
multiplicada na condição controle e nas demais, a criança escolheu aleatoriamente
uma figura, entre a figura-alvo singular e a figura-alvo multiplicada.
Os resultados acima transcritos não permitem afirmar que a criança na
faixa etária estudada é sensível à concordância de número no DP. Os resultados
não apresentaram efeito significativo da expressão do número plural no DP,
revelando que as crianças trataram indiferentemente as três condições
experimentais, assim como a condição singular. A razão para tanto talvez resida
no fato de que as crianças dão mais atenção à informação semântica contida no
radical do que à informação semântica expressa pelo morfema de número. Notese que o desempenho na condição controle singular foi pior do que o obtido no
Experimento 1. É possível que a metodologia tenha favorecido a busca pela
informação da raiz, tendo em vista o uso da fala sintetizada.
Comparativamente ao número, a aquisição do sistema de gênero se realiza
de maneira mais fácil. O estudo sobre aquisição do sistema de gênero conduzido
por Name (2002) com crianças da mesma faixa de idade mostrou um percentual
de acertos maior, em todas as condições experimentais, o que sugere uma
aquisição menos custosa do sistema de gênero. Uma possível razão para essa
diferença seria o fato de que o experimento de Name ter utilizado apenas nomes (animados) com traço de gênero intrínseco, ao passo que, no experimento 2 o
número é sempre um traço opcional. A opcionalidade do traço pode, portanto,
acarretar processamento semântico adicional, dificultando a realização da tarefa.
5.3.1 – Comparação entre Experimentos de Gênero e de Número
Um dos objetivos do estudo de Name (2002) foi verificar se a não
concordância de gênero entre o D e o N já conhecido da criança interfere na
compreensão.
85
Em tarefa de seleção de imagem com a voz sintetizada (na qual se baseou
o experimento relativo a número aqui descrito), crianças com idade média de 24
meses escutaram sentenças imperativas em que eram solicitadas a mostrar à
marionete um desenho dentre 4 num álbum de gravuras. Assim como no
experimento 2, o uso de fala sintetizada com marionete deveu-se ao fato de
estímulos agramaticais terem sido apresentados à criança.
Em cada sentença imperativa, o elemento na posição do D foi manipulado
em função da (in)congruência de gênero com o Nome (determinante congruente X
incongruente), da categoria funcional (determinante X complementizador) e de
seu pertencimento à língua (determinante X pseudo-item funcional). Teve-se,
assim, as seguintes condições experimentais:
1.
2.
3.
4.
D congruente com gênero de N (CON)
Mostre o/esse/aquele carro pro Dedé.
D incongruente com gênero de N (INC)
Mostre a/essa/aquela carro pro Dedé.
Item funcional de categoria diferente de D (COMP)
Mostre se/que carro pro Dedé.
Pseudo-item funcional (PS)
Mostre gur/biu carro pro Dedé.
O Gráfico 2 apresenta os resultados.
Gráfico 2
Experimento 2: Taxa de acertos por condição
100%
92%
77%
Taxa de acerto (%)
80%
64%
64%
60%
52%
40%
20%
0%
Condições
Congruente
CON X INC: t= 3.28, p<0.01
CON X COMP: t=3.12, p<0.01
Incongruente
Complementizador
Pseudo-Item
CON X PS: t= 3.52, p<0.01
CON X DES: t= 5.82, p<0.001
Desordenado
INC X PS: t= 2.22, p=0.04
INC X DES: t= 3.08, p<0.01
86
Esses resultados sugerem que a criança, de 21 a 28 meses (idade média 24
meses), é sensível à concordância entre determinante e nome no DP.
Determinantes incongruentes quanto ao gênero do nome dificultam a
compreensão (cf. diferença estatisticamente significativa encontrada entre CON e
INC). O fraco desempenho na condição desordenada indica que os resultados nas
demais condições não são fruto de uma estratégia de busca lexical, de um mero
reconhecimento de nomes familiares, independentemente da estrutura em que se
inserem. Além disso, no que concerne à aquisição do sistema de gênero
gramatical, a criança, aos 24 meses, é sensível à (in)congruência de gênero entre
determinante e nome no DP.
Para verificar o processamento diferenciado de número e de gênero por
parte das crianças entre 18 e 28 meses, foram comparadas as seguintes condições
experimentais dos dois experimentos: a condição CONG de gênero foi comparada
com a condição RED de número, pois correspondem ao padrão gramatical de
formação do DP, e também foi comparada com a condição NRED de número,
visto que esta é uma possibilidade da língua. A condição INCONG de gênero foi
comparada com a condição AGRM de número visto que em ambos os casos a
formação do DP se apresenta incompatível com gramática da língua.
Comparando-se os resultados da maneira descrita acima, chega-se ao
seguinte gráfico:
87
Média de Acertos
100%
92%
92%
77%
50%
53%
48%
43%
0%
1
Condições Experimentais
Condição CONG (Genero)
Condição RED (Numero)
Condição CONG (Genero)
Condição NRED (Numero)
Condição INCONG (Genero)
Condição AGRM (Numero)
Os dados da comparação foram submetidos a duas análises de variância
ANOVA,
com
design
fatorial
2(traço(gênero/número))
x
2
(congruência(congruente/ incongruente)), sendo traço um fator grupal e
congruência medida repetida. Na primeira análise, a congruência de gênero
correspondeu à condição RED, e, na segunda análise, à condição NRED.
Os resultados de ambas as análises revelaram um efeito principal de traço
(1ª análise F(2,22) = 17,76, p < .0004; 2ª análise F(2,22) =17,58, p <.0004). A
primeira análise revelou um efeito significativo de interação entre traço e
congruência (F (2,22) = 7,19, p < .01), e n segunda análise essa interação
aproximou-se do nível de significância estipulado (F(2,22) = 3,64, p = .07).
Os resultados apontam na direção de que a despeito de gênero e número
apresentarem o mesmo tipo de informação no âmbito do determinante e de a
informação de número poder ser redundante no nome, o processamento da
concordância de número no DP apresenta maior dificuldade para crianças do que
o processamento da concordância de gênero.
Comparativamente ao número, o processamento de informação relativa a
gênero gramatical se realiza de maneira mais fácil. O estudo sobre aquisição do
88
sistema de gênero conduzido por Name (2002) com crianças da mesma faixa de
idade mostrou um percentual de acertos maior, em todas as condições
experimentais, o que sugere que a percepção de informação relativa a gênero, da
in/congruência de gênero e a identificação do referente transcorrem transcorrem
mais facilmente. Esse fato pode ser indicativo de um processamento menos
custoso do sistema de gênero em contraste com número. Uma possível razão para
essa diferença seria o fato de que o experimento de Name ter utilizado apenas
nomes (-animados) com traço de gênero intrínseco, ao passo que, no experimento
2 o número é sempre um traço opcional. A opcionalidade do traço pode, portanto,
acarretar processamento semântico adicional, dificultando a realização da tarefa.
Diferenças quanto à opcionalidade do traço, que acarretam processamento
semântico adicional no número, podem explicar a dificuldade encontrada, uma
vez que o traço de número, por ser opcional, necessita, além de ser identificado no
input lingüístico processado pela criança, de ser relacionado semanticamente com
uma referência externa, o que não acontece com o traço intrínseco de gênero, o
qual tem de ser adquirido logo que um novo item lexical é registrado no léxico.
Essa dificuldade acarretaria um atraso na aquisição do sistema de número em
relação à aquisição do sistema de gênero. É possível, não obstante, que a própria
fixação de parâmetros pertinentes à identificação do modo como número se
apresenta na língua seja uma dificuldade para criança. Diferenças quanto ao
núcleo em que o traço formal de número se apresenta interpretável para o sistema
computacional, se é interpretável no Nome, ou se é interpretável no Determinante
(cf. Magalhães, 2002), talvez se constituam como um provável fator de
dificuldade na aquisição do número gramatical, configurando-se assim em uma
hipótese a ser explorada.
A fim de verificar o grau de interferência semântica na aquisição do
sistema de número em português, elaborou-se um experimento, o qual também
obedeceu ao paradigma da tarefa de seleção de imagens, que se valeu de figuras e
de nomes inventados. Este experimento visou basicamente a investigar a
habilidade da criança em processar concordância de número, da mesma forma que
o experimento anterior, desta vez minimizando-se o custo do processamento
semântico dos radicais dos nomes utilizados, buscando fazer com que a criança se
89
concentrasse na informação semântica do morfema de número. A descrição deste
novo experimento será mostrada a seguir.
5.4 – Experimento 3: Sensibilidade das Crianças à Concordância de
Número no DP (sem voz sintetizada e com nomes inventados)
Este experimento, em linhas gerais, segue o modelo do experimento 1,
diferindo deste pelo fato de usar desenhos e nomes inventados, e de a condiçãoteste apresentar determinantes flexionados em número. A faixa etária pesquisada
foi a mesma da Parte I do experimento 1, de 18 a 28 meses, não se realizando o
teste com crianças entre 30 e 42 meses.
O experimento ora descrito pretende prover evidências sobre a habilidade
da criança em processar a concordância de número no âmbito do DP. Tal objetivo
se assemelha ao do experimento 2, e a razão disto foi a de não se ter obtido
resultados satisfatórios com a tarefa proposta no experimento 2. O que se
percebeu naquele experimento foi que, talvez, o fato de os estímulos usados não
fazerem com que a criança se concentrasse na exclusivamente na informação
semântica contida no morfema de número, o que acarretava uma dificuldade na
execução da tarefa, uma vez que a criança apontava para uma figura levando em
conta apenas a informação semântica da raiz do nome presente no estímulo,
apontando aleatoriamente para a figura singular ou para a plural. Novamente
valendo-se do paradigma da tarefa de seleção de imagens, sem uso de voz
sintetizada (uma vez que não havia frases agramaticais), conforme o descrito no
item 4.1 desta dissertação, o experimento consistiu da apresentação de um álbum
com desenhos-alvo, seguida de um enunciado produzido pela assistente de
pesquisa, a qual produzia frases que alternavam as condições experimentais.
O álbum contendo os desenhos foi previamente preparado, assim como as
frases que serviram como estímulo (vide Anexo 4 para a lista de frases utilizada e
exemplo de prancha de desenhos). O experimento foi todo filmado, para posterior
análise das respostas dadas pelas crianças. Cada sessão experimental durou em
média 15 minutos.
90
- Objetivos:
a) Verificar a sensibilidade da criança à informação relativa a número
presente nos itens que formam a categoria Det;
b) Verificar a sensibilidade da criança à concordância de número
entre Det/N
Variável Independente: expressão do número no DP.
Variável Dependente: número de respostas correspondentes à figura multiplicada
- Condições Experimentais:
1. Condição RED: Frases com nomes inventados e determinantes, ambos
contendo morfema de número
Ex.: Mostra os tebes pra mim ?
2. Condição NRED: Frases com nomes inventados no singular e
deteminantes no plural.
Ex.: Mostre as gapa pra mim ?
3. Condição SING: Frases com nomes reais ou inventados e determinantes,
todos no singular.
Ex.: Mostra a cafa pra tia ?
Adicionalmente, foram incluídos 4 enunciados com nomes reais e
conhecidos, os quais funcionaram apenas como preenchedores (“fillers”)
Ex.: Mostra o rato pra mim ?
- Hipóteses:
Foram apresentadas inicialmente duas hipóteses:
1. Diante da ausência de exemplos DP´s que apresentassem flexão de número
na fala das crianças estudadas pela coleta longitudinal de dados, em
contraposição a presença de formas alternativas de expressão da
91
numerosidade, tem-se a hipótese de que a criança entre 18 e 28 meses não
processa concordância de número no DP.
2. Por outro lado, diante do fato de o processamento do gênero no DP se
realizar, considera-se que, minimizando-se a dificuldade de processamento
semântico, a criança irá processar o número no DP.
- Previsões:
1. Levando-se em conta a primeira hipótese, o número de respostas
correspondentes à figura multiplicada será semelhante nas três condições
experimentais.
2. Levando-se em conta a segunda hipótese, o número de respostas
correspondentes à figura multiplicada será maior nas condições RED e
NRED do que na condição SING.
- Método:
Participantes: 9 crianças de 23 a 28 meses de idade (idade média 25,3 meses)
Estímulos:
- Álbum com 18 páginas, correspondendo a 18 pranchas, cada uma
contendo 3 figuras: 1 figura-alvo, a qual representava um objeto ou ser
inventado, sempre no plural, e 2 figuras distratoras. Controlou-se a
animacidade dos alvos, assim, metade dos alvos era de nomes animados e
metade era de nomes inaminados, constituindo assim dois grupos de tipos
de pranchas, 1 (inanimados) e 2 (animados). As figuras distratoras
correspondiam ao singular, sendo uma representado um objeto ou ser
inventado e outra um objeto ou ser não-inventado. Também foi controlada
a animacidade dos distratores, sendo que metade deles era de animados e
metade de inanimados. A posição da figura-alvo foi variada. As duas
primeiras pranchas foram usadas como treinamento.
92
- 1 lista de frases. Cada criança ouviu 4 frases por condição, sendo 4
correspondentes à condição RED, 4 à condição NRED, e 8 à condição
SING (4 com nomes reais e 4 com nomes inventados), o que perfaz um
total de 16 frases-estímulo. Intercalaram-se alvos animados e alvos
inanimados.
Procedimento:
Tarefa de Identificação de Imagens sem voz sintetizada (conf. seção 4.1)
- Resultados e Discussão:
Os dados foram submetidos a um teste t (student) em que as condições
experimentais foram comparadas. Os resultados obtidos por este teste foram os
seguintes:
Experimento 3 (18 a 28 meses)
Média
Desvio Padrão
p<
t=
REDxNRED
0,256052
1,255279
Idade Inicial =
Idade Final =
Media de Idade =
Cond. RED
66,7 %
0,353553
REDxSING
0,012182
3,542482
Cond. NRED
61,1 %
0,220479
Cond. SING
26,4 %
0,229167
NREDxSING
0,008481
3,847817
23 meses
28 meses
25,3 meses
93
Gráfico Experimento 3
100.0%
Média de Acertos (%)
80.0%
66.7%
61.1%
60.0%
40.0%
26.4%
20.0%
0.0%
1
Condições Experimentais
Condição RED
Condição NRED
Condição SING
Os resultados da comparação entre as condições RED e NRED (t(df 8) =
1,25 p = 0.2) e da comparação entre RED e SING (t(df 8) = 3,54, p< 0,01) e
NRED e SING (t(df 8) = 3,84, p < 0,01) revelam que a criança percebe a
informação relativa a número presente no Determinante, uma vez que houve
diferença significativa entre RED e SING e NRED e SING e não houve diferença
significativa entre as médias de RED e NRED. Tal resultado é compatível com a
hipótese de trabalho assumida por esta dissertação, a qual assume que a
informação relativa a número presente nos elementos quer formam a categoria Det
é crucial para fixação de parâmetros concernentes a número. Observou-se um
significativo número de acertos nas condições RED e NRED, o que sugere que a
criança nesta faixa etária reconhece a informação relativa a número.
Estes
resultados são compatíveis com a hipótese de que as crianças possuem habilidade
de processamento de concordância de número no âmbito do DP, tendo em vista
que não houve diferença entre as condições RED e NRED.
94
5.5. – Conclusão:
Este capítulo apresentou e discutiu os resultados obtidos pela coleta
longitudinal de dados de produção espontânea de fala de duas crianças, além dos
resultados auferidos pelos procedimentos experimentais realizados no âmbito
desta dissertação. Após esta análise, crê-se poder chegar às conclusões a seguir.
No que tange à coleta de dados, observou-se que as crianças estudadas não
produziram DP´s flexionados em número, limitando-se a somente emitirem
exemplos de nomes flexionados em número. Tal fato permite afirmar que crianças
entre 24 e 28 meses (idades inicial e final dos participantes da coleta) possuem
algum domínio do sistema de flexão dos nomes em número. Além disso, o
registro de outras formas de expressão lingüística da numerosidade que não a
concordância de número leva a crer na existência de uma interação entre o
domínio de conhecimento lingüístico e outros domínios da cognição, ainda que o
desenvolvimento daquilo que é especificamente lingüístico obedeça a padrões
peculiares.
O experimento 1, em sua primeira parte, apontou para uma diferença
marginalmente significativa entre as condições, deixando entrever a possibilidade
de que as crianças estejam sensíveis à presença do morfema de número, ainda que
o processamento semântico do número seja difícil para ela. Já os resultados
relatados na parte II possibilitam afirmar que a criança entre 30 e 42 meses
percebe a presença do morfema de número, e são capazes de identificar a
informação semântica por ele veiculada. Uma análise de variância ANOVA
realizada com os dados obtidos por ambas as partes não revelou um efeito
significativo de idade na diferença entre as médias.
No que concerne ao experimento 2, nada foi possível concluir. Os
resultados auferidos não obedeceram ao previsto, não fornecendo evidências
compatíveis com nenhuma das hipóteses assumidas. Comparando-se os resultados
com o experimento realizado por Name (2002) relativo à aquisição do sistema de
gênero em português, tem-se que a opcionalidade do traço de número é
possivelmente um fator complicador para o processamento e a aquisição do
95
sistema de número em português. Contudo, esta dificuldade em se processar
número é compatível com uma das hipóteses aqui assumidas, a de que a aquisição
do sistema de número é mais demorada e custosa do que a do gênero, em virtude
de envolver processamento semântico adicional. Acresce ainda o fato de que este
experimento não observou uma influência da informação semântica expressa pela
raiz dos nomes utilizados nos estímulos, o que levou a respostas aleatórias por
parte dos participantes.
Acerca do experimento 3, pode-se dizer que o número de respostas
correspondentes à figura multiplicada deveu-se ao fato de a criança ter processado
concordância no DP, o que é compatível com uma das hipóteses assumidas.
Também é possível afirmar que crianças entre 18 e 28 meses já são capazes de
extrair informação relativa a número do Determinante, o que se constitui em uma
evidência compatível com a hipótese assumida neste trabalho.
96
6. Conclusão Geral
A presente dissertação buscou descrever o reconhecimento do número
gramatical e processamento da concordância de número no sintagma determinante
na aquisição do português brasileiro, além de compará-lo com a aquisição do
sistema de gênero. Foram realizados experimentos com crianças de 18 a 28 meses
e de 30 a 42 meses, acrescidos de um coleta longitudinal de dados de produção
lingüística de duas crianças de 24 meses. Tantos os experimentos quanto a coleta
concentraram-se na análise da manifestação do número gramatical no âmbito do
DP.
A hipótese de trabalho que orienta esta dissertação é a de que a informação
relativa a número contida nos elementos que formam a categoria funcional
Determinante (D) é crucial para a identificação do sistema de número no
português. A presente dissertação pretendeu não só verificar o quanto de
informação relativa a número a criança pode reconhecer no âmbito do DP, mas
também averiguar a sua sensibilidade à concordância de número. Por outro lado,
esta dissertação visou igualmente a comparar os processos de aquisição de gênero
e de número, objetivando o estabelecimento de distinções entre as duas categorias
e entre os dois processos.
A aquisição do número gramatical parece ser afetada pela opcionalidade
do traço de número, o que não ocorre com o gênero, o qual é semanticamente
mais opaco, além de ser um traço intrínseco. O presente trabalho obteve
evidências de que o processamento da concordância de número no DP apresenta
maior dificuldade para crianças do que o processamento da concordância de
gênero. A explicação dada para este fenômeno parece residir na opcionalidade do
traço de número, o que acarreta processamento semântico adicional
Um dos objetivos específicos pretendidos por este trabalho foi caracterizar
o que se apresenta como um problema para a criança no processamento do
material lingüístico no que diz respeito a número gramatical. Tal objetivo
relaciona-se à caracterização inicial das habilidades perceptuais relevantes para a
97
identificação da informação relativa à número (o que e quanto de informação a
criança é capaz de retirar do input). Nesse sentido, pode-se afirmar que a criança
deve ser perceptualmente capaz de identificar o morfema de número presente no
input, assim como deve estar apta a reconhecer o conteúdo semântico deste
morfema e a estabelecer concordância de número no DP. Os resultados do
experimento 1 mostraram que a criança com idade média de 22,9 meses é sensível
à presença do morfema de número adjungido aos nomes, e esta sensibilidade
aumenta conforme a idade, como demonstrou a comparação com os resultados
obtidos com crianças com idade média de 38,6 meses submetidas ao mesmo teste.
Os resultados do experimentos 3 sugerem que a criança entre 18 e 28 meses tem
uma certa dificuldade em reconhecer o conteúdo semântico do morfema de
número, comparativamente ao gênero, mas que é capaz de extrair informação
relativa a número exclusivamente do determinante. Assumindo-se, como em
Chomsky (1995) que o traço de número é interpretável no nome, a identificação
do referente com base na informação de número expressa no Determinante é
evidência de que a concordância foi estabelecida (no nível da sintaxe aberta).
Caso, considere-se, como em Magalhães (2002) que o núcleo em que o traço de
número é interpretável é um parâmetro a ser fixado, sendo o Determinante o
núcleo em que número seria interpretável no português, então, crianças de 18
meses em diante evidenciam ter levado em conta a informação morfológica que
levaria a essa fixação.
Com base no que foi dito até aqui, pode-se descrever, em linhas gerais, o
processo de aquisição do número em português como sendo um processo
envolvendo as seguintes etapas:
1. Identificação, por parte da criança, de propriedades fônicas relativas à
presença/ausência do morfema de número no âmbito do DP, as quais remetem
a categoria marcada/não marcada. O reconhecimento destes padrões levaria a
inicialização do programa biológico responsável pelo tratamento lingüístico da
informação processada, por meio do processo do bootstrapping.
98
2. Uma vez reconhecidas estas propriedades, e inicializado o programa
biológico, a informação relativa a número seria identificada como um
morfema de número, portador de um determinado valor semântico.
Não obstante o fato de a explicação acima ter sido baseada em dados
experimentais obtidos com crianças adquirindo português, espera-se que ela possa
ser relevante para a descrição do processo de aquisição em qualquer língua em
que um sistema de número se apresente.
Esta dissertação levou em consideração, para a elaboração dos
experimentos, a existência de um sistema de concordância de número no DP o
qual permite que Determinante e Nome, ou somente o Determinante, possam
aparecer marcados por um morfema de número. Contudo, sabe-se que o português
brasileiro apresenta uma gama bastante variada de manifestações de concordância
de número entre os elementos que formam o DP, o que é observado quando se
analisam os diversos dialetos sociais e regionais. Possivelmente, estas variações
influem de algum modo no processo de aquisição do sistema de número
gramatical em português brasileiro, embora tal possibilidade não tenha sido
explorada aqui. Recomenda-se, portanto, que estudos posteriores sobre a
aquisição do número não deixem de investigar a influência da variação lingüística
sobre os processos de aquisição.
Os estudos conduzidos para a elaboração desta dissertação tiveram caráter
preliminar, o que pode ser atestado pelo relativamente baixo número de
participantes dos experimentos e coleta longitudinal. A idéia foi apenas abrir um
campo de pesquisas dentro de aquisição do português, o qual se acha ainda pouco
explorado. Contudo, acredita-se que os resultados aqui obtidos sejam relevantes,
constituindo-se assim em uma base confiável sobre a qual estudos posteriores
mais aprofundados podem se assentar.
99
7. Anexos
Anexo 1: Transcrição Fonética dos Exemplos Obtidos na Coleta de Dados
Data da Gravação: 13/10/2002
Sujeito: Y*
Participantes: Mãe
Professora
Local: Creche
ƒ
ƒ
Prof.: isso aqui (aponta para uma figura) é um monte de...
Y*.: estrelas [iΣ∋τΡeλΑΣ]
ƒ
ƒ
Prof.: quantas borboletas !
Y*.: borboletas [βορβο∋λeτασ]
Data da Gravação: 07/11/2002
Sujeito: Y*
Participantes: Assistente de Pesquisa
Mãe
Local: Creche
ƒ
ƒ
Assistente: quem é ? (aponta para uma figura) quem ?
Y*.: a bola...a outra bola [α ∋β λα...α ∋οωτρα ∋β λα]
Data da Gravação: 20/11/2002
Sujeito: Y*
Participantes: Mãe
Pesquisador
Local: Creche
ƒ
ƒ
Pesquisador: o que é aqui ?
Y* .: bolas [∋β λαΣ]
ƒ
ƒ
Pesquisador: e aqui ? (mostra uma figura com peixes)
Y*.: é peixe, peixe, peixe [Ε ∋πεϕΣε,∋πεϕΣε,∋πεϕΣε]
ƒ
ƒ
Pesquisador: e esse ?
Y*.: três (aponta para o desenho do número 3) [‘τΡεϕΣ]
ƒ
ƒ
ƒ
Pesquisador: quantos bibi têm aqui ?
Mãe: dois
Y*.: dois [‘δοϕΣ]
ƒ
ƒ
ƒ
Mãe.: o que é isso aqui ?
Y*.: a banana [α βα∋νãνα]
Mãe.: e isso ?
100
ƒ
ƒ
Y*.: banana [α βα∋νãνα]
Y*.: outro, outro (aponta para as figuras de banana) [∋οωτρΥ,∋οωτρΥ ]
Data da Gravação: 09/12/2002
Sujeito: Y*
Participantes: Mãe
Assistente de Pesquisa
Local: Creche
ƒ
ƒ
ƒ
ƒ
Mãe: e esse aqui ?
Y*.: bibi ! [βι∋βι]
Y*.: o elefante [Υ ελε∋φãτι]
Y*.: cachorros (a mãe apontava para uma figura de vários cachorros)
[kα∋ΣορΥΣ]
ƒ
ƒ
ƒ
ƒ
ƒ
Assistente: O que é isso aqui ?
Y*.: mais um ! [µαϕ∋ζυµ]
Assistente.: tem mais !
Assistente.: olha o caminho da abelha !
Y*.: tem mais um [∋τẽy µαϕ∋ζυµ]
ƒ
ƒ
Asssistente: e isso aqui, o que é ? (mostra uma buquê de flores no mural)
Y*.: deis flores [∋δεϕΣ φλο∋ριΣ]
ƒ
ƒ
ƒ
Assistente: quantos carros tem aí ?
Y*.: tem mais um [∋τẽy µαϕ∋ζυµ]
Y*.: bateu outra vez (bate um carrinho no outro) [βα∋τεω ∋οωτΡα ∋ϖειΣ]
ƒ
ƒ
ƒ
ƒ
Assistente: quantos carrinhos tem aí, Y* ?
Y*.: um ! (mostra o carrinho que tem nas mãos) [∋ữm]
Y*.: tem mais um (mostra outro carrinho) [∋τẽy µαϕ∋ζυµ]
Y*.: tá vazio [∋τα ϖα∋ζιΥ] (mostra uma caixa vazia)
ƒ
ƒ
Assistente: quantos bibi têm ali ?
Y*.: um ,dois, três, quatro... [∋ữm, ∋δοϕΣ, ∋τΡεϕΣ, ∋κωατΡΥ]
ƒ
ƒ
ƒ
ƒ
Assistente:o que a menina está segurando ?
Y*.: bola [∋β λα]
Assistente: bolas
Y*.: bolas [∋β λαΣ]
101
Data da Gravação: 17/10/2002
Sujeito: A*
Participantes: Mãe
Assistente de Pesquisa
Local: Residência
ƒ
ƒ
ƒ
Assistente: quem é esse aqui ? (aponta para uma boneca)
A*.: a menina [α µι∋νινα]
A*.: pabins pa você (parabéns pra você )
[πα∋βινΣ ∋πα ∋οσε]
(bate
palmas)
Data da Gravação: 06/11/2002
Sujeito: A*
Participantes: Mãe
Assistente de Pesquisa
Local: Residência
ƒ
ƒ
ƒ
ƒ
Assistente: E esse aqui ? (mostra uma figura de um macaco)
A*.: é o macaco [‘Ε Υ µα∋κακΥ]
Assistente: isso, parabéns. E esse ? (mostra uma figura de flores)
A*.: é flores [ ∋Ε φλο∋ΡιΣ]
ƒ
ƒ
Assistente: vamos ver outro. Esse aqui ? (mostra uma figura de sapos)
A*.: sapos [∋σαπΥΣ]
ƒ
ƒ
ƒ
ƒ
ƒ
Assistente: aqui é uma bola, e aqui, duas...bo...
Assistente: aqui tem duas...
A*.: bola
Assistente: não, duas bo...
A*.: ...las [...λαΣ]
ƒ
ƒ
Assistente: e aqui ? (mostra um desenho de um aquário)
A*: peixinhos }[πεϕ∋ΣιΝΥΣ]
ƒ
ƒ
Assistente: Q que tem aqui ? (mostra um desenho de uma fazenda)
A*.: dusavacas (duas vacas) [δυζα∋ϖακαΣ]
Data da Gravação: 20/12/2002
Sujeito: A*
Participantes: Assistente de Pesquisa
Local: Residência
ƒ
ƒ
ƒ
Assistente: quantos patinhos têm aqui ? (mostra uma figuras com vários
patinhos)
A*.: um patinho, um carro (aponta para um dos patinhos e um dos carros,
na outra página) [∋ữm πα∋τιΝΥ] [∋ữm ∋kαρΥ]
Assistente: Mas você nem viu as abelhinhas que têm ?
102
ƒ
ƒ
ƒ
A*.: abelhinhas [αβε∋λΝαΣ]
Assistente: conta quantas...
A*.: ...duas, três... e já [δυ∋αΣ, ∋τρεϕΣ... ε ∋Ζα]
103
Anexo 2: Frases e pranchas utilizadas no Experimento 1
A tia quer ver gatos. Têm gatos aqui ?
Cadê o cavalo ?
Flores ! Têm flores nesta folha ?
Mostra a casa pra mim ?
A tia quer ver vacas. Aqui têm vacas ?
Ache o telefone pra Lu ?
Aqui têm ratos ?
Cadê a cadeira ?
Patos ! Têm patos aqui ?
Mostra a mesa pra tia ?
Estrelas ! Eu quero ver estrelas !
Cadê o avião ?
Sapos ! Aqui têm sapos ?
Ache o peixe pra mim ?
A Lu quer ver bolas. Têm bolas aí ?
Ache o cachorro pra mim ?
Condição PLURAL
Condição SINGULAR
104
Anexo 3: Frases e pranchas utilizadas no Experimento 2
LISTA 1
Ache o gato pro Dedé
LISTA 2
Ache o gatos pro Dedé
LISTA 3
Ache os gatos pro Dedé
LISTA 4
Ache os gato pro Dedé
Mostra as casas pro Dedé
Mostra as casa pro Dedé
Mostra a casas pro Dedé
Mostra a casa pro Dedé
Ache os cavalo pro Dedé
Ache os cavalos pro Dedé
Ache o cavalo pro Dedé
Ache o cavalos pro Dedé
Mostre a flor pro Dedé
Mostre a flores pro Dedé
Mostre as flores pro Dedé
Mostre as flor pro Dedé
Ache a vacas pro Dedé
Ache a vaca pro Dedé
Ache as vaca pro Dedé
Ache as vacas pro Dedé
Mostra os telefone pro Dedé
Mostra os telefones pro Dedé
Mostra o telefone pro Dedé
Mostra o telefones pro Dedé
Ache os ratos pro Dedé
Ache os rato pro Dedé
Ache o ratos pro Dedé
Ache o rato pro Dedé
Ache a cadeiras pro Dedé
Ache a cadeira pro Dedé
Ache as cadeira pro Dedé
Ache as cadeiras pro Dedé
Ache o pato pro Dedé
Ache o patos pro Dedé
Ache os patos pro Dedé
Ache os pato pro Dedé
Ache as mesas pro Dedé
Ache as mesa pro Dedé
Ache a mesas pro Dedé
Ache a mesa pro Dedé
Mostre os cachorro pro Dedé
Mostre os cachorros pro Dedé
Mostre o cachorro pro Dedé
Mostre o cachorros pro Dedé
Ache o avião pro Dedé
Ache o aviões pro Dedé
Ache os aviões pro Dedé
Ache os avião pro Dedé
Mostre esse sapos pro Dedé
Mostre esse sapo pro Dedé
Mostre esses sapo pro Dedé
Mostre esses sapos pro Dedé
Mostre as estrela pro Dedé
Mostre as estrelas pro Dedé
Mostre a estrela pro Dedé
Mostre a estrelas pro Dedé
Mostre os peixes pro Dedé
Mostre os peixe pro Dedé
Mostre o peixes pro Dedé
Mostre o peixe pro Dedé
Ache a bolas pro Dedé
Ache a bola pro Dedé
Ache as bola pro Dedé
Ache as bolas pro Dedé
Controle = Det e N singular
Redundante = Det e N plurais
Agramatical = Det singular e N plural
Não-redundante = Det plural e N singular
107
Anexo 4: Frases e pranchas utilizadas no Experimento 3
Nesta folha tem dabos.
Mostra os dabos pra mim ?
Olha só os tebes !
Mostra os tebes pra mim ?
Aqui tem uma tada.
Ache a tada pra mim ?
Eu estou vendo uma cafa.
Cadê a cafa ?
Aqui tem muitos pafas.
Ache os pafa pra mim ?
Nesta folha tem muitos mopes.
Ache os mope pra tia ?
Eu estou vendo o gato.
Cadê o gato ?
A tia quer ver um trem.
Cadê o trem ?
Nesta folha tem laba.
Ache as labas pra tia ?
Olha só as tifes.
Mostra as tifes pra mim ?
Eu quero ver uma vama.
Mostra a vama pra mim ?
Aqui tem uma zarre.
Ache a zarre pra mim ?
Nesta folha tem muitas gapas.
Ache as gapa pra tia ?
Aqui tem mabas.
Cadê as maba ?
Aqui tem um rato.
Mostra o rato pra mim ?
Nesta folha tem um carro.
Mostra o carro pra tia ?
Condições RED = redundante
NRED = não-redundante
SING = controle
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