1 XXVII ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS GT 12: PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL COORDENADORES: MARCOS CHOR MAIO E FERNANDA PEIXOTO Título da Apresentação: Sociólogos nos manuais de sociologia (Brasil – 1935/1948) Expositora: Simone Meucci Ano: 2003 _______________________________________________________________________ Introdução A institucionalização do curso de Ciências Sociais na Escola Livre de Sociologia e Política (1933), na Universidade de São Paulo (1934) e na Universidade do Distrito Federal (1934) impôs, repentinamente, aos intelectuais brasileiros a difícil tarefa de converter a disciplina sociológica aos padrões acadêmicos. O grande desafio que se colocava diante dos fundadores da nova ciência no Brasil era que a reflexão sociológica – até então exercitada nos laboratórios de Medicina Legal, nos Museus Históricos e Geográficos, nos editoriais jornalísticos, nas ficções literárias, nas aulas eruditas dos cursos de Direito - precisava ser definida em relação às condições de produção de conhecimento no interior da universidade. E, ainda: uma vez estabelecida no quadro de disciplinas acadêmicas, exigia-se o reconhecimento do sociólogo como portador de um conhecimento legítimo a fim de figurar entre engenheiros, médicos, advogados na constelação de intelectuais reconhecidos. Tratava-se, sobretudo, de atribuir função social ao novo cientista. Legitimá-lo não apenas diante da academia, mas também perante a sociedade e seus círculos intelectuais mais amplos. Nesse sentido, a constituição da Sociologia como disciplina acadêmica parece ter sido um dos aspectos mais dramáticos de sua institucionalização. Não faltaram apenas recursos humanos capazes de desenvolvê-la entre nós: os intelectuais favoráveis ao estabelecimento do conhecimento sociológico na academia depararam-se também com condições deficientes de trabalho, de financiamento e incentivo à pesquisa. Depararam-se, enfim, com um ambiente intelectual adverso à produção científica. (FERNANDES, 1977) 2 Pesquisas acerca do papel exercido pelas missões estrangeiras e seus membros na constituição do campo de pesquisas no Brasil sociais têm sido desenvolvidas entre nós.1 Entretanto, a mesma dedicação analítica não tem sido dada ao modo como os pioneiros brasileiros (que foram enfim responsáveis pela institucionalização das Ciências Sociais no Brasil) procuraram tecer a identidade da sociologia e, principalmente, do sociólogo. Afinal, como enfrentaram este complexo desafio? Para responder a esta pergunta realizamos um estudo dos principais livros didáticos de Sociologia elaborados por autores brasileiros. São eles: Princípios de Sociologia, de Fernando de Azevedo, 1935; Sociologia: introdução aos seus princípios, de Gilberto Freyre, 1945; Introdução à Sociologia, de Amaral Fontoura, 1948. Estes livros estão entre os mais publicados da história do ensino da sociologia no Brasil e seus autores são importantes pioneiros das Ciências Sociais entre nós que, em círculos bastante distintos do campo intelectual brasileiro, sustentaram expectativas diversas em relação à natureza da contribuição do novo cientista. Por isso, o exame destes livros nos permitirá identificar como foi definida a identidade do cientista social (do sociólogo em especial) em diferentes setores da intelectualidade brasileira. Pretendemos também fazer reconhecer a validade dos livros didáticos como fonte preciosa para análise do modo como um determinado campo científico é legitimado diante de portadores especializados e não-especializados. Durkheim como emblema Um dos primeiros manuais de Sociologia redigido no Brasil foi “Princípios de Sociologia” de Fernando de Azevedo. Originalmente elaborado para os cursos de Sociologia da Universidade de São Paulo (onde o autor era professor) este livro foi, entretanto, também adotado no nível secundário. Consagrou-se como um dos mais notáveis manuais de 1 Sobre as missões científicas estrangeiras e a definição da identidade do sociólogo ver: VILA NOVA,1998; LIMONGI, 1989. Os dois textos referem-se à influência de Donald Pierson na formação de cientistas sociais no Brasil. Ver também: MASSI,1989. 3 Sociologia publicado no país. Percorreu incólume cinco décadas da história da Sociologia no Brasil: foi, pois, reeditado onze vezes entre os anos de 1935 e 1973. 2 A começar pelo exame da dedicatória deste livro, podemos dizer que Fernando de Azevedo parecia, em 1935, querer anunciar a construção de um caminho novo para a Sociologia no Brasil. O livro é dedicado aos professores “P. Arbousse Bastide, C. Levy-Strauss, Roger Bastide e Samuel H. Lowrie que¸ diz Azevedo, da França e da América do Norte trouxeram sua contribuição científica ao desenvolvimento dos estudos sociológicos em São Paulo”. Na mesma dedicatória Azevedo rende também homenagem àqueles que, segundo suas palavras, considera os pioneiros da Sociologia no Brasil: Sílvio Romero, Pontes de Miranda e Delgado de Carvalho. Nesta dedicatória, o autor inscreveu o passado e o futuro da Sociologia no Brasil: por um lado, o passado amador e heróico; por outro, o futuro promissor a ser traçado nos limites do estado de São Paulo. A dedicatória qualifica, portanto, o tempo no qual o compêndio foi elaborado. Anuncia, nas entrelinhas, que o livro é o produto de um período de transição entre o pioneirismo avulso e o profissionalismo acadêmico. Azevedo parece, desse modo, anunciar que embora ele fosse também um pioneiro autodidata, é realizador do esforço fundamental para a definição da Sociologia a partir dos novos padrões que se impunham diante das condições do trabalho universitário. E, para realizar esta tarefa de definição acadêmica da Sociologia inspirou-se, principalmente, nas lições de Durkheim: aquele que, segundo Azevedo, tornou a Sociologia verdadeiramente uma área de conhecimento autônoma, rigorosamente científica. (AZEVEDO, 1939: 267) Com efeito, Princípios de Sociologia, embora trate de apresentar um painel acerca das teorias sociológicas fundamentais, é antes um livro dedicado à apresentação dos princípios fundamentais da obra de Durkheim. Nem é preciso aprofundar a análise para constatar que Princípios de Sociologia é um livro de filiação durkheimiana. Azevedo, numa espécie de preâmbulo, enumera o que 2 Este manual é o que mais facilmente encontramos nas principais bibliotecas e sebos onde 4 considera os dez princípios fundamentais relativos ao procedimento do sociólogo diante de seu objeto de análise. Não são senão uma síntese do livro de Émile Durkheim As regras do Método Sociológico, publicado em 1893. Como nos sugere este preâmbulo, o livro de Azevedo, deve ser compreendido como um esforço para definir a Sociologia como uma área científica com objeto e métodos próprios, tal como fizera Durkheim n’As regras do método sociológico. A Sociologia afirma o autor inúmeras vezes - trata de uma realidade sui generis, muito diferente daquela que é objeto da psicologia e da história, por exemplo. (AZEVEDO, 1939:19) Azevedo foi, com efeito, reconhecidamente, o mais notável divulgador da obra de Durkheim entre nós.3 Na leitura de alguns trechos do manual pode-se até mesmo confundir as palavras de Azevedo com as de Durkheim. Porém, não é necessário sequer folhar uma página da primeira edição de Princípios de Sociologia para notar esta curiosa justaposição entre Azevedo e Durkheim. Basta apenas observar a capa do manual: é totalmente ocupada pelo retrato de Durkheim e, até mesmo a reprodução do nome do sociólogo francês está em caracteres do tamanho equivalente aos que apresentam o nome de Fernando de Azevedo. Observação a respeito desta capa já foi realizada por Simoni Guedes. Consultemos a sua interpretação acerca do fenômeno: A capa é um primor de ambigüidade. Sem que nos detenhamos um momento no seu exame, é impossível saber se o autor do livro é Durkheim ou Azevedo ou se o tema do livro é Durkheim ou a Sociologia. Nesse caso Durkheim é transformado num totem que, portado como emblema, se acompanharmos o próprio raciocínio durkheimiano, permite aos seus portadores que se irmanem com ele, contaminando-se com sua natureza já consagrada. (GUEDES, 1994) realizamos o levantamento. 3 De fato esta obra de Azevedo foi considerada veículo responsável pela ampla difusão das idéias de Durkheim no sistema escolar e acadêmico brasileiro. Azevedo não foi, porém, o primeiro a trazer as idéias do sociólogo francês. Lembremos que Paulo Egydio introduzira, no início do século, a discussão da obra A divisão do trabalho social, particularmente as questões relativas ao direito penal. Em 1929 é traduzida, por Lourenço Filho, a primeira obra de Durkheim no Brasil: Sociologia e Educação, que consagrara a apropriação de Durkheim pelos educadores interessados na compreensão sociológica da ação educativa. Apenas em 1936, um ano após a publicação de Princípios de Sociologia, sob orientação de Fernando de Azevedo, Rodrigues de Méreje traduziu, finalmente, As regras do método sociológico. 5 A interpretação de Guedes nos sugere que o autor brasileiro, membro fundador do Instituto de Filosofia da Universidade de São Paulo, tomou para si a mesma tarefa intelectual que Durkheim assumira na França. Filiar-se ao sociólogo francês ou, mais do que isto, portá-lo como emblema - como nos disse sugestivamente Guedes - é, em alguma medida, tornar-se, entre nós, o fundador da Sociologia positiva.4 E, de fato, é como sociólogo e um dos fundadores da Sociologia no Brasil que Fernando de Azevedo se define em seu livro de memórias, escrito muitas décadas depois. (AZEVEDO, 1971, p. 210) Em São Paulo, a posse de Durkheim como emblema para a luta de autonomização da Sociologia acabava por legitimar o movimento de contratação de cientistas sociais estrangeiros, principalmente os franceses, considerados aptos a formar entre nós uma cultura científica adequada à fixação da Sociologia no conjunto de disciplinas acadêmicas. Sob a imagem de Durkheim reuniam-se esforços dispostos a abalar a estrutura de poder institucional dos sábios da província: engenheiros, médicos e, sobretudo, bacharéis em direito que até então detinham a hegemonia do conhecimento entre nós. (GUEDES, 1994) De fato, com auxílio de Durkheim, Fernando de Azevedo nos apresenta o sociólogo como um cientista rigoroso. Decorre da noção de especificidade da Sociologia, a imagem do sociólogo como portador de um conhecimento especializado. Como o físico, o químico, o biólogo, o sociólogo é ali representado um cientista cuja formação exige rigoroso treinamento científico devido à grande complexidade e riqueza da matéria dos estudos sociológicos: (...) não se improvisa um pesquisador ou um experimentador. Nem em Física, nem em Química, nem em Sociologia. (AZEVEDO, 1939: 27) O sociólogo é ainda apresentado como um cientista cujo conhecimento produzido permitirá uma melhor condução da vida social. Nesse sentido, a identidade e a importância do sociólogo se fundamentam na crença de que a Ciência Social tornará possível prever os efeitos, favoráveis e desfavoráveis, de certos atos sobre a sociedade. Um dos esforços de Fernando de Azevedo era conquistar a autonomia da Sociologia em relação à educação. Queria, na luta pela academização da disciplina evitar que a Sociologia servisse de mero apoio didático para formação de educadores. Este esforço está documentado no livro Sociologia Educacional, publicado em 1940. Nesta obra, também dedicada à formação dos alunos dos cursos de Ciências Sociais, Fernando de Azevedo procura, sempre com o auxílio de Durkheim, definir a educação como um objeto de investigação sociológica. Quis capturá-la a fim de incorporá-la ao campo estudos sociológicos. Sociologia 4 6 Neste aspecto o sociólogo, para Azevedo, surge como cientista cujo trabalho resultará no favorecimento do progresso do país. Segundo esta perspectiva, o progresso pode e deve ser conduzido pelos homens por meio do conhecimento profundo das leis e dos fatos sociais. (AZEVEDO, 1951:161) Com efeito, o autor parece acreditar que, ao beneficiar a autonomia epistemológica da Sociologia, está contribuindo para o progresso do país. Sociologia e sociólogo aparecem, portanto, como produto e produtores do progresso. Porém, embora proclame o conhecimento profundo da vida social e enumere métodos de investigação, o livro é um compêndio no sentido rigoroso do termo. São cerca de 400 páginas densas dedicadas à transcrição escolástica de teorias e métodos sociológicos. Os exercícios sugeridos, na maioria das vezes, dizem respeito à exploração de problemas conceituais. Azevedo, embora assinale uma nova fase para as Ciências Sociais no Brasil (que deverá, segundo seu desejo, estar marcada pela pesquisa sistemática e pelo fim do ensaísmo e do diletantismo), padece dos mesmos problemas dos diletantes: o enciclopedismo. Como não podia deixar de ser, Azevedo é tributário das virtudes e dos limites dos pioneiros: acredita na Ciência Social como um instrumento importante para o progresso nacional e é por isso, capaz de mobilizar heroicamente esforços para a sua institucionalização. Entretanto, apresenta grandes dificuldades relativas à falta da experiência científica, tão exigida no momento em que a sociologia se constitui no interior da universidade. Este é, pois, um paradoxo que figura nas páginas de muitos manuais didáticos de sociologia elaborados no Brasil neste período. E nossos pioneiros, a exemplo de Azevedo, nunca deixaram de reconhecer estas dificuldades. É por isso que, de certo modo, “entregaram” aos franceses e norte-americanos a tarefa de preparar a primeira geração de cientistas sociais no Brasil.5 Educacional representa mais um passo de Azevedo na luta pela constituição do novo caminho para a Sociologia. (AZEVEDO, 1951) 5 Importante apenas mencionar aqui que Fernando de Azevedo, no discurso proferido por ocasião do encerramento do I Congresso Brasileiro de Sociologia, em junho de 1954 (quando se despedia do cargo de Presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia), confessou que ele tivera dificuldades na sistematização teórica da sociologia ao redigir seus compêndios. Neste mesmo texto queixou-se de que a 7 Entretanto, vimos aqui que, a despeito destas dificuldades, Azevedo se definia, sem cerimônia, como sociólogo. Ora, o que era então ser sociólogo para ele? Parece, pois, que a pesquisa sociológica não é o elemento fundamental constituidor da identidade do sociólogo, pelo menos para ele. Lembremos apenas que entre nós, a Sociologia, bem ou mal, antes de sua institucionalização acadêmica, já era reconhecida por sua difusão no sistema escolar. Desde o final dos anos 20 estava, pois, presente nos currículos dos cursos complementares e normais. O sociólogo, porém, enquanto cientista especializado ainda não era uma figura reconhecida. No sentido estrito do termo, pode-se, por isso, dizer que a Sociologia surgiu aqui antes da emergência da figura do sociólogo. Nesse sentido, a contrapartida do fato da institucionalização da Sociologia ser produto da legitimidade externa, relacionada antes ao sistema escolar do que ao sistema acadêmico, é que nossos autodidatas, fundadores da Sociologia entre nós, não possuíam a experiência indispensável à transformação dela em disciplina acadêmica. Por isso, no imaginário intelectual do período, a Sociologia acabava por assumir principalmente uma função de formação cultural. 6 Algumas destas dificuldades tinham origem na concepção particular acerca do papel das universidades que, na época, por força dos imperativos da reforma do ensino superior brasileiro (realizada por Francisco Campos em 1931), foram compreendidas como instituições responsáveis pela formação de professores para o ensino médio. Francisco Campos afirmava então que as Faculdades de Educação, Ciências e Letras (onde foram abrigados os primeiros cursos de Ciências Sociais) deveriam ser antes de tudo “institutos de educação”. (SCHWARTZMANN, 1979: 175) Esta compreensão acerca da função da universidade resultou no sacrifício dos ideais científicos, em particular nos cursos da área de Humanas. A pesquisa sociológica, evidentemente, padeceu muito sob estes imperativos. 7 ampliação das cadeiras de sociologia no Brasil da época não correspondia a um desenvolvimento qualitativo das pesquisas sociológicas. (AZEVEDO, s/d: 197) 6 Ver: ALMEIDA, 1989. 7 Não foi à toa que a retirada da Sociologia do currículo dos cursos complementares das escolas secundárias, ocorrida em 1941 sob a Reforma Capanema, causou um grande impacto sobre os cursos de Ciências Sociais oferecidos pelas universidades e faculdades. Exigiu novo redimensionamento dos cursos acadêmicos antes voltados quase exclusivamente para a preparação de professores de Sociologia e não propriamente para a formação de pesquisadores sociais.Ver artigos publicados na revista 8 O livro de Azevedo é, pois, um retrato bastante significativo deste período dramático de definição acadêmica da disciplina diante desta atmosfera cultural bastante adversa às iniciativas científicas. Azevedo, como bem revelam as páginas de Princípios de sociologia, compromete-se com a transição da sociologia para disciplina acadêmica, porém carece de instrumentos que permitam a realização desta tarefa em sua completude. É portanto escolástico sem desejar sê-lo. A forma enciclopédica de anunciar um tempo novo para a sociologia brasileira revela as ambigüidades e os paradoxos inerentes à sua posição no contexto de então. Entre intuição e razão, homem e natureza O manual Sociologia: estudo de seus princípios foi publicado por Gilberto Freyre pela primeira vez em 1945. Houve ainda mais quatro reedições entre os anos de 1957 e 1973. Segundo Freyre, a elaboração deste livro resultou da realização do curso de Sociologia ministrado pelo autor entre 1935 e 1937, oferecido pelo departamento de Ciências Sociais da Universidade do Distrito Federal, extinta em 1939. O autor dedica a primeira edição aos estudantes de Sociologia e Antropologia da extinta Universidade e à Heloísa Alberto Torres que, na época, foi sua colega departamento. Trata-se de uma espécie de homenagem póstuma à instituição que Freyre tanto admirava e que considerava como uma espécie de potencial renovadora do ensino e das ciências no Brasil. Diga-se de passagem, uma das únicas instituições acadêmicas à qual Freyre se ligou durante a vida e cuja extinção sempre lamentou. Aliás, esta ausência de vínculos com a academia faz com que Freyre se defina, nas páginas deste livro, como um marginal, termo que considera mais adequado do que a designação de amador ou diletante, utilizada por seus críticos, os professores de carreira. “Sociologia” entre os anos de 1941 e 1949. A leitura atenta destes artigos oferece um quadro geral do impacto, entre os acadêmicos da USP, causado pela retirada do ensino da Sociologia nos cursos de secundários. É, pois, um tema que merece análise mais aprofundada que, entretanto, não cabe nos limites deste trabalho. Sobre o debate da época acerca da sociologia no nível secundário ver: (CANDIDO, 1949) (CANDIDO, 1955) (CARVALHO, 1937) (COSTA PINTO, 1944) (COSTA PINTO, 1949) (FERNANDES, 1955) (PEIXOTO, 1937) (PIERSON, 1949) (POVIÑA, 1939) (RIOS, 1949) 9 Para ele, a ausência de vínculos acadêmicos e a falta de uma carreira docente não fazem dele um sociólogo amador, nem mesmo um diletante. (FREYRE, 1945:64) Notamos, a partir desta declaração, que em 1945 (pouco mais de dez anos após a introdução da Sociologia na Universidade brasileira) eram já fortemente vinculadas as carreiras de sociólogo e de acadêmico entre nós e que, portanto, Freyre via-se obrigado, diante de seus críticos, a legitimar constantemente o seu profissionalismo, muito embora não pertencesse aos quadros de uma Universidade. Freyre, porém, afirma não lamentar tal condição marginal. Ao contrário, diz que ela o favorece, torna-o liberto dos compromissos e responsabilidades didáticas. Permite que possa, segundo suas palavras, vez por outra, contribuir para o desenvolvimento de estudos de problemas sociológicos com pontos de vista e arrojos extra-acadêmicos e extradidáticos, embora de modo nenhum antiacadêmicos e antididáticos. É nesta perspectiva que Freyre define este livro: como um livro original escrito com arrojos e audácia pessoal, virtudes raramente cultivadas por catedráticos e acadêmicos. (FREYRE, 1945:66) Observamos aqui que Freyre, ao contrário de outros autores, construía uma oposição entre a carreira científica e a carreira docente. Para ele, a didática se opõe à audácia exigida no trabalho de investigação científica. Com efeito, este manual difere da maioria dos compêndios que foram publicados no período. A linguagem usada por Freyre é pessoal e agradável em comparação com os outros livros, embora seja ainda - para os leitores de suas obras mais conhecidas - árida. Impossível não comparar, com imediatez, o estilo mais “à vontade” de Sociologia à formalidade de Princípios de Sociologia. A diferença entre as obras sugere que estamos diante de autores de origem intelectual diversa. E, de fato, ao folhar as páginas de Sociologia, compreendemos que os princípios sociológicos apresentados por Freyre não tem nada em comum com aqueles que foram antes sintetizados por Fernando de Azevedo. Freyre prefere os sociólogos alemães e norte-americanos aos franceses. Usa, com freqüência, o termo processo social e parece querer evitar o conceito durkheimiano fato social. Prefere compreender a explicar os fenômenos sociais. São termos que evidenciam 10 uma concepção bastante distinta de Fernando de Azevedo acerca da sociologia e dos sociólogos. A sociologia não é para Freyre, uma ciência pura, ou seja, não é uma ciência natural no sentido estrito do termo. Para ele, os modelos de investigação oferecidos pela física, pela química e pela biologia não bastam para compreensão dos problemas sociológicos. A sociologia é uma ciência mista e anfíbia, nos diz ele ainda no prefácio. O caráter misto da Sociologia é imposto pelo próprio objeto da investigação. Para ele, a nova ciência dedica-se ao estudo de processos, funções e formas de associação, posição e interdependência dos seres humanos entre si e o meio que os cerca. (FREYRE, 1945: 124) É uma ciência nova que trata de investigar o homem na sua totalidade, na sua relação com outros homens e com a natureza. É complexa porque o homem o é. Devido às características da investigação sociológica, Freyre nos diz que são quixotescos e solitários aqueles sociólogos que pretendem provar a possibilidade de tratamento das questões sociológicas como coisas da natureza. (FREYRE, 1945:13) Segundo Freyre, a complexidade do objeto de investigação da Sociologia faz com que seu conhecimento se forme apenas lentamente. É uma ciência em construção, como uma língua em formação, cuja gramática é ainda precária na estabilidade de suas regras e leis, muitas delas ainda prematuras, pelo menos. (FREYRE, 1945:18) De fato, a contribuição que Freyre esperou dar para a constituição da nova disciplina é muito diferente daquela oferecida por Fernando de Azevedo. A especialização estreita não favorece, para ele, o desenvolvimento do campo de investigações sociológico. O profissional em Sociologia deve, nesta perspectiva, caracterizar-se por um certo cosmopolitismo intelectual, transitar entre as mais variadas áreas de conhecimento recolhendo material para compreensão dos processos sociais. Nesse sentido, o sociólogo é e não é sociólogo. Rigorosamente, Freyre parece nos dizer que para ser sociólogo é preciso, ao mesmo tempo, não ser. (FREYRE, 1968) E, com efeito, ao contrário de Azevedo, não é estritamente como sociólogo que Freyre se define ao escrever o livro: ... a tentativa de introdução ao estudo da sociologia, cuja publicação se inicia hoje, não é obra de sociólogo que faça profissão do ensino ou da prática especializada ou exclusiva de 11 qualquer ramo da ciência social, mas de alguém cuja situação é, bem ou mal, a de escritor.(FREYRE, 1945:64) Mas não é um escritor qualquer. É, pois, um escritor que se especializou nas ciências sociais: Escritor cuja atividade para-sociológica se baseia largamente no fato de ter, em seus cursos universitários e em viagens na Europa, se especializado com algum rigor e com algum gosto no estudo da antropologia social (que teve por mestre principal, como já foi dito,o professor Franz Boas), da sociologia, da história social, da economia e do direito público. (FREYRE, 1945:64) Freyre é, nesse sentido, um “sociólogo não-sociólogo” conforme ele mesmo define. Na verdade, parece que neste pequeno trecho ele se gaba da sua rara condição de ter estudado entre os mais famosos mestres da sociologia americana. A primeira vista, o termo escritor nos parece um tanto vago para definir aquele que era, na época, o único portador especializado em Ciências Sociais entre nós. Reparemos que ele se coloca, neste pequeno trecho de texto, na singular condição de especialista que, não obstante, tem como instrumento de subsistência e legitimidade apenas a sua pena. Assim, ao definir-se como escritor, Freyre não se retira do campo da sociologia. Lembremos apenas que ele afirma que, para a interpretação dos problemas sociológicos não bastam apenas a mensuração, a descrição e a experimentação. O sociólogo não é, também, um cientista no sentido estreito do termo. Aproxima-se dos artistas e criadores. (FREYRE, 1945:29) A atividade sociológica não o afasta, portanto, da atividade criativa e literária. Ao contrário: para ele, a investigação sociológica é, sobretudo, um ato de compreensão que não prescinde de qualidades como sensibilidade, intuição e empatia. Na sua perspectiva, a sociologia ocupa um lugar singular no quadro geral de conhecimentos humanos, entre a cultura e a natureza, a filosofia e a biologia, a intuição e a razão. Isso não quer, entretanto, dizer que Freyre entendia que a sociologia poderia ficar sob o domínio de diletantes e nem que carecesse de uma especificidade. Ou seja, ele não acredita que é possível fazer-se sociólogo qualquer diletante. Aliás, afirma que o incomoda o fato de que a sociologia abriga freqüentemente intelectuais que buscam na simulação 12 sociológica o último recurso para sobrevivência intelectual. (FREYRE, 1945:14) Considera desfavorável que o novo campo de conhecimento seja povoado por diletantes que se definem como sociólogos tão simplesmente porque se ocupam de assuntos sociais. Para ele, isso prejudica a sociologia na medida em que ela é ora engrandecida, compreendida como rainha de todas as ciências; ora diminuída, considerada como estudo fácil acessível a quantos de aproximam. (FREYRE, 1945:17) Ele compreendia que ao sociólogo era necessária uma formação de caráter amplo, mas que o objeto de reflexão sociológica não poderia jamais se confundir com o objeto de outras áreas de conhecimento. Tampouco o objeto da sociologia é tudo o que é social.(FREYRE, 1945:77) A sociologia, diz ele, ocupa-se do sociológico, ou seja, dos processos de socialização (ou societalização) que transformam homens em homens sociais. (FREYRE, 1945: 81-82) A complexidade deste processo exige então que o sociólogo, nunca perdendo do horizonte a especificidade de seu problema, recorra também aos conhecimentos filosóficos, etnológicos e históricos. Porém Freyre, mais do que apenas definir a especificidade da sociologia, dedicava-se à consolidação de determinado campo de investigações para a nova disciplina. Dá grande ênfase à Sociologia regional ou ecológica e ao estudo da relação do homem com seu meio cultural, social e ambiental. Inspira-se principalmente nos autores da Escola de Chicago e num autor indiano chamado Mukerjee, embora, por vezes, critique-os pelo excesso de biologismo. (FREYRE 1945:443) Freyre deseja a intensificação dos estudos sociológicos regionais principalmente em países como o Brasil, na medida em que seus resultados poderão auxiliar na organização social. A extensão e intensificação de pesquisas de sociologia regional ou de ecologia social em áreas de cultura ou em regiões extraeuropéias podem trazer a reconstrução social das sociedades ocidentais mais perturbadas por excessos de competição, sugestões valiosas. São pesquisas para as quais poderão colaborar ativamente estudiosos de problemas sociais daqueles países da América que tem sido colonizados principalmente por povos europeus, deles receberam instituições européias de vida e de organização sociais que nem sempre correspondem às condições 13 americanas de espaço físico nem as que decorrem da formação social das Américas e de sua herança de cultura, em parte extraeuropéia. Algumas dessas instituições são postiças e mal ajustadas: de funcionamento social e pessoalmente doloroso.(FREYRE, 1945:480) Para ele, apenas compreendendo o homem na sua realidade regional, cultural e ambiental singulares (existencialmente situado), a sociologia regional poderá, segundo Freyre, oferecer possibilidades de melhoramento da sociedade. O resultado das investigações permite fundar as bases de uma política orientada pela “realidade” e não por ideais abstratos. Para ele, o sociólogo é capaz de orientar realisticamente a organização social definindo as possibilidades e as funções de cada região.(FREYRE, 1945:443) Nesse sentido, Freyre, como Azevedo, parecia compreender a constituição de um campo de investigações sociológicas como um passo a favor do melhoramento social, ainda que a concepção de progresso e de Sociologia não sejam as mesmas entre esses autores. Sociólogos como apóstolos e reformadores sociais Introdução à Sociologia foi publicado por Amaral Fontoura em 1948. É uma reedição ligeiramente modificada do manual Programa de Sociologia, elaborado em 1940 para os cursos secundários. No prefácio da nova edição Fontoura nos explicou que, devido à eliminação recente da Sociologia dos cursos secundários ele aproveitou a matéria de Programa de Sociologia e o transformou num livro de nível universitário. A nova edição foi acrescida de um número maior de sugestões de pesquisa de campo e submetida à atualização dos dados. É possível que Introdução à Sociologia - reeditado cinco vezes entre 1948 e 1970 tenha sido o maior veículo para o ensino da Sociologia nas instituições superiores católicas do Brasil. A utilização deste livro predominantemente nas instituições católicas se explica facilmente. Amaral Fontoura formou-se no interior deste complexo de ensino católico e dali passou a reproduzir o pensamento cristão. Graduou-se na Faculdade Nacional de Filosofia no período em que a orientação católica era lá hegemônica; foi aluno de Amoroso Lima, a 14 quem pediu para fazer o prefácio de Introdução à Sociologia e a quem dedicou o manual; ministrou cursos na Faculdade Santa Úrsula, na Universidade Católica do Brasil e na Escola de Serviço Social da Associação de Educação Familiar e Social, instituição também ligada à Igreja. Nesse sentido, antes que se inicie o exame particular do conteúdo do manual, importa compreender o significado dos cursos de Sociologia no interior das instituições de ensino católicas. Com efeito, o funcionamento das faculdades católicas foi aprovado unanimemente pelo Conselho Nacional de Educação em 1941. Poucos meses depois, através de decreto de Getúlio Vargas, acrescentava-se às faculdades católicas a primeira Universidade Católica do Brasil, autorizada a oferecer os cursos de bacharelado em Direito, Filosofia, Leituras Clássicas, Letras Neolatinas, Letras Neogermânicas, Geografia, História, Pedagogia e Ciências Sociais. Tais medidas consagraram o projeto da igreja brasileira - ensaiado desde 1922 - de formação de uma elite universitária cristã.(SALEM, 1982: 130) A oferta do curso de Ciências Sociais na Universidade Católica do Brasil fez com que, pela primeira vez entre nós, estivesse sob os auspícios de uma instituição católica, a formação dos cientistas sociais, no sentido rigoroso do termo. Porém, desde o início da década de 30, a Sociologia esteve entre as disciplinas de preparação de intelectuais laicos católicos oferecidos pelo Instituto de Estudos Superiores Católicos. Foi neste Instituto, anexo ao Centro D. Vital, que se constituiu o significado da Sociologia no interior do movimento de reação católica da década de 30. Os intelectuais católicos do período acreditavam na possibilidade de adequação dos ideais científicos e religiosos para a formulação da Sociologia cristã. Serviam-se, para isso, dos argumentos do neo-tomismo. Acreditavam que ciência e revelação eram aspectos de uma só verdade integral, que tornava inseparável a experiência científica da experiência religiosa. A verdade adquirida pelo homem e a verdade revelada por Deus através da ciência são, afinal, obras do mesmo Deus.(GOMES, 1935:26) Pensava-se que a Sociologia, em particular, era uma disciplina prática que comunica ao reformador social uma visão clara, lúcida dos homens e das coisas garantindo a eficácia da ação católica. 15 Com efeito, nos textos produzidos pelos alunos do Instituto Superior de Estudos Católicos evocava-se a necessidade de formar observadores sociais que fossem capazes de, por meio de constatações científicas, orientar o projeto de reforma cristã da sociedade. Basta reparar as palavras de Maria de Lourdes Gomes, uma das alunas do curso oferecido pelo Instituto: os diretores das obras sociais católicas, começam logo de início, compreendendo a necessidade de estudar de perto o campo onde desejam trabalhar, e acabam, por força do ofício, sociólogosamadores, quando não de nome, de fato. Ora se esta necessidade primordial e instintiva, de aprofundar o meio onde quer agir, vem acrescentar-se, já adquirida, a base sólida de um método científico, firmado em princípio esclarecidos, quantas hesitações, quanto trabalho inútil e até mesmo vicioso, pode ser evitado.(GOMES, 1935: 21) Nesta perspectiva de cooperação entre a Sociologia e a ação católica, a figura do sociólogo constitui-se, a um só tempo, como cientista-apóstolo-reformador social, divulgador dos ideais cristãos e organizador da sociedade: Sociólogo é de um lado, o homem que aprofunda a realidade social; do outro o apóstolo, transbordante de vida divina, que, em contato com esta mesma realidade social quer transformá-la e aperfeiçoá-la. Os melhores sociólogos, quando possuídos por um ideal de apóstolos, tornam-se os melhores reformadores sociais. (GOMES, 1935: 22) Esta importância atribuída à disciplina sociológica e ao sociólogo no interior do movimento católico corresponde, de fato, a uma nova sensibilidade para as questões sociais que se instituiu na Igreja católica no final do século XIX. A encíclica Rerum Novarum, documento redigido pelo papa Leão XIII em 1891, é considerado o marco oficial que assinala a preocupação da Igreja com a condução do destino das sociedades. Assinala, sobretudo, a preocupação com os pobres e trabalhadores. Ainda quatro décadas depois, a Encíclica Quadragesimo Anno, elaborada por Pio XI entre os escombros da Primeira Grande Guerra e sob o anúncio de um novo conflito de proporções mundiais, reafirma o interesse da igreja pelas questões sociais. Mais do que isto, institui a responsabilidade dos cristãos pela (re)constituição da ordem social. (MARCHI, 1986) 16 Deve-se, portanto, notar que a imagem do sociólogo idealizada entre nós no Instituto Superior de Estudos Católicos correspondia à orientação da igreja acerca do reconhecimento dos problemas sociais contemporâneos e da responsabilidade dos cristãos pelo reequilíbrio e reordenamento das sociedades. Em resumo, é a viabilização da constituição do novo agente católico preocupado com as questões da sociedade que a oferta da disciplina de Sociologia e dos cursos de Ciências Sociais nas universidades católicas procurou beneficiar. Sabendo da importância de Amaral Fontoura como professor de Sociologia no complexo católico de instituições superiores podemos supor, o exame de Introdução à Sociologia revelará o modo como queriam efetivamente realizar a formação, no interior das faculdades e universidades católicas, deste profissional da Sociologia disposto a servir os dogmas cristãos. Em Introdução à Sociologia, Amaral Fontoura procurou conciliar ideais de investigação e normatização social. Para ele, como para os sociólogos cristãos, a Sociologia é, por essência, uma ciência sui generis, pertencendo ao mesmo tempo, à classe da especulação e normatização. A Sociologia não pode, segundo a perspectiva de Amaral Fontoura, se contentar com o registro dos fatos da sociedade: deve, também, enumerar as normas para o melhoramento social. É o melhoramento da sociedade o objetivo fundamental da nova disciplina, nos confirmam ainda suas palavras: A Sociologia é um evangelho de esperança, indica o caminho para uma nova e melhor vida social e dá força aos homens para trabalhar pelo melhoramento nacional e humano.(FONTOURA, 1953:8) A Sociologia deve, certamente, fornecer os meios pela aplicação de seus princípios e de sua conclusões, de tornar cada vez mais racionais os ajustamentos e reajustamentos e reformas de um programa de ação social (política social). (FONTOURA, 1953:8) Resultado desta compreensão acerca do conhecimento sociológico, Introdução à Sociologia é, a um só tempo, uma “cartilha” de difusão das “normas” católicas de organização cristã da sociedade, e um compêndio científico. Para elaborá-lo Amaral 17 Fontoura consulta, igualmente, Amoroso Lima e Fernando de Azevedo, Durkheim e Jacques Maritain, Leão XIII e Spencer. Pretende, assim, conciliar a doutrina católica e a investigação científica, a normatização e a especulação. Nas primeiras páginas, Amaral Fontoura expõe um diagrama que representa a organização da sociedade, evidentemente inspirada nos ideais cristãos. Apresenta os grupos sociais na ordem crescente: grupo doméstico (família), vicinal (vizinhança), educacional (escola), econômico (profissão), político (estado), internacional (sociedade das nações), sobrenatural (igreja). Este esquema de organização social é a matriz para a organização do livro. Os problemas de cada grupo social correspondem, de acordo com Amaral Fontoura, a uma área particular da Sociologia, para as quais dedica os capítulos de seu manual didático. São elas: Sociologia doméstica, educacional, econômica, demográfica, política e religiosa. Nesta representação da organização social, a igreja ocupa o lugar mais elevado. Isso eqüivale a dizer que a ação de todos os grupos deve se subordinar aos princípios da igreja católica. De acordo com o esquema de Amaral Fontoura, a família, a escola, o Estado devem agir segundo os dogmas da igreja, que encerram em si, a vontade de deus. É interessante, sabendo do caráter normativo do manual, notar o modo como a investigação sociológica é proposta por Amaral Fontoura. Amaral didaticamente recomenda e sugere pesquisas que exigem o conhecimento (a) da condição econômica, social e ambiental do trabalhador brasileiro, das famílias operárias e camponesas; (b) das relações entre empregados e patrões, sobretudo a questão da instituição do salário mínimo no Brasil, (c) da concentração de propriedades no campo e na cidade; (d) das dificuldades na área do ensino; (e) da organização política do país, (f) das causas que conduzem ao ato criminoso; (g) das várias religiões praticadas pelos brasileiros. A pesquisa sociológica parece representar a possibilidade de desenvolvimento de uma sensibilidade particular para os problemas sociais. Trata-se de uma sensibilidade cristã que exige o reconhecimento do próximo, particularmente daquele que sofre: o pobre, o criminoso, o alcoólatra, o louco, o doente. As pesquisas sugeridas exigiam, com freqüência, visitas às periferias pobres, famílias operárias e camponesas, penitenciárias, hospícios e hospitais. 18 A investigação tinha, pois, a função de despertar os princípios considerados fundamentais do convívio humano, a cooperação, a solidariedade e a caridade. Trata-se de um despertar para a ação católica que conciliasse, a um só tempo, ciência, fé e justiça caritativa. Amaral Fontoura reproduz também os debates contemporâneos acerca do divórcio, do feminismo, do nacionalismo, dos deveres dos patrões e empregados, do direito dos trabalhadores. Procurava apresentar as mais variadas perspectivas acerca dos temas e, por fim, apontava a posição da Igreja católica como a mais correta. Um dos casos mais exemplares do modo de condução dos temas em Introdução à Sociologia é a discussão sobre o casamento. Embora ele nos mostre as inúmeras formas de relações de parentesco manifestadas ao longo do tempo e em diferentes culturas, por fim, ele nos apresenta, dogmaticamente, o casamento como uma instituição que foi criada arbitrariamente por Deus. Invoca, até mesmo, o mito de Adão e Eva como uma verdade absoluta. A rigor, a perspectiva sociológica sobre a instituição, que ele procurara apresentar nas páginas anteriores, é anulada após a apresentação da definição cristã e da instituição de normas de convívio conjugal. Há dificuldades para a problematização sociológica em Introdução à Sociologia. Neste manual, a Sociologia foi compreendida, tão simplesmente, como instrumento pedagógico para a formação doutrinária do agente católico. Isso explica, em grande medida, a indistinção entre o conteúdo nos cursos secundários e superiores: igualmente, nos dois níveis de ensino, a disciplina cumpriria a função de evangelizar. A investigação sociológica, tal como foi orientada por Amaral Fontoura, era menos dedicada à formação de um campo de pesquisas científicas, do que para a formação de uma sensibilidade cristã entre os futuros agentes católicos. Em Introdução à Sociologia a figura do sociólogo não aparece como um profissional especializado: ali ele é confundido com o educador e o assistente social. A atividade de ensino, em particular, parece ter sido compreendida como a atividade essencial dos freqüentadores dos cursos de Ciências Sociais, de acordo com a perspectiva de Amaral Fontoura. O ensino é, a rigor, também uma tarefa de assistência e amparo social e, acreditava-se, um instrumento valioso para a reorganização da sociedade. 19 Fontoura foi um dos mais significativos representantes da figura do sociólogoapóstolo. Deu aulas, escreveu livros didáticos, levantou dados acerca da realidade brasileira: esperou ter assim cumprido a sua missão apostolar e contribuído para a reordenação da sociedade. Ele fora, com efeito, ao lado de Fernando de Azevedo, Gilberto Freyre um dos mais dedicados sistematizadores da Sociologia no Brasil. Considerações finais Este trabalho de análise nos mostra, entre outras coisas, que o estudo dos manuais didáticos permite tecer um quadro da diferentes formas de representação da sociologia e dos sociólogos presentes em nosso meio intelectual. Algumas dificuldades se expressam nos manuais, sobretudo aquelas relativas à formação do pesquisador social. Fernando de Azevedo busca em Durkheim uma espécie de emblema para a sua luta pela institucionalização da sociologia no meio acadêmico e pela legitimidade da nova área de conhecimento. Podemos inferir, portanto, que o modelo de sociólogo que inspira e legitima a institucionalização da Sociologia na USP é Durkheim. E do sociólogo francês que se extrai um certo padrão de conduta científica. Gilberto Freyre busca realizar uma síntese teórica original em seu livro. Pretende também consolidação de um campo de estudos entre nós, a Ecologia social com a qual pretende retirar fundamentos para uma nova organização regional do país. A Sociologia aparece como disciplina para normatização da sociedade em Amaral Fontoura, a exemplo da intelectualidade católica. O Sociólogo, nas páginas aqui examinadas de Amaral Fontoura, como uma espécie de versão moderna (racionalizada) de apóstolo católico que, conciliando fundamentos científicos e teológicos, fornecerá bases para reforma social. De modo geral, para os autores estudados nesta análise, originários (como se pôde observar) de círculos intelectuais muito diversos, a sociologia aparece como uma 20 disciplina capaz de estabelecer um contato com a realidade social, nos fazer compreender as leis sociais gerais, refletir sobre os problemas da sociedade. Em todos os autores, a despeito de diferenças fundamentais, o conhecimento sociológico é considerado imprescindível para o progresso social e para a constituição da nação. Nesse sentido, o conhecimento que é resultado da pesquisa sociológica tem sempre, segundo estes autores, fins práticos de melhoramento da sociedade e de constituição da nação. Os tipos de sociólogo presentes nestes livros e na identificação de seus autores são os seguintes: acadêmico rigoroso (Fernando de Azevedo), escritor autônomo (Gilberto Freyre), apóstolo e reformador social . 21 Referências Bibliográficas ALMEIDA, M. A. T. de. “Castelos de areia: dilemas da institucionalização das Ciências Sociais no Rio de Janeiro”. In: Boletim informativo e bibliográfico (BIB). Rio de Janeiro (24), 1987, pp. 41-60. ________________. “Dilemas da institucionalização das Ciências Sociais no Rio de Janeiro. In: MICELI, S. (org.) História das Ciências Sociais no Brasil. v.1. São Paulo: Vértice: IDESP: FINEP, 1989, pp. 188-216. 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