ENCONTRO DE SOCIOLOGIA DA REGIÃO NORTE

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II Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia da Região Norte
13 a 15 de setembro de 2010
Belém – PA
Grupo de Trabalho 14 – O ensino da sociologia na educação básica e seus desafios
nas escolas amazônicas
A literatura e seus leitores: representações e pressupostos sociais dos
manuais de sociologia para o ensino médio
Autor: Robson dos Santos (Departamento de
Ciências Sociais - Universidade Federal de
Rondônia)
Co-autora: Ádima Domingues da Rosa (Secretaria
de Educação – Distrito Federal)
Belém – 2010
Resumo
Este trabalho, ainda em fase inicial, se concentra na investigação dos pressupostos
sociológicos que orientam o conteúdo e a forma dos livros didáticos de sociologia voltados
para o ensino médio. Almejando conciliar reflexões oriundas da sociologia da literatura e da
educação, a análise recai particularmente sobre a maneira pela qual a literatura e a figura
social do leitor são representados e concebidos nos manuais mais difundidos no mercado
editorial. Os livros de sociologia voltados para a educação básica, muitas vezes, produzem
uma introdução à sociologia sem sociologia, isto é, realizam a apresentação de conceitos
sociológicos sem problematizar as condições de recepção entre os agentes e o mundo
social para o qual se dirigem. Nesse sentido, a literatura é mobilizada nos livros como
recurso de ilustração de questões sociológicas sem que os mesmos problematizem o
acesso diferenciado ao mundo da arte, as estratégias de hierarquização do campo literário e
as apropriações desiguais do capital cultural existentes entre os estudantes, isto é, o leitor
para os quais o material se destina. O trabalho analisa dois manuais voltados par o ensino
médio e busca discutir a forma pela qual literatura e leitores são mobilizados,
problematizando as implicações socioculturais, educacionais e políticas desta situação.
Antes, porém, é feita uma reflexão teórica sobre os sentidos da presente discussão.
Palavras-chave: ensino de sociologia, manuais, literatura, leitores, educação
Introdução
A presença da sociologia como disciplina integrante do currículo do ensino
médio é uma situação marcada pela inconstância e pelos debates em relação às
possibilidades e dimensões políticas atribuídas a ela pelos setores sociais mais
diretamente envolvidos com sua implantação. Ao longo da história educacional
brasileira ela irrompe ora como portadora dos princípios de uma formação para a
cidadania ou instrumento de construção da nacionalidade, ora como ameaça
revolucionária para as novas gerações e instrumento de crítica social. A
interpretação influente em cada período oscila de acordo com os discursos
dominantes nos campos educacionais, sociológicos e de poder (MEUCCI, 2000).
A partir de 2008, a sociologia passou novamente a integrar os currículos de
ensino médio e teve sua importância na formação dos estudantes reafirmada pela
Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional e torna obrigatória sua presença no nível médio. A partir de
então, repondo debates históricos no campo sociológico discursos foram
mobilizados por diferentes setores, seja para rechaçar sua presença nas escolas,
acusando-a de instrumento de doutrinação ideológica, ou para exagerar seu
potencial progressista e transformador. Tais conflitos são fundamentais ao processo
educativo e à própria formação da sociologia, mas não esgotam as questões
2
envolvidas com a sua presença nas escolas de ensino médio e, sobretudo, com os
processos que implica e mobiliza.
Um conjunto de problemáticas aflorou com o seu retorno: O que ensinar?
Como ensinar? Quais materiais utilizar? Como formar professores? Quais os
pressupostos políticos e teóricos do que é ensinado? Quais as condições para o
trabalho docente? Tais questões são fundamentais para entendermos a situação e
os sentidos da sociologia no ensino médio, mas é preciso ainda compreender suas
articulações “fora dos muros da escola”, buscando entender as possibilidades de
realização de um ensino de sociologia que seja sociológico. É neste bojo que se
localiza este trabalho, que tem como intenção apreender os livros didáticos em seus
fundamentos teóricos e sociais.
O uso de recursos didáticos constitui uma dimensão fundamental do trabalho
docente (TAKAGI, 2007). Em relação ao ensino de sociologia novas reflexões se
impuseram com o retorno da disciplina ao ensino médio. Cinema, música, literatura,
jornais etc. representam ferramentas comumente utilizadas pelos profissionais da
educação para o ensino de sociologia para ilustrarem conceitos sociológicos,
“atualizarem” a linguagem, dinamizarem as aulas ou aproximar discursos
inicialmente localizados em universos distintos. Neste campo, merece uma atenção
particular o livro didático.
A investigação propõe uma sociologia do ensino de sociologia. Nesse sentido,
é fundamental não ignorar as condições de degradação e precarização do trabalho
docente na educação básica, que institucionaliza o fracasso educacional, as
metamorfoses da instituição escolar e de seus agentes, a distribuição desigual de
capitais culturais e materiais entre os estudantes, a emergência de novas
tecnologias, no que se refere ao campo educacional e, de forma mais ampla, as
reconfigurações paradigmáticas nas ciências sociais em geral. A investigação aqui
proposta possui uma intencionalidade mais localizada e recai, portanto, sobre os
recursos didáticos, sobretudo os livros e manuais mais disseminados para o ensino
de sociologia. Analisar se os livros consideram sociologicamente os espaços e
condições para as quais se direcionam, sob pena de, em articulação com as práticas
docentes, abstraírem o mundo social que esperam auxiliar a entender.
Os textos selecionados para a análise aqui – considerando quantidade
elevada de reedições, número de vendas, presença nas bibliografias dos cursos de
formação de professores etc. – serão os seguintes:
3
I - COSTA, Christina. Sociologia: Introdução à Ciência da Sociedade. São
Paulo: Moderna, 2005.
II - OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução às sociologia. São Paulo: Ed
Ática, 2000.
A intencionalidade do texto se orienta pela ampliação dos conhecimentos
sobre materiais didáticos utilizados para o ensino de sociologia, pela composição de
uma análise sociológica crítica de seus fundamentos políticos e teóricos, o se
tentará fazer a partir da apreensão dos usos reservados e esperados da literatura,
do tipo de relação pensada e pressuposta entre leitor e a prática de leitura.
1 - Notas para uma sociologia do ensino de sociologia
.
Pensar o ensino de sociologia exige pensar sociologicamente o uso dos
recursos dos quais dispomos e mobilizamos, bem como as condições dos agentes
envolvidos no processo educativo, sob o risco de mobilizar hermeticamente os
conceitos e produzir um ensino de sociologia sem sociologia. Tal questão se
enquadra na necessidade de submeter a sociologia e seus pressupostos a uma
permanente crítica e vigilância epistemológica (BOURDIEU & PASSERON, 2003).
A sociologia da educação já apontou como o campo educacional está
submetido à totalidade do sistema social. Sua autonomia política é relativa. Neste
sentido, apresenta-se dialeticamente como instrumento de reprodução das
desigualdades, ao passo que constitui esfera fundamental para desencadear o seu
enfrentamento. Mas as práticas educacionais, num contexto de desigualdades,
devem sempre lembrar que tratar igualmente os desiguais é forma de reproduzir as
desigualdades. Este é um pressuposto que os livros didáticos devem enfrentar.
Antes de qualquer coisa, é preciso lembrar e deixar clara uma distinção. A
sociologia da educação não é somente a sociologia da escola. É evidente que esta
instituição ocupa uma posição central nos processos formativos contemporâneos,
que se aprofunda com a crescente especialização das tarefas e as transformações
nas configurações familiares, entre outros fatores, responsáveis por uma
responsabilização maior da escola como lócus de formação técnica e nos valores
4
considerados legítimos em determinada sociedade. Mas a educação compreende
um processo formativo maior, atrelada à reprodução da moral, das práticas, dos
modos de ser e agir dos agentes sociais, ela cumpre um papel socializador dos
hábitos e crenças, profundamente associada à experiência familiar.
A escola é, inicialmente, um dos espaços educacionais, mas não é o único.
Tomada em seu sentido amplo, a educação é uma dinâmica que se efetiva em
inúmeros ambientes e relações, como a família, a vizinhança, a rua, o trabalho, a
igreja, etc. O espaço que ela conforma constrói também um conjunto de ferramentas
e instrumentos mobilizados pelos agentes em função das estratégias exigidas pelas
regras, poderes e capitais característicos do campo educacional. É neste ponto que
devem ser entendidos os materiais didáticos.
Esta é uma problemática inicial para compreendermos a abordagem
sociológica da educação. A grande maioria dos estudos na área recai sobre a escola
como ponto central de investigação, não porque ignoram o caráter mais abrangente
do conceito de educação, mas justamente pela própria configuração que a educação
assume a partir de final do século XIX em diante, cada vez mais centrada na escola,
em consonância com as formas burocráticas de organização do capitalismo
(TRAGTEMBERG, 1990). Neste sentido, a sociologia da educação surge como uma
análise dos processos sociais focados na reprodução dos padrões morais, dos
conteúdos acumulados e das estratégias de perpetuação de certos valores
desenvolvidas de forma sistemática, com finalidades objetivas e associadas aos
interesses de certos grupos sociais. Cabe aqui direcionar tais indagações para o
campo dos recursos didáticos, mais especificamente entender como os livros
usados para o ensino de sociologia se articulam a tais questões.
A educação no seio da sociedade capitalista é tomada como ferramenta de
preparação dos sujeitos para desempenharem as atribuições técnicas que a divisão
do trabalho exige. Além disso, ela constitui um mecanismo primordial na construção
e na reprodução ideológica dos valores e das crenças produzidas e demandadas
pela sustentabilidade do modo de produção (ALTHUSSER, s/d). Este talvez seja um
de seus papeis primordiais, mas não exclusivo. É claro que tal dinâmica assume
uma complexidade material e simbólica cada vez maior à luz das novas
configurações do campo educacional. Daí a importância da análise sociológica da
educação como ferramenta de desvendamento dos interesses e dos objetivos
5
políticos, econômicos, culturais, religiosos etc., que se mobilizam no interior dos
espaços e práticas educacionais. É preciso, portanto, uma sociologia da educação
que seja também uma sociologia dos instrumentos, ferramentas e práticas
educacionais. A sociologia da educação possui diversos objetos e materiais de
investigação. As interações no interior da escola são apenas uma delas. É possível
investigar os conteúdos ideológicos dos livros didáticos, os interesses ocultos
contidos nos currículos, os interesses das políticas públicas de educação, a
formação dos professores e professoras, os investimentos em educação, a questão
da diversidade sociocultural no campo educativo etc.
Ao longo do século XX, diversos pensadores se debruçaram sobre as
configurações do processo educativo, com forte influência para a sociologia da
educação. O italiano Antonio Gramsci desenvolveu uma importante análise das
conexões da educação com os intelectuais, apontando o papel relevante que
ocupam na conformação das hegemonias de poder da sociedade. Sua preocupação
era pensar a educação como estratégia de composição ideológica da hegemonia
das classes sociais (GRAMSCI, 1982).
Na segunda metade do século XX, sobretudo na França, irrompem diversas
teorias que buscaram compreender as interfaces entre os modelos pedagógicos e a
reprodução da sociedade burguesa e de seus valores. O filósofo Louis Althusser,
numa perspectiva estruturalista e marxista, inaugura uma crítica radical às
instituições educacionais. Para ele, tal como a igreja, os partidos, o judiciário etc., a
educação e seus instrumentos representava uma aparelho ideológico do Estado
capitalista, engajado, sobretudo, na perpetuação do sistema produtivo, pois produzia
e reproduzia as idéias do consenso e resignação em relação a este. Ideologia e
práticas materiais são, para Althusser, indissociáveis. Logo, torna-se impossível
pensar as práticas educacionais afastando-as das configurações econômicas e
políticas da sociedade. A corrente de investigação desenvolvida por Althusser ficou
conhecida como reprodutivista e teve um impacto muito profundo no campo
pedagógico, sobretudo naquele vinculado aos processos de crítica e transformação.
É na obra do sociólogo francês Pierre Bourdieu, porém, que a investigação da
face reprodutiva da educação vai ganhar contornos ainda mais sutis. Para Bourdieu,
a educação ocupa uma posição de destaque na manutenção das desigualdades
entre as classes sociais. O conhecimento, instrumento que ela manuseia, constitui o
6
que o sociólogo chamou de capital cultural. Neste sentido, aqueles que são lançados
no processo educativo formal e já são provenientes de famílias com boas condições
econômicas e culturais encontram na escola uma espécie de continuidade para o
seu desenvolvimento, isto é, a cultura da escola e a das classes dominantes se
assemelham. Porém, os membros das classes trabalhadoras, oriundos de famílias
com baixo poder aquisitivo e pouco capital cultural, encontram na escola uma
ruptura, uma verdadeira violência simbólica em relação às suas condições de
origem. Dessa forma, a escola favorece os favorecidos e desfavorece os
desfavorecidos. Bourdieu (1998) realiza em sua sociologia da educação uma crítica
ao mito do dom, pois esclarece os mecanismos de desigualdade que a escola
legitima como naturais. Os materiais didáticos, portanto, não deixam de se relacionar
com tais questões. No caso dos livros de sociologia, muitas vezes a reprodução
desses paradoxos se revela na forma abstrata pela qual os conceitos são
apresentados, bem como no tipo de leitor que eles pressupõem.
Os conceitos sociológicos desenvolvidos por Bourdieu constituem referências
fundamentais para mapearmos o campo em que se inserem os livros didáticos para o
ensino de sociologia. Conceitos como campo social, habitus e os capitais
(econômicos, culturais e simbólicos), carregam importantes desafios para a teoria e a
pesquisa na atualidade. Por meio deles ele constrói uma sociologia relacional,
centrada sobre a ação dos agentes. Suas pesquisas visavam a compreensão da
relação entre as estruturas objetivas (campos sociais) e as estruturas incorporadas
(habitus). Tais conceitos permitiam a construção de uma investigação capaz de
realizar uma objetivação das relações sociais, superando ainda as oposições
clássicas entre indivíduo e sociedade, desinteressado e interessado, objetivo e
subjetivo, natural e social, bem como as explicações realizadas a partir de tais
posições.
Para Bourdieu, o real é relacional, com isso ele entende que as práticas sociais
não se esgotam em si mesmas, isoladamente. Segundo o autor, não podemos
transformar em atributos intrínsecos, naturais de um grupo, características que são
compreendidas e adquirem sentido em um determinado espaço social. Como afirma o
sociólogo francês, o espaço social é construído de tal modo que os agentes ou os
grupos são aí distribuídos em função de sua posição nas distribuições estatísticas de
acordo com dois princípios de diferenciação: o capital econômico e o capital cultural.
7
Os agentes tem tanto mais em comum quanto mais próximos estejam nessas
dimensões (BOURDIEU, 2007, p. 23).
O mundo social é constituído por campos, estes são definidos como
microcosmos ou espaços de relações objetivas, que possuem uma lógica própria, não
reproduzida e irredutível à lógica que rege outros campos. Os campos resultam de
processos de diferenciação social, da forma de ser e do conhecimento do mundo.
Como tal, cada campo cria o seu próprio objeto (artístico, educacional, político etc.) e
o seu princípio de compreensão. O campo editorial comporta o subcampo dos livros
didáticos para o ensino de sociologia, estes têm interfaces ainda com o próprio campo
sociológico.
A compreensão da sociedade é feita, para Bourdieu, a partir do entendimento
da lógica de cada universo social, de seus artefatos e, sobretudo, do habitus que o
caracteriza. Este último é uma incorporação, na prática dos agentes, do modus
operandi disponibilizado e esperado dos detentores de determinado capital, ou
posição em determinado campo social1. O habitus não designa simplesmente um
condicionamento, mas um princípio de ação. Ele se encontra presente no corpo
(gestos, posturas etc.), na “mente” dos agentes (formas de ver, de classificar etc.) e
em suas práticas no interior de um campo. O habitus é uma interiorização da
objetividade, das regras do espaço social. Ele compreende uma forma de
socialização, que corresponde ao conjunto de mecanismos pelos quais os indivíduos
realizam a aprendizagem das relações sociais, assimilam normas, valores e crenças
de uma sociedade, coletividade, ou dos espaços sociais e agem no interior destes.
Neste sentido, o habitus opera como uma mediação entre o indivíduo e o coletivo,
entre o agente e a estrutura. O habitus pode ser tomado como um conceito
fundamental para entendermos os processos de escolha e uso dos livros pelos
professores de sociologia.
Para compreender o habitus no interior de um campo social é preciso ainda
compreender os capitais que caracterizam cada microcosmo em particular. Segundo
Bourdieu, a posição dos agentes no espaço social depende do volume (quantidade de
determinado capital) e da estrutura do seu capital no universo em que se localiza
(econômico, social, cultural). Cada campo valoriza de forma diferenciada um tipo de
capital. Os estudos de Bourdieu se concentraram, principalmente, no papel do capital
1
No caso desta pesquisa, autores de livros e professores, em condições e posições diferenciadas aparecem como
agentes dispostos ora no campo editorial, ora no campo sociológico, ora no campo educacional.
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cultural na reprodução das desigualdades. A instituição escolar é a principal
responsável pela reprodução desta espécie de capital. A escola tende a manter e
reproduzir as diferenças de capital cultural herdadas da família em condições sociais
desiguais, mantendo dessa forma as diferenças sociais preexistentes. Isso se
apresenta, por exemplo, na separação realizada entre os alunos provenientes das
grandes escolas, ou escolas de elite, daqueles provenientes das escolas de menor
prestígio. Desta forma, o volume de capital cultural possuído por cada agente facilita
ou limita suas possibilidades de ascensão social. Somado a isso, no caso brasileiro é
fundamental ainda considerar as condições degradadas das escolas públicas e das
condições de trabalho docente, perguntando até que ponto isso não se vincula a uma
espécie de má-fé institucional (SOUZA, 2009).
No contexto brasileiro atual, a (re)introdução da sociologia no ensino médio
exige que a sociologia da educação se volte para o ensino de sociologia. Aqui cabe
reatualizar tais questões clássicas, pois agora a sociologia integra diretamente o
processo educativo. Seria ela também instrumento de reprodução ideológica? Será
que o ensino de sociologia e seus instrumentos colaboram com a reprodução das
desigualdades sociais e culturais? É a partir das proposições analíticas de Bourdieu
que buscamos problematizar tais questões.
2 - Literatura e leitores nos livros didáticos
O retorno da sociologia como componente obrigatório do ensino médio, a
partir da promulgação da Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008, representa um passo
considerável à consolidação da disciplina e tem impactos importantes em sua
institucionalização, inclusive na universidade, que passa a ser demandada mais
intensamente na preparação dos profissionais que irão exercer a função nas escolas
e de materiais de apoio para o ensino. Contudo, a atenção reservada pelas ciências
sociais a tal questão ainda é reduzida.
As pesquisas sobre o ensino de Sociologia ainda são bastante
incipientes, contando-se cerca de dez títulos, entre artigos,
dissertações e teses, o número de investigações efetuadas nos
últimos vinte anos. Boa parte trata do processo de institucionalização
da disciplina no ensino médio, o que demonstra que por um lado são
pesquisas que buscam um enfoque sociológico sobre esses
9
processos, e algumas poucas tentam discutir mais os conteúdos, as
metodologias e os recursos do ensino, aproximando-se um tanto mais
de questões educativas e curriculares ou relacionadas à história da
disciplina. Cremos que isso também é fruto daquela intermitência da
presença da disciplina no ensino médio, o que provocou um
desinteresse de pesquisadores sobre o tema, quer no viés sociológico
quer no viés pedagógico. Assim, não houve de modo sistemático nem
debates nem registros dos processos de institucionalização da
disciplina, sendo isso feito só muito recentemente. Essas pesquisas
alimentariam o próprio processo, dando-lhe uma dinâmica diversa, o
que também tem acontecido com as demais disciplinas
(ORIENTAÇÃO, 2006, p. 104).
O fato é carregado de desafios e problemáticas para os cursos de ciências
sociais. Isso fica mais patente quando nos detemos sobre os recursos didáticos dos
quais os professores fazem uso cotidianamente, particularmente os livros/manuais
de sociologia (SARANDY, 2004).
Em linhas gerais, os livros correntemente utilizados para o ensino se
caracterizam pela apresentação de conceitos-chave da sociologia geral, por uma
breve história da disciplina e pela análise de algumas questões centrais da pesquisa
sociológica. Tais orientações se articulam às orientações curriculares nacionais. Não
se trata aqui de avaliar qual livro é mais ou menos adequado, pois este é um dos
atributos da autonomia do profissional da educação. A intenção é aprofundar os
conhecimentos no campo da sociologia da educação sobre o livro como um recurso
didático e os processos e critérios sociais que acompanham sua construção teórica,
sua inserção no campo editorial e as formas de escolha, investigando se relevam
sociologicamente os espaços e agentes para os quais de direcionam.
Manuais e livros didáticos constituem ferramentas pedagógicas fundamentais
para professores no ensino de sociologia. A presença deles no mercado editorial
tem crescido exponencialmente nos últimos anos (TAKAGI, 2007; SARANDY, 2004).
Novos textos são produzidos, bem como antigos são reeditados sob as demandas
em expansão, imbricadas ao crescimento do número de professores de sociologia,
bem como às teias de forças e relações políticas e econômicas que balizam o
campo editorial brasileiro. É preciso, porém, problematizar os pressupostos
sociológicos que sustentam a introdução à sociologia que os manuais pretendem
efetuar.
Os professores habilitados para lecionar sociologia no ensino médio são os
licenciados em ciências sociais. Neste sentido, tal pesquisa também busca se
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articular com as disciplinas de sociologia da educação e estágio de licenciatura,
ambas integrantes do curso de ciências sociais da Universidade Federal de
Rondônia.
2.1 - COSTA, Christina. Sociologia: Introdução à Ciência da Sociedade. São Paulo:
Moderna, 2005.
O livro de Cristina Costa constitui um rico material para a introdução à
sociologia, com amplo leque de referências às diversas escolas sociológicas e ao
processo histórico de formação da disciplina. Do ponto de vista teórico, seus marcos
são relativamente ecléticos, mas a autora se concentra na sociologia histórica como
ponto fundamental de compreensão dos conceitos apresentados.
O texto recorre a inúmeros outros textos de apoio no final dos capítulos como
complementos para as atividades. A literatura aparece como um recurso
privilegiado. Já na introdução aparece uma referência ao poema-canção Pedro
Pedreiro. “Na canção de Chico Buarque, procure as regularidades que ele atribui ao
protagonista Pedro Pedreiro e tente saber quais delas correspondem a toda uma
categoria social que Pedro representa” (COSTA, 2005, p. 16).
No capitulo sobre a sociologia pré-científica a autora desenvolve uma
importante discussão sobre o pensamento que antecede e é fundamental para a
constituição da sociologia. Nas atividades irrompe nova referência ao texto literário.
A idéia de que existe um espaço onde reina a felicidade e onde as
necessidades do homem serão satisfeitas está presente na literatura
em todos os tempos. No Brasil, a literatura tem um bom exemplo – o
poema de Manuel Bandeira, Vou me embora pra Pasárgada, em que
o autor descreve assim sua utopia (COSTA, 2005, 37).
Ambos os trechos apontados acima são seguidos de citações dos poemas
apresentados. O uso da língua e o hábito da leitura estão implícitos nas referências.
O leitor de literatura é pressuposto, não problematizado. Aqui é preciso compreender
as implicações com as quais tais representações se relacionam.
O leitor é uma categoria social construída nos processos de transmissão do
capital cultural e nas possibilidades de escolarização. A apropriação destas
condições se relaciona às desigualdades construídas no mundo social. É preciso
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entender as implicações que isso pode ter para a naturalização das desigualdades
entre os estudantes.
O uso da leitura adicional é um recurso constante na obra de Costa. A
literatura aparece em menor intensidade, mas diversos trechos de livros clássicos
aparecem como formas de ilustrar as discussões. Florestan Fernandes, Norbert
Elias, Pierre Bourdieu, entre outros, são alguns dos autores que comparecem como
leitura adicional. Tal fato só enriquece o livro. Porém, abstrai uma condição concreta:
os jovens, sobretudo das camadas pobres da população, não acessa o universo
pressuposto nestes exercícios. É evidente que talvez o livro se direcione para um
público maior, composto inclusive de estudantes universitários e profissionais de
outras áreas. Mas sua adoção constante no ensino médio exige que façamos tal
reflexão.
2.2 - OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução às sociologia. São Paulo: Ed Ática,
1999.
Para analisarmos o livro didático de Pérsio Santos de Oliveira, Introdução à
Sociologia, utilizaremos a seguinte pergunta orientadora: quais conhecimentos sobre
a literatura o autor pressupõem que os leitores conheçam?
Na parte inicial do livro, visando tratar do processo de socialização, o autor
busca primeiro descrever algumas situações nas quais os indivíduos foram
submetidos ao isolamento social. Assim, no capítulo 2, denominado Conceitos
básicos para a compreensão da vida social, mais especificamente no tópico
Isolamento social, Pérsio narra a história de Ramu, Amala e Kamala, que ilustram
casos de pessoas criadas fora do processo de socialização. Mas o que chama a
atenção neste capítulo é a referência a Gaspar Hauser, o selvagem encontrado
numa floresta na França. Em princípio, o autor não identifica que há um livro e um
filme sobre a história de Gasper Hauser. Pressupõe que tanto os alunos, quanto os
professores conheçam o relato e o material já existente. Cálculo um bom nível de
conhecimento, de referências e mesmo de certa intimidade com a literatura.
Esses dois casos, mais o de Gaspar Hauser – o selvagem
encontrado numa floresta da França e estudado pelo psiquiatra Itard
– são exemplos que mostram que o indivíduo criado fora da
convivência humana não se torna humano. Há absoluta necessidade
do grupo para que o comportamento humano se desenvolva. Na
12
verdade,é impossível uma criança sobreviver como um ser humano
em completo e permanente isolamento social (PÉRSIO, 1999, p. 18).
No capítulo 3, designado Os agrupamentos sociais, o autor discute as
diversas formas de agrupamento social, como o familiar, o escolar, o político. Traz
para a reflexão outras formas de agrupamentos sociais, tais como a multidão, a
massa e o público, indicando as características de tais grupos, em seguida trata das
regras e normas sociais que perpassam pela coesão destes grupos e,
consequentemente, seus aspecto coercitivos. Na parte final do capítulo, destinada
aos exercícios, Pérsio propõe a leitura e a discussão do livro 1984, de George
Orwell. Não devemos esquecer que neste capítulo não há nenhuma referência direta
a obra de George Orwell, apenas o exercício solicitado. “Leia e discuta o livro 1984,
de George Orwell. Preste atenção ao tipo de sociedade retratada no livro e à
maneira pela qual as pessoas são manipuladas” (PÉRSIO, 1999, p. 50). As
condições que possibilitariam tal exercício não são consideradas. Espera-se que o
uso da leitura e o contato com a literatura sejam naturalmente integrantes do
repertório cultural, do habitus e das práticas dos sujeitos sociais.
O livro de Pérsio de Oliveira também faz uma série de utilizações da leitura
como recurso adicional. O texto de jornal ocupa a posição privilegiada neste sentido.
Cabe lembrar que o jornal impresso e sua leitura constituem propriedades
associadas aos detentores de determinadas condições socioeconômicas, culturais e
de prestígio. O leitor é pressuposto como uma entidade universal.
3 – Considerações Finais
Estas reflexões encontram-se em fase embrionária. O compartilhamento
destas ponderações iniciais visa aperfeiçoar as etapas seguintes da pesquisa e o
desenvolvimento da mesma. As análises prévias apontam para uma constituição
idealizada da figura do leitor, ou abstraída das suas condições sociais. O leitor é
tomado pelos materiais como um ser dado e construído e não como em processo de
formação intelectual justamente quando toma contato com os textos. A literatura é
tomada como artefato familiar e de circulação íntima entre os usuários do material e
a leitura como uma prática já sedimentada. Este pressuposto caminha na contramão
das discussões sociológicas sobre os processos de escolarização, de distribuição
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dos capitais culturais e de constituição da figura do leitor, constituindo muitas vezes
uma sociologia sem sociologia.
A literatura também é compreendida na sua dimensão consagrada. Apenas
obras e autores ocupantes de posições dominantes nos campos de produção
cultural aparecem. Aparentemente os livros de sociologia reproduzem a hierarquia
existente nos espaços literários.
É importante que sejam ampliadas as reflexões sobre o tipo de sociologia que
circula no ensino médio, os materiais didáticos são elementos fundamentais desta
dinâmica. É fundamental que os mesmos considerem sociologicamente o universo
social para o qual se direcionam, sob pena de desembocarem na abstração dos
conceitos, inviabilizando seu processo de incorporação pelos agentes educacionais.
O processo de construção da pesquisa permitirá ampliar a quantidade de
livros de sociologia investigados, bem como de outros artefatos expressivos do
capital cultural que são comumente mobilizados pelos mesmos.
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