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Revista Brasileira de Meteorologia, v.19, n.2, 141-148, 2004
TRABALHO DE EXPANSÃO E DE COMPRESSÃO ASSOCIADO ÀS
CIRCULAÇÕES CONVECTIVAS
ENIO P. SOUZA
Departamento de Ciências Atmosféricas
Universidade Federal de Campina Grande
Av. Aprígio Veloso, 882, CEP 58109-970, Campina Grande - PB
E-mail: [email protected]
Recebido Maio 2003 - Aceito Janeiro 2004
RESUMO
Uma teoria simples para calcular o trabalho de expansão e de compressão em circulações convectivas é
apresentada. O método permite o calculo do trabalho sem a necessidade de resolver a integral de pdα, que não tem
solução analítica para este processo. A equação resultante indica que a dissipação nas proximidades da superfície e
a eficiência termodinâmica exercem papeis fundamentais no processo. O trabalho de compressão é usado pelo ramo
descendente da circulação para bombear calor de volta ao reservatório quente próximo à superfície. A aplicação,
com dados reais, sugere que a suposição de que a maior parte da dissipação ocorre próximo à superfície requer uma
capacidade muito grande da circulação em bombear calor como um refrigerador.
Palavras-chave: Convecção, máquina térmica, dissipação.
ABSTRACT: EXPANSION AND COMPRESSION WORK ASSOCIATED TO CONVECTIVE
CIRCULATIONS
We present a simple thermodynamic theory for calculating the expansion and compression work in convective
circulations. The method allows the work being calculated without need of resolving the integral pdα, which has
no analytical solution for such process. The resulting equation suggests that the dissipation near the surface and
the thermodynamic efficiency play a key role in the process. The compression work is used by the descending
branch of the circulation to pump heat back to the hot reservoir at the surface. Application to real data suggests that
the assumption that all the dissipation occurs near the surface requires a very high capability of the circulation in
pumping heat as a refrigerator.
Key words: Convection, heat engine, dissipation.
1. INTRODUÇÃO
Uma das reações da atmosfera ao estabelecimento de
um gradiente de temperatura entre duas superfícies é a indução
de circulações convectivas locais. A brisa marítima e a circulação
vale-montanha são exemplos clássicos dessas circulações
termicamente diretas (Atkinson, 1981; Pielke, 1984). Há
também as circulações geradas em virtude dos gradientes
térmicos relacionados com outras heterogeneidades. Em geral,
gradientes horizontais de temperatura são conseqüência do
aquecimento diferencial da superfície. Simulações numéricas
(ex: Avissar e Pielke, 1989; Chen e Avissar, 1994) mostram que
circulações similares à brisa marítima podem ser formadas por
vários tipos de heterogeneidade da superfície. Essas circulações
são chamadas de circulações não-convencionais (Segall e Arrit,
1992).
Embora o conceito de máquina térmica já tenha sido
associado ao funcionamento da atmosfera há algum tempo (ex:
Brunt, 1926), recentemente tem sido aplicado com sucesso ao
estudo de vórtices atmosféricos, tais como: furacões (Emanuel,
1986), baixas do Ártico (Emanuel, 1989), tornados e trombas
d´água (Rennó e Bluestein, 2001) e vórtices tão pequenos
quanto redemoinhos de poeira (Rennó et al., 1998). Além
do mais, Rennó e Ingersoll (1996) usaram o conceito da
máquina térmica para estudar convecção natural (convecção
rasa e convecção profunda) e para propor uma teoria para a
energia potencial convectiva disponível (CAPE) para uma
atmosfera em equilíbrio radiativo-convectivo. Souza et al.
(2000) usaram a teoria da convecção como uma máquina
térmica para explicar a queda de pressão ao longo do ramo
inferior de circulações convectivas.
O objetivo deste trabalho é estudar o trabalho
mecânico (de expansão e de compressão) associado
aos ramos de um sistema de circulações induzidas por
heterogeneidades da superfície em terrenos inclinados.
A teoria baseia-se no conceito da convecção como uma
máquina térmica. O resultado é interpretado para cada termo
responsável pelo trabalho. Contudo, ênfase especial será
dada ao papel da dissipação e da eficiência termodinâmica
associadas à circulação.
142
Volume 19(2)
Enio P. Souza
2. CIRCULAÇÕES CONVECTIVAS
Dois exemplos de circulações convectivas são
mostrados na Figura 1. No topo é mostrada a brisa marítima
e em baixo é mostrada a circulação vale-montanha. Segundo
Atkinson (1981) e Pielke (1984), mecanismo de formação
desses sistemas é bastante simples: em um dia calmo, a
radiação solar aquece mais rapidamente a terra do que o mar e
a montanha do que o vale (desde que a montanha não esteja do
lado oposto ao sol). O ar sobre o ponto b, na Figura 1, se expande
mais rapidamente do que no ponto a, ajuste hidrostático leva a
um aumento da pressão no ponto c em relação ao d, isso gera
uma circulação suave que implica em um aumento da pressão
em a, que leva ao estabelecimento da circulação a→b.
Note-se que, dependendo da orografia, a circulação
pode ser uma combinação de brisa com vale-montanha. Na
discussão em seguida, os pontos a e b, correspondem aos da
Figura 1, para circulações similares.
3. MATERIAL E MÉTODOS
3.1. Teoria Termodinâmica
Uma equação da energia para uma parcela de ar em
convecção pode ser obtida a partir do produto escalar entre
o vetor velocidade e a equação do movimento (Haltiner e
Martin, 1957). A equação resultante estabelece que, seguindose uma parcela de ar em estado estacionário,
d
(
)
1 →
— | V |² + gz
2
→
→
+αdp – f • dℓ = 0
(1)
em que é o vetor velocidade, g a aceleração da gravidade,
α o volume específico, p a pressão, a força de fricção por
unidade de massa e é um incremento de distância ao longo
do caminho da parcela de ar. A suposição de um estado
estacionário implica que essa teoria fornece um limite superior
para a intensidade da circulação. Note-se que o termo devido
à aceleração de Coriolis não aparece na Equação (1) porque a
força de Coriolis não realiza trabalho.
A integração da Equação (1) ao longo de uma
circulação fechada resulta em:
→
→
o∫ αdp = of
∫ . dℓ
(2)
Isso estabelece que, em estado estacionário, o trabalho
realizado por uma parcela de ar em convecção equilibra a
perda de energia por fricção.
O primeiro e o segundo princípios da termodinâmica,
aplicados ao ar úmido, podem ser escritos como:
Tds = d(cpT + Lr) - αdp
(3)
em que T é a temperatura absoluta do ar, s é a entropia
específica do ar, cp o calor específico do ar seco sob pressão
constante, L é o calor latente específico de vaporização e r a
razão de mistura do vapor d’água. Integrando-se a Equação (3)
ao longo de uma circulação fechada, obtém-se:
oTds
∫ = - oαdp
∫ = opdα
∫
(4)
A Equação (4) estabelece que, em estado estacionário,
o trabalho realizado pela circulação é igual à absorção líquida
de calor (isto é: a diferença entre o calor injetado no sistema
e o calor rejeitado pelo mesmo). Segue-se das Equações (2) e
(4) que
→
→
oTds = - of . dℓ
Figura 1: Representação esquemática da brisa marítima (em
cima) e da circulação vale-montanha (em baixo).
(5)
Essa equação estabelece que, em estado estacionário,
a absorção líquida de calor equilibra a perda de energia por
fricção.
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143
Revista Brasileira de Meteorologia
Integrando-se a Equação (1) ao longo de uma linha
de corrente, próximo à superfície (a região onde calor é
absorvido), entre os pontos a e b, representativos de cada região
homogênea, tem-se que:
(6)
As variações de energia cinética foram desprezadas
uma vez que são pelo menos duas ordens de magnitude
menores que as dos outros termos. Isso ocorre porque a
velocidade associada às circulações locais é baixa e não varia
muito ao longo da circulação, o que é equivalente à suposição
de turbulência isotrópica. Não obstante, por simplicidade, o
sinal de “igual” e não de “aproximadamente” é mantido na
Equação (6).
De acordo com Rennó et al. (1998), define-se a fração
da dissipação total causada por fricção próximo à superfície na
forma:
(7)
e a eficiência termodinâmica da circulação convectiva, que é a
razão entre a quantidade de trabalho obtido e o calor absorvido
pelo sistema, como:
(8)
Combinando-se as Equações (5), (6), (7) e (8), obtém-se:
(9)
Integrando-se a Equação (3), próximo à superfície,
entre os mesmos pontos a e b, obtém-se uma expressão para a
injeção total de calor próximo à superfície,
(10)
Combinando-se as Equações (9) e (10), obtém-se:
(11)
Souza et al. (2000) usaram a lei dos gases
e obtiveram uma equação para prever a queda
de pressão no ramo inferior da circulação. Como o objetivo
de Souza et al. (2000) era prever a queda de pressão, a
substituição de uma temperatura média ao longo do ramo
inferior se justificava.
Não obstante, a Equação (11) pode ser usada para
obter-se uma solução para o trabalho de expansão que ocorre
próximo da região de absorção de calor, isto é, a superfície.
Substituindo-se o termo αdp da Equação (11) por Rdt - pdα,
tem-se:
∫
b
(1 - γη) (RdT - pdα) = - γη
a
∫
b
a
∫
b
d(cpT + Lr) - gdz
a
(12)
O trabalho de expansão no ramo inferior da
circulação wab pode ser obtido de:
(13)
Desprezando-se variações em cp e L e definindo-se
;
e
, o trabalho
de expansão no ramo inferior é dado por:
(14)
Um aspecto interessante da Equação (14) é que o
trabalho pode ser obtido sem que se tenha de integrar pdα, o
que é impossível no presente caso.
Na presença de inclinação, parte da variação de
temperatura é devida à expansão adiabática à medida que o
ar se expande contra um ambiente de menor pressão (no caso
de ascensão). Para entender esse efeito, Souza et al. (2000)
separaram a queda de temperatura entre os pontos a e b em
uma parte adiabática “ad” e em uma parte diabática “di”, desta
forma:
g
δТ = δTad + δTdi = – — δz + δTdi
cp
(15)
Está implícita a suposição de que não ocorre
condensação ao longo do aclive. Substituindo-se a Equação
(15) na (14), obtém-se:
γη
1
Wab = —— (cpδTdi + Lδr) + RδTdi+ – g δz
(1-γη)
k
A
B
C
D
em que
.
(16)
144
Enio P. Souza
Na Equação (16), o termo A simboliza a quantidade
de trabalho extra que é realizada a partir do calor absorvido
próximo à superfície devido ao aquecimento resultante da
absorção de calor e da dissipação de energia próximo ao
reservatório quente. Note-se que o termo A é nulo se não
houver dissipação de energia próximo à superfície (γ = 0)
ou se não houver a circulação convectiva (η = 0). O termo B
representa a absorção de calor latente, quando há condensação
ao longo da circulação e também depende da dissipação.
Esse termo só é importante quando diz respeito a processos
saturados envolvendo precipitação, furacões (Emanuel, 1986)
e tornados (Rennó e Bluestein, 2001), por exemplo. O termo
C representa o trabalho isobárico. Esse termo existe mesmo na
ausência de circulação convectiva e representa o trabalho de
expansão que ocorre quando o ar absorve calor em virtude do
seu contato com a superfície. Embora a contribuição do termo
C seja maior do que a do termo A (conforme será visto adiante),
na ausência de convecção, será compensado por trabalho de
compressão, quando a parcela se resfriar localmente, por
emissão de radiação. Nesse caso, o calor absorvido será igual
ao emitido e o trabalho líquido será nulo. O termo D representa
a expansão devida a diminuição de pressão hidrostática quando
a parcela aumenta de altitude. O fator
reduz o
efeito da queda hidrostática de pressão porque essa diferença já
está incluída no termo C. Quando a superfície é plana, o termo
D é nulo e δTdi = δT.
Como o objetivo deste artigo é o de estudar a trabalho
de expansão e de compressão devido à presença de uma
circulação convectiva, o foco da discussão será mantido na
interpretação do termo A. Note-se que esse termo contém o
produto
, cujo efeito aparece em conjunto, mas que permite
interpretação em separado.
3.2. Dados
Os dados utilizados neste trabalho são os mesmos do
estudo de Souza et al. (2000). O Rondonian Boundary Layer
Experiment, parte III (RBLE-3) foi realizado durante a estação
seca da região amazônica em 1994. Dentre os dados obtidos,
uma grande quantidade de dados de superfície e de ar superior
foi coletada em uma região de floresta nativa (Reserva Jarú) e
em uma região desmatada (uma pastagem na Fazenda Nossa
Senhora). Detalhes sobre os dados e o projeto podem ser
encontrados em Gash et al. (1996). A distância entre os dois
sítios é da ordem de 80 km e a diferença em altitude é da ordem
de 140 m. Neste estudo, serão utilizados dados coletados de 14
a 23 de agosto de 1994, às 14 h (hora local).
Para aplicar a teoria para um caso no qual o efeito
da diferença de altitude é mais pronunciado, serão utilizados
os dados do Experimento de Verão, realizado no estado de
São Paulo no mês de fevereiro de 1989. As características
das circulações locais são descritas por Silva Dias et al.
(1995). Os sítios utilizados neste trabalho são Santos e São
Paulo. A distância entre eles é de aproximadamente 60 km
e a diferença de altitude é da ordem de 787 m. As condições
Volume 19(2)
sinóticas, bem como os forçantes locais são descritos por
Silva Dias e Machado (1997). Neste estudo, serão utilizados
dados coletados de 15 a 25 de fevereiro de 1989, às 15 h (hora
local).
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
4.1. Efeito da Dissipação
Nos trabalhos de Rennó et al. (1998) e Souza et al.
(2000), foi usado γ=1, o que implica que toda a dissipação
supostamente ocorre próximo à superfície. De fato, Stull
(1988) mostrou, através de uma simulação de grandes
turbilhões, que a dissipação próxima à superfície é uma
ordem de magnitude superior à dissipação na porção superior
da camada limite convectiva. Rennó e Ingersoll (1996)
mostraram que a dissipação de energia próximo à superficie
causa um aumento da temperatura do reservatório quente,
levando a uma eficiência termodinâmica aparente dada por:
(17)
Pode-se mostrar que o termo A da Equação (16) wabA
pode ser escrito na forma:
(18)
Da Equação (17), pode-se ver que o termo ηap - η será
maior quando γ = 1. Quando γ = 0, ηap-η = 0. Esse resultado
está de acordo com o de Souza et al. (2000) que sugere
que o principal fator responsável pela queda de pressão é a
dissipação que ocorre próximo à superfície. De forma geral, a
dissipação nas proximidades da superfície vai contribuir como
uma fonte extra de entropia, sempre que se verifique a relação
γ > (1+η)-1.
Pauluis e Held (2002), através de simulações
numéricas para as fontes de entropia associadas à convecção
saturada, sugerem que o efeito da dissipação turbulenta
em baixos níveis exerce um papel de menor importância e
questionam a validade da visão da convecção como uma
máquina térmica. Na visão deles, a convecção saturada atua
mais como um desumidificador da atmosfera do que como
uma máquina térmica. Rennó (2001), no entanto, havia
argumentado que as fontes irreversíveis de entropia podem
atuar no sentido de reduzir a eficiência termodinâmica. Isso,
contudo, não invalida a teoria da convecção como uma
máquina térmica.
4.2. Trabalho de Compressão
O trabalho de compressão será discutido para o caso
em que γ = 1. Na suposição de que a atmosfera se comporta
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145
Revista Brasileira de Meteorologia
como uma máquina de Carnot (reversível), a eficiência é dada
por:
O termo sob a integral de linha indica o trabalho total obtido
no ciclo.
O trabalho total é a combinação do trabalho de
expansão com o de compressão wc, na forma:
(19)
(22)
Deve-se notar que, na forma como está escrito na
Equação (22), o trabalho de compressão será positivo. A
combinação das Equações (21) e (22) dá:
em que “abs” indica região de absorção de calor e “rej” indica
região de rejeição de calor; TQ é a temperatura do reservatório
quente, no qual a circulação absorve calor e TF é a temperatura
do reservatório frio, no qual o calor é rejeitado. Substituindo-se
a Equação (19) na (18), com γ = 1, vem:
(23)
O coeficiente de rendimento de um refrigerador, que
é a razão entre o calor retirado de um reservatório frio e o
trabalho externo fornecido usado para bombear esse calor para
o reservatório quente, é definido, para um ciclo reversível de
Carnot na forma (Kenyon e Schenck, 1962):
(20)
O termo cpδTdi/TQ é o aumento de entropia que ocorre
próximo à superfície. Para um ciclo reversível, o aumento
de entropia que ocorre em virtude da absorção de calor no
reservatório quente é igual (para que a variação de entropia no
ciclo seja nula) ao módulo da diminuição de entropia devida
à rejeição de calor no reservatório frio. Isso possibilita que a
Equação (20) seja escrita na forma:
TF
ε = ——
TQ-TF
Portanto, a Equação (23) pode ser escrita na forma:
O Tds
ε = ——
Wc
(21)
Dia
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
Ta
302,9
304,0
303,9
303,3
303,7
304,7
304,3
304,7
306,0
304,9
Tb
η
304,6
305,2
306,1
304,7
305,1
306,1
306,1
306,8
307,4
307,8
(%)
5,8
5,8
5,7
6,4
6,7
5,7
5,4
5,1
4,8
8,8
(24)
ε
wabA
16,2
16,2
16,5
14,6
13,9
16,5
17,5
18,6
19,8
10,3
Termo A
190
159
217
190
200
168
182
187
140
414
wc
11
9
12
12
13
10
10
9
7
36
(25)
wab
CAPE
Total
2051
1876
2221
1965
1975
1943
2071
2163
1911
2619
Reversível
1189
2936
1293
1124
3717
1638
1458
1798
1268
1601
Tabela 1: Valores para o período 14-23 de agosto de 1994, durante o RBLE-3. As variáveis são: Dia, temperatura da floresta Ta(K),
temperatura da pastagem Tb(K), eficiência termodinâmica η(%), coeficiente de rendimento ε (adimensional), trabalho de expansão
ligado ao termo A wabA(Jkg-1), trabalho de compressão wc(Jkg-1), trabalho total próximo à superfície wab(Jkg-1) e CAPE (Jkg-1).
Enio P. Souza
146
A Equação (25) permite uma interpretação
interessante para o papel do trabalho de compressão quando
a dissipação é suposta ocorrer, na sua totalidade, próximo à
superfície. De acordo com as Equações (2) e (5), o trabalho
realizado equilibra o efeito dissipador devido à fricção. Logo,
o trabalho total aparece como uma fonte de calor na atmosfera.
Como está suposto que a energia dissipada na atmosfera deverá
aparecer como uma fonte de entropia no reservatório quente, o
trabalho de compressão realizado no processo será usado como
um forçante externo para bombear calor do reservatório frio
para o quente. Isso faz com que esse ramo da circulação atue
como um refrigerador. Evidentemente, esse exemplo significa
um caso extremo. Equivaleria, no fim de tudo, à suposição
de uma atmosfera sem viscosidade, o que está longe de ser
realista. Não obstante, a teoria, na forma que tem sido tratada
neste trabalho, com suposição de reversibilidade, permite a
interpretação dos resultados como limites superiores ao que
pode ser alcançado na atmosfera real.
Finalmente, os processos imaginados acontecem
no limite do que é permitido por uma série de processos
reversíveis. A dissipação que ocorre é vista como um processo
interno e não diminui a eficiência porque a entropia gerada é
bombeada para o reservatório quente. O aumento de entropia
causado no reservatório quente é compatível com o fato de
esse reservatório não ter temperatura fixa. Evidentemente, as
simplificações e suposições que são feitas devem causar erros
que levem a resultados pouco confiáveis. Isso ficará mais claro
com a aplicação a seguir.
Dia
Ta
Tb
η
ε
(%)
Volume 19(2)
4.3. Aplicação ao RBLE-3 e ao Experimento de Verão
A Tabela 1 mostra os valores de Ta (temperatura da
floresta), Tb (temperatura da pastagem), η, ε, wabA, wab e CAPE
(energia potencial convectiva disponível), entre os dias 14 e
23 de agosto de 1994, no RBLE-3. O termo A da Equação (16)
contribui com aproximadamente 10 % do trabalho total. Essa
contribuição é pequena, principalmente porque a eficiência
termodinâmica pressupõe uma circulação de profundidade
da ordem de 2 km. Para circulações mais profundas, essa
contribuição pode chegar a 35 %. O trabalho de compressão,
por sua vez, é menor do que 10 % do trabalho de expansão
devido ao termo A. O coeficiente de eficácia varia entre 10 e
20.
O trabalho total pode ser comparado com aquele
realizado na parte ascendente de uma circulação convectiva
profunda que pudesse se estabelecer sobre a região.
Comparando-se as duas últimas colunas da Tabela 1, pode-se
ver que o trabalho total é da mesma ordem de magnitude da
CAPE calculada para um processo reversível.
A Tabela 2 mostra as mesmas variáveis, mas para
o Projeto de Verão, entre 15 e 25 de fevereiro de 1989. A
contribuição do termo A, da Equação (16), para o trabalho
total é, como no caso do RBLE-3, da ordem de 10 %.
Relativamente, a relação entre o trabalho de compressão e o de
expansão, relacionado ao termo A, é menor no experimento de
verão do que no RBLE-3. Isso se deve ao fato de a eficiência
ser menor no experimento de verão. O coeficiente de eficácia
wabA
wc
Termo
wab
CAPE
Total
Reversível
A
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
297,7
298,6
2,3
42,5
222
5
3894
2740
304,5
301
4,6
20,7
430
20
3958
2844
303,7
301,2
3,6
26,8
370
13
4186
1885
301,2
297,5
2,3
42,5
215
5
3801
3291
301,7
299
2,6
37,5
243
6
3829
5827
302,5
301
3,9
24,6
370
14
3956
3560
305,9
301,8
3,3
29,3
325
11
4026
1295
304,8
301
2,3
42,5
231
5
4018
2454
304,3
299,8
5,0
19,0
480
24
4066
2628
303,6
302,4
3,9
24,6
431
17
4448
2346
299,8
295
0,7
13,3
580
41
3765
2001
Tabela 2: Valores para o período 15-25 de fevereiro de 1989, durante o experimento de verão-SP. As variáveis são: Dia, temperatura
de Santos Ta(K), temperatura de São Paulo Tb(K), eficiência termodinâmica η(%), coeficiente de rendimento ε (adimensional),
trabalho de expansão ligado ao termo A wabA(Jkg-1), trabalho de compressão wc(Jkg-1), trabalho total próximo à superfície wab(Jkg-1)
e CAPE (Jkg-1).
Setembro 2004
Revista Brasileira de Meteorologia
varia entre 13 e 43. O trabalho total é, mais uma vez, da mesma
ordem de magnitude da CAPE. Entretanto, para o experimento
de verão as condições atmosféricas estavam sujeitas a outros
mecanismos de perturbação (Silva Dias e Machado, 1997).
Quando a atmosfera absorve calor, independentemente
da presença de circulações convectivas, realiza trabalho de
expansão. Durante o período noturno, quando a fonte em
superfície não está ativa, a atmosfera tende a ser resfriar e a
realizar trabalho de compressão. Os resultados deste trabalho
sugerem que por volta de 90 % do trabalho de expansão
não estão associados com a presença de convecção (no caso
de convecção saturada esse porcentual tende a ser menor).
Excetuando-se a porção da energia que vai compor a energia
potencial disponível da atmosfera, pode-se esperar que a
maior parte seja usada para comprimir a atmosfera, a partir de
esfriamento radiativo, o que causa o ciclo diurno da atmosfera
próximo à superfície. Essa parte está relacionada ao termo C da
Equação (16).
Quando se discute uma teoria que pressupõe processos
ideais, como o reversível, deve-se ter em mente que os valores
calculados representam limites superiores. A irreversibilidade,
intrínseca a todo processo natural, deve reduzir os valores reais.
Porém, como a trabalho total é comparado com a CAPE de um
processo reversível, essa fonte de erro é reduzida. Outra fonte
de erro está relacionada aos erros de medição dos dados. O
erro associado com a medição de temperatura é, tipicamente,
da ordem de 0,5 K. Segundo Souza et al. (2000) isso causa
um erro médio de aproximadamente 15 % da queda de pressão
calculada. Para a presente teoria, os termos maiores são menos
afetados: o erro sobre o trabalho total é, em média de 10 %.
Já para os termos de menor magnitude, como o trabalho de
compressão, o erro de medição pode atingir 30 %, o que é um
fator limitante à validação da presente teoria. Para o futuro,
a teoria pode ser validada com dados obtidos a partir de
simulações numéricas de circulações convectivas.
A viabilidade do processo imaginado neste trabalho
pode ser analisada agora. Não resta duvida que a dissipação que
ocorre próximo à superfície é uma importante fonte de entropia
para a atmosfera. A questão é qual a relação entre o que dissipa
próximo à superfície e o que dissipa nos níveis mais altos.
A eficiência termodinâmica é determinada, neste trabalho, a
priori. Já o coeficiente de eficácia é determinado a posteriori.
Segundo Kenyon e Schenck (1962), refrigeradores, para serem
práticos, apresentam coeficientes de eficácia entre 1 e 4. Os
valores obtidos neste trabalho sugerem que, para que todo o
calor dissipado ao longo da circulação seja bombeado para o
reservatório quente, o ramo descendente da circulação teria de
atuar como um refrigerador extremamente eficiente, capaz de
bombear muito calor às custas de pouco trabalho. Portanto, a
possibilidade de a presente teoria ser representativa de casos
reais, inclusive com a dissipação ocorrendo integralmente
próximo à superfície, é tão limitada quanto a possibilidade de
a atmosfera operar como um refrigerador com coeficiente de
eficácia igual aos obtidos neste estudo. Além dos erros relativos
às simplificações adotadas na dedução da teoria e os erros de
147
medição dos dados utilizados, será necessário, para trabalhos
futuros, investigar com maior profundidade a distribuição
vertical da dissipação ao longo da circulação.
5. CONCLUSÕES
Foi apresentada uma teoria simples para a
compreensão do trabalho de expansão e de compressão nos
ramos inferior e superior de circulações convectivas.
Fica evidenciado, mais uma vez, o papel da
dissipação próximo à superfície como fonte extra de entropia
para a intensificação dos sistemas convectivos.
O trabalho de expansão realizado próximo à
superfície tende, em sua maior parte, a ser compensado
localmente, através de compressão isobárica. Embora a
presente teoria não permita determinar, pode-se especular
que essa compensação ocorra em sua maior parte durante o
período de resfriamento radiativo noturno.
O trabalho de expansão associado à circulação é
usado, em parte, para vencer dissipação ao longo da circulação.
O trabalho de compressão é usado para bombear calor de volta
à superfície.
A presente teoria sugere que quanto maior for a
dissipação maior o trabalho de expansão no ramo inferior
de uma circulação convectiva. Uma linha interessante para
pesquisa futura é investigar qual a distribuição da dissipação
em níveis superiores da circulação, a exemplo de trabalho de
Pauluis e Held (2002).
6. AGRADECIMENTO
Os comentários e sugestões de um revisor anônimo
contribuíram significativamente para a versão final deste
artigo. O autor também agradece ao Departamento de Ciências
Atmosféricas da Universidade Federal de Campina Grande
pelo apoio à realização deste trabalho.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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