As relações de afeto e política na atenção a psicose

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As relações de afeto e política na atenção a psicose.
Rosangela Gomes da Mota de Souza
Terapeuta Ocupacional, mestre em Psicologia pelo IP-USP, especialista em Saúde Mental pela EEUSP, doutoranda em Saúde Coletiva pela UNIFESP e gestora do CAPS Adulto III Sapopemba.
Em maio de 2009 eu iniciava minhas atividades como gestora do CAPS Adulto III Sapopemba.
Em novembro do mesmo ano iniciamos as reuniões mensais de mobilização para constituição do
Conselho Gestor. Nestas reuniões participavam os pacientes em acompanhamento no serviço, eu e
alguns profissionais do CAPS. Conversávamos sobre o que seria um Conselho Gestor, sua constituição
e as atribuições dos Conselheiros de Saúde. Para alguns pacientes, a discussão do papel do conselheiro,
abriu caminho para que eles mesmos se questionassem sobre a capacidade ou não de ser conselheiro.
Nas primeiras reuniões foi possível abordar as questões relativas à Luta Antimanicomial, a Reforma
psiquiátrica e as Conferências de Saúde Mental.
Assim, os pacientes também ficaram sabendo que pelo Brasil afora usuários de serviços de
saúde mental e seus familiares participavam do Movimento antimanicomial. A princípio, o
conhecimento deste fato parece ter causado espanto e estranhamento: um esboço de um desejo de quem
sabe talvez ser alguém para além de sua própria doença? Podemos dizer que talvez ali tenha se iniciado
para alguns um processo de mudança do lugar de paciente para usuário de um serviço de saúde mental;
ou, como apontou Saraceno(2001:p.122) do processo de trocar as identidades de louco para cidadão
comum.
Em paralelo a estas reuniões aconteciam no CAPS a Assembléia dos usuários: espaço coletivo,
de freqüência semanal, preferencialmente conduzida pelos próprios pacientes e com a presença da
maior parte dos profissionais do CAPS. Na Assembléia as pautas são colocadas pelo coletivo e buscase a livre expressão de opiniões e pactuação de regras de convivência. Foi neste espaço que Marlon (os
nomes são fictícios )
– um dos usuários do CAPS - sugeriu que houvesse uma Oficina de Política na qual “seria
falado sobre as regras da sociedade, o que é certo e o que é errado”. Ele, hoje com 29 anos, freqüenta
há alguns anos o serviço CAPS e olha para as mulheres e depois desvia o olhar, pois pensamentos de
desejo sexual logo lhe vêm à mente. Nestas situações era freqüente que logo em seguida ele se
ajoelhasse e começasse a orar implorando perdão a Deus. Seu pai é pastor e tem uma igreja; quando
Marlon não está no CAPS está com sua mãe. Diríamos que Marlon é um psicótico para o qual a lei
materna é onipotente e para o qual há um interdito sob seu pensamento, discurso e afeto (Aulagnier:
1979, p.173-201).
A Oficina de Política surgiu na confluência desses acontecimentos: a construção do Conselho
Gestor, a Assembléia dos usuários e o pedido do Marlon. O objetivo seria constituir um espaço
potencial de construção narrativa das histórias de sujeitos no contexto da psicose tendo por enquadre a
discussão política. Discutir política é entrar no campo de como se dão as relações sociais no âmbito do
Estado e as conseqüências disto na vida civil; é uma tentativa de compreender como são os seres
humanos, seus anseios individuais e porque buscam constituir uma vida em sociedade (Chauí: 1995,
p.73).
Num dos primeiros encontros fizemos a leitura do poema de Berthold Brecht “O analfabeto
político” e Sirlei releu um trecho do poema e disse que aquilo era exatamente o seu marido: “O
analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política”. A fala
dela não reverberou no grupo e o que surgiu depois foi um debate sobre que “a política não vale a
pena”. Naquele momento a política ainda era algo impessoal, que nada lhes dizia respeito. Nos
encontros posteriores foram introduzidos temas que poderiam ter correspondência com suas histórias
de vida: o movimento da Luta antimanicomial, história da psiquiatria, a Lei 10216 etc. Aos poucos
começaram a surgir os relatos das experiências individuais às quais eu entrelaçava com os temas acima
citados.
Em outro encontro Elói quis saber por que médico psiquiatra atendia de porta aberta? A questão
do medo da loucura foi abordada: os trejeitos, o discurso, a agitação e o risco de ser violento. Alguém
no grupo relembrou dos episódios de agressão que houve no CAPS ano passado: uma das pacientes
agrediu outros pacientes e profissionais. Foi conversado sobre o modo como no CAPS se lidou com
esta situação: abordagem verbal, contenção física, continuidade do tratamento e discussão na
Assembléia dos usuários. Falou-se também da existência de outros dispositivos criados pela sociedade
para lidar com o louco perigoso: a polícia, o SAMU, a emergência psiquiátrica e o hospital psiquiátrico
e/ou manicômio. Entrou-se no tema do preconceito, da exclusão e do estigma do doente mental; os
relatos pessoais se acentuaram e a participação na oficina também.
Na comemoração da Semana da Luta Antimanicomial uma das atividades seria a inauguração
do “Café com Reforma”: espaço sócio-político de discussão da loucura e suas formas de cuidado na
sociedade; Rosa, uma das integrantes do grupo, coordenou a mesa.
Num dos encontros na Oficina apresentei-lhes uma foto do livro “A loucura na sala de jantar”
na qual aparecem duas pessoas sentadas num banco e a pergunta logo abaixo: “Quem é louco e quem é
normal?”. Este acabou por ser o slogan da semana da luta e o tema para um ensaio fotográfico do qual
participaram profissionais e usuários do CAPS. As atividades da Semana da Luta Antimanicomial
intensificaram a discussão na Oficina sobre quem determina quem é louco ou não? Instaurou-se então,
a discussão sobre normalidade, ou seja, quem é louco e quem é normal?
Segundo Canguilhem (1995, 1ª parte) sabe-se da doença porque o doente fala de sua doença e é
o próprio sujeito quem determina o que é normal ou o que é patológico; a doença, para o médico, não
surge do conhecimento da fisiologia, das estatísticas ou exames quantitativos. Ao contrário, há um ser
vivo que produz certa normatividade e se expressa no mundo por meio de normas superiores e
inferiores: o conhecimento do médico sobre a doença surge a partir deste relato. No entanto, em saúde
mental, quando esta expressão surge – na família, comunidade, consultórios, instituições – em geral
emerge uma leitura hegemônica de doença e loucura. Na Oficina de Política, quando apareceu mais
claramente a questão de quem é louco e quem é normal, surgiu também a questão do risco da expressão
dos afetos: ser muito diferente parecia ser arriscado.
A Oficina de Política foi um espaço no qual se acolheram os afetos oriundos das experiências de
exclusão e preconceito advindas do fato de ser louco e criaram-se algumas possibilidades de existir
para além da doença. Por exemplo, dois usuários da Oficina de Política participaram como delegados
na Conferência Municipal de Saúde Mental do Município de São Paulo.
E Marlon? Foi ele quem enunciou a Oficina e sua participação se deu da forma que ele
conseguiu: quando conseguia entrar na Oficina ficava pouquíssimo tempo; ele quase sempre dizia que
não podia porque não estava se sentindo muito bem. Às vezes ele se posicionava na porta e dizia que
não podia entrar. À semelhança da narrativa de Kafka (1999) “Diante da Lei” na qual um homem que
está diante da lei, deseja entrar, porém não consegue. O homem passa anos ao lado da porta da lei e no
fim da vida questiona: se todos aspiram a lei e se ninguém mais apareceu por ali para entrar, por que
não conseguiu entrar? O porteiro então responde: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta
entrada estava destinada só a você”. A Oficina de Política foi proposta por Marlon; ele queria discutir a
Lei. Participou como pôde; entrou quando e como conseguiu. Ele ainda está muito mais para paciente
do que para cidadão. Mas, algo aconteceu: a sua proposição de Oficina de Política estaria se
contrapondo à autoridade da materna? Quem saberia... Depois, houve uma primeira vez, que Marlon
conseguiu participar o tempo todo. Foi um dia em que tivemos a participação de Hugo: um paciente
novo que havia sido admitido na hospitalidade noturna e que estava em crise de mania – acelerado,
falando bastante e escutando pouco. A Oficina aconteceu aos pedaços: por um lado com muitas
interrupções de Hugo, mas por outro surgia um olhar atento de Marlon. Aquela desorganização o atraiu;
naquele dia tivemos conversas entrecortadas, descontínuas e divertidas. Houve outros encontros em que
isto também aconteceu, mas esse dia foi marcante pela participação de Marlon. Depois desse dia, ele
começou a participar um pouco mais da Oficina.
A Oficina de Política tem-se constituído como um espaço de construção narrativa política e ao
mesmo tempo afetiva; não há como ser de outra forma, pois os sujeitos se transformam a partir de suas
próprias experiências para num outro momento buscar a transformação coletiva, o deslocamento do
sujeito do lugar de doente/louco para uma possibilidade de expressão de singularidades, afetos e
projetos de vida.
Referências bibliográficas:
Aulagnier, Piera A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro,
Imago, 1979.
Canguilhem, Georges O normal e o patológico. 4ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.
Chauí, M. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo, Moderna, 1995.
Delgado, Jacques (org). A loucura na sala de jantar. Editora Resenha, São Paulo, 1991.
Kafka, Franz Diante da Lei. In: Um médico rural: narrativas curtas. São Paulo, Companhia das
Letras, 1999.
Saraceno, Benedeto Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível.
TeCorá/Instituto Franco Basaglia, Belo Horizonte/Rio de Janeiro, 2ª edição, 2001.
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