RPCV (2004) 99 (550) 89-92 � � � � � � � �� � � � � � � � � � �� ��������������������� Detecção de antigénios do vírus da raiva em encéfalo de cão mantido em formol durante longo período Detection of rabies virus antigen in dog encephalon kept in formalin for a long time Gisele Fabrino Machado1*, Luzia Helena Queiroz Silva2, Caris Maroni Nunes2 1 Departamento de Clínica Cirurgia e Reprodução Animal (DCCRA) - UNESP - Campus de Araçatuba 2 Departamento de Apoio Produção e Saúde Animal (DAPSA) - UNESP - Campus de Araçatuba Resumo: Relatamos aqui a detecção de antigénios do vírus da raiva em encéfalo mantido em formol não tamponado por período que variou de 4-5 anos usando o método da imunoperoxidase indireto. Devido ao tempo prolongado de permanência no fixador, utilizamos duas técnicas de recuperação antigênica: digestão enzimática com tripsina, seguida de tratamento pelo calor em microondas. O método da imunoperoxidase mostrou-se mais efectivo que os testes histológicos para a observação de corpúsculos de Negri, embora não tenha sido observada uniformidade na intensidade da reação para detecção de antigénios virais. Isto pode ser decorrente do facto da distribuição de antigénio viral e mesmo a concentração serem variáveis de acordo com a região do cérebro do animal infectado, o que é estreitamente relacionado com a duração da doença clínica e estadio da doença no qual o animal foi sacrificado, ou ainda pode ser decorrente da variação do título existente no momento do sacrifício ou do longo tempo de permanência em formol não tamponado. A imunohistoquímica permitiu a observação de dois padrões de distribuição de antigénios virais no citoplasma de neurónios com base no tamanho: agregados de forma redonda ou oval e antigénio particulado fino assumindo um aspecto granular. A imunoperoxidase indireta é um método rápido e pode ser usada para o diagnóstico de rotina nos casos onde inicialmente não há suspeita de raiva e o material é enviado para diagnóstico em solução de formol 10%. Para estudos retrospectivos deve-se considerar o tempo de permanência na solução fixadora para a avaliação dos resultados. Palavras-chave: Raiva, cão, imunoperoxidase, recuperação antigênica Summary: We report the detection of rabies virus antigen in encephalon kept in unbuffered formalin for a period that ranged from 4 to 5 years, using the indirect immunoperoxidase method. Due to the prolonged time in the fixative solution, we used two supplementary antigen recovery techniques: enzymatic digestion with trypsin followed by heat treatment in microwave oven. The immunoperoxidase method showed to be more effective than the histological observation of Negri bodies, although the intensity of the reaction for viral antigen detection was not uniform. This may be due to the fact that viral antigen distribution and even concentration vary according to the brain region infected. This variation is closely related to the duration of the clinical disease * Correspondência: UNESP- FO - Araçatuba. Curso de Medicina Veterinária, Rua Clóvis Pestana, 793, Jardim Dona Amélia - Araçatuba-SP 16050-680, Brasil. Fax 55 18 622 4542, e-mail: [email protected] and to the disease stage in which the animal was when euthanized. Or it might even be due to the variation in the titre existing at the moment of the euthanasia or to the prolonged time in unbuffered formalin. The immunohistochemical analysis has permitted the observation of two size-based patterns of viral antigen distribution in the cytoplasm of neurons: round or oval-shaped aggregates and thin particulate antigen with a granular aspect. Indirect immunoperoxidase is a fast method and may be used for routine diagnosis in cases where initially there is no suspicion of rabies and the specimen is sent for analysis in 10% formalin solution. For retrospective studies, the time in fixative solution has to be considered when assessing results. Key words: Rabies, dog, immunoperoxidase, antigen recovery Introdução O diagnóstico laboratorial de raiva é essencial para direcionar os programas de controle da doença, para o estabelecimento de vigilância imunológica e o monitoramento efetivo de áreas geográficas, assim como para a orientação de medidas profiláticas. Pode ser efectuado por detecção de antigénio viral em tecido nervoso fresco e em tecido fixado por imunofluorescência ou imunocitoquímica, por testes de isolamento de vírus em camundongos ou culturas de células, por detecção de ácido nucléico viral por RT-PCR, e por testes histológicos de demonstração de corpúsculos de Negri. Entretanto, estas inclusões são observadas em apenas 50-80% dos casos de raiva, detectados pelo isolamento do vírus na prova biológica realizada em camundongos (Fekadu e Smith, 1986; Debbie, 1988). Uma vez que a fixação em formol é o procedimento padrão para a rotina de preservação dos tecidos, nos casos onde não há suspeita clínica de raiva ou onde há deficiências de transporte ou refrigeração na região, o diagnóstico desta enfermidade pode ser prejudicado pela mesma, pois o procedimento padrão exige a utilização de material fresco congelado ou preservado em glicerina. A marcação por imunofluorescência direta 89 RPCV - 47.indd 89 7/14/2004 11:40:40 AM Machado, G. F. et al. RPCV (2004) 99 (550) 89-92 Figura 1 - A - Porcentagem de animais que apresentaram diagnóstico positivo para raiva baseada na observação de cortes corados pela H-E (corpúsculos de inclusão característico) e de animais que apresentaram imunomarcação positiva para detecção do vírus da raiva pelo método imunoistoquímico. B - Comparação entre a detecção de corpúsculos de Negri (coloração H-E) e a porcentagem de imunorreatividade ao antigénio viral detectada após a utilização do método da imunoperoxidase indireto em diferentes regiões. do antígeno rábico em encéfalo fresco ou congelado é essencial para o diagnóstico de rotina de raiva (Smith, 1995). A detecção de antigénio viral em casos de raiva através de imunofluorescência em tecidos fixados em formol foi previamente relatada por Johnson et al., (1980). E depois disto, alguns autores demonstraram que a digestão enzimática com pepsina e tripsina aumentava a sensibilidade do método (Reid et al., 1983), embora outros como Fekadu e Shaddock (1984) não comprovassem a eficiência da técnica em tecidos preservados em formol ou em blocos de parafina por mais de oito anos. A B C D Figura 2 - Fotomicrografias de encéfalos de cães com diagnóstico positivo para raiva. A - Múltiplos corpúsculos de Negri observados em neurónio (seta), H-E. B - Detecção de antigénios virais na forma de agregados arredondados ou ovalados (seta) em neurónios do tronco cerebral, imunoistoquímica revelada por DAB. C - Positividade de antigénios virais com padrão granular no citoplasma de neurónios. D - Positividade granular (seta) e na forma agregados maiores, arredondados/ovalados em neurónios hipocampais. Todas as fotografias foram realizadas usando a objetiva 40 X exceto no item C onde se utilizou a objetiva 100 X. 90 RPCV - 47.indd 90 7/14/2004 11:40:47 AM Machado, G. F. et al. O uso de métodos de recuperação antigênica em tecidos fixado tem mostrado utilidade para pesquisa retrospectiva no material mantido nos arquivos de centros de diagnóstico. Além dos tratamentos enzimáticos, a utilização de calor (microondas, panela de pressão, autoclave) vem sendo utilizada associada ou não às enzimas (ex. tripsina, pronase) para melhorar a imunodetecção de antigénios nos tecidos (Cattoretti et al., 1993). Material e métodos O material utilizado foi obtido junto ao arquivo do Serviço de Patologia do Departamento de Clínica Cirurgia e Reprodução Animal (DCCRA). Os encéfalos estavam mantidos em solução de formol a 10% não tamponado. Os cães foram sacrificados apresentando sintomas neurológicos característicos da doença durante o surto de raiva ocorrido na cidade de Araçatuba - SP em 1994/1995. O tempo de permanência na solução fixadora variou de 4-5 anos. Os exames que determinaram positividade para o vírus da raiva foram realizados previamente no Laboratório de Raiva do Departamento de Apoio, Produção e Sanidade Animal (DAPSA), utilizando-se do método da imunofluorescência direta e de prova biológica em camundongos. Após o procedimento de rotina para inclusão em parafina, foram obtidos cortes com 5µ em lâminas com PolyL-Lisine (Sigma). O exame de rotina do material corado pela hematoxilina e eosina (H&E) foi realizado em pelo menos um corte de cada região estudada. O método imunohistoquímica utilizado foi o da imunoperoxidase indireta. O anticorpo primário utilizado foi produzido em carneiro, imunizado com vacina Pasteur Merieux®. Cada carneiro recebeu 2 mL de vacina junto com 120 µL de avridine, como adjuvante, por via subcutânea. Foram realizadas quatro imunizações com intervalo de uma semana. A sangria final foi realizada após os animais terem recebido dois “boosters” com intervalo de um mês entre eles. A dosagem de anticorpos do soro hiperimune realizada por soroneutralização, segundo Atanasiu (1967) resultou em título de 1:900. Após desparafinização e hidratação dos cortes, foi realizado o bloqueio da peroxidase endógena (peróxido de hidrogênio 1% em metanol). Os cortes foram lavados três vezes com tampão fosfato tamponado (pH 7,0) e a recuperação antigênica realizada em forno microondas (com tampão citrato pH 6,0) seguida de digestão enzimática (tripsina 0,1% por 30 minutos a 37 ºC). Antes da incubação com o anticorpo primário antivírus da raiva, os sítios de ligação inespecíficos foram bloqueados com leite em pó desnatado (3% em PBS pH 7,4, 30 minutos). O anticorpo primário foi usado na diluição 1:100 (18 horas mantido a 4 ºC). Os cortes foram então lavados e incubados com o anticorpo secundário (jumento anti ovino SIGMA 9015) 1:100 durante 45 minutos. Diaminobenzidina (DAB) foi usada como cromógeno e, após interromper a reação com água, os cortes foram contra- RPCV (2004) 99 (550) 89-92 corados com Hematoxilina de Harris e montados conforme procedimento padrão. Cortes provenientes do encéfalo de bovino (mantidos por curto período em formol 10%) com diagnóstico positivo de raiva por meio de imunofluorescência direta e prova biológica em camundongos, e que apresentavam corpúsculos e Negri evidentes, quando corados por hematoxilina e eosina, foram utilizados como controle positivo. Cortes de encéfalo de cães que morreram sem sintomatologia neurológica foram usados como controle negativo. Para controle do anticorpo primário algumas lâminas foram processadas omitindo-se a incubação com o mesmo. Resultados Na coloração pela H-E foram detectados corpúsculos de inclusão em 11 encéfalos, o que correspondeu a 55%, enquanto que com o método da imunoperoxidase indireto para detecção de antigénios do vírus da raiva, a marcação positiva foi observada em 70% dos encéfalos (Figura 1A). Corpúsculos de Negri foram observados com maior freqüência em neurónios localizados na região do bulbo (54%) e formação hipocampal (45%) e com menor freqüência no tálamo/hipotálamo e núcleo caudato (18%) (Figura 1B). O tratamento enzimático seguido por tratamento pelo calor em forno microondas resultou em melhor detecção de antigénios virais. A imunohistoquímica demonstrou a presença do antigénios no citoplasma dos neurônios na forma de dois padrões distintos: agregados de forma particulada e difusa ou de forma redonda ou oval, semelhantes a corpúsculos de inclusão típico, múltiplos ou unitários (Figuras 2 B, C e D). A forma particulada e difusa não foi detectada nos cortes corados pela hematoxilina-eosina. As principais áreas onde a imunorreatividade foi observada foram: o tronco cerebral (72%), hipocampo (55%) e neurônio da região do tálamo/hipotálamo (22%) (Figura 1A). Discussão A utilização da técnica da imunoperoxidase (método indireto) para detecção de antigénios do vírus da raiva apresentou bons resultados, permitindo a observação do antigénio viral no citoplasma de neurónios (Figuras 2 B, C e D) com distribuição semelhante às citadas na literatura (Zimmer et al., 1990). Observando a Figura 1A e B, constatamos também que a imunoistoquímica mostrou maior eficiência na comprovação do diagnóstico de raiva do que a detecção de corpúsculos de inclusão em cortes corados pela H-E. Segundo Jubb et al. (1993), a freqüência com que as inclusões são observadas no SNC de animais com raiva varia muito. Neste caso, é possível que as mesmas não tenham sido observadas em maior número, porque os cães foram capturados e sacrificados (surto de raiva urbana em 1994/1995) e não 91 RPCV - 47.indd 91 7/14/2004 11:40:47 AM Machado, G. F. et al. tiveram morte natural. Reid et al. (1983) demonstraram que se o título do vírus é baixo (103 MICLD50 0,03mL) resultados falso negativos podem ocorrer quando o teste de imunofluorescência é utilizado após digestão enzimática com tripsina em tecido fixado em formol. Em casos onde o diagnóstico de raiva não é concluído mesmo após exame neuropatológico detalhado, a imunohistoquímica tem mostrado ser uma ferramenta útil (Jogai et al., 2000). Segundo Zimmer et al. (1990) a imunofluorescência e a imunoperoxidase detectaram antigénios virais em 98% dos casos, o que as tornam métodos confiáveis de diagnóstico. A detecção de antigénios do vírus da raiva através de imunohistoquímica em 70% dos encéfalos utilizados nesta pesquisa pode ter sido decorrente do baixo título existente no momento da morte do animal ou estar associada ao longo tempo de permanência do tecido em formol não tamponado. Mesmo assim, observamos maior eficiência na detecção de antigénios da raiva pela imunoperoxidase do que na observação de corpúsculos de inclusão em cortes corados pela H-E. O uso de digestão enzimática para melhorar a intensidade das reações de imunohistoquímica para diagnóstico de raiva tem sido descrito em trabalhos como os de Budka e Popow-Kraupp (1981), Reid et al. (1983), Bourgon e Charlton (1987) e Fekadu et al. (1988). Warner et al. (1997) destacam ainda a importância deste tipo de fixador para preservação da morfologia celular. Após digestão enzimática com tripsina 0,1% durante 30, 45 e 60 minutos a 37 ºC, não observamos imunomarcação positiva de antigénios virais, mas o tratamento enzimático seguido por tratamento pelo calor em forno microondas resultou em boa detecção do vírus. A imunoperoxidase indireta é um método rápido e pode ser usada para o diagnóstico de rotina em casos onde inicialmente não há suspeita de raiva, e o tecido é enviado para diagnóstico em solução de formol 10%, ou de material enviado de forma inadequada para a realização da prova biológica. Como em muitas ocasiões, apenas tecido fixado em formol se encontra disponível para o diagnóstico post mortem, a recuperação antigênica através de métodos enzimáticos ou do tratamento pelo calor (forno microondas ou panela de pressão) demonstrou grande utilidade no aproveitamento de material. O método também é útil, pois permite a pesquisa retrospectiva, mas deve-se considerar o tempo de permanência na solução fixadora para a avaliação dos resultados. Agradecimentos RPCV (2004) 99 (550) 89-92 Bibliografia Atanasiu, P. (1967) Titrage des anticorps rabiques pratique sur les sérum humaines. Bulletin Office Inernational des Epizooties, 67, 383-387. Bourgon, A.R., Charlton, K.M. (1987). The demonstration of rabies antigen in paraffin-embedded tissues using the peroxidase-antiperoxidase method: a comparative study. Canadian Veterinary Research, 51, 117-120. Budka, H., Popow-Kraupp, T. (1981). Rabies and herpes simplex vírus encephalitis in immunohistological study on site and distribution of viral antigens. Virchows Archives (Pathology anatomy and histology), 390, 353-364. Cattoretti, G., Pileri, S., Parravicini, C., Becker, M.G.H., Poggi, S., Bifulco, C., Key, G., Dámato, L., Sabattini, E., Feudale, E., Reynolds, F., Gerdes, J., Rilke, F. (1993). 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