Dicionário Crítico Filosofia Portuguesa

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Dicionário
Crítico
DE
Filosofia
Portuguesa
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Dicionário
Crítico
DE
Filosofia
Portuguesa
Coordenação
Maria de Lourdes Sirgado Ganho
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Prefácio
E
ste Dicionário Crítico de Filosofia Portuguesa corresponde a um projeto de investigação que foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia
(POCTI/FIL/32561/1999), tendo sido iniciado em 2000 no âmbito do Gabinete
de Filosofia e Cidadania (GEPOLIS) e prosseguido posteriormente, a partir de
2005, no Centro de Estudos de Filosofia (CEFi). Nesta obra, constituída por
entradas sobre autores e sinopses das obras mais representativas da tradição
filosófica portuguesa, principiamos pela referência a autores e obras anteriores
à fundação da nacionalidade – que constituem, como defendia já Francisco da
Gama Caeiro, as raízes da filosofia portuguesa – para terminarmos em autores
ainda vivos. Há ainda autores que, não sendo portugueses pelo lugar do seu
nascimento, em Portugal exerceram parte significativa da sua atividade filosófica, tendo no nosso país deixado a marca do seu ensino ou do seu pensamento.
No que diz respeito às sinopses, decidimos apresentar obras de referência dos
autores que se nos afiguraram como marcantes de uma época, corrente, ou
mesmo atitude.
Relativamente a alguns autores ou obras tratou-se de uma revisitação, relativamente a outros, em menor número, foi um desbravar de caminhos, como
nos caso de Frei António de Beja, Sebastião Toscano, Eduardo de Soveral, Lúcio
Craveiro da Silva, entre outros. No que às sinopses diz respeito, procurou-se
dar conta do contributo das obras recenseadas para uma compreensão aprofundada do pensamento do seu autor e, ao mesmo tempo, evidenciar as problemáticas centrais sobre as quais refletem.
Tratando-se de um dicionário, a limitação de espaço foi um imperativo. Ao
mesmo tempo, procurou-se não cercear, com prejuízo da clareza conceptual,
a maneira particular de cada investigador se expressar. O formato de um dicionário impõe, contudo, algumas restrições quanto ao desenvolvimento e à
expressão de atitudes valorativas relativamente aos autores e obras estudados. Por outro lado, num domínio de estudos em que existem ainda muitos
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autores e obras a descobrir, ou a retirar de um anonimato quantas vezes injusto, pensámos que uma uniformização muito rígida faria, certamente, que
se perdesse alguma riqueza. Pensamos, ainda assim, ter conseguido um equilíbrio aceitável. Pela amplitude de autores e diversidade de análise de obras,
o dicionário ocupa um espaço que estava em aberto, esperando que venha a
ser o ensejo para outros desenvolvimentos, que serão sempre bem-vindos.
É também um dicionário crítico porque, a par de uma objetividade de
dados informativos quanto à biografia, bem como relativamente à temática da obra dos autores em apreço, cada comentador exerceu livremente o
necessário trabalho hermenêutico. Crítico, todavia, não significa opinativo,
pelo que o fundamental não reside no tipo de opinião expressa, mas sim nas
razões que são aduzidas para a sustentar, bem como na sua pertinência em
ordem a que o leitor possa prosseguir o seu trabalho reflexivo. Esperamos
que cada uma das entradas deste dicionário possa constituir um convite ao
estudo e à leitura crítica dos originais, sem os quais não é possível a formação
de um pensamento filosófico autêntico.
Uma referência à equipa que assumiu o projeto de investigação patrocinado pela FCT, desde o início, ajuda a compreender a sua configuração final.
Apresentamo-la por ordem alfabética: António Braz Teixeira (Universidade
Lusófona), Cristiana Soveral Paskiewicz (Universidade de Trás-os-Montes
e Alto Douro), Elísio Gala (CEFi/UCP), José Esteves Pereira (Universidade
Nova de Lisboa); Jesué Pinharanda Gomes (Academia Portuguesa da História), Lúcio Craveiro da Silva (Universidade do Minho), Margarida Barahona
Simões (Centro de História da Cultura/Universidade Nova de Lisboa), Manuel Ferreira Patrício (Universidade de Évora) e Maria Manuel C. R. Valadares Tavares (Universidade Lusíada).
No entanto, muitos outros, para além desta equipa, deram o seu contributo a este projeto de investigação, de tal modo que podemos considerar
que muitas das principais figuras representativas da filosofia portuguesa nele participaram. Na elaboração do quadro de trabalho produzido, avulta a
figura de Pinharanda Gomes que, com a sua generosidade e permanente disponibilidade, é um dos esteios deste dicionário. Não podemos deixar de lhe
prestar este agradecimento, pois foi inexcedível no seu contributo.
Não podemos, também, deixar de fazer uma menção a Lúcio Craveiro da
Silva, insigne jesuíta, que, com a sua habitual cordialidade, prontamente acedeu a integrar o projeto, embora tivesse colocado algumas restrições, sobretudo devido à idade avançada e, numa última fase, por motivos de saúde. Faleceu em agosto de 2007. Em nome da equipa e dos restantes colaboradores,
um agradecimento de saudade, palavra que filosoficamente lhe era tão cara.
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A todos aqueles que, não pertencendo formalmente à equipa, se prontificaram a contribuir para a execução do projeto, tendo-se empenhado pessoalmente, queremos também agradecer, nomeando os que deram um contributo
mais significativo, a saber, Joaquim Domingues e Luís Manuel A. V. Bernardo. Finalmente, temos de agradecer o trabalho de Samuel Dimas e de Luís
Lóia, tanto como redatores, como também pelo apoio às tarefas de carácter
administrativo e burocrático. Nestes últimos anos o trabalho de assessoria foi
realizado, primeiro, pela D. Ana Lúcia Carvalheda e, posteriormente, pelo
Doutor Samuel Dimas, assessor científico do CEFi, a quem estamos gratos
pela disponibilidade.
Queremos ainda salientar o estímulo inicial e o constante apoio do então
coordenador do GEPOLIS, Prof. Doutor Mendo de Castro Henriques, bem
como do anterior coordenador do CEFi, Prof. Doutor Manuel Cândido Pimentel. A ambos ficamos igualmente a dever uma valiosa colaboração, com entradas sobre autores e obras de temáticas da sua especialidade.
Ao Prof. Doutor Carlos Morujão, atual coordenador do CEFi, agradecemos o empenho e a dedicação quanto à concretização deste trabalho. Por fim,
um agradecimento ao Círculo de Leitores e à Temas e Debates, na pessoa da
Dr.ª Guilhermina Gomes, que o acolheu e lhe deu o atual rosto, num trabalho
de equipa que muito valoriza os nossos contributos.
Dado que o projeto foi iniciado em 2000 e estamos em 2016, foi necessário
proceder a uma atualização bibliográfica, não exaustiva, mas essencial relativamente a algumas entradas. Esta tarefa foi assumida pela investigadora
responsável, que pôde contar com as generosas colaborações do Doutor Luís
Lóia e do Doutor Samuel Dimas, de modo a que a conclusão do projeto não
sofresse ainda mais atrasos.
Este Dicionário Crítico de Filosofia Portuguesa integra-se numa clara valorização dos autores e do pensamento filosófico português. Nesse sentido, ele é como que o coroar do esforço de todos aqueles que, antes de nós, pugnaram, por
vezes com grandes dificuldades, pelo reconhecimento da filosofia portuguesa
e pelo estatuto do filósofo como interventor na sociedade. Além disso, não devemos esquecer, a filosofia é, como foi na Grécia de Platão e de Aristóteles,
uma forma cimeira de manifestação e de maturidade cultural. Com a execução
da Bibliografia Filosófica Portuguesa (1930-1987) – realizada em colaboração com
Mendo de Castro Henriques – tivemos aí, com os quase 7000 mil títulos recenseados, a prova irrefutável de que a filosofia portuguesa existe e tem uma tradição que não podemos esquecer. Sentimo-nos herdeiros de Paulo Orósio, São
Martinho de Dume, Pedro Hispano, Pedro da Fonseca e os Conimbricenses,
Antero de Quental, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, José Marinho, Delfim
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Santos, Manuel Antunes, Francisco da Gama Caeiro, Afonso Botelho e Manuel
da Costa Freitas. Significa esta evocação que nos colocamos numa linhagem
que desde Prisciliano e Potâmio de Lisboa se foi afirmando ao longo da nossa
tradição filosófica e, nesse sentido, este dicionário constitui, por agora, um elo
desta corrente, a que, certamente se seguirão outros, dando corpo ao sonho daqueles que nos antecederam e que com o seu estímulo nos orientaram na senda
de um pensar autónomo português e em português.
Maria de Lourdes Sirgado Ganho
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A
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Ab oab, E manue l
Aboab, Emanuel
(n. Porto, c.1560 – m. Veneza, 1628).
Comentarista bíblico-talmúdico e historiador bisneto do gaon Isaac Aboab, foi
criado pelo avô, Abraão Aboab, numa
casa da antiga Rua de São Miguel da cidade natal. Numa das levas de exilados,
que desejavam evitar o estado de marranismo em Portugal, saiu para Itália,
rumo a Pisa, fixando-se depois em Veneza. Negociante, como a maior parte dos
judeus exilados, teve uma vida muito
agitada, viajando por toda a Itália e nas
ilhas do Mar Grego, mas não conseguiu
satisfazer o sonho de viajar à Palestina,
morrendo antes de lá poder ir. Conviveu
em Veneza com grandes nomes dos judeus sefardis, rabinos, médicos, talmudistas, recebendo luzes na Cabala, dadas
pelo cabalista Menahem Asaria de Fano.
Acerca da Cabala correspondeu-se com
Horacio del Monte, sobrinho do duque
de Urbino. Legista respeitado, coube-lhe
ser advogado de defesa da comunidade
(1603) em tribunal, contra as acusações
que Veneza lançara aos judeus, tendo
saído vencedor do pleito. Durante dez
anos dedicou-se à composição de um livro, Nomologia ò Discurso Legales (Amesterdão, 1629), só editado pelos herdeiros
um ano após a morte do autor. O livro
tornou-se obra de referência de toda a
exegese historiográfica posterior, sendo
obra citada a esmo, por ser muito factual, e basear-se nas memórias pessoais
do autor relativas à expulsão e à diáspora. Historiador, mais do que intérprete,
consegue páginas minuciosas que nos
facultam o cenário quotidiano dos judeus portugueses, ainda que o livro tenha sido escrito em castelhano, com o
nítido intuito de atingir maior faixa de
compradores. Em sinopse: Nomologia é
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uma história sagrada de Israel (com esquema idêntico ao dos livros históricos
do AT), na perspetiva da aliança divina
com a humanidade (Israel) caída, como
anjo pecador, cuja redenção depende do
esforço que investir para se aproximar
da lei divina, ultrapassando os limites da
lei positiva. Israel dispõe, por graça, da
lei escrita, da lei mental e da profecia,
gratisdada, só concedida aos que amam
o divino sem mistura. No quadro da reforma protestante, assume a defesa da
Bíblia hebraica contra as versões vernáculas e as edições judeo-alemãs, sendo
curioso o facto de ter uma palavra de
simpatia para as Bíblias originárias de
Portugal que, por serem mais corretas,
não originaram tantas seitas doutrinais
como sucedeu na Alemanha. Apologeta do judesmo, interpreta as atribulações
dos judeus portugueses numa perspetiva providencialista e messiânica, afirmando-se, com Samuel Usque, referencial de primeira instância da teologia do
cativeiro no século xvi.
Pinharanda Gomes
BIBLIOGRAFIA
Obras do autor:
Nomologia ò Discurso Legales, Amesterdão, 1629;
Nomologia ò Discurso Legales, Salamanca, Universidade de Salamanca, 2007.
Estudos:
Bib. Lusit., III, p. 166; Roth, C. de, «I. Aboab’s
Proselitization of the Marranos», Jewish Quarterly Review, vol. 22, 1932, pp. 121-162; Kayserling,
M., História dos Judeus em Portugal, São Paulo,
Livraria Pioneira, 1971; Gomes, P., A Filosofia Hebraico-Portuguesa, Lisboa, Guimarães
Editores, 2009, pp. 232-234; idem, «Filosofia e
Teologia na Diáspora do Século XVI», in História
do Pensamento Filosófico Português (dir. Pedro
Calafate), vol. ii, Lisboa, Editorial Caminho,
2001, pp. 253-264.
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Abranche s, Cassiano dos S antos
Abranches, Cassiano dos Santos
(n. Alvoco da Serra, Seia, 12.8.1896 –
m. Braga, 16.5.1983)
Cassiano Abranches ingressou na Companhia de Jesus em Loyola (Espanha)
no ano de 1915 e, como os jesuítas foram exilados pela I República, toda a
sua formação se realizou no estrangeiro,
estudando Filosofia em La Guardia (Galiza) e sobretudo em Lovaina (1925-30)
onde se licenciou em Teologia, tendo-a
concluído com o doutoramento em Filosofia, em 1934, na Universidade Gregoriana de Roma com a defesa da tese
«A Metafísica de Pedro da Fonseca».
Em 1935 foi nomeado prefeito de estudos no recém-criado Instituto de Filosofia Beato Miguel de Carvalho, em Braga,
onde exerceu tão notável influência filosófica e pedagógica que se tornou impossível compreender o florescimento,
irradiação e mensagem deste Instituto
de Estudos Superiores sem ter presente
a figura inicial de Cassiano Abranches.
Ele esteve na origem da sua orientação
filosófica neoescolástica e tomista que,
juntamente com o seu espírito aberto e
dialogante, levaria Cabral de Moncada
a afirmar, naquele tempo, que «é a direção neotomista aquela que, como facto
evidente, deve considerar-se ainda hoje
a dominante do pensamento filosófico
português neste século» (Para a História
da Filosofia em Portugal, Coimbra, 1960,
p. 16). É que a tomada de posição do
Prof. Cassiano Abranches acabou por
se generalizar e receber a aceitação das
novas gerações académicas tanto de professores como de alunos.
A posição filosófica de Cassiano Abranches, neoescolástica e tomista, recebeu,
na sua formação, duas influências preponderantes: a de Pedro da Fonseca, te-
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ma da sua tese, e de dois dos principais
autores da Escola Lovainiense: J. Maréchal e P. Scheuer que, ao mesmo tempo
que procuravam revitalizar e atualizar o
estudo de São Tomás, abriam novos horizontes de diálogo com a filosofia contemporânea.
Ele mesmo testemunha a respeito de Pedro da Fonseca: «Fonseca é ainda hoje
para nós um Mestre e um estímulo do
nosso filosofar. Alma aberta à verdade,
buscou-a numa atitude digna de imitação. Foi respeitador mas manteve a
liberdade ainda perante as maiores autoridades: foram elas Platão, Aristóteles
ou São Tomás. Aparta-se a custo delas,
mas se as razões aduzidas o não satisfazem, procura superá-las ou modificá-las
de tal maneira que possam ser admitidas coerentemente. Este amor à verdade
é ainda para nós incentivo e exemplo»
[RPF, 16 (1960) 123].
Quanto aos padres P. Scheuer e J. Maréchal, convivera intimamente com eles
em Lovaina e, partindo de uma orientação tomista renovada deles, sempre em
diálogo com a filosofia contemporânea,
estabeleceu os horizontes da sua conceção da metafísica. De facto, em Lovaina
conhecera as célebres notas dactilografadas de P. Scheuer (que distribuiu aos seus
alunos em Braga ainda antes de serem
publicadas) e os livros ainda manuscritos de J. Maréchal. É da posição desses
autores e de Pedro da Fonseca que ele
parte e depois desenvolve, não sem certo aprofundamento e discussão original,
nos seus artigos da RPF, em parte reunidos no seu livro Metafísica (Braga, 1955).
Logo no primeiro artigo do primeiro
número da RPF (1945) cita P. Scheuer
e nesse mesmo número escreveu uma
Nota comovida ao receber a notícia do
falecimento de J. Maréchal (1878-1944),
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Ab ranc he s, Cassiano do s S antos
onde afirma que este infelizmente não
chegara a publicar o quarto caderno sobre Par-delà le Kantisme: Vers l’idéalisme
absolu que «certamente escreveu pois
tive o prazer de o ler em manuscrito».
Nessa Nota conclui: «Podemos divergir
da sua opinião; o que não podemos é
desconhecer a valiosa aportação que ele
trouxe à filosofia escolástica remoçando-a e pondo-a em condições vantajosas
para dialogar com as filosofias críticas.
J. Maréchal é, portanto, digno de toda a
nossa simpatia pelo esforço ingente de
se aproveitar do que havia de bom na filosofia kantiana para o assimilar à filosofia perene. Deste modo ela deixa de ser
uma filosofia rebarbativa, de vida oculta
nos meios de formação eclesiásticos, para sair à luz pública, mostrando sem medos nem receios a sua pujança e espírito
aberto a tudo o que for verdade, venha
ela donde vier» [RPF 1(1945) 397-398].
Cassiano Abranches, travando um diálogo aberto entre a metafísica e a filosofia contemporânea, repudiava promessas fixistas ou soluções dogmáticas,
tão frequentes na Escolástica até então,
e procurou dar fundamentação crítica à
sua metafísica que ele baseou na análise
da consciência, onde surge o problema
do valor crítico do sujeito e do objeto de
BIBLIOGRAFIA
Obras do autor:
Metafísica, Braga, Liv. Cruz, 1955; e vid. RPF,
Índices, t. 50, 1994, pp. 543-544.
Estudos:
Negreiros, Miguel de, «Dos seres ao Ser, itinerário metafísico da prova da existência de Deus
segundo Cassiano Abranches», RPF, t. 34
(1978), pp. 5-50; ibidem, pp. 114-115.
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conhecimento que está na origem da filosofia pós-kantiana. Por isso estabelece:
«Se quisermos fazer uma crítica segura
do conhecimento, precisamos de nos estabelecer na nossa consciência humana,
em exercício, como em terreno de análise crítica, entregando-nos à introspeção
vivida, procurando evidenciar tudo o
que o nosso ato de consciência contém
como valor ontológico e crítico» [«Conhecimento e Ser», RPF, 16 (1960) 123].
«Não podemos isolar, estaticamente, o
nosso ato de consciência, nem fecharmo-nos sobre as nossas próprias ideias
e sentimentos, sem o mutilarmos indevidamente. Nesse ato inelutável, insofismável, que eu vivo, une-se o mundo
do sujeito e o mundo do objeto, o real e
o ideal. Sujeito e objeto são interdependentes e unificados no meu ato de consciência, e só assim é possível o conhecimento humano. A consciência é o meio
que nos permite desenvolvermo-nos em
todas as direções, a partir de um centro.
O conhecimento atinge tudo, mesmo o
próprio ato de conhecer» (Ibidem). Estabelecendo a análise da consciência em
confronto com a Escola Eclética Francesa, que considerava a consciência como
uma faculdade distinta, com a consciência-relação de Spencer e Renouvier e a
opinião materialista monista, concluiu,
nas pisadas de Scheuer, que a consciência é a propriedade que possui o espírito de intuir o seu próprio ato no qual
o sujeito e o objeto formam uma única
realidade. Estabelecido este início crítico
entre conhecimento e ser, na consciência,
fácil se lhe torna logicamente determinar e desenvolver: ser e causalidade, ser
e finalidade, e dos seres ao Ser. Portanto,
para ele, a metafísica é uma ciência fundamental, exercida em toda a afirmação
intelectual, pois o sujeito imediato da
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Abravane l (ou Ab rab ane l) , Is aac b e n Je udá
metafísica é o espírito humano. E assim
a metafísica não é apenas essencialista,
mas também realista, objetiva, existencial.
A ação de Cassiano Abranches e dos seus
numerosos alunos foi central na formação da Escola Bracarense, logo Faculdade
Pontifícia de Filosofia (1947) e depois primeira Faculdade da Universidade Católica (1967). Em todo o caso é curioso observar que Cassiano Abranches, embora de
espírito aberto e dialogante, expôs o seu
pensamento sempre dentro da filosofia
neoescolástica, mas os seus alunos desenvolveram o seu pensamento e evoluíram
nas perspetivas atuais da filosofia contemporânea. Foi um mestre que não só
não impediu a evolução dos seus alunos,
mas também se propôs sempre, dentro de
um método filosófico rigoroso, abrir-lhes
horizontes novos e pessoais.
Lúcio Craveiro da Silva
Abravanel (ou Abrabanel),
Isaac ben Jeudá
(n. Lisboa, 1437 – m. Veneza, 1508)
Judeu português, considerado «luz do
Ocidente no Sefarad» (Hispânia), seria o
5.º membro ilustre da família Abravanel,
a crer num verso do poeta Francisco da
Silveira, incluído na «tenção» do «Cuidar
e Suspirar» do Cancioneiro Geral de Garcia
de Resende. Educado na sinagoga, por
José Chajun, foi homem da corte, financeiro, amigo, ou das relações dos letrados
lisboetas, como Fernão Lopes. Educado
como se fosse um príncipe, como «príncipe» o reconhecem todos os historiadores
da hebraicidade portuguesa. Falava e escrevia um excelente português, como se
verifica na «Epístola ao Conde de Faro»
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(Ed. de Joaquim de Carvalho, cf. Obras
Completas, vol. ii, 1982, pp. 115-126),
aquando da morte do sogro, um lamento
que parece anteceder a queixa do tempo
(telunah) de seu filho, Judá Abravanel
(Leão Hebreu). Parece não ter escrito
para judeus portugueses, do povo, mas
apenas para judeus de escol e de escola.
Apologeta, biblista, sionista e filósofo,
saiu do país por volta de 1481, vivendo
o resto da vida em Nápoles e em Veneza,
cidades onde redigiu as suas primeiras
obras, verdadeiras esculturas do hebraico restaurado. Como biblista, mestre de
catequese (hagadah), comentou o Pentateuco e os Profetas; como sionista, prevaleceu na exegese do Messianismo radical,
ordenando-o à salvação de Israel (v. g.:
Pregoeiro da Salvação, Mashmia Yeshuah,
que também se lê O Pregão de Josué), e na
defesa apologética da herança judaica, incluindo a sagrada liturgia. Como pensador exprime um aristotelismo medieval,
baseado no árabe, que vinha sendo ampliado desde a Escola de Tradutores de
Toledo, ou uma escolástica de transição
da Medievalidade para o Renascimento,
com incidências de Maimónidas, sobre-
BIBLIOGRAFIA
Obras do autor:
Isaac Abravanel / textes choisis, traduits de l’hebreu,
annotés et précédés d’une présentation par Jean-Christophe Attias, Paris, Cerf, 1992.
Estudos:
Gomes, Pinharanda, A Filosofia Hebraico-Portuguesa, Lisboa, Guimarães Editores,
1999, pp. 112-131; Carvalho, Joaquim de,
Obras Completas, vol. ii, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,1982; Netanyahu, Benzion,
Dom Isaac Abravanel: Estadista e Filósofo, trad.
Isaías Hipólito; rev. Catarina Silva Nunes,
Coimbra, Tenacitas, 2013.
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