SUZANO ANO 5 ISSN: 2176-5227 Nº 4 ABR. 2013 REVISTA INTERFACES 11 O conceito “uso” em dicionários monolíngues do espanhol Diógenes Caliari Armani Curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do sul - UFRGS ([email protected]) Resumo Algumas obras lexicográficas monolíngues de uso da língua espanhola almejam realizar, de acordo com aquilo que é apresentado no front matter desses dicionários (parte introdutória), uma descrição da língua. Entretanto, em determinados casos, é possível verificar que essas obras também assumem, implicitamente, uma postura que visa a uma orientação no que diz respeito ao uso linguístico, adotando, dessa forma, também um caráter prescritivo da língua. Isso faz com que haja uma divergência entre o que é inicialmente proposto pelos dicionários e o que é, de fato, apresentado ao longo dessas obras. Palavras-chave: lexicografia; dicionários semasiológicos; conceito uso Alguns dicionários monolíngues de língua espanhola se definem como sendo obras de uso do espanhol. No entanto, Zanatta (2009, p. 105-106) afirma que o conceito uso pode ser entendido sob dois aspectos distintos: a) diz respeito ao conjunto léxico realmente empregado pelos falantes de uma comunidade; sendo, assim, o conceito uso aqui entendido como uma representação da norma real da língua; e b) diz respeito ao uso que os nativos consideram como uma norma ideal, caracterizando-se, assim, como um conceito de viés normativo, que busca auxiliar os falantes quanto à adequação do uso da língua. Bugueño Miranda (2007, p.97) considera que o léxico registrado em um dicionário pode ser interpretado como um ato de linguagem com uma dupla intenção: legitimar a prática da língua, o que daria ao dicionário um caráter normativo, e legitimar as diversas formas da própria língua, caracterizando-se, assim, como uma obra descritiva. Portanto, o conceito uso denota dois conceitos simultâneos, podendo representar, em um primeiro momento, o conjunto léxico realmente empregado em sua diversidade por uma comunidade lingüística ou, em um segundo momento, uma posição que diz respeito a uma orientação no uso da língua, a fim de auxiliar os consulentes quanto ao uso recomendável do idioma. O objetivo do presente trabalho é avaliar a pertinência do conceito uso assumido, implicitamente ou não, na concepção dos dicionários aqui avaliados a partir dos seguintes parâmetros: a) O propósito almejado por tais obras lexicográficas em seus front matters, ou seja, na parte introdutória e b) Se as obras avaliadas realmente seguem a definição a qual se propõem. Como metodolo- gia, será feita uma comparação entre aquilo que é definido pelas obras lexicográficas analisadas em seu front matter e o que é apresentado, de fato, em tais obras. Para esse trabalho, serão avaliados os seguintes dicionários: - Diccionario de Uso del Español (DUEe, 2001); - Diccionario de Uso del Español de América y España (DUEAEe, 2003); - Gran Diccionario Usual de la Lengua Española (LaULE, 2006). Taxonomia dos dicionários avaliados Farias (2009) considera que uma taxonomia é uma ferramenta de grande importância no processo de concepção de uma obra lexicográfica, pois isso permite definir um dado tipo de dicionário em seus traços essenciais. A princípio, o estabelecimento de uma definição taxonômica serve de auxílio para determinar que tipos de segmentos informativos podem ser realmente funcionais ao público-alvo previamente determinado. A partir disso, é possível aferir com maior discernimento a real funcionalidade dos segmentos informativos dispostos nos verbetes de cada uma das obras lexicográficas aqui avaliadas. Portanto, as informações que um dicionário apresenta para os seus signoslema devem estar, teoricamente, em relação direta com a sua proposta taxonômica. A partir daquilo que é apresentado no front matter, os dicionários avaliados no presente trabalho podem ser dispostos, taxonomicamente, da seguinte maneira: 12 REVISTA INTERFACES SUZANO Dicionários de Língua Semasiológicos Monolíngues Para falantes nativos Gerais De uso DRAEe (2001) Descritivo Normativo DUEAEe (2003) LaULE (2006) DUEe (2001) Figura 1- Taxonomia dos dicionários avaliados Apresentação dos dicionários DUEe (2001) afirma em sua apresentação que o propósito central era fazer do dicionário não somente uma ferramenta para decifrar, mas uma ferramenta para cifrar, isto é, não para interpretar as palavras recebidas, mas para comutar a comunicação selecionando as palavras adequadas para sua emissão em mensagem . Neste dicionário, a denominação ‘uso’ aplicada significa que constitui um instrumento para guiar no uso do espanhol tanto aos que não o tem como idioma próprio como aqueles que o aprendem (...) . No que diz respeito a esta obra lexicográfica, é importante destacar duas considerações. Em primeiro lugar, DUEe (2001) se propõe a auxiliar o consulente no que diz respeito à adequação da linguagem no momento da emissão de uma comunicação. Portanto, há aqui um viés implicitamente prescritivo. Em segundo lugar, este dicionário, ao considerar que está direcionado tanto aos falantes nativos como aos aprendizes da língua, equipara, de maneira questionável, a competência na L1 e na L2, quando seria mais prudente estabelecer um perfil de usuário melhor definido, visto que os segmentos informativos necessários aos aprendizes de uma língua muitas vezes são dispensáveis aos falantes nativos. DUEAEe (2003), por outro lado, se descreve como um dicionário que pretende ajudar oferecendo uma descrição do que se poderia chamar espanhol comum atual. (...) A descrição do espanhol assim caracterizado se fez a partir de um distanciamento consciente [i.e. uma perspectiva ampla da língua], atendendo a zonas amplas e a países constituídos politicamente . DUEAEe (2003) se define, portanto, claramente como uma obra que pretende fazer uma descrição da lín- ANO 5 Nº 4 ABR. 2013 ISSN: 2176-5227 gua. No entanto, não expressa de maneira clara o que significaria esse distanciamento consciente adotado na concepção do dicionário. Podemos supor que houve um afastamento com o objetivo de se obter uma visão panorâmica e abrangente da língua, deixando uma análise mais detida dos fatos linguísticos em segundo plano. LaULE (2006), adota postura semelhante. Em seu front matter, o consulente é informado de que o objetivo de tal obra é oferecer informação precisa e detalhada sobre o uso e conteúdo do léxico da língua espanhola atual. (...) Por se tratar de um dicionário de uso do espanhol, se quis refletir também os aspectos mais vivos e cambiantes da língua: o léxico coloquial, a fala juvenil e familiar . Assim como DUEAEe (2003), LaULE (2006) também se posiciona de maneira clara como uma obra de viés descritivo. Em um primeiro momento, então, é possível concluir que há uma tendência, por parte dos dicionários aqui avaliados, de se definirem como obras descritivas da língua espanhola. A normatividade implícita Peruzzo (2007, p.74) afirma que, por mais descritivo que se declare, um dicionário é sempre tido por seus usuários como uma obra de referência, isto é, como ‘norma ideal’, pois se recorre a ele para se esclarecerem dúvidas – quanto à pronúncia, ortografia, significado e uso de determinada palavra. Zanatta (2009), por outro lado, considera que toda obra lexicográfica é normativa por natureza, ainda que não pretenda sê-lo, já que todo dicionário acaba sendo visto pelo falante como uma obra de referência e de autoridade. A referida autora apresenta seis níveis de organização da língua que podem estar presentes em um dicionário, os quais são: - Nível fonético-fonológico; - Nível ortográfico; - Nível morfológico; - Nível sintático; - Nível pragmático; - Nível léxico-semântico. Nível fonético-fonológico Apresenta informações tanto no que diz respeito à pronúncia dos signos-lema, através da transcrição fonética, como no que diz respeito às normas sobre a correta pronúncia de determinadas palavras (ortoépia). De acordo com Jackson (2002, p.102), o modo como uma palavra é pronunciada é um dos fatos idiossincráticos da língua. A pronúncia é o equivalente fonológico da ortografia . SUZANO ANO 5 ISSN: 2176-5227 Nº 4 ABR. 2013 No entanto, é possível constatar que as obras aqui avaliadas prescindem da transcrição fonética das unidades léxicas vernáculas, já que são dicionários voltados para os falantes nativos do espanhol. Nesses casos, a transcrição fonética é geralmente apresentada junto às unidades léxicas não-vernáculas, como pode ser evidenciado no exemplo abaixo: showman Presentador o animador de un espetáculo o número, en especial si interviene en él como estrella y si es experimentado o famoso: Ej.: Como un showman de categoría, ingenioso, picante, lleno de gracia y de ironía, sabía agradar al público. Observación Se pronuncia ‘shouman’. El plural es showmans o showmen. DUEAEe (2003, s.v. showman) Nível ortográfico Diz respeito aos segmentos informativos referentes à ortografia das palavras. O tratamento das variantes ortográficas, das formas homônimas ou parônimas e a separação silábica das unidades léxicas lematizadas configuram este nível de informação. Jackson (2002, p.101) considera que recorrer a um dicionário com a finalidade de verificar a ortografia de uma palavra representa uma das maiores necessidades de consulta por parte dos usuários . Hartman (2001 apud Farias (2009, p.140)) constatou que a prescrição ortográfica ocupa a segunda posição dentre as categorias de informações mais consultadas em um dicionário de língua. No que diz respeito à separação silábica, constata-se que os dicionários direcionados aos nativos da língua espanhola geralmente dispensam esse segmento informativo. Apresentamos, a seguir, exemplo de unidade léxica que apresenta variante ortográfica. darvinismo m. Biol. Teoria del inglés Carlos Darwin, según el cual la evolución de las especies orgánicas se produce en virtud de una selección natural de individuos debida a la lucha por la existencia y perpetuada por la herencia. = Darwinismo. - Neodarvinismo. DUEe (2001, s.v. darvinismo) No exemplo acima, o dicionário adota como forma ortográfica preferencial àquela escrita com a letra v. A forma ortográfica escrita com a letra w é válida, porém é considerada pelo dicionário em questão como forma variante, ou de menor prestígio. Nível morfológico Haensch (1982 apud Zanatta, 2009, p.129) REVISTA INTERFACES 13 subdivide este nível em elementos metalingüísticos e elementos lingüísticos. Os elementos metalingüísticos dizem respeito à classe gramatical das unidades léxicas de um dicionário. Jackson (2002, p.107) afirma que identificar a classe de palavra a qual cada lexema em um dicionário pertence é uma das tradições da lexicografia . Já os elementos linguísticos levam em conta as possíveis flexões dos signos-lema: a indicação de gênero, número e a flexão verbal. Observemos o exemplo a seguir: nupcias Boda, casamiento: se casó de segundas nupcias hace tres años. s.f.pl LaULE (2006, s.v. nupcias) Para o signo-lema nupcias, LaULE (2006) apresenta como elemento metalinguístico a classe gramatical (substantivo) e, como elementos linguísticos, a indicação de gênero (feminino) e número (plural) da unidade léxica acima reproduzida. Nível sintático Os segmentos informativos de cunho sintático em uma obra lexicográfica dizem respeito às concordâncias nominal e verbal, regências nominal e verbal e a valência verbal. Em relação às regências, Zanatta (2009, p.145) afirma que esse conceito pode ser estudado sob um viés amplo ou restrito. Em sentido amplo, se refere à subordinação sintática em geral. Já em sentido restrito, diz respeito à relação de dependência entre duas palavras em uma construção na qual uma palavra complementa a outra, geralmente por meio de uma preposição. A valência verbal é dada de acordo com o complemento exigido pelos verbos, ou seja, de acordo com a transitividade destes. O verbete reproduzido abaixo representa um exemplo de regência verbal: asistir 1 (< a >) intr. Acudir en cierto sitio y estar en él: ‘Asistieron a la ceremonia todas las autoridades. Asiste ala clase de inglés.’ (...) 2 tr. Contribuir con los propios medios o esfuerzos a que alguien salga de un apuro o mala situación. (...) DUEe (2001, s.v. asistir, ac. 1 e 2) Portanto, a regência do verbo asistir, quando expressa algo visto, presenciado, requer a preposição a, o que configura um caso de regência verbal (asistir a), como é possível verificar na acepção de número 1. Por outro lado, quando expressa auxílio, ajuda, constitui um caso de transitividade direta, o que fica evidente na segunda acepção do verbete. 14 REVISTA INTERFACES Nível pragmático Zanatta (2009, p.147) considera que deve ser considerado sob dois aspectos. Por um lado, há indicações referentes à norma linguística stricto sensu, apresentadas aos consulentes através de marcas de uso. Por outro lado, há informações com o propósito de auxiliar o falante a não cometer impropriedades sociais, ou seja, utilizar um vocábulo inadequado a determinado contexto discursivo. O verbo haber, por exemplo, quando usado para expressar a existência de algo deve ser utilizado sempre no singular: Hubo muchos heridos en el accidente . Esse tipo de informação também é realizado por meio de notas de uso; no entanto, não é considerada normativa stricto sensu. As notas de uso têm como finalidade fornecer informações adicionais com o intuito de explicitar particularidades do signo-lema. Contudo, ainda não há um consenso no que diz respeito ao tipo de informação passível de figurar nesse segmento (cf. Zanatta, 2009, p.156-157). Dentre as informações pertinentes ao nível pragmático estão marcas diacrônicas (relativas ao tempo); diafásicas (relativas à adequação da linguagem em relação ao contexto); diastráticas (relativas ao nível sócio-cultural) e diatópicas (relativas às distinções regionais ou entre países). Nível léxico-semântico No que diz respeito ao nível léxico-semântico, Zanatta (2009) destaca as informações relacionadas a lematização de neologismos. A referida autora considera que o registro de palavras novas no dicionário se configura em um ato normativo na medida em que, no momento da lematização desse tipo de signolema, há uma legitimação de tais unidades léxicas por parte do dicionário. Isso propicia aos consulentes maior confiabilidade no emprego dessas palavras. No entanto, Zanatta (2009) recomenda que seria prudente, por parte dos lexicógrafos, observar, primeiramente, o comportamento dos neologismos na norma real da língua antes da lematização de tais unidades léxicas, visto que pode ocorrer tanto a sua fixação no uso como pode haver uma efemeridade perante a língua. De acordo com a lista de abreviaturas dos dicionários avaliados nesse trabalho, os neologismos não são lematizados. Zanatta (2009, p.140) afirma que essa normatividade pode ser explícita ou implícita. É considerada explícita quando há no front matter, ou seja, na parte introdutória do dicionário, esclarecimentos ao consulente no que diz respeito ao funcionamento da obra em relação aos critérios adotados para a apresentação dos segmentos informativos presentes na microestrutura dos verbetes. Quando isso não ocorre, se trata SUZANO ANO 5 Nº 4 ABR. 2013 ISSN: 2176-5227 de uma normatividade implícita. Peruzzo (2007, p. 74) considera que ainda que se encontre nos sistema de ensino e nos meios de comunicação social uma forte tendência normativa, atendendo a um anseio legítimo, dificilmente um dicionário de língua geral assume abertamente essa postura. Tendo em vista as informações supracitadas, a próxima etapa desse trabalho levará em conta a relação entre o que é apresentado no front matter dos dicionários analisados e o implícito viés prescritivo das obras lexicográficas mencionado tanto em Zanatta (2009) como em Peruzzo (2007). DUEe (2001) Como foi mencionado anteriormente, na exposição da parte introdutória de DUEe (2001), esta obra lexicográfica apresenta um teor preponderantemente normativo, com a finalidade de auxiliar o consulente no que diz respeito ao uso adequado da língua conforme a situação comunicativa. De fato, essa normatividade realmente se verifica ao longo da obra. Observemos os exemplo a seguir: álgido,-a (del lat. <algidus>) 1 adj. Med. Acompañado de frío intenso en el cuerpo: ‘Fiebre álgida. Período álgido’. 2 Como esto suele ocurrir en el período agudo de una enfermedad, la palabra ha pasado a emplearse en el lenguaje corriente, incluso de los médicos, como equivalente a <culminante> o <máximo>, aplicada a cualquier clase de circunstancias, incluso a las que implican excitación o acaloramiento. DUEe (2001, s.v. álgido) Em s.v. álgido é possível perceber que, de acordo com a primeira acepção, o significado primário dessa unidade léxica diz respeito a um frio intenso. No entanto, um novo significado foi agregado, agora fazendo referência a um calor intenso, a uma excitação, como é evidenciado na segunda acepção do verbete. Nesse caso, o dicionário apresenta ao consulente uma informação de nível léxico-semântico, em que a adição de um novo significado a uma palavra representa um neologismo semântico . Então, uma frase como ‘La situación está álgida’ corresponderia ao português como A situação está quente, por exemplo. Partamos para outro exemplo em que se verifica uma informação prescritiva em DUEe (2001): haber (...). 8 Se usa con el significado de <existir, ser tenido o estar, celebrarse u ocurrir> siempre en singular aunque el nombre sea plural: ‘No hay dinero en la caja. Había SUZANO ANO 5 ISSN: 2176-5227 Nº 4 ABR. 2013 veinte personas en la reunión. Ayer hubo sesión en la Academia. Ha habido un choque de trenes. Alli no habia nadie. En esa tienda hay buenos géneros’. (...) DUEe (2001, s.v. haber, ac.8) Em s.v. haber, no momento em que o dicionário auxilia o consulente no que diz respeito à forma do verbo em relação ao significado que está sendo expresso na frase, é apresentada uma informação de nível sintático. Isso porque os verbos impessoais, assim como na língua portuguesa, geralmente suscitam uma dificuldade de cálculo por parte os falantes. É recorrente a formulação de sentenças como *Hubieron muchas tormentas el año pasado [*Houveram muitas tempestades no ano passado] quando o uso correto, nesse caso, seria Hubo muchas tormentas el año pasado [Houve muitas tempestades no ano passado], já que aqui o verbo denota a existência de algo. DUEe (2001), portanto, a princípio se propõe como um dicionário que tem como objetivo auxiliar seus usuários quanto a uma adequação do uso da língua e, de fato, ocorrem exemplos que justificam a proposta prescritiva da obra. DUEAEe (2003) REVISTA INTERFACES 15 que invitó a unas copas. Observación El plural es gachís. No verbete apresentado em gachí, constata-se uma orientação no uso da língua de nível ortográfico, já que o dicionário apresenta, sob a forma de uma observação, a forma ortográfica plural da unidade léxica em questão. Essa observação não foi apresentada à toa, já que a pluralidade no espanhol geralmente se manifesta através de três alomorfes: -s, -es e –ses. No entanto, é necessário ser feita uma ressalva a respeito desse fato. De acordo com o DPD (2005), os substantivos terminados em –í ou –ú tônicas, geralmente admitem duas formas de plural, uma com –es e outra com –s, embora na língua culta se costuma preferir a primeira (...). São vulgares os plurais terminados em –ses, como ‘gachises’ . Portanto, das duas formas possíveis para o plural de gachí, DUEAEe (2003) apresenta apenas uma, sendo que a outra forma, isto é, gachíes, é a mais recomendada segundo o DPD (2005). DUEAEe (2003), portanto, almeja, a princípio, fazer uma descrição da língua espanhola. Entretanto, também é possível encontrar ao longo da obra exemplos que têm como objetivo auxiliar os consulentes quanto ao uso da língua. LaULE (2006) No que diz respeito a sua introdução, DUEAEe (2003) tem como objetivo obter um caráter descritivo da língua espanhola. No entanto, também se faz presente, por vezes, um viés prescritivo da língua. Vejamos os exemplos a seguir: refanfinflarßVERBOßTRANSITIVOß%SPßßColoquialß No importarle absolutamente nada [una cosa] a una persona: Ej.: Esto me la refanfinfla. Observación Se construye siempre con un pronombre personal (me, te, se, ...) y el pronombre la. DUEAEe (2003, s.v. refanfinflar) Em DUEAEe (2003, s.v. refanfinflar), é possível destacar uma normatividade de nível pragmático e outra de nível sintático. No nível pragmático, ocorre uma orientação no uso da língua no momento em que o dicionário apresenta a marca de uso coloquial como um dos segmentos informativos que constituem o verbete. No nível sintático, o dicionário auxilia o consulente através de uma observação, indicando que tal unidade léxica deve ser acompanhada, em uma sentença, por um pronome pessoal seguido pelo pronome la. gachíß NOMBREß FEMENINOß %SPß ß #OLOQUIALß ßß Mujer o muchacha guapa y de lucimiento: Ej.: Conoció a dos gachís en la verbena, a las Assim como o DUEAEe (2003), LaULE (2006), em seu front matter, almeja realizar uma descrição da língua, incluindo em sua macroestrutura um reflexo da língua espanhola contemporânea de uma forma abrangente, procurando registrar não somente as ocorrências formais da língua, mas também o vocabulário coloquial utilizado pela comunidade. No entanto, também é possível encontrarmos informações que visam a orientar no uso da língua os consulentes de tal obra. Vejamos os exemplos a seguir: oler 1 Percibir una persona o un animal el olor. v. tr. 2 Intentar identificar un olor: el perro policía huele en busca de droga oculta. v. tr./ intr. (...) CONJ.: IND.: PRES.: huelo, hueles, huele, olemos, oléis, huelen. SUBJ.: PRES.: huela, huelas, huela, olamos, oláis, huelan. IMP.: huele, oled. LaULE (2006, s.v. oler) Ao final do verbete apresentado para o signo-lema oler é apresentada ao consulente uma informação de nível morfológico que diz respeito à conjugação do verbo em questão. Isso serve de auxílio aos usuários do dicionário, já que essa unidade léxica apresenta irregularidades em sua conjugação nos tempos presentes do indicativo e do subjuntivo. 16 REVISTA INTERFACES SUZANO disculpar 1 Dar razones o pruebas que descarguen a una persona de su culpa: se disculpó ante todos por haber creado aquel conflicto; se disculparon con los padres. v. tr./prnl. + de, con, ante LaULE (2006, s.v. disculpar) LaULE (2006, s.v. disculpar) apresenta um segmento informativo de nível sintático no momento em que se propõe a auxiliar seus consulentes no que diz respeito ao uso pronominal do verbo, que, nessa circunstância, deve ser acompanhado das preposições de, con ou ante. Novamente o dicionário tem como objetivo auxiliar no uso da língua os consulentes que recorrem a tal obra lexicográfica. Portanto, embora LaULE (2006) a princípio se apresenta como uma obra que visa a realizar uma descrição da língua espanhola atual, o dicionário adota, por vezes, também um viés prescritivo da língua, ou seja, uma orientação quanto ao uso da língua. Considerações finais Os resultados demonstraram que algumas obras lexicográficas de língua espanhola almejam realizar, a princípio, uma descrição da língua. No entanto, por meio da análise realizada neste trabalho, é possível aferir que, em determinados casos, esses dicionários assumem também um viés prescritivo, visando a uma orientação no uso da língua com o propósito de auxiliar os seus usuários. Isso legitima as conclusões estimadas por Peruzzo (2007) e por Zanatta (2009), que consideram que um dicionário é sempre associado por seus consulentes como um instrumento de referência da língua, o que acaba tornando uma obra lexicográfica, de uma ou outra maneira, normativa. No entanto, embora possa parecer evidente que um dicionário representa uma ferramenta à qual seus usuários recorrem com o objetivo de encontrar soluções às suas incertezas linguísticas, é possível constatar que há uma tendência, por parte dessas obras, de não assumir, inicialmente, um viés prescritivo. Há até aqui, portanto, duas perspectivas em jogo: a) a perspectiva do usuário e b) a perspectiva do lexicógrafo. Sob a perspectiva do usuário, vimos que este considera o dicionário uma ferramenta que deve esclarecer, da melhor forma possível, as suas dúvidas, sendo, pois, um instrumento de autoridade. Já sob a perspectiva do lexicógrafo, duas hipóteses podem ser consideradas: a) o lexicógrafo tenta fazer uma descrição da língua, unicamente ou b) De forma consciente ou não, o lexicógrafo adota, nos casos em que há uma prescrição, uma doutrina de orientação do uso da língua, ora de acordo com o DRAE, ora de encontro ao mesmo, fazendo com que os critérios utilizados nesse último caso fiquem pouco ANO 5 Nº 4 ABR. 2013 ISSN: 2176-5227 claros aos consulentes. Assim sendo, no momento da concepção de um dicionário de uso da língua, em primeiro lugar é preciso estabelecer se esse conceito dirá respeito ao uso efetivo da língua em uma comunidade, partindo, então, para uma descrição do idioma, ou se esse conceito dirá respeito ao uso considerado ideal, o que resultaria em uma orientação no uso da língua. Em seguida, há que se aplicar as seguintes variáveis: 1) a perspectiva do usuário, 2) a perspectiva do lexicógrafo e 3) a adoção de uma doutrina linguística. O usuário, como foi mencionado anteriormente, sempre procurará, no dicionário, orientação no uso da língua. No que diz respeito à doutrina linguística, a língua espanhola dispõe da RAE. A maior problemática está, pois, no que diz respeito à perspectiva do lexicógrafo, que deve definir, em primeiro lugar, se o dicionário será descritivo ou prescritivo. Sendo normativo, é imprescindível a adoção de uma doutrina linguística para nortear o seu trabalho, seja a doutrina da RAE ou distinta desta. Essas delimitações resultariam em uma maior coesão entre aquilo que é inicialmente proposto pelos dicionários e o que é, de fato, apresentado. Notas 1. [ El propósito central, vertebrador del libro, era hacer del diccionario no sólo una «herramienta» para descifrar, sino una herramienta para cifrar; esto es, no ya para interpretar las palabras recibidas, sino para conmutar la comunicación seleccionando las palabras adecuadas para su emisión en mensaje] 2. [La denominación «de uso» aplicada a este diccionario significa que constituye un instrumento para guiar en el uso del español tanto a los que lo tienen como idioma propio como a aquellos que lo aprenden y han llegado en el conocimiento de él a ese punto en que el diccionario bilingüe puede y debe ser substituido por un diccionario en el propio idioma que se aprende] 3. [ Este diccionario pretende ayudar ofreciendo una descripción de lo que se podría llamar español común actual. (...). La descripción del español así caracterizado se ha hecho desde un distanciamiento consciente, atendiendo a zonas amplias y a países constituídos politicamente] 4. [El Gran Diccionario Usual de la Lengua Española ha sido concebido con el objetivo de ofrecer al lector información precisa y detallada sobre el uso y contenido del léxico de la lengua española actual. (...) Por tratarse de un diccionariode uso del español, se ha querido reflejar los aspectos más vivos y cambiantes de la lengua: el léxico coloquial, el habla juvenil y familiar] 5. [ How a word is pronunced is one of its idiosyn- SUZANO ANO 5 ISSN: 2176-5227 Nº 4 ABR. 2013 cractic facts; it is the phonological counterpart of spelling (ortoghraphy)] 6. [Consulting the dictionary to check the spelling of words we also foud to be one of the major occasions of their use] 7. [It is one of the traditions of lexicography to identify the word class(es) or part(s) of speech that each lexeme in a dictionary belongs to] 8. [Houve muitos feridos no acidente] 9. Na edição aqui utilizada para a análise deste dicionário (2ª edição), o que é apresentado como acepção de número 2, em s.v. álgido, era exposto na edição anterior como nota de uso. 10. [Sustantivos y adjetivos terminados en -i o en -u tónicas. Admiten generalmente dos formas de plural, una con -es y otra con -s, aunque en la lengua culta suele preferirse la primera: bisturíes o bisturís, carmesíes o carmesís, tisúes o tisús, tabúes o tabús. En los gentilicios, aunque no se consideran incorrectos los plurales en -s, se utilizan casi exclusivamente en la lengua culta los plurales en -es: israelíes, marroquíes, hindúes, bantúes. Por otra parte, hay voces, generalmente las procedentes de otras lenguas o las que pertenecen a registros coloquiales o populares, que solo forman el plural con -s: gachís, pirulís, popurrís, champús, menús, tutús, vermús. El plural del adverbio sí, cuando funciona como sustantivo, es síes, a diferencia de lo que ocurre con la nota musical si, cuyo plural es sis ( l). Son vulgares los plurales terminados en -ses, como gachise]. Referências bibliográficas BUGUEÑO MIRANDA, Félix. (2007). O dicionário como reflexo da língua. Expressão-Revista do Centro de Artes e Letras. Santa Maria: UFSM, v. 1, p.97-105. DRAEo. REAL Academia Española. Diccionario de la Lengua Española. Disponível em: <http: // buscon.rae. es/draeI/>. DUEAe. VOX (2003). Dicionario de uso del español de América y España. Barcelona: SPES Editorial. CD-ROM DUEe. MOLINER, María (2001). Diccionario de uso del español. Madrid: Gredos. CD-ROM FARIAS, Virgínia Sita (2009a). Desenho de um dicionário escolar de língua portuguesa. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. JACKSON, Howard (2002). Lexicography: an introduction. London/New York: Routledge. LaULE. LAROUSSE (2006). Gran Dicionario Usual de la Lengua Española. São Paulo: Larousse Editorial. PERUZZO, Marinella Stefani (2007). Como lidar com os neologismos no texto jornalístico? 141f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Letras, Universida- REVISTA INTERFACES 17 de Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. ZANATTA, Flávia. (2010). A normatividade e seu reflexo em dicionários semasiológicos de língua portuguesa. Dissertação (Mestrado em Letras)- Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Informações sobre o autor Diógenes Caliari Armani Graduando de Licenciatura em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com ênfase em Língua Portuguesa, Língua Espanhola e suas respectivas literaturas. Bolsista voluntário de Iniciação Científica na área da Lexicografia, com participação em eventos de Iniciação Científica e outros artigos publicados nos campos lexicográfico e literário. Atualmente trabalhando, também, na rede de livrarias Saraiva. 18 REVISTA INTERFACES SUZANO ANO 5 Nº 4 ABR. 2013 ISSN: 2176-5227