CAMILA JANSEN DE MELLO DE SANTANA ESTADO ASSISTENCIAL E POBREZA SOCIAL (1937-1945) Monografia apresentada à disciplina de Estágio supervisionado em pesquisa histórica, como requisito parcial para a conclusão do curso de História do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Ribeiro CURITIBA 2004 Aos que acreditaram A mim ii AGRADECIMENTOS Agradeço aos que me acompanharam durante a faculdade, por me ajudarem a tornar esses anos de universidade mais interessantes. Aos meus amigos, pelas saídas, pelas mesas de bar, pelas risadas, pelas discussões filosóficas, ou nem tanto, nas mesas da cantina. Pelo ogrobol, que animou vários de nossos dias no início do curso. Aos amigos da faculdade que me ensinaram a beber (socialmente é claro!) e a dançar. Aos namorados pelo que deu certo ou nem tanto. À minha família por acreditar (e às vezes duvidar de mim). Ao orientador, Luiz Carlos Ribeiro, pela orientação precisa, acompanhamento de toda a realização deste trabalho e dificuldades que surgiram. A todos que me ajudaram na realização deste trabalho e a todos que virão. iii SUMÁRIO LISTA DE TABELAS ...................................................................................................... v RESUMO .......................................................................................................................... vi 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 01 1.1 A ASSOCIAÇÃO DAS SENHORAS DE CARIDADE DE SÃO VICENTE DE PAULO........................................................................................................................ 04 1.2 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DAS FONTES ...................................................... 06 1.3 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ................................................................................... 08 1.4 ESTRUTURAÇÃO DO TRABALHO ...................................................................... 14 2 UM ANTIGO DEBATE .............................................................................................. 15 2.1 IGREJA E ESTADO .................................................................................................. 23 3 ECLESIÁSTICO VERSUS SECULAR ..................................................................... 30 4 A TETRAFURCAÇÃO E O PONTO DE CONVERGÊNCIA ............................... 52 5 CONCLUSÃO .............................................................................................................. 70 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 73 iv LISTA DE TABELAS 1 TABELA DE SUBVENÇÃO FEDERAL .................................................................. 65 2 TABELA DAS CONTRIBUIÇÕES EM PROL DO NATAL DOS POBRES .......................................................................................................................... 68 v ESTADO ASSISTENCIAL E POBREZA SOCIAL (1937-1945) Autor: Camila Jansen de Mello de Santana Orientador: Luiz Carlos Ribeiro A relação entre a sociedade (principalmente os trabalhadores) e o Estado, durante o período do Estado Novo é apresentada, na historiografia especializada, de diferentes maneiras, as quais apresentam concepções diversas e ás vezes opostas. Apresento duas correntes historiográficas sobre o Estado Novo, a primeira, apresentada por Francisco Weffort e Bóris Fausto, está fundamentada na concepção marxista-leninista da história.. A segunda estabeleceu-se como uma crítica a esta e estará representada pelos estudos de Jorge Ferreira e Ângela Castro Gomes. É nesta segunda interpretação que meu estudo está baseado. Retomando estas análises a respeito da experiência populista no Brasil, apresento estes trabalhadores exteriormente à relação capitaltrabalho e desta maneira se torna possível a inclusão, no debate historiográfico, dos pobres e doentes carentes, os quais muitas vezes não possuem vínculo com empresas e indústrias, formando um “novo” ator histórico. Apresento os indivíduos pobres como atores históricos conscientes de sua situação de pobreza e reivindicantes de seus direitos, contudo, esses indivíduos despossuídos não se encontravam suficientemente unidos a ponto de se organizarem como classe. A importância da “questão social”, que havia sido introduzida pela Igreja Católica, surge na sociedade brasileira, despertando o interesse do Estado e acarretando o surgimento de instituições especialmente desenvolvidas para o atendimento das demandas dessa população carente. É nas instituições de assistência social que estes “novos” atores sociais encontram a estrutura organizativa através da qual apresentar suas reivindicações ao Estado, pressionando-o a ponto deste ser obrigado a atender ás demandas desta população. Baseando-me nesta leitura apresento dois questionamentos: (1) “Quais as medidas que o Estado centralizador tomou, durante o período histórico denominado Estado Novo, que representaram as relações entre o governo federal e os pobres e doentes carentes? (2) Por que motivo estes indivíduos despossuídos encontravam-se, até o presente momento, marginalizados na historiografia especializada sobre o período?”. Na tentativa de responder estas questões busquei uma instituição de assistência social existente e ativa no período, possuidora de relações com o Estado e que apresentasse documentação farta deste relacionamento. Selecionei, dentre as diversas instituições existentes no período, a Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, que possuía os quesitos acima apresentados. Como resultado ao primeiro questionamento encontrei, dentre as fontes utilizadas, políticas governamentais especialmente desenvolvidas para o atendimento das demandas desses indivíduos carentes. De posse destes dados apresento uma interpretação própria para a ausência destes atores históricos do debate historiográfico especializado no período do estadonovista. PALAVRAS-CHAVE: Estado Novo, Assistência Social, Pobreza vi INTRODUÇÃO O Estado Novo, termo utilizado para denominar o regime político conduzido por Getúlio Vargas no Brasil entre os anos de 1937-1945, representa um dos períodos históricos nacionais mais fecundos, no que concerne à realização de análises e estudos científicos. Geralmente estes estudos se concentram na abordagem dos campos político e econômico, ou ainda, ideológico. Com relação ao primeiro campo, podemos destacar a obra de Luiz Werneck Vianna, Liberalismo e Sindicato no Brasil1, enquanto o estudo de Pedro César Dutra Fonseca, Vargas: o capitalismo em construção2, caracteriza-se por uma abordagem economicista. Por último, analisando o Estado Novo por um viés ideológico, podemos referenciar Pobreza Política de Pedro Demo3. Mas se tantos estudos, por enfoques distintos, foram realizados, por qual razão haveria a necessidade ou interesse de se retomar uma leitura analítica do período em questão? Há duas justificativas para tal, (1) a evidência da existência de atores sociais não considerados na historiografia brasileira das décadas de 60 e 70 a respeito do Estado Novo. Esses estudos, realizados por historiadores cujo expoente está representado nas figuras de Octávio Ianni, Boris Fausto e Francisco Weffort, têm uma matriz marxistaleninista, ou seja, estão presos a uma vertente historiográfica na qual as lutas de classes eram bem delineadas e representadas por seus atores históricos. Nesta concepção histórica a classe operária aparece como agente da transformação histórica. Desta maneira, ao transportarem a teoria marxista para a realidade brasileira das décadas de 30 e 40, os citados autores não conseguiram encontrar na sociedade brasileira uma definição de classe ou de lutas sociais como os da representação teórica. Em decorrência disso, aqueles autores passaram a defender que o Estado foi o principal ator histórico do Estado Novo, 1 VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. 4 ed., rev. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999 2 FONSECA, Pedro César Dutra. Vargas: o capitalismo em construção: 1906-1954. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989 2 diante do qual as demais classes sociais encontravam-se subjugadas. Na realidade brasileira esta representação se dava no mundo do trabalho da época (operariado urbano), que diferentemente da teoria marxista na qual os historiadores já citados estavam baseados, encontrava-se pouco politizada e fragilmente organizada nos sindicatos, os quais, por sua vez, encontravam-se atrelados à máquina estatal. Esta reflexão me leva à segunda justificativa para realização deste estudo. Tomando a concepção histórica de Thompson, pretendo desenvolver uma análise da sociedade brasileira dos anos 37-45 a partir de uma interpretação diferente da realizada pelos historiadores já citados, objetivo interpretar as relações sociais, moral, crenças sem tocar na relação com o mundo do trabalho. Os atores históricos que constituirão a base de análise deste trabalho será o Estado, a burguesia agrária, os industriais, a Igreja e, os indivíduos pobres e despossuídos, que nas análises anteriores estavam inseridos no mundo do trabalho, junto aos operários e que passarão a ser analisados como grupo social sem o foco na relação entre Capital e Trabalho. Serão analisados como um grupo social constituído por indivíduos pobres e doentes que muitas vezes não se encontravam empregados em indústrias, mas desempregados (e portanto, à margem das relações estabelecidas entre Capital e Trabalho, importantes na sociedade brasileira em modernização) e dependentes econômica e socialmente da caridade exercida pelos agentes de outras camadas sociais ou pelo próprio Estado. Ou seja, propõe-se neste trabalho científico, estudar o período do Estado Novo pela temática social, analisando-se as políticas sociais da Ditadura Varguista, mais especificamente em relação a estes atores históricos que pobres. Sendo assim, meu objeto de estudo será a análise das relações estabelecidas entre estes atores históricos - que serão introduzidos no debate já construído sobre a experiência populista brasileira, através da organização da sociedade civil responsável pelas ações sociais das quais, como salientado anteriormente, esta camada social encontrava-se dependente - com o Estado. 3 DEMO, Pedro. Pobreza política. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1990 3 O objetivo deste trabalho é a análise das relações entre o Estado e as organizações de assistência social no Brasil durante o período do Estado Novo. Centralizarei minha análise na Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, instituição centenária que possui sede na cidade de Curitiba e que, por manter forte relação com a União durante os anos de 1937-45, caracteriza-se em fértil objeto de estudo. Portanto, se constitui em problemática deste estudo monográfico a análise das medidas políticas estatais voltadas ao universo assistencialista e ao auxílio dos pobres e doentes carentes, que encontrar-se-ão representados pelos protegidos da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, camada social não inserida no debate a respeito do Estado Novo realizada pelos teóricos das décadas de 60 e 70. Como já explicitado, o descarte da via assistencial nos estudos desses historiadores, deve-se ao fato de que, voltados à teoria marxista, e não encontrando referenciais reais que condizessem aos movimentos sociais representados teoricamente, esses historiadores ignoraram uma parcela dos atores sociais da época, por estes não se constituírem numa classe social organizada e politizada, mas sim um conjunto de pessoas que dependiam, sócio-economicamente da assistência e das organizações de caráter assistencial constituídas pelas demais camadas sociais. Para tanto assumiremos as experiências destes indivíduos com sua situação de pobreza e as medidas de auxílio apresentadas pela Associação de São Vicente no atendimento das demandas sociais destes pobres carentes, para estabelecer uma análise da relação destes atores sociais com o Estado. A problemática que permeia este trabalho está representada no seguinte questionamento: “Quais as medidas que o Estado centralizador tomou, durante o período histórico denominado Estado Novo, que representaram as relações entre o governo federal e os pobres e doentes carentes - até o momento marginalizados na historiografia brasileira especializada do período, porque acreditava-se serem desmobilizados e pouco politizados – e que neste trabalho serão representados pelo universo de pobres e doentes atendidos pela Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo?” Na tentativa de 4 responder a esta questão e atingir o objetivo proposto utilizarei diversas fontes, tanto governamentais quanto as produzidas pela Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, doravante denominada Associação de São Vicente. A Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo O que é a Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo? Qual seu público alvo? Quais seus objetivos? De que maneira atua? Quem compõe seu quadro social? A Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, fundada em Curitiba no ano de 1900, situa-se na cidade de Curitiba, à rua Visconde de Guarapuava no bairro Batel e, na realidade, é uma instituição que reúne todas as demais organizações de Curitiba que se espelhem na obra de São Vicente de Paulo. Para melhor compreender a finalidade a que se destina esta instituição é interessante conhecer um pouco sobre a figura do inspirador da instituição: São Vicente. São Vicente de Paulo nasceu na França em 1576 em uma família de humildes posses. Durante sua vida enfrentou muitas provações, como inclusive o trabalho escravo e as galés. Tendo recebido educação religiosa desde pequeno, ingressou nos cursos de Teologia das Universidades de Saragoza e Toulouse. Sempre se dedicou ao auxílio aos pobres, enfermos e necessitados em geral, principalmente crianças e mulheres. Fundou algumas congregações e dirigiu outras, porém a que mais nos interessa em relação ao objeto deste trabalho é a fundação de uma congregação de senhoras que têm como insígnia o auxílio aos menos afortunados, pobres e enfermos, por ele fundada no século XVI e que denominava-se Confrarias de Caridade. Seu projeto tinha por objetivos: Ajudar os pobres a descobrir sua dignidade e reconciliá-los com eles mesmos; Não deixá-los isolados mas insistir para que vivam em solidariedade; Reintegrá-los como sujeitos e “não fazer em seu lugar” ou atuar por eles; Favorecer sua auto-promoção e assim promover melhores condições de vida; 5 Fazê-los descobrir que são amados por Deus e ajudá-los a conhecer melhor este Deus na pessoa de seu Filho Jesus Cristo. Evangelizá-los.4 Desde o século XVII, quando foi fundada esta congregação seus principais objetivos5 eram o auxílio e o conforto de pessoas que se encontrassem desprovidas de dinheiro ou saúde. Este objetivo tem perpetrado até os dias atuais e permeia as ações da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, que sempre teve seu quadro social formado por damas da sociedade curitibana, senhoras pertencentes às classes abastadas da capital paranaense. Este aspecto, aliás, é resultado da forte presença de Santa Luisa de Marillac, primeira mulher pertencente aos altos círculos sociais franceses que foi chamada a trabalhar conjuntamente com São Vicente de Paulo em seu projeto humanitário. Esta senhora tinha por insígnia recrutar outras damas da sociedade francesa para auxiliarem, voluntariamente, nos objetivos da Confraria de Caridade. A principal ação dessas Damas de Caridade constitui-se na visita ao domicílio dos pobres atendidos pela entidade, para prestar auxílio e avaliar se ainda havia a necessidade daquele domicílio continuar sendo auxiliado pela Associação de São Vicente. As famílias pobres auxiliadas pela Associação de São Vicente recebem um cartão, o qual atesta às voluntárias que as visitarem, o fato de que aquele domicílio está “protegido” pela Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo. Essa prática surgiu ainda com São Vicente, no século XVI, e até hoje permeia as ações da Associação. Os tipos de auxílio mais freqüentes prestados pela entidade são internação em hospitais, realização de funerais dos seus protegidos, distribuição de gêneros e vestes uma 4 Mensagem da presidente nacional da Associação Internacional de Caridade do Brasil – AIC (atual denominação da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo), Aldacy Raposo Nascimento, presente em: Edição comemorativa do Centenário da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo. 100 anos: 1900-2000. Conselho Arquidiocesano das Associações de Caridade de São Vicente de Paulo. 2000, Pg.10 6 vez por mês e no Natal. Além dos domicílios “protegidos”, também os pobres denominados “avulsos”, podem recorrer à Associação quando há essa distribuição mensal, porém a esses pobres é distribuída uma quantidade de senhas, que uma vez acabada, não tornam a ser distribuídas, a não ser no mês seguinte, práticas presentes até hoje. Mas o que define a Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo como uma entidade de Assistência Social e não de filantropia, por exemplo? Existe uma grande diferença entre uma ação de assistência social e outra de filantropia. A assistência social objetiva desenvolver o indivíduo assistindo-o material e espiritualmente, orientando-o nos hábitos de saúde e higiene, alimentação e relações familiares, ou seja, busca-se, com a assistência social, desenvolver o indivíduo assistido para que este se torne melhor preparado para enfrentar sua situação de pobreza ou enfermidade e para que este busque melhorar suas condições de vida através de ações próprias, evitando a “mendicância profissional”6. Por outro lado, as ações de caráter filantrópico, tendem a resolver o problema material imediato, sem a preocupação de desenvolver o indivíduo para que este busque a solução para a sua situação de pobreza. O socorro oferecido em ações filantrópicas, não buscam desenvolver espiritualmente ou moralmente o indivíduo, mas apenas auxiliá-lo materialmente. Apresentação e análise das fontes A Edição comemorativa do centenário da Associação de São Vicente, publicada em 2000, fornece algumas das fontes que serão utilizadas neste trabalho monográfico. De caráter histórico, esta publicação apresenta, de maneira sucinta, os principais fatos que marcaram a história desta instituição de assistência social, onde podemos encontrar, por 5 “As visitas aos domicílios dos doentes pobres, que é o principal objetivo da Associação, têm sido desempenhadas à risca e com o maior desvelo”. 100 anos: 1900-2000. Conselho Arquidiocesano das Associações de Caridade de São Vicente de Paulo. Pg..4. 7 exemplo, a transcrição de alguns dos documentos que compõem o registro histórico desta Associação, como a Ata de Fundação da Sede própria da Associação de São Vicente7 e mesmo a Ata de Fundação da Associação em Curitiba, assim como documentos de outras entidades e empresas que salientam o trabalho da Associação de São Vicente. A dita publicação também disponibiliza breve biografia de São Vicente de Paulo, fundador da então Confraria de Caridade, e de Santa Luiza de Marillac. Para a análise da vida social e funcional da Associação de São Vicente, utilizarei os livros de Atas das reuniões mensais (período de 1937-45) da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, os quais fornecem relatos do quadro social da entidade, as melhorias físicas da Associação de São Vicente, assim como o universo de seus “protegidos”. Destacam-se também os relatos dos despachos feitos durante estas reuniões mensais e a troca de correspondências entre a Associação de São Vicente e outros órgãos, instituições e empresas, o que possibilita a reconstituição de parte da rede de contatos da referida entidade. Dando continuidade ao mesmo intuito de estudar o universo de relações da Associação de São Vicente, tomarei como objeto de análise os Livros Caixa da entidade de assistência social referentes ao período recortado, os quais me fornecerão os dados econômicos destas relações. Ou seja, os recebimentos e gastos da instituição, os quais evidenciam seus parceiros comerciais e ou subvencionais. Relativamente à documentação governamental, constituir-se-ão fontes para este trabalho de pesquisa, as Constituições Federais de 1934 e de 1937, assim como o DecretoLei 3.200 de 1941. Com relação às Constituições, estas me fornecerão dados indicativos da política social do Estado, assim como dados para a interpretação das relações da União com as classes empresarial e trabalhadora. Também estas fontes me disponibilizam dados comparativos da relação do Estado com a Igreja Católica em dois momentos diferentes: 6 ANDREATTA, Roldite. Terceiro setor:responsabilidade social e voluntariado. Curitiba: Champagnat, 2001.Pg. 14 7 Edição comemorativa do Centenário da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, 2000 8 1934 e 1937. A Carta de 34 ficou conhecida como a Constituição Social devido ao seu caráter assistencial, endereçando à Igreja vários privilégios e direitos, enquanto que a Constituição de 1937 retirou muitos dos direitos que haviam sido concedidos á Igreja com a Carta de 34. Sendo assim a Carta de 34 era predominantemente preocupada com a questão social e estabelecia uma relação facilitada entre o Estado e a Igreja Católica, a Constituição de 1937 retirava muitas das conquistas eclesiásticas concedidas, o que atinge o campo social, já que a Igreja, atendendo a interesses estatais, era a principal instituição responsável pelo assistencialismo, e através do qual o Estado aplicava muitas de suas políticas sociais. Cabe ainda destacar o Decreto-Lei 3.200 de 1941, que trata da subvenção estatal às famílias numerosas em estado de pobreza e às instituições assistenciais voltadas ao atendimento deste público. Sua importância deve-se ao fato de que a Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo foi agraciada com este Decreto-Lei. Revisão Bibliográfica Além das fontes já mencionadas, utilizarei, para embasar este estudo monográfico, bibliografia diversa que trata do período histórico recortado ou que estuda as relações do Estado com as classes sociais (empresariado e trabalhadores) de interesse desta análise, além de bibliografia que discuta a relação do Estado com a Igreja Católica. A obra de Francisco Corrêa Weffort, O populismo na política brasileira, de 1978, é uma coletânea de textos e artigos escritos pelo autor e apresentados no Brasil e/ou no exterior, sendo que alguns eram inéditos no Brasil. Nestes artigos encontram-se os fundamentos para uma teoria que se tornou a base explicativa para a experiência populista brasileira, onde Weffort tomou as classes e grupos sociais como atores históricos. Estes artigos surgiram da necessidade emergencial de se explicar as origens do Golpe de 64, as quais, segundo Weffort, estavam localizadas na Revolução de 30 e perpassavam toda a história nacional desde então. Weffort foi responsável pela criação do conceito de Estado 9 de Compromisso, o qual, passou a ser, desde então, rediscutido e analisado e configurou o ponto de partida para toda uma historiografia sobre o fenômeno do Estado Novo8. Também relacionadas ao estudo das relações sociais e políticas que caracterizaram o Estado Novo, foram selecionadas duas obras bibliográficas cujo organizador foi Boris Fausto, os volumes 3 e 4 de História geral da civilização brasileira, tomo 3 – O Brasil Republicano. Esses dois volumes fazem parte de uma coleção, publicada entre os anos de 1960 e 1983, composta por 11 volumes, os quais, na realidade, são um conjunto de diversos estudos realizados por diferentes especialistas das Ciências Humanas, referentes ao período republicano da história nacional. No terceiro volume estão os trabalhos científicos direcionados à análise social e política do período republicano, mais precisamente referindo-se ao período delimitado pelos anos de 1930-1964, enquanto que no quarto volume, cujo período recortado permanece o mesmo, a abordagem temática enfatiza os aspectos econômico e cultural. Sua temática ampla e a possibilidade de se estudar as diferentes interpretações de estudiosos detentores de enfoques tão distintos a respeito do mesmo período histórico, fazem destes volumes parte fundamental para se compreender o período do Estado Novo. A obra de Luiz Werneck Vianna, Liberalismo e sindicato no Brasil, foi escrita na década de 70 e, por enxergar o fenômeno populista brasileiro por um outro viés, principalmente no tocante à classe operária, é de grande relevância para este trabalho. Vianna faz parte de um grupo de estudiosos que interpretou “a consciência de classe (dos trabalhadores) como algo que se define como uma complexa interação com o Estado e os empresários”9. Ou seja, ao contrário do que a historiografia defendia até a década de 70, Vianna demonstra que o Estado não se constitui, durante o período populista brasileiro, como o único ator histórico existente e/ou relevante. Ao contrário, Vianna salienta que, embora o Estado tenha ocupado um lugar de destaque nas interpretações até então formuladas sobre o regime populista no Brasil, a classe operária encontrava-se sim 8 WEFFORT, Francisco Corrêa. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978 10 organizada, consciente, e apta a estabelecer uma relação com o Estado, capaz de pressioná-lo a atender algumas de suas reivindicações. Como muitos outros autores, Vianna escreveu, durante um período de ditadura militar, sobre o período histórico da ditadura Vargas, já que escrevendo sobre um regime ditatorial anterior àquele no qual se achava inserido, podia discutir assuntos que tocavam a sua atualidade (quando escreveu a obra), criando uma ponte entre estes dois períodos políticos da história nacional, com as características comuns desses dois momentos autoritários10. Publicação mais recente sobre o populismo, O populismo e sua história é uma coletânea de estudos sobre o “populismo na política brasileira”11, que foi organizada por Jorge Ferreira. Esta coletânea reúne trabalhos de diversos estudiosos das Ciências Humanas que, trabalhando sob diversos enfoques, buscam interpretar a origem do populismo no Brasil, suas características, o surgimento e a história do conceito. Todos estes trabalhos têm uma característica em comum: rediscutem as interpretações até o momento estabelecidas sobre o fenômeno do populismo no Brasil e na América Latina, criticando a concepção marxista-leninista na qual estavam baseadas as obras de Weffort e Bóris Fausto. Esta coletânea sofreu influências do pensamento thompsoniano e é este caráter inovador que merece destaque neste nosso trabalho, por lançar novo fôlego na discussão sobre o regime populista no Brasil. No que concerne a uma discussão mais conceitual e política, utilizarei o trabalho de Pedro Demo, Pobreza Política, para abordar as relações da política assistencialista do 9 FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa: o populismo na política brasileira. In: FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001. P. 106. 10 A este respeito o autor afirma, no prefácio à 4ª edição de sua obra, que escrever Liberalismo e Sindicato no Brasil foi um ato de resistência. VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. 4 ed., rev. Belo Horizonte: ed. UFMG, 1999. Pp.16-17 11 Expressão cunhada por Francisco Corrêa Weffort, quando da publicação de um artigo homônimo e que se constituiria, mais tarde, no título de uma coletânea de artigos e estudos realizados pelo autor a respeito do tema. 11 Estado e a participação social dos “politicamente pobres”12. O autor se propõe a discutir o conceito de pobreza política no Brasil, concentrando-se principalmente na presença ou ausência de ação desses “pobres políticos” em relação às políticas assistencialistas do Estado, discussão importante para este trabalho científico pois aborda a participação popular na política brasileira com relação ao Estado centralizador, e em relação as políticas assistencialistas13 apresentadas tanto pelo Estado quanto pelas demais camadas sociais. A bibliografia apresentada até o momento trata da discussão historiográfica a respeito da experiência populista e do período do Estado Novo no Brasil, resta apresentarmos a bibliografia referente ao tema do assistencialismo, do atendimento às demandas sociais por recursos – humanos, materiais e espirituais – ao quais parcela da população brasileira não tinha acesso no período delimitado, e que continua não tendo acesso até hoje. A relevância de uma bibliografia especializada sobre o tema do assistencialismo dá-se na medida em que, será através do estudo das relações estabelecidas entre uma entidade de caráter católico de auxílio à sociedade – a Associação de São Vicente – com o Estado, que pretendo inserir novos atores históricos no debate historiográfico sobre o Estado Novo. Passemos à análise das obras. O estudo de Leilah Landim Para além do Mercado e do Estado? Filantropia e cidadania no Brasil, editado em 1993, foi apresentado quando de seu doutorado, e foi pioneiro na pesquisa sobre as organizações da sociedade voltadas ao atendimento das demandas sociais. Foi a primeira vez que se publicou, no Brasil, uma obra que tratasse do 12 Quanto ao conceito de “pobre político”, Demo apresenta a seguinte definição: “(...) a pessoa privada de sua cidadania, ou seja, que vive em estado de manipulação, ou distituída da consciência de sua opressão, ou coibida de se organizar em defesa de seus direitos”. Pg. 7. E ainda, “É politicamente pobre aquela sociedade tão debilmente organizada, que não passa de massa de manobra nas mãos do Estado e das oligarquias, e que, por isso, não consegue construir representatividade legítima satisfatória em seus processos eleitorais, com líderes excessivamente carismáticos ou caudilhescos, com serviço público marcado pela burocratização, pelo privilégio e pela corrupção”. DEMO, Pedro. Pobreza política. São Paulo: Cortez: AUITORES Associados, 1990. Pg. 20. 13 O conceito de assistencialismo utilizado neste trabalho refere-se à assistência social, a qual assumo como sendo um serviço gratuito destinado ao auxílio e atendimento das necessidades daqueles indivíduos que não têm recursos suficientes. 12 denominado Terceiro Setor nacional. De caráter histórico, esta obra acompanha o surgimento e estabelecimento de instituições assistenciais no país, traçando uma trajetória histórica. No capítulo que aborda as relações entre essas instituições e o Estado Novo, Landim questiona as relações estabelecidas entre eles, discutindo momentaneamente os benefícios dessa relação para ambos. Tratando do universo da assistência social, Relações sociais e serviço social no Brasil: Esboço de uma interpretação histórico-metodológica14, obra de Iamamoto e Carvalho editada em 1982, objetiva analisar a criação e consolidação do Serviço Social no Brasil. O enfoque dado pelos autores é marxista, relacionando o serviço social com as relações mercadológicas e políticas dos anos 1930-1960. Os autores partem do pressuposto de que o serviço social surgiu como uma forma de dominação das classes trabalhadoras pelas classes dominantes, apresentando também uma análise das relações entre Igreja e Estado diante do aprofundamento e fortalecimento do capitalismo nacional. A primeira discussão estabelecida pelos autores, a respeito da utilização de obras assistenciais com o intuito de se controlar e subjugar as classes trabalhadoras, condiz exatamente com as primeiras interpretações apresentadas a respeito do fenômeno populista, onde se via o Estado como único ator histórico consciente, capaz de controlar as demais classes sociais existentes. Já a discussão estabelecida pelos autores sobre as relações entre a Igreja e o Estado durante o Estado Novo, apresenta uma interpretação dual, ou seja, caracteriza esta relação como uma via de mão dupla, onde cada instituição, governamental ou eclesiástica, luta por manter e expandir sua hegemonia sobre parcelas da sociedade , contudo mantendo uma cordial proximidade entre si. Esse debate será um dos pontos chave da discussão que será apresentada neste trabalho. Destaco ainda, Terceiro Setor, responsabilidade social e voluntariado15, obra editada em 2001 e de autoria conjunta de Elisabete Regina de Lima Borba, Lenyr 14 IAMAMOTO, M. V. e Carvalho, Raul de. Relações sociais e serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez; [Lima, Peru]: CELATS, 1982 15 BORBA, Elisabete, Borsa, L., e Andreatta, R. Terceiro Setor, responsabilidade social e voluntariado, Curitiba:Champagnat, 2001 13 Rodrigues Borsa e Roldite Andreatta. As autoras, todas com formação universitária em Serviço Social, discutem o conceito de assistência social a partir da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo. Apresentam ainda, conceitos de voluntariado e responsabilidade social, além de traçar uma rápida retrospectiva das políticas sociais brasileiras desde o descobrimento. Referente à análise das relações entre Igreja e Estado, tema que permeará este trabalho devido ao fato de que a Associação de São Vicente ser uma entidade mantida pela Igreja através de valores e moral católicos. Temos, neste tocante, três obras, apresentadas abaixo. Alcir Lenharo, em Sacralização da Política16, onde discute o estabelecimento do regime populista no Brasil tem como atores principais a Igreja e o Estado. Essa relação secular-eclesiástica e a abordagem, por parte do autor, das diferentes características e políticas estatais utilizadas para legitimar o regime populista no Brasil formam o corpo principal, o eixo de desenvolvimento da citada obra. O interesse para esta Monografia recai, principalmente, no estudo das relações entre a Igreja e o Estado, devido às ações tomadas por ambos, na tentativa de se manterem no poder, fortalecendo-se e atacando-se mutuamente. No tocante ao estudo destas relações de interesses, saliento ainda a importância de A Igreja e as crises políticas no Brasil. De autoria de Paulo José Krischke17, este estudo busca, através de fontes eclesiásticas, interpretar as relações estabelecidas entre a Igreja e o Estado, analisando principalmente as ações eclesiàsticas tomadas em prol da sustentação do Estado e as pressões que a Igreja exerceu junto ao governo federal. Finalmente, temos Brasil: Igreja contra Estado: crítica ao Populismo católico, de autoria de Roberto Romano. Esta obra propõe o estudo das relações mantidas entre Igreja e Estado no Brasil durante toda a história nacional, traçando uma trajetória que passa pela 16 17 LENHARO, Alcir. Sacralização da política. 2ª ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 1986 KRISCHKE, Paulo José. A Igreja e as crises políticas no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1979 14 ideologia católica, a união entre Igreja e Estado, a separação destes, a penetração da Igreja na sociedade brasileira e suas principais políticas. Estruturação do trabalho Este trabalho encontra-se dividido em três capítulos, metodologicamente estruturados para apresentação do tema partindo do geral para o específico. Desta maneira o primeiro capítulo abordará as políticas assistencialistas do Governo Federal durante o Estado Novo, assim como as relações do Estado com os diferentes grupos sociais do período. Neste capítulo encontrar-se-á uma discussão a respeito dos sindicatos: quem os compõem; quais as principais reivindicações dos trabalhadores que estão afiliados a estas organizações e de que maneira o Estado regulamentava suas ações. O segundo capítulo, analisará as relações entre o Estado e a Igreja, tendo por base o estudo comparado das Constituições Federais de 1934 e 1937. Através das Cartas Constitucionais pretendemos abordar a relação Igreja – Estado, que servirá de base para a análise específica da Associação de São Vicente e sua relação com o Estado. A ideologia católica também será abordada, assim como suas relações com as demais camadas sociais, trazendo à discussão os pobres carentes, atores históricos que serão somados à discussão historiográfica já estabelecidas sobre o Estado Novo. O terceiro capítulo centrará uma análise particular nas relações da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo com o Estado, onde serão utilizados documentos produzidos pela instituição, como os Livros Caixa e as Atas das Reuniões Mensais da Associação, de modo a evidenciar os benefícios econômicos conquistados pela instituição, por intermédio dos parceiros com ligações junto ao Governo Federal ou diretamente da União, quando da aplicação de determinada legislação assistencialista. À guisa de conclusão, e inspirada na discussão estabelecida nos três capítulos, serão apresentados os resultados que conduzem às respostas à questão central formulada na apresentação deste trabalho científico. UM ANTIGO DEBATE Os regimes governamentais nacionais caracterizados por um Estado forte, centralizado e interventor, e uma sociedade formada por diferentes grupos sociais reivindicantes, porém submetidos ao jugo estatal devido à sua falta de organização e incapacidade de propor um projeto de governo substitutivo, freqüentemente foram denominados populistas. Esse conceito, populista ou populismo, foi cunhado na década de 1940 e desde então tem sido utilizado para definir e nomear situações muito diversas, experiências governamentais plurais, de modo que a força do conceito, seu poder explicativo, se deteriorou. Atualmente, ao denominar determinada situação política ou determinado governante como populista, não se está explicando a situação, mas apenas rotulando-a, com um conceito que perdeu sua capacidade de definição no momento em que deixou de ser a expressão de uma experiência particular. Por essa generalização sofrida pelo conceito de populismo é que este termo passou a ser questionado e revisado pelos estudiosos. A este respeito destaca-se a análise conceitual abordada na coletânea, recentemente lançada, organizada por Jorge Ferreira1, onde diversos autores das ciências humanas se propõem estudar o conceito de populismo assim como as diferentes experiências que recebem esta denominação. Dentre as características anteriormente mencionadas como comuns dos regimes governamentais que, historicamente, receberam a denominação de populistas, a que se sobressai é a forte presença do Estado na vida econômica, política e social da nação. Mas de que maneira o Estado instala um regime centralizador e interventor forte no poder a ponto de subjugar as demais classes sociais e mantê-las, não apenas sob seu comando, mas muitas vezes como suas apoiadoras? Temos, para responder a esta questão, que nos debruçar sobre a análise da primeira geração de estudiosos sobre o tema, dentre os quais destacamos Bóris Fausto e Francisco Weffort. Estes defendem que o Estado caracterizava-se na única força capaz de oferecer um projeto político viável para governar o país, isto significava que as demais classes sociais 16 não tinham presença política, organização de classe, reivindicações a fazer ao Estado, aspirações políticas e sociais? Significa que elas eram incapazes de agir? Para responder estas questões analisarei as teorias de Bóris Fausto e Francisco Weffort. De matriz marxista-leninista, estes historiadores tinham como referência o modelo estático que caracterizava as relações sociais como determinadas a partir do mundo do trabalho, independente da ação humana consciente. Sendo assim, as mudanças históricas não seriam resultado da ação humana, das experiências humanas individualizadas, mas de relações inerentes às instituições, recaindo sobre interpretações economicistas e não culturais e morais, as quais são intrínsecas ao Homem. O modelo europeu caracterizava-se por classes sociais organizadas e politizadas. Ao transportarem este modelo para o Brasil estes estudiosos se confrontaram com uma realidade diferente: as camadas sociais brasileiras não estavam suficientemente unidas, em seu interior, para organizarem um projeto de governo sustentável para toda a nação. É neste momento, de “vazio de poder”, que o Estado encontra a brecha necessária para centralizar o poder e intervir na sociedade unindo as demais classes sob si. Essa interpretação do caso brasileiro, formulada por Bóris Fausto e Weffort, devese ao fato de, para eles, a teoria advinda da experiência européia ser a base de suas interpretações da experiência brasileira. Ou seja, as classes européias apresentavam uma consciência desenvolvida, encontrando-se organizadas e reivindicantes, no Brasil se confrontaram com uma realidade diferente: as classes sociais brasileiras não eram suficientemente unida não tendo ainda, desenvolvido uma consciência que lhes possibilitaria organizarem-se para reivindicarem seus direitos. Esta análise representa uma historiografia na qual as relações estão vinculadas à organização efetiva de camadas sociais, as quais, estabeleceriam uma relação economicista e não humana2. 1 Jorge Ferreira, Op. Cit. THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978, p.117 e seguintes. 2 17 Porém, não estou aqui tentando julgá-los, apenas explicitei constatações de outros estudiosos a respeito das primeiras interpretações historiográficas sobre a experiência populista brasileira3. Esse apontamento se faz necessário já que neste trabalho pretendo abordar esse mesmo recorte temático e temporal por um outro ponto de vista. Contudo, se a afirmação de que inexistiam classes sociais no Brasil é atualmente questionada, de que forma esta interpretação historiográfica se firmou, por anos, como a leitura possível? Uma explicação para o fato pode ser encontrada no clássico trabalho de Edgar De Decca, 1930. O silêncio dos vencidos, onde o historiador apresenta a concepção historiográfica da Revolução de 30 como uma construção histórica a partir da memória das elites vencedoras, em detrimento de outras memórias. Através da construção de uma memória histórica, criada a partir de uma construção da classe vencedora, propagou-se uma historiografia que é debatida pelo autor. Os grupos sociais que formavam a sociedade brasileira nos anos de 1937-45 que constituir-se-ão atores históricos para este nosso estudo são, Getúlio Vargas e seus assessores administrativos, a elite, os empresários e industriais que, juntamente com os trabalhadores autônomos constituíam a camada média da sociedade, e os pobres, doentes e despossuídos que serão analisados fora do mundo do trabalho. Historiograficamente, os atores freqüentemente estudados são o Estado, as oligarquias, os empresários e industrias e os trabalhadores. Com uma menor freqüência, que vem se acentuando atualmente, aparece a Igreja e seu corpo eclesiástico, enquanto que os outros grupos não costumam ser mencionados. Aplicando o Golpe de Estado, Getúlio centraliza a vida política nacional com seu projeto interventor. Após seu governo entre os anos 1930-34, o governo provisório de 1935-37 e a instalação da ditadura estadonovista ainda em 1937, com um Estado centralizado e forte, Vargas permanecerá até o ano 1945 como ditador, retomando o comando da nação entre os anos 50-54, quando se suicida. 3 Ver o artigo de Jorge Ferreira na coletânea por ele mesmo organizada O popuilismo e sua história: debate e crítica.. P. 62 e seguintes. 18 Os historiadores anteriormente citados apresentam suas teorias baseadas na interpretação de consciência das massas apresentada por Pedro Demo através de seu conceito de a pobreza política4. Entretanto, o que objetivo apresentar neste estudo é exatamente uma outra visão a respeito da consciência brasileira. Esta outra perspectiva está bem delimitada por Ângela de Castro Gomes, que coloca que “a categoria ‘manipulação’ é proposta, portanto, não de uma forma unidirecional, mas como possuidora de uma intrínseca ambigüidade, por ser tanto uma forma de controle do Estado sobre as massas quanto uma forma de atendimento de suas reais demandas.”5 Assumo que, embora o controle central estivesse nas mãos de Getúlio Vargas, havia luta de classes no Brasil estadonovista, as quais eram personificadas pelas relações entre o governo central, as antigas oligarquias, os setores empresariais e os trabalhadores e às quais acrescentou-se, na historiografia mais recente, a Igreja. Luta de interesses que neste trabalho será apresentada sob outra perspectiva, tomando os pobres e despossuídos como atores históricos, público ao qual o Estado e setores da sociedade destinavam suas políticas assistencialistas, e que neste estudo estará representado pelos pobres e carentes “protegidos” da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo. 4 O conceito de pobreza política apresentado pelo autor afirma que “um povo politicamente pobre, por exemplo, é aquele que não conquistou ainda seu espaço próprio de autodeterminação, e que, por isso, sobrevive na dependência, como periferia de uma grande centro, como perdedor oficial no comércio internacional, como sucursal de potências externas, como recebedor passivo de tecnologias e investimentos. É politicamente pobre aquela sociedade tão débilmente organizada, que não passa de massa de manobra nas mãos do Estado e das oligarquias, e que, por isso, não consegue construir representatividade legítima satisfatória em seus processos eleitorais, com líderes excessivamente carismáticos ou caudilhescos, com serviço público marcado pela burocratização, pelo privilégio e pela corrupção.” P. 20 do Pedro Demo Outros autores também apresentam as características necessárias para a implantação de um regime populista numa sociedade. Dentre estes destaco Angela de Castro Gomes em O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito, artigo presente na já mencionada coletânea organizada por Jorge Ferreira, Op. cit. pp . 24-25. 5 GOMES, Ângela, de Castro. O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito. In: FERREIRA, Jorge(org). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p, 34. 19 Quais eram, então, as reivindicações das diferentes camadas sociais que constituíram essas lutas sociais? Primeiramente, no tocante às antigas oligarquias6, temos uma aproximação desta com os empresários, já que estes precisavam se aproximar do poder para obter maior participação política, contestando com maior veemência as políticas estatais. Enquanto aqueles tinham sofrido grande perda na sua legitimação política após a crise do café, que se acentuou com a crise do liberalismo, iniciada em 1929. Ambos setores necessitavam se fortalecer para ter sua participação política aumentada e a forma encontrada foi a união de seus interesses. Enquanto a burguesia agrária sobrevivia da memória de seus tempos áureos na política nacional, a classe empresarial galgava espaços com o investimento crescente no desenvolvimento industrial no Brasil. A essa inconsistência cultural do comportamento econômico prenderam-se formas de acomodação política (e mesmo de capitulação política) prejudiciais ao funcionamento e ao desenvolvimento da ordem social competitiva. Premido pelo desnível entre sua posição econômica, sua situação de interesses e suas probabilidades de poder, em vez de forçar uma reintegração do padrão de equilíbrio do poder político, o imigrante (empresários) preferiu identificar-se com as ideologias das elites nativas do poder e procurou absorver, com relativa rapidez assim que se interessou pela participação nas estruturas do poder da sociedade brasileira, as técnicas sociais de dominação política empregadas por aquelas mesmas elites (burguesia agrária).7 Porém, essa aproximação não significou uma seqüência de resultados positivos para os empresários, ao invés disso estes enfrentaram uma submissão política à burguesia agrária8. Ao passo que a camada agrária nacional já tinha uma história política, de presença nacional, e dela retirava sua sobrevida no jogo político brasileiro, os empresários estavam surgindo como camada social, tendo uma organização de classe limitada e necessitando situar-se politicamente. Desta forma, ao aproximar-se da burguesia agrária, o empresariado, acomodando-se à sombra dos agrários e não tendo um projeto de classe 6 A análise histórica que segue foi baseada na fala de Luiz Werneck Vianna em Liberalismo e sindicato no Brasil, p.124 e seguintes. 7 Luiz Werneck Vianna Op. cit. p. 126 8 Teoria defendida por Caio Prado Júnior e Florestan Fernades e apresentada em Werneck Vianna. Op. cit. p.125-126 20 definido nem uma organização9 forte, ficou submetido, politicamente, aos interesses dos agrários. Estes grupos estavam unidos na tentativa de dominação10 política das classes subalternas, principalmente os trabalhadores. Estes por sua vez, encontravam-se, em considerável número, organizados em sindicatos, que podiam representar todo um conjunto de trabalhadores empregados numa mesma atividade profissional, ou então, os operários de uma mesma fábrica. As reivindicações dos trabalhadores concentravam-se na conquista de melhores condições de trabalho, saúde e moradia, bem como um salário mais justo, o que significava uma melhor distribuição das riquezas. Segundo Décio Saes, outra reivindicação da classe operária é “o progresso”, encarado como o acesso do trabalhador urbano ao consumo “moderno”: eletricidade e eletrodomésticos, automóvel, lazer de massa, consumo, que na sua visão seria “precoce”11. Além das próprias forças, percebe-se na idéia de Saes que a classe trabalhadora esperava a intervenção estatal junto aos demais grupos sociais para conquistar algumas de suas reivindicações. Weffort12 afirma que a classe média baixa, os trabalhadores, se identificaram rapidamente com Getúlio e sua política, porque, ao trazer para a cidade uma grande massa de trabalhadores urbanos que seriam empregados nas indústrias surgidas da política varguista de industrialização e de substituição das importações, Getúlio proporcionou a esses trabalhadores um salto pessoal. Ao serem retirados do campo e introduzidos no meio citadino, assumo, diferentemente da categoria de “manipulação de 9 Os empresários e industriais, ao se unirem à burguesia agrária acabaram deixando de constituir uma classe social de industriais, optando por assumir a vestimenta de uma classes social já estabelecida, a burguesia agrária. Isto apenas foi possível pois ambas encontravam-se num momento político no qual se achavam fragilizadas. Para construir este argumento utilizei-me da concepção thompsoniana de “fazer-se de uma classe”. 10 Alcir Lenharo afirma, quanto à dominação política e social que “a sua substância não varia consideravelmente de década para década; variam muito mais as fórmulas propostas, facilitadoras do aprofundamento da mesma dominação”. Sacralização da política, p. 13 11 SAES, Décio A. M. Classe média e política no Brasil: 1930 – 1964. In: Fausto, Bóris. História geral da civilização brasileira. Tomo III – O Brasil Republicano, vol. 3 – Sociedade e Política (1930-1964) 2ª ed. São Paulo: DIFEL, 1983, Pp. 472 e 473 12 WEFFORT, Francisco Corrêa. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p.75 21 massas” apresentada por Weffort, que os trabalhadores exerceram uma forte pressão social por empregos e possibilidades de consumo dos bens industrializados, ao que Vargas respondeu com os empregos nas indústrias e políticas sociais. Mas de que maneira o Estado agia? Defendendo que o Estado possuía hegemonia política, contudo, esta hegemonia não achava-se ausente de oposição, perceptível nas pressões exercidas pelas diferentes camadas sociais através da apresentação de reivindicações políticas e sociais ao aparelho estatal. Apresento como exemplo, o mundo do trabalho. Enfrentando um cotidiano repleto de dificuldades materiais e humanas, os trabalhadores, unindo-se a partir da percepção de que suas experiências cotidianas eram comuns à grande maioria dos operários brasileiros, organizaram-se em sindicatos. Essa organização foi decorrente do surgimento de uma consciência dessa exploração comum aos trabalhadores, acarretando uma organização desta camada social para que, apresentando demandas a partir de uma estrutura organizativa, pudessem incorrer numa maior possibilidade de conquistar seus direitos. Temos, por exemplo, o salário mínimo, conquista decorrente da pressão a que este grupo social, organizado nos sindicatos, submeteu o aparelho estatal. As conquistas desses trabalhadores não seriam, como defendem Weffort e Bóris Fausto, conseqüência de uma manipulação estatal, como que agindo demiurgicamente, antecipando-se ao surgimento das demandas sociais, evitando uma politização da sociedade. Estas conquistas foram resultado da ação reivindicatória consciente de atores históricos que encontravam-se organizados com este intuito. Releituras, já anteriormente apresentadas, sobre o fenômeno do populismo brasileiro apontam para uma outra teoria, na qual o Estado não se encontrava sozinho, mas sim cerceado pelas ações de parcelas organizadas das diferentes camadas sociais, as quais constituíam-se em agentes históricos juntamente com o Estado. Desta maneira, a antiga fórmula das “massas manipuláveis” se converteu em uma sociedade onde a luta de classes era real e onde o Estado, sofrendo pressões dos diferentes grupos sociais se 22 mantém no poder devido a sua capacidade de atendimento efetivo às demandas, como através de uma política baseada em de ações de assistência social. Com relação a este aspecto é recomendada a leitura da obra de Luiz Werneck Vianna, Liberalismo e Sindicato no Brasil, que lança uma nova perspectiva nesta discussão sobre as relações entre o Estado e as classes sociais, principalmente no que concerne à sua relação com a classe trabalhadora. Neste trabalho Werneck Vianna inclina-se a defender que o tipo de relação ocorrida entre a União e os trabalhadores não foi uma manipulação, mas uma aliança. Ângela de Castro Gomes, coloca que “a categoria “manipulação” é proposta, portanto, não de forma unidirecional, mas como possuidora de uma intrínseca ambigüidade, por ser tanto uma forma de controle do Estado sobre as massas quanto uma forma de atendimento de suas reais demandas”13. As relações mantidas entre o Estado e as classes trabalhadoras não eram unilaterias, portanto. Ao contrário, o Estado era, repetidamente, alvo da pressão dos operários, os quais encontravam-se organizados em sindicatos desde a primeira década do século XX. Essas organizações trabalhistas tinham por objetivo a reunião dos trabalhadores para o conseqüente fortalecimento de classe para que pudessem pressionar mais efetivamente o Estado e as demais classes sociais, pelo atendimento de suas reivindicações. A pressão dos trabalhadores organizados era tanta que o Estado viu-se obrigado a desenvolver uma estratégia eficiente de controle e desmobilização dos sindicatos. A saída encontrada foi a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 26 de novembro de 1930, o qual, atrelando os sindicatos á máquina estatal, possibilitava ao governo federal um controle direto sobre as organizações de trabalhadores, subjugando um tipo de organização social que havia se tornado um obstáculo aos interesses e projetos estatais. 13 GOMES, Ângela de Castro. O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito. In: FERREIRA, Jorge (org.), O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. P. 34 23 Manter essa configuração político-social requeria do Estado manobras políticas que lhe possibilitassem manter-se no poder. Para tanto, Getúlio Vargas lançou mão de diversas ações, dentre as quais os estudos salientam a ideologia estatal. Segundo essa ideologia Vargas, utilizando-se de seu apelo imagético e de políticas sociais de desmobilização dos grupos reivindicantes, teria cunhado a expressão e a figura do “pai”, o qual, para o bem de todos, para o bem geral, freqüentemente tem de sobrepor medidas destinadas à totalidade da nação, às medidas que atenderiam os interesses de uma camada social em particular. O intervencionismo estatal teria como elemento fundante a “imposição ineludível” de sobrepor os interesses da coletividade diante dos individuais. O Estado, sociedade organizada como poder, não se deve portar neutralmente diante da ação das forças sociais. Cabe-lhe discipliná-las e dirigí-las14 Igreja e Estado Outra arma do Estado foi a sua aproximação da Igreja. A Igreja Católica sempre manteve relações com o Estado, isso desde o descobrimento do Brasil, quando, juntamente com todo o aparato estatal, instalou-se em terras brasileiras e começou a converter os nativos ao cristianismo. Contudo, nem sempre a relação secular–episcopal se deu pacificamente, tendo havido diversos momentos em que seus interesses divergiram a ponto de colocar em risco esta aliança. Presente no Brasil desde o início, a instituição eclesiástica conquistou grande apelo junto às diversas classes sociais que compõem a sociedade brasileira, tendo criado laços com a fim de conquistar uma influência cada vez maior em território nacional. Com a Proclamação da República e a legalização da Constituição Republicana, em 1889 e 1891 respectivamente, o pacto Estado-Igreja foi rompido pelas seguintes razões15 14 Esta, segundo Werneck Vianna, era a maneira que o Estado encontrava para legitimar-se no poder, assim como suas políticas intervencionistas. Op. cit. 235-236 15 LANDIM, Leilah. Para além do Mercado e do Estado? Filantropia e cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Núcleo de Pesquisa/ ISER, junho de 1993, p. 17 24 A separação definitiva é institucionalizada após a proclamação da República, quando a Constituição liberal de 1891 estabelece a liberdade de culto, proíbe subvenções governamentais aos templos e à educação religiosa, reconhece validade apenas para casamentos civis, seculariza a educação. Este processo, não será aprofundado neste trabalho, por não ser este o objetivo proposto. Na década de 1930 a aliança Igreja-Estado é retomada através de uma aliança entre Fé e Pátria16. Essa retomada de relações se mostrou muito útil para ambas as instituições. Para o Estado porque encontrou na Igreja um aliado possuidor de grande apelo junto à população e capaz de penetrar em uma quantidade extremamente expressiva dos lares brasileiros. Para a Igreja, esta reaproximação se mostrou interessante pois “fazendo passar sua estratégia de ação, pela intervenção e proteção do Estado, a Igreja entra a fazer parte do bloco no poder, junto com as várias frações das classes dominantes: antigas oligarquias rurais, a burguesia comercial e financeira e a recém-articulada burguesia industrial.”17 Getúlio Vargas, sofrendo pressões das camadas sociais, as quais se mostravam, com o passar dos anos de seu governo ditatorial, cada vez mais organizadas verificou o aumento gradual das reivindicações, precisando a cada momento, demonstrar que era a pessoa certa para governar a nação. Para atingir tal intento, Vargas utilizou de novas tecnologias, como o cinema, o rádio, a televisão, além de seus inúmeros discursos e de suas políticas sociais. Onde, nisso tudo, entrou o apoio eclesiástico? Este desempenhou papel de grande importância junto á criação da imagem de Getúlio. Acostumada a lidar com o universo de imagens e ídolos, a Igreja ofereceu a Vargas todo um conjunto de estratégias que legitimavam o governo varguista. As políticas desenvolvidas pela Igreja junto ao Estado, com o objetivo de fortalecer este último foram competentemente abordadas por Alcir Lenharo18. Compondo uma 16 Idem, p. 18 Fausto, Bóris. História geral da civilização brasileira. Tomo III – O Brasil Republicano. Vol. 4 – Economia e Cultura, P. 307 18 Alcir Lenharo. Op. Cit. ver especialmente os capítulos 5 e 6 do seu estudo 17 25 alegoria que assemelhava o funcionamento do corpo humano com o corpo estatal, a Igreja aproximou também as pessoas de Jesus e Vargas. Ou seja, ao traçar um paralelo do funcionamento do corpo humano com o corpo administrativo do Estado e o corpo social, enfatizando que o bom funcionamento do corpo humano se devia pelo fato de que cada órgão sabia muito bem qual a sua função a desempenhar, sem almejar outra, a Igreja demonstrava, alegoricamente, que a sociedade tinha de manter-se pacificamente constituída, sem que houvesse a aspiração, por parte de qualquer parcela do corpo social, por desempenhar uma outra atividade senão a que já estava designado a desempenhar. Por outro lado, ao utilizar a doutrina do Corpo Místico de Cristo, a qual defendia que era necessária uma cabeça para dirigir a Igreja, monta-se um novo paralelo que objetiva fortalecer e legitimar a figura, a personna de Vargas, como cabeça dirigente da nação. As seguintes citações retiradas do texto de Lenharo explicitam claramente a situação: No corpo humano, não se dá o caso do estomago ou do fígado querer funccionar como cérebro, ou os pés quererem substituir os olhos ou ouvidos... Se isto se désse, seria uma anarchia completa. Entretanto, no organismo social esse absurdo é tentado de várias formas e as chamadas lutas de classes não são mais do que uma luta de órgãos que pretendem dirigir o organismo, isto é, fígados e estomagos que pretendem ser cérebros de vez em quando... 19 Eles se encontram na mesma situação do estômago num organismo vivo: se este procura tornar-se independente, encontra-se no mesmo ato suprimido e retorna ao Todo.20 (Filosofia do Direito, § 276, citado por Romano, pp.11 e 12) As reivindicações e o descontentamento da sociedade, no entanto, não tinham fim, embora os ânimos se acalmassem após uma medida estatal que assegurasse, à sociedade civil, a conquista de um maior número de direitos. Entretanto, após determinado período de tranqüilidade as pressões da sociedade sobre o Estado aumentavam novamente. Nesse ponto a Igreja também foi capaz de auxiliar o Estado, já que após a separação, ocorrida com o advento da República, a Igreja se aproximou muito dos setores sociais emergentes, 19 20 Lenharo, Op. cit. p. 150 Idem, p. 145 26 criando laços com eles, que a auxiliaram na conquista de poder21. Esse poder, por sua vez, era exercido através da ideologia eclesiástica, e a aplicação dessa ideologia junto ao corpo político do Estado corroborou para a sustentação de Vargas no poder. São dois os planos de auxílio que a Igreja prestou ao Estado no Brasil dos anos 30: o primeiro de caráter mais constitucional, significou um apoio político decisivo em momentos cruciais da década; o segundo, não menos importante, relacionou-se à função milenar e indispensável de domesticação das consciências.22 Mas o que o corpo eclesiástico ganhava com essa aliança espírito-secular? Como já observado, uma das vantagens era a aproximação, mais ainda, a conquista de uma colocação junto ao aparelho administrativo nacional. Além disso, a Igreja ganha maior autonomia para controlar ideologicamente a sociedade civil, o que de acordo com Werneck Vianna23, é sua especialidade. Outra questão foi a possibilidade da Igreja expandir sua rede de instituições civis, as quais estavam firmadas nas relações criadas entre Igreja e sociedade civil durante o período em que o relacionamento eclesiástico com o Estado estivera rompido. Ao “aceitar” a aliança estabelecida com o Estado, a Igreja colocou diversos obstáculos, que nada mais eram que privilégios eclesiásticos reconhecidos por Getúlio Vargas. Sendo assim, ainda em 1934, quando estavam acontecendo os trabalhos da constituinte, a pressão da Igreja e o reconhecimento, pelo Estado, de que a aliança com a Igreja corroboraria na sua sustentação, acarretaram na concessão, constitucional, de vários direitos à Igreja Católica. Esses privilégios, que serão abordados posteriormente, fortaleceram a instituição junto à opinião pública e alavancaram diversos projetos da Igreja. Através de discursos ideológicos a Igreja Católica traça seu caminho de retorno ao poder, como podemos verificar na seguinte afirmação: “A partir de baixo, pela ação 21 KRISCHKE, Paulo José. A Igreja e as crises políticas no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1979. P. 135 Alcir Lenharo, Op. cit. p. 190 23 Luiz Werneck Vianna, Op. Cit. p. 197 22 27 católica24 e pelas corporações, arma-se o plano geral de cerco do Estado laico-burguês. Rejeitando-se o liberalismo, pretende-se revalidar o direito natural orientado por normas transcendentes, reconstituindo a religião como o ‘fundamento de todas as leis sociais.’ ”25 Esta política católica é reafirmada através da Rerum Novarum26, onde encontramos o conceito de autoridade para a Igreja Católica da década de 1930: A autoridade, filosoficamente considerada, é uma conseqüência da hierarquia à ordem superior: a vida mineral à vegetal, esta à animal e todas à vida humana. Do mesmo modo que esta última se subordina, por natureza, à ordem eterna. E dessa subordinação natural do inferior ao superior resulta um direito recíproco deste sobre aquele, que é justamente a autoridade.27 Já discutimos as relações entre as diferentes camadas sociais e apresentamos algumas das principais reivindicações de classes, destacando seus maiores interesses. Resta, para finalizar esta primeira discussão, aprofundar as análises sobre as já mencionadas políticas de caráter assistencial do Estado. Um dos pilares de sustentação de Vargas era a ideologia, com a qual procurava desmobilizar os movimentos sociais e legitimar-se no poder. As políticas sociais do Estado criaram pontos de tensão no relacionamento entre Estado e camadas sociais, prejudicando o apoio recebido por estes grupos. Como já analisado, a aliança entre Igreja e Estado foi uma forte estratégia, através da qual o Estado conseguiu penetrar ainda mais profundamente na sociedade brasileira. A ideologia cristã, convertida em arma legitimadora do Estado Varguista, penetrou fundo na sociedade, sem que se percebesse, já que não era uma ação real, mas ideológica. Trabalhando a mentalidade da população, 24 Ação Católica foi a denominação dada ao movimento de reforma eclesiàstica, ocorrida logo após a Proclamação da República, onde “a Igreja viria a promover uma reforma ‘intelectual e moral’ entre os seus membros, do que resultou o surgimento de líderes capazes de promover os ideais burgueses necessários ao desenvolvimento do novo Estado e sociedade brasileiros.” Paulo José Krischke Op. Cit., p. 120. Essa questão já foi abordada anteriormente neste mesmo capítulo. 25 Luiz Werneck Vianna, Op. cit., p. 203. Grifos originais 26 Encíclica Papal editada em 1891 por Leão XVIII, que pressionava, a partir de Roma, a Igreja Católica a se comprometer com os problemas sociais, não só religiosos, mas também econômicos e sociais. FAUSTO, Bóris (org), História geral da civilização brasileira. Tomo III – O Brasil Republicano, vol. 4 – Economia e Cultura, p. 308 27 Idem, p. 210 28 principalmente a parcela menos abastada, utilizando-se de imagens e propagandas, Vargas criava uma ligação concreta entre a sua figura e as camadas sociais. Outra das formas pelas quais Vargas aumentou seu apoio junto às classes, principalmente as de poder aquisitivo baixo, foram as políticas sociais. Essas políticas sociais são encontradas em todos os aspectos do Governo Vargas, e têm como principal insígnea possibilitar o acesso da população a parte de suas reivindicações, fazendo isso com o intuito de manter-se no comando da nação, já que a União estava sofrendo pressões por parte de todas as camadas sociais. Procurava diminuir o surgimento de novas demandas que acarretariam uma maior organização política dos grupos sociais, em torno da reivindicação e conquista de seus direitos. A melhor forma de se explicar as políticas sociais do Estado Novo é através da análise de uma delas, que nos servirá de exemplo. Para tanto selecionei a Legislação Trabalhista. Esse conjunto de leis destinava-se a controlar a exploração do trabalhador pelo empregador, o qual tentou de diversas formas justificar a exploração: demanda do mercado interno e externo, dificuldade de auto-sustentação da indústria com os lucros obtidos se atendidas as formulações presentes na legislação trabalhista. Vista pelos trabalhadores e assalariados como um conquista das pressões exercidas sobre o Estado para que este interviesse junto aos empregadores por uma realidade mais justa humana na configuração do quadro industrial nacional. A criação da Legislação Trabalhista foi uma política social através da qual o Estado procurou conter as manifestações dos trabalhadores contra a exploração a que eram submetidos. A Legislação Trabalhista controlar os grupos reivindicantes de trabalhadores organizados, conquistava maior influência junto ás classes mais abastadas – empresários e industriais – unindo-as a si. Esse caráter da política social do Estado analisada através do exemplo da Legislação Trabalhista era o que revestia toda a política varguista. Assumo, para este trabalho científico, que as classes sociais estavam sim mobilizadas a ponto de, pressionando o Estado, conquistar direitos reivindicados. Não que esteja anulando a, já 29 tão debatida, política de massificação do governo federal, mas relativizo esse seu poder massificador tomando-o como uma das estratégias da União na legitimação de seu lugar político, dentro de uma sociedade brasileira que assumo como tendo lutas de classes no seu interior, as quais tinham por personagens históricos o Estado, a Igreja, as burguesias e os trabalhadores. Estado centralizador, burguesias agrária, industrial e empresarial sedentas de maior controle social e participação política, uma organização eclesiástica portadora de uma ideologia legitimadora fortemente construída junto às camadas sociais, um mundo do trabalho organizado e ativo politicamente. Contudo, revisitarei esta discussão assumindo uma reconfiguração dos trabalhadores organizados. Pertencentes ao mundo trabalho, porém não estado ligados aos sindicatos. Parte dos trabalhadores, assim como parcela da população, constituiam-se em indivíduos despossuídos, desempregados, pobres, doentes e carentes que serão assistidos por políticas e instituições eclesiásticas, estatais e da sociedade civil organizada. Este grupo social será representado, neste trabalho, pelo público atendido pela Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, temática que será abordada nos próximos capítulos. ECLESIÁSTICO VERSUS SECULAR A análise das relações entre os poderes religioso e estatal, a disputa pelo poder e a ideologia católica bem como as relações estabelecidas entre a Igreja Católica e os demais grupos sociais e as instituições e organizações através das quais a Igreja buscava atingir seus objetivos serão os temas abordados nesta parte da pesquisa. Apresentarei a organização da Igreja Católica brasileira durante o período recortado, em contrapartida à análise das relações e organismos estatais dos quais o capítulo anterior se ocupou. A Igreja Católica se constituiu numa das grandes forças do período estadonovista, traçando objetivos que geralmente divergiam dos do Estado mas cujas estratégias apresentavam-se, muitas vezes, convergentes. Nesta direção cabe destacar que tanto Igreja quanto Estado objetivavam aumentar seus campo e poder de influência, se tornando, muitas vezes, uma obstáculo no caminho traçado pelo outro. As relações eclesiásticas e o estudo da ideologia da Igreja Católica passarão a ser analisados. Tivemos, a partir da Proclamação da República, uma separação entre a Igreja e o Estado. Para angariar apoios e sustentação para seus projetos políticos, a Igreja passou a se aproximar das camadas médias, já que a classe média era trabalhadora – empresários, professores, profissionais liberais – e se constituía de indivíduos que estavam inseridos no contexto nacional de modernização, portanto parte importante de uma sociedade que estava se modificando. Através do despertar, nas camadas médias urbanas, dos valores cristãos, a Igreja buscou legitimar e estender sua influência junto a esses grupos visando retomar o poder de que desfrutara no passado de conluio com o Estado. Para tal transportou a ideologia utilizada nos rituais católicos para as relações com os grupos sociais. Essa ideologia constituía no apoio eclesiástico às camadas médias as quais buscavam desfrutar de maior participação política através da conquista de uma posição relevante no cenário político nacional. 31 Esse relacionamento entre Igreja e camadas médias da sociedade consistia num apoio mútuo, onde ambas, uma buscando sustentação na outra, objetivava o crescimento de sua participação política. Os grupos médios da sociedade porque desejavam aumentar sua participação política baseando-se na importância que as suas indústrias e empresas vinham conquistando no cenário nacional desde os primeiros surtos industrializantes, ocorridos no final do século XIX. no cenário nacional. A Igreja, na tentativa de reaver o poder que até então havia desfrutado devido à sua proximidade com a União. O rompimento entre Igreja e Estado a partir da República e conseqüente aproximação da Igreja às classes médias urbanas acarretaram um gigantesco crescimento da organização católica brasileira.1 Esse crescimento das organizações da Igreja Católica chamou a atenção do Estado durante o período da Segunda República (1930-37), principalmente no que concerne ao período de 1934-37, quando se teve uma restauração constitucional. Os trabalhos da Constituinte e a aprovação da Constituição de 34 acarretaram a destruição da aliança interclasses que havia se estabelecido nos primeiros anos da década de 1930 e que dera suporte à Revolução de 30.2 O rompimento dessa aliança e a conseqüente ausência de forças políticas capazes de propor um novo projeto de organização nacional acabaram por formar o cenário político favorável ao Golpe de Estado de 1937. O Golpe e a política autoritária3 estabelecida por Vargas desenvolveu-se sob um regime de Estado centralizador, com o ditador articulando políticas direcionadas aos diferentes grupos sociais a fim de, intervindo junto a eles, legitimar-se e sustentar-se no poder. A estratégia da Igreja era, através de sua aproximação às classes médias urbanas, progressivamente aumentar sua influência de modo a infiltrar sua ideologia no aparelho 1 KRISCHKE, Paulo José. A Igreja e as crises políticas no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 134 Idem, p. 132 3 Baseio-me na discussão feita por Jorge Ferreira em seu artigo apresentado na coletânea por ele mesmo organizada e que já foi referenciada acima. Segundo Ferreira o regime imposto durante o Estado Novo foi inspirado no fascismo europeu, o qual apresenta algumas das características apontadas na definição do termo populismo. 2 32 estatal, objetivando conquistar o controle das instituições temporais4, através das quais e revestindo-se dos interesses dos grupos médios urbanos, iria conquistar mais e maior participação política, assim como convencia, a essas camadas médias, que estavam conquistando direitos e ascendendo como força política. O crescimento das instituições eclesiásticas e da influência da Igreja junto às camadas médias da sociedade, despertou o interesse do Estado, que se encontrava, neste período, empenhado em cooptar os demais grupos sociais, quando não os reprimia. Consequentemente, o Estado e a Igreja passaram a se reaproximar, ação evidente quando se analisa as Constituições de 1934 e de 1937. Necessitando aumentar seu controle sobre os grupos sociais, Getúlio passou a procurar aliados, encontrando-os principalmente nas elites e na Igreja. As relações entre Estado e burguesia já foram abordadas no capítulo anterior, portanto, a temática, neste segundo momento, será o estudo das relações estabelecidas entre divino e temporal, para o qual tomaremos como fonte principal as Constituições de 34 e 37. A Carta de 34 foi resultado do trabalho de Assembléias Constituintes, as quais elaboraram e votaram os termos da Constituição, trabalho que resultou de ...pressões de setores que, mesmo tendo realizado a Revolução de 1930, encontravam-se marginalizados do aparelho de Estado. (...) Desta forma poderíamos caracterizar a Constituinte de 1934 não como um fruto da revolução e sim como uma exigência da contrarevolução. Num primeiro momento, portanto, a luta pela constituinte vai funcionar como pólo aglutinador, reunindo desde elementos explicitamente contrários à Revolução de 30, até elementos nitidamente revolucionários, dentre os quais figuravam até mesmo partidários do governo Vargas. Somente num segundo momento é que o governo provisório encampa esta proposta, esvaziando-a de seu conteúdo oposicionista e colocando-a como intenção legítima de toda a nação, defendida e encaminhada por aqueles que estão no poder, particularmente o próprio Vargas.5 4 Defino como instituições temporais as organizações ligadas ao Estado, como Ministérios. FAUSTO, Bóris. História geral da civilização brasileira. Tomo III – O Brasil Republicano. Vol. 3 – Sociedade e Política (1930-1364) 2ª ed. São Paulo: DIFEL, 1983,. Respectivamente pp. 9 e 12-13. 5 33 Desta maneira percebe-se que, na visão de Fausto, na tentativa de desmobilizar um movimento social oposicionista às políticas estatais, o Estado apropria-se de uma reivindicação popular e reveste-a de interesse nacional, numa política populista. Contudo, assumo que, na realidade, esse trabalho da Constituinte não foi resultado de uma manipulação de interesses por parte do Estado, mas sim uma resultante das pressões sociais reivindicatórias de camadas sociais insatisfeitas com a realidade em que se encontravam inseridas. Portanto, vejo essa Constituição como o resultado de um conjunto de experiências vividas por diferentes parcelas da sociedade, as quais, desenvolvendo uma consciência de classe, unem-se em torno de objetivos e reivindicações comuns, organizando-se de maneira a pressionar o Estado e os grupos da sociedade civil vinculadas ao poder central, ocasionado uma conquista social6. Voltando à análise da relação entre Igreja e Estado temos de apontar as medidas presentes na Constituição de 34 que se destinaram à regulamentação desta relação. Iniciaremos pelo apontamento dos artigos presentes na Carta de 34 que desenvolveram políticas incentivadoras da aproximação entre essas duas instituições. Temos, por exemplo, o artigo 17, III, o qual afirma que “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios ter relações de aliança ou dependência com qualquer culto, ou igreja sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo”7. Baseando-se neste artigo constitucional, nota-se que qualquer tipo de relação estabelecida entre a Igreja e o Estado deveria estar revestido de interesse comum, nacional. Entra aí, na tentativa de legitimar qualquer ação por parte deste organismos, a utilização de ideologia. Nesta direção, a principal conquista foi a própria Carta de 34. Como já destacado, a Igreja tinha grande apelo junto à sociedade utilizando-se de seu apelo espiritual para expandir sua influência, enquanto o poder do Estado encontrava-se 6 O conceito de classe que utilizo não é o mesmo apresentado pelo marxismo, mas um grupo de indivíduos cujas experiências, crenças, cultura e poderes políticos e econômicos une com um sentimento de pertencimento. Enquanto consciência de classe seria exatamente este sentimento de pertencimento decorrente das experiências comuns. THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978 7 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1934 34 presssionado pelas diferentes camadas. Sendo assim, cada instituição procurava, através de maneiras diversas, aproximar-se das camadas sociais com as quais não usufruía de tanta influência, pois cada uma desfrutava de maior ou menor apoio dependendo da camada social em questão. Visto que nem o Estado nem a Igreja se mostraram capazes de executar esta ação, coube, como solução possível, a aproximação entre as instituições, para a partir da influência destas junto aos respectivos grupos sociais, conquistarem maior poder político e maior influência social. Desta maneira a Carta de 34 se mostrou um grande passo na execução desta nova estratégia política, já que concedia à Igreja diversos direitos, através dos quais poderia aproximar-se das camadas sociais mais abastadas, passando a difundir em seu interior, sua ideologia. De outro lado, encontramos o Estado, que com a concessão dos direitos constitucionais à instituição eclesiástica, passava a ter um vínculo junto às camadas sociais inferiores. Contudo, é importante esclarecer que esta conquista – os direitos adquiridos na Constituição de 34 – não foram cedidos pelo Estado por que este mostrava-se sensibilizado com os ideais eclesiásticos. A Carta de 34 foi uma conquista da Igreja, a qual não se realizou sem pressões exercidas junto à máquina estatal, mobilização de esforços para a votação da constituinte e criação de uma base eleitoral católica, a qual foi estabelecida através de ações da Liga Eleitoral Católica.8 No âmbito desta questão vale um destaque especial para os pontos básicos do programa da LEC: 1. Promulgação da Constituição em nome de Deus; 2. Defesa da indissolubilidade do laço matrimonial, com a assistência às famílias numerosas e reconhecimento dos efeitos civis ao casamento religioso; 3. Incorporação legal do ensino religioso, facultativo nos programas das escolas públicas primárias, secundárias e normais da União, do Estado e dos municípios; 4. Regulamentação da assistência religiosa facultativa às classes armadas, prisões, hospitais, etc.; 8 A Liga Eleitoral Católica (LEC) era “uma plataforma eleitoral proposta pela Igreja, “acima e além” de políticas partidárias, à qual todos os candidatos eram convidados a apoiar e adotar”. KRISCHKE, Op. Cit. pp. 147-148. 35 5. Liberdade de sindicalização, de modo que os sindicatos católicos, legalmente organizados, tenham as mesmas garantias dos sindicatos neutros; 6. Reconhecimento do serviço eclesiástico de assistência espiritual às forças armadas e às populações civis como equivalente ao serviço militar; 7. Decretação de legislação do trabalho inspirada nos preceitos da justiça social e nos princípios da ordem cristã; 8. Defesa dos direitos e deveres da propriedade individual; 9. Decretação da lei de garantia da ordem social contra quaisquer atividades subversivas, respeitadas as exigências das legítimas liberdades políticas e civis; 10. Combate a toda e qualquer legislação que contrarie, expressa ou implicitamente, os princípios fundamentais da doutrina católica.9 As principais reivindicações católicas continham interesses relacionados aos diferentes grupos sociais. Embora os pontos tivessem maior ou menor apelo junto às diferentes camadas sociais, temos estes tocando todos os grupos da sociedade. Analisemos individualmente as implicações de cada um dos pontos. Ao reivindicar que a (1) Constituição de 34 fosse promulgada em nome de Deus, a Igreja procurava aproximar-se do poder desfrutado pelo Estado, legitimando-se constitucionalmente, como uma instituição, a única, passível de possuir o mesmo status do Estado. Também ganharia maior força política, conquista à qual possivelmente se seguiriam novas e maiores demandas. O mesmo objetivo percorre o item seguinte quando defende o (2) “reconhecimento dos efeitos civis ao casamento religioso”. Ao atrelar sua influência matrimonial-religiosa à legislação, passando a desfrutar, na constituição familiar, o mesmo espaço ocupado pelo Estado, a Igreja demonstra seus interesses ocultados ou camuflados sob a apelo da religião. Reivindicando a (3) inserção do ensino religiosos nos programas das instituições de ensino federais, estaduais e municipais posiciona-se num setor da sociedade – o ensino – que abrange todas as camadas sociais. Conquistando esta inclusão nos conteúdos escolares, a Igreja obteria um meio através do qual disseminar sua ideologia, assim como conquistar a simpatia das pessoas à instituição religiosa, obtendo maior apoio na sociedade. Quando não inseridos ou envoltos à estrutura de ensino brasileira, tanto em nível federal, quanto estadual e municipal, o indivíduo encontrará a (4) Igreja inserida em 36 hospitais, penitenciárias e classes armadas, instituições em que muitas vezes o indivíduo permanece por tempo indeterminado e com pouco contato exterior. Estes locais são propícios ao sucesso da interferência religiosa, pois os indivíduos encontram na fé uma esperança para sua condição de doença, abandono e isolamento e a assistência oferecida pela Igreja encontra campo fértil para se instalar. Referente aos militares ainda temos uma demanda eclesiástica, a qual (6) defende o reconhecimento estatal da equivalência entre o serviço militar e as ações de assistência espiritual. Novamente temos a Igreja preconizando uma disputa política com o Estado, realizada através de reivindicações, pelo desfrute de mesma posição política do Estado. Se aceita essa reivindicação, inferimos que parcela dos jovens que deveriam prestar serviço militar optariam pela assistência espiritual às forças armadas e às populações civis. Nesta direção, a Igreja atrairia número significativo de jovens das diversas camadas sociais para suas fileiras. Também no campo político há a interferência eclesiástica (5) reivindicando liberdade de constituição dos sindicatos católicos, objetivando que estes desfrutem das mesmas garantias dos sindicatos neutros. Este ponto toca principalmente o mundo do trabalho, tanto os operários quanto os empregadores, os quais também constituíram sindicatos organizados para combater as reivindicações feitas pelos sindicatos dos trabalhadores. Campo de grandes conflitos sociais e políticos, os sindicatos representavam uma organização forte e reconhecida pelo Estado. Lutando pela livre sindicalização, a Igreja atrai para si as atenções de importante parcela da sociedade brasileira. Relativamente à elaboração de nova Constituição, temos (7) a defesa de que esta seja construída apoiada em valores cristãos, buscando a justiça social Esse ponto remete à discussão sobre a importância do social, bandeira católica defendida desde 1891, quando foi editada a Rerum Novarum e que permeia todas essas reivindicações da LEC. Este tema será analisado posteriormente. Tocante a este mesmo tema dos trabalhos de elaboração de nova Carta Constitucional, ainda temos os itens 9 e 10, neste encontramos uma clara 9 FAUSTO, Bóris. Op. cit. p. 306 Vol. IV. 37 referência à influência que a Igreja esperava ter durante os trabalhos da Constituinte, enquanto naquele novamente encontramos formulação que defende a preservação das liberdades individuais, assim como dos direitos dos cidadãos. Quanto aos direitos dos cidadãos temos ainda (8) a defesa dos direitos e deveres da propriedade individual. Este ponto, além de tocar as camadas mais abastadas da sociedade, aquelas que possuem terras, empresas, bens, também serve para esclarecer aos despossuídos qual era sua posição dentro da sociedade. Ou seja, ao passo que defende a propriedade de todos os cidadãos, mas certamente tem maior peso junto às camadas mais altas da sociedade, devido à capacidade e possibilidade destas em possuir maior número de bens, a proposição 8 ainda dispões sobre o locus social dos despossuídos, colocando de maneira sutil uma barreira social entre os grupos que constituem a sociedade. A pressão da Igreja e de setores da sociedade que a ela se aliaram, que se colocavam contrários às políticas estatais, principalmente após a ação da LEC, forçou a abertura dos trabalhos da constituinte, os quais resultaram na promulgação da Constituição de 1934, a qual ficou conhecida como a “Constituição Social” devido ao seu caráter assistencialista. Desta maneira a Igreja conquistou, provisoriamente, direitos que lhe possibilitaram colocar em prática vários de seus projetos sociais. Retomemos, portanto, as análises sobre a Carta de 34. O artigo 138 demonstra a grande preocupação estatal no que concerne ao amparo e auxílio aos necessitados, afirmando vários itens como sendo de responsabilidade da União, dos Estados e dos Municípios10. Este artigo constitucional inicia-se pela proposição de que seria um dever das instâncias governamentais acima citadas, “assegurar amparo aos desvalidos, criando serviços especializados e animando os serviços sociais, cuja orientação procurarão coordenar”. Esta proposição salienta a importância que a questão social havia tomado na sociedade brasileira, assim como a tentativa da União em atrelar essas organizações à si para regulamentar as relações estabelecidas através destas instituições. Esta reflexão será retomada e aprofundada mais á frente.. 10 As próximas citações foram retiradas do artigo 138 da Constituição de 1934 38 Outra questão abordada foi “estimulo à educação eugênica”, questão que merece atenção devido ao preconceito incutido no item constitucional. A sociedade brasileira, tendo sido escravista, desenvolveu o preconceito racial derivado deste modo de produção, contudo a presença de uma defesa da eugenia no texto constitucional revela mais que uma percepção da existência deste preconceito na sociedade brasileira, revela a defesa desta idéia. Isto demonstra que os indivíduos, na sociedade brasileira, não eram tidos, constitucionalmente, como iguais. Controvertidamente temos, no mesmo artigo constitucional, a referência à obrigação de se “cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos sociais”. Salta aos olhos a divergência presente nestes dois pontos do artigo 138, já que neste último estabelece-se constitucionalmente a obrigatoriedade de se cuidar da saúde mental dos jovens, afastando-os dos venenos sociais, enquanto que no ponto anterior temos o apoio à educação eugênica, a qual propaga, com apoio constitucional, o veneno social do preconceito racial, o qual certamente não auxiliará na higiene ou saúde mental dos indivíduos alvo de tal política preconceituosa. “Amparar a maternidade e a infância” através de medidas constitucionais como o “auxílio às famílias de prole numerosa”, remete à já citada importância do social na sociedade brasileira, assim como justifica a denominação recebida por esta Carta Constitucional: Constituição Social. Através destes itens percebe-se o atrelamento das camadas mais pobres da sociedade ao Estado. Somam-se a estas proposições a importância de se “proteger a juventude contra qualquer exploração, bem como contra o abandono físico, moral e intelectual” assim como a obrigatoriedade de se “adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a moralidade e a morbidade infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação das doenças transmissíveis”. Estas duas últimas proposições enfatizam as anteriores completando os setores em que a proteção do Estado se estendia para auxiliar a população moral, mental, físico intelectualmente, assim como restringem a exposição destes cidadãos a medidas exploratórias e vexatórias. Acrescenta-se a estas proposições, o artigo 141 que diz ser “obrigatório, em todo o 39 território nacional, o amparo à maternidade e à infância, para o que a União, os Estados e os Municípios destinarão um por cento das respectivas rendas tributárias”.11 Considerando que a assistência prevista no artigo 141 da Constituição Federal de 1934 será, no que concerne ao amparo à maternidade e à infância referentes ao lar e ao trabalho feminino, de incumbência quanto à fiscalização e controle, de mulheres para tal habilitadas12, temos uma atuação eclesiástica sendo legalmente autorizada. Ou seja, essas políticas sociais e assistenciais do Estado, em grande parte, serão realizadas por instituições ligadas à Igreja, a qual, utilizando-se de uma ideologia baseada nos preceitos cristãos de igualdade e justiça social recrutará, junto às camadas médias da sociedade, pessoas – mulheres principalmente – que, tocadas pelo espírito cristão de solidariedade, tão fortemente difundido nas políticas eclesiásticas, passarão a trabalhar em instituições ligadas à Igreja Católica pelo bem comum. Outros artigos da Constituição de 1934 tratarão do mundo do trabalho ou dos órgãos governamentais através dos quais grande parcela dessas políticas assistenciais e sociais serão subvencionadas. Retomaremos esta questão mais adiante, quando passaremos a abordar as políticas assistenciais da Igreja, e no momento, passaremos à análise das relações entre a Igreja e os diferentes grupos sociais que constituíam a sociedade brasileira de então, onde a Igreja adotou um discurso teológico para cada uma das camadas sociais, traçando políticas que correspondessem à realidade de cada grupo13. Seu discurso junto aos industriais percorria ressaltar sua capacidade de “domestificar os dominados”14. Exercendo grande influência sobre as camadas pobres da população, a Igreja usufruía desta capacidade para criar um discurso direcionado aos industriais. Com a organização do mundo do trabalho e o crescimento das reivindicações, era interessante aos empresários e industrias exercer algum controle sobre esses 11 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1934 Ibidem 13 ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979, p. 21 14 Idem, p. 72 12 40 trabalhadores. A oportunidade surgiu da aproximação e aliança com a Igreja, que tinha capacidade de construir e exercer este controle. Por outro lado, oferecia aos trabalhadores e despossuídos, a luta pela “questão social”, já analisada através das reivindicações da Liga Eleitoral Católica e que retornará à discussão adiante. Também usufruía influência através de seu discurso religioso, que oferecia às camadas menos favorecidas uma esperança à sua condição de pobreza e exploração. Junto à elite social temos uma ideologia estruturada de modo a “diminuir a desigualdade entre as classes e os povos, sempre dentro dos limites do todo hierarquizado.”15 Desta forma a Igreja, ao defender uma melhor distribuição das riquezas, tocando os interesses dos menos favorecidos, procura apaziguar os conflitos de interesses, tocando os industriais, interferindo socialmente porém não hierarquicamente, conservando a estrutura social vigente, apenas diminuindo as diferenças entre cada camada social através da aplicação real da ideologia apresentada. Nesta direção é importante salientar que os discursos ideológicos da Igreja são construídos de maneira a aplicar-se a situações diversas, como destaca Romano na análise sobre as categorias “pobres” e “oprimidos”, freqüentes no discurso eclesiástico, podendo significar “grupos sociais perfeitamente determinados (...) nas quais não se pode reconhecer imediatamente esta ou aquela classe social.16 Como vimos, as elites constituíam um grupo social que apresentava-se hegemonicamente vinculado ao Estado, pois esta parcela da sociedade, anteriormente ao Golpe do Estado Novo, representava o poder e era proprietária de grande concentração de terras17. Contudo, como já apontado no capítulo anterior, a crise do sistema liberal, iniciada em 1929, relativizou este poder da elite nacional. Os grandes proprietários passaram a modificar sua política, unindo-se – porém não de forma totalizante – em torno de uma nova proposta de concentração do poder na tentativa de manterem-se em posição 15 16 Idem, p. 55 Idem, p. 22 41 de destaque na sociedade brasileira. A crise econômica decorrente da Quebra da Bolsa de Nova York (1929) acarretou um decréscimo na capacidade geral de consumo da sociedade brasileira, diminuindo os lucros e a acumulação de capitais dos industriais e produtores agrários – estes encontrando-se muito ligados ao comércio exterior devido á demanda existente pelo principal produto agrícola brasileiro: o café – e repercutindo nas camadas mais baixas da sociedade no tocante ao valor de compra dos salários. A conjuntura econômica desde início da década de 30 encontrava-se atribulada devido à crise cafeeira já instalada anos antes e que se intensificou com a crise mundial. A arena política não estava menos conturbada, devido às reivindicações dos industriais, grupo social que crescia numericamente e que requisitava maior participação política, esbarrando no conservadorismo da burguesia agrária, a qual, pela primeira vez enfrentava um outro grupo social forte. As relações entre Igreja e burguesia agrária mostravam-se pouco desenvolvidas neste momento, pois majoritariamente estas eram controladoras do Estado, fato que mudaria do surgimento da necessidade destes dois poderes, o eclesiástico e o temporal se unirem por interesses políticos. Os industriais, que almejavam o poder, estabeleceram uma relação mais próxima com a Igreja, já que esta estabelecera laços com as camadas trabalhadoras, inclusive tendo lutado, quando da instalação dos trabalhos para a Constituinte, pela liberdade de sindicalização. Sendo assim, criou-se a possibilidade de junção entre as elites e a Igreja, ou entre Estado e Igreja, apesar de suas divergências, quanto às reivindicações dos trabalhadores, como delineadas na encíclica papal Rerum Novarum: A Igreja, “instituída e dirigida por Jesus Cristo, eleva as suas vistas ainda mais alto; propõe um corpo de preceitos mais completo, porque ambiciona estreitar a união das duas classes (patrões e empregados – LWV) até as unir uma à outra por laços de verdadeira amizade18 17 18 A discussão que segue está baseada na fala de Luiz Werneck Vianna, Op. cit., pp. 123 a 163 WERNECK VIANNA, Op.cit. p. 200 42 Antes de discorrer a respeito da citação acima, abro um parênteses para discorrer sobre a Rerum Novarum. Esta encíclica papal foi editada em 1891 pelo Pontífice Leão XIII e possuía um forte caráter social. Cabe, porém, uma questão: porque motivo um documento papal de fins do século XIX teria relevância num cenário nacional totalmente diverso do qual tal documento surgiu? A encíclica Rerum Novarum surgiu num momento em que o Brasil estava se desenvolvendo tecnologicamente. O surgimento de fábricas e o liberalismo estavam se desenvolvendo rapidamente, e nesse contexto a sociedade ainda não havia despertado para a importância do social. Nesta direção temos um documento papal que salienta esta importância do social, declarando-se contra o trabalho como simples mercadoria, mas que não encontra repercussão numa sociedade voltada ao liberalismo. Nos anos 20 o Fordismo chega ao Brasil reproduzindo este liberalismo, transformando o trabalhador que era visto como um indivíduo, numa coletividade de trabalhadores não individualizados. Portanto, mesmo na década de 1920 a Rerum Novarum não encontrou eco na sociedade brasileira (na realidade, não encontrou eco mundialmente). Com a crise do sistema liberal, iniciada no final dos 20 e acentuada nos 30 é que a encíclica teve, pela primeira vez, penetração na sociedade brasileira. Finalizo aqui o parênteses. Retomando a citação podemos analisá-la da seguinte forma: com a postura eclesiástica inaugurada com a Rerum Novarum19 – que surgiu da incapacidade dos Estados nacionais em governarem sozinhos a sociedade e, em conseqüência dessa impotência, terem aberto caminho para a ideologia da Igreja, a qual seria responsável pelo controle das consciências - a Igreja passou a preocupar-se com o mundo do trabalho, criando laços com os industriais. Essas relações foram fortes no campo ideológico, já que os trabalhadores encontravam-se cada vez mais organizados e as reivindicações cresciam a ponto de pressionar fortemente os empregadores. Desta maneira, a Igreja entra no campo de relações do mundo do trabalho com o intuito de apaziguar estas relações 19 Encíclica papal editada por Leão XIII em 1891 e que atentava para a importância do social. 43 conflituosas, além de aumentar sua influência para com esses grupos sociais. A estratégia traçada foi a divulgação, através de seus instrumentos ideológicos, de que o sofrimento vivido pelas massas não era resultado das pressões exercidas pelos interesses das classes mais favorecidas20. A estratégia portanto, era ambígua, pois ao passo que a Igreja penetrava na sociedade através do surgimento da importância do social e da Rerum Novarum, criava laços ideológicos e de identificação com os grupos sociais mais abastados da sociedade, enquanto que o discurso de Lenharo, acima apresentado, destinava-se à criação de uma consciência subalterna e de aceitação da difícil realidade em que estavam inseridos os trabalhadores Através dessa ação a Igreja procurava amenizar os conflitos entre os industriais e os trabalhadores, reforçando a estes qual seu lugar na estrutura social e estendendo àqueles as vantagens de se aliar à Igreja. Paulatinamente, portanto, a Igreja conquistava mais apoios. A crescente insatisfação das diferentes camadas sociais e o aumento da pressão sobre o Estado resultou em 37, no Golpe de Estado por Getúlio Vargas, a partir do qual, para Oliveira Viana, o regime caracterizou-se por uma “política de recristianização do trabalho e da vida”21. Ou seja, a Igreja, com a Rerum Novarum, buscou apaziguar essas lutas sociais com a infiltração de sua ideologia, a qual defendia que “O verdadeiro Estado de Paz aguarda, em primeiro lugar, a superação da ordem do indivíduo liberal e, em segundo, a própria versão moderna do Estado secularizado”, necessitando, para tanto, dos “preceitos da razão natural e dos ensinamentos divinos”22. Nesta direção, utilizando-se da reaproximação com o aparelho estatal, a Igreja procurou expandir seu campo de influências na sociedade, divulgando uma nova concepção de Estado de governança segundo preceitos cristãos. A ideologia do Estado Novo está plenamente representada na promulgação de nova constituição federal, que viria substituir a liberal Carta de 34. A Constituição de 1937 foi redigida com o intuito de atrelar à máquina estatal todos os grupos sociais, 20 21 LENHARO, Op. cit., p. 90 VIANA, Oliveira, As novas diretrizes da política social, p. 113. Citado por LENHARO, Op. cit., p. 182 44 afastando-se da democracia liberal defendida na constituição anterior. Esclarecendo esta questão temos o discurso de Vargas citado na obra de Werneck Vianna: O Estado não conhece direitos de indivíduos contra a coletividade. Os indivíduos não têm direitos, têm deveres! Os direitos pertencem à coletividade. O Estado, sobrepondo-se à luta de interesses, garante só os direitos da coletividade e faz cumprir os deveres para com ela. O Estado não quer, não reconhece luta de classes. As leis trabalhistas são leis de harmonia social.23 Portanto, o novo regime se assentava na coletividade. Suprimindo os direitos individuais, Vargas também esperava suprimir as insatisfações e reivindicações de grupos organizados, incutindo na sociedade a idéia de que o interesse coletivo é mais importante. Esse discurso demonstra, não que os cidadãos não possuíam diretos no novo regime instaurado, mas que tentava-se criar a consciência de coletividade e de subjugação do indivíduo à totalidade. Essa “inferiorização” do indivíduo frente o coletivo na tentativa de suprimir insatisfações de grupos da sociedade demonstra que o Estado estava sofrendo forte pressão social, tendo de encontrar novas formas de cntrole social, o que é feito através da Constituição de 1937, mais repressiva que a anterior. Desta forma Vargas esperava que a coletividade se submetesse ao governo central, atrelamento que, através destas ideologia coletivista, objetivava controlar as relações e as reivindicações sociais. A característica coletivista do novo regime, está presente na abertura da Constituição de 1937: O PRESIDENTE DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL, atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente conturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissíduos partidários, que uma notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, a resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil.24 (grifos nossos) 22 WERNECK VIANNA, Op. cit., p. 201 WERNECK VIANNA, Op. cit., p. 266 24 Nota de abertura da Constituição de 10 de novembro de 1937 dos Estado Unidos do Brasil 23 45 Percebe-se, da leitura da nota de abertura da Carta de 37, a relevância do tema coletividade para o Estado. Este se colocava em condições de centralizar a sociedade e para tanto, necessitava submeter os interesses partidários à União ao mesmo tempo que criava o instrumento de regulação do conjunto da sociedade: a criação de uma coletividade nacional submetida ao governo federal, o qual se legitimava, dentre outros motivos, pela “eminência de uma guerra civil” devido aos “dissídios partidários”. A Carta de 1934 concedera direitos individuais aos diferentes grupos sociais. Com o advento da Carta de 1937, todas estas conquistas foram destruídas pela imposição de um regime coletivista, no qual os interesses individuais encontrar-se-iam submetidos aos da coletividade, que por sua vez seria governada pelo poder central. As relações anteriormente estabelecidas entre o Estado e camadas sociais modificam-se assim como as relações entre a Igreja e o Estado. O Estado, com a promulgação da nova Constituição, “rompe unilateralmente o pacto inscrito na Constituição de 1934, eliminando da Carta de 1937 todas as reivindicações católicas. Ao mesmo tempo, tranqüiliza a Igreja, assegurando que na prática nada mudaria nas relações entre a Igreja e o Estado. A nova situação da Igreja no Brasil, ainda que inalterada externamente, mudou na substância. Sua posição não é mais fruto de um direito inscrito na Constituição mas de uma concessão que dependia do arbítrio do Governo”25. A nova situação preocupava muito o clero, já que este se viu submetido aos interesses estatais sem que encontrasse um respaldo constitucional. É interessante, portanto, a análise das relações estabelecidas entre Igreja e Estado na Constituição de 1937 para podermos perceber, mais claramente, as mudanças que esta nova Carta Constitucional trouxeram à realidade social brasileira. Temos inicialmente o veto à União, aos Estados e aos Municípios ao estabelecimento, subvenção ou embaraço no exercício de cultos religiosos, presente no 25 FAUSTO, Bóris. Op. cit., pp. 340-341. Vol.4 46 Artigo 32 da Constituição26. Portanto a liberdade de culto estava preservada, o que não significa que as políticas religiosas não estivessem sofrendo controle estatal. Em outro artigo, de número 132, temos que “o ensino religioso poderá ser contemplado como matéria do curso ordinário das escolas primárias, normais e secundárias. Não poderá, porém, constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de freqüência compulsória por parte dos alunos”. Colocando o ensino religioso como facultativo nas escolas públicas e tornando desnecessário o controle de presença dos estudantes cujos colégios optassem, por incluir em seu currículo o ensino religioso, restou à Igreja a obrigatoriedade da disciplina nas escolas por ela administradas. Esse caráter facultativo do comparecimento dos alunos nas aulas de ensino religioso e da possibilidade de inclusão ou não da disciplina no currículo escolar de cada estabelecimento de ensino, pode ser entendido como uma tentativa, por parte do Estado, de enfraquecer a influência da Igreja junto à população cujos filhos freqüentavam o ensino público. Por outro lado, ao concentrar-se junto às classes médias e às elites nas escolas e universidades católicas, a Igreja tinha a possibilidade de criar uma elite católica que, futuramente, lhe traria apoio político para a realização dos interesses eclesiásticos. Temos ainda o artigo 124, o qual afirma que “A família constituída pelo casamento indissolúvel está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção dos seus encargos”. Tomando esta citação e comparando-a à segunda reivindicação do programa básico da Liga Eleitoral Católica, perceberemos que este artigo constitucional, é na realidade, uma apropriação por parte do Estado de uma proposta anteriormente feita pela Igreja e defendida pela elite (as quais estavam sendo formadas nos colégios e universidades administrados pela Igreja). Neste tocante temos um exemplo de como o Estado Getulista poderia agir na tentativa de desmobilizar outros grupos organizados que se opunham às suas políticas sociais. Apropriando-se de um ou mais pontos reivindicatórios dos grupos oposicionistas à 26 Esta e as próximas citações foram retiradas da Constituição dos Estados Unidos do Brasil promulgada no ano de 1937 47 política Varguista, Getúlio poderia desmobilizar estes movimentos pela ausência de pontos base nas suas respectivas plataformas políticas. A tônica mais ou menos centralizadora dos regimes de 1934 e 1937, presentes nas respectivas Constituições Federais, se torna mais evidente quando observamos as políticas voltadas às relações do mundo do trabalho. O golpe de Estado ocorreu em 1937, quando a Igreja defendia interesses particulares e tentava, através da liberdade concedida constitucionalmente na Carta de 1934, estabelecer políticas sociais que fossem capazes de conquistar apoios nos mais diversos grupos sociais. Em 1938, porém, houve uma aguda mudança no comportamento eclesiástico. A Igreja passou a apoiar as políticas estatais oferecendo-lhe apoio ideológico na tentativa de aperfeiçoar a política nacional-burguesa27. Essa mudança de direção está presente na obra de Krischke, quando realiza uma análise tomando por base discursos políticos presentes nas revistas A Ordem e Vozes de Petrópolis, ambas publicações da Igreja direcionadas ao clero. Era por meio dessas revistas que a cúpula da Igreja Católica atingia todos os membros da congregação.28 O seguinte trecho de um dos discursos de Vargas, apontado por Krischke, salienta bem essa mudança. O Estado, deixando à Igreja ampla liberdade de pregação, assegura-lhe ambiente propício a expandir-se e a ampliar o seu domínio sobre as almas; os sacerdotes e missionários colaboram com o Estado, timbrando em ser bons cidadãos, obedientes à lei civil, compreendendo que sem ela – sem ordem e sem disciplina, portanto – os costumes se corrompem, o sentido da dignidade humana se apaga e toda a vida espiritual se estanca29. Analisando a citação temos a seguinte reflexão: no que concerne ao trecho onde Vargas afirma que o Estado dá ampla liberdade de pregação à Igreja podemos verificar esta previsão no artigo 32 da Constituição de 1937. Já com relação ao restante do discurso temos que a Igreja passou a ver, em 1938, o Estado como ordenador das relações sociais e 27 KRISCHKE, Op. cit., p. 164 Idem, pp. 164 e seguintes. 29 Discurso de Getúlio Vargas citado por Krischke, Op. cit., p. 167 28 48 responsável pela paz, afirmação que, segundo Krischke, foi apoiada pela Igreja, e que contradiz a citação de Werneck Vianna, para quem a Igreja defendia que para se obter um verdadeiro Estado de Paz é necessário que se supere a sociedade secularizada através de preceitos e ensinamentos divinos. Percebe-se, neste segundo ponto, que o discurso eclesiástico sofreu uma mudança intensa, passando da oposição à avalização do Vargas. Como bem se sabe não era apenas com o Estado que a Igreja se relacionava, mantendo laços com as elites, através das instituições de ensino das quais a Igreja Católica era mantenedora; com as camadas médias da sociedade, com as quais já havia se aproximado desde a Proclamação da República, mantendo relações até hoje; e com as classes trabalhadoras, através dos trabalhos sociais e das reivindicações conjuntas nos trabalhos da constituinte de 34. Neste novo momento temos uma mudança brusca no pensamento eclesiástico, contudo os laços anteriores não foram rompidos. Cabe, neste ponto transportar a discussão às instituições mantidas pela Igreja, as quais terão importante papel a desempenhar na nova conjuntura que se delineia, já que esta se constituíra numa “das poucas instituições nacionais capazes de enfrentar o Estado”, utilizando-se de um discurso em que aparece como sendo a defensora dos direitos humanos, “a voz dos que não têm voz”, preocupada em solucionar os problemas de injustiça social30. As instituições assistenciais da Igreja sempre existiram no Brasil, desde as Santas Casas de Misericórdia, existentes a partir do século XVI. Durante o século XX, no entanto, criou-se a preocupação com o social no Brasil, quando a escassez de alimentos resultante da Primeira Guerra Mundial atingiu os operários das fábricas, e por conseguinte, afetou os meios de produção. Essas dificuldades vivenciadas pelos trabalhadores brasileiros despertou empatia por parte das classes médias urbanas por dois motivos principais, salientados por Warren Dean31. A primeira razão era que a burguesia empregadora de pequeno contingente de mão-de-obra desprezava os grandes empresários 30 31 ROMANO, Op. cit., p. 28 Citado por Werneck Vianna, Op. cit., p. 109 49 e industriais, quanto ao seu modo de produção, no qual os trabalhadores não eram tidos como indivíduos. A Segunda razão era a inflação, principal motivo para as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores, que também trazia dificuldades à burguesia, criando uma identidade entre classe média e trabalhadores. Surgia, desde esse momento, a facilidade da Igreja em angariar pessoas, principalmente mulheres, das camadas médias da população para as fileiras de suas obras sociais. Mas, cabe neste momento a questão posta por Iamamoto e Carvalho: Mas por que uma associação que reúne moças da sociedade se ocuparia de problemas referentes aos indivíduos pobres e carentes? Ao que segue a resposta sugerida pelos próprios autores Essa iniciativa é também legítima e é explicável: ela se baseia num sentimento profundo de justiça social e de caridade cristã, que leva aquelas que dispõem de facilidades de tempo e de meios a auxiliar as classes sociais mais fracas a formar suas elites, para que essas também possam cumprir eficientemente seu dever. Elas mostram a essas elites como deverão se organizar para defender a família e a classe operária contra os ambiciosos e os agitadores que exploram o seu trabalho e a sua ignorância.32 Cabe uma revisão da citação acima no que concerne ao interesse dessas moças de sociedade para com os problemas da classe operária. Iamamoto e Carvalho apresentam uma visão marxista desse interesse das moças da sociedade, no entanto, creio que deve-se questionar a presença da classe operária na citação. Temos a seguinte reflexão: o interesse dessas moças de sociedade estava voltado ao auxílio espiritual, material e social desses pobres, e não no desenvolvimento político, da consciência política desses trabalhadores. Portanto, a reflexão apresentada pelos autores demonstra que estes encontravam-se influenciados pela teoria marxistas, a qual engloba os pobres dentro do mundo do trabalho e os toca, na sua discussão, como estes sendo parte da classe operária. Meu interesse é outro, pretendo analisar estes indivíduos pobres e carentes da assistência social tanto do Estado, quanto da Igreja e de outras camadas sociais apenas como pobres, e não como indivíduos pertencentes à classe operária. Objetivo, com isto, retirá-los do mundo do 32 IAMAMOTO, M. V. e CARVALHO, Raul de. Relações sociais e serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez; [Lima, Peru]: CELATS, 1982. P. 177 50 trabalho e apresentá-los apenas como indivíduos de poucas posses que demandam um auxílio especial da sociedade. Esse interesse das moças da sociedade em trabalharem em prol da assistência dos trabalhadores deve-se, portanto, a sentimentos cristãos, além de interesses próprios da burguesia, os quais já foram explicitados por meio da fala de Warren Dean. Essa aliança assistencialista entre Igreja e burguesia brasileira ocorreu também através da LEC e de inúmeras organizações e instituições de caráter social mantidas ou inspiradas nos ideais cristãos. Porém, quando surgiu esse interesse da Igreja pela assistência social? Primeiramente temos de observar qual é a ideologia cristã e seus valores. Estes, comumente conhecidos reduzem-se, principalmente, á caridade, à partilha, ao sentimento de irmandade entre todos os seres humanos. Portanto, pode-se afirmar que esse caráter social e assistencialista sempre esteve presente nas ações do corpo eclesiástico. Por outro lado, no contexto do ano de 1891, no qual se deu a Proclamação da República, temos de destacar a publicação da encíclica Rerum Novarum, que estabeleceu como objetivos da Igreja a assistência aos trabalhadores. Esta encíclica papal inaugurou um período no qual a Igreja voltou seus olhos ao social, sendo seguida por outras tantas encíclicas de mesmo caráter assistencialista. Cabe destacar, contudo, que as ações assistencialistas da Igreja não foram somente destinadas aos trabalhadores, mas a todo um grupo social marginalizado, por não pertencer ao mundo contido nas relações de trabalho, nem por possuírem meios de produção. Esse universo de atores históricos é formado por desempregados, pessoas que moravam no campo, doentes, pobres e miseráveis que não estavam situados dentro do aparelho produtivo do sistema capitalista nacional. Dentre essas inúmeras instituições da sociedade civil organizada que, baseadas num sentimento católico de auxílio ao próximo, se ocupava do atendimento aos pobres, optamos por uma instituição privada e de caráter assistencialista do período, dedicada ao auxílio desta parcela da sociedade que, anteriormente tomada na historiografia sobre o período como pertencente à classe operária, será revisitada sob uma outra perspectiva, 51 retirando-os do mundo do trabalha para tomá-los apenas como cidadãos despossuídos. A entidade de Assistência Social escolhida deveria fornecer dados suficientes para uma análise consistente das relações estabelecidas entre esta “nova” camada social e o Estado. Escolhemos, para realizar esta análise, que toma caráter de estudo de caso, a Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo e seus protegidos. A TETRAFURCAÇÃO E O PONTO DE CONVERGÊNCIA Inicialmente devemos salientar que a presença, na sociedade, de instituições de caráter caritativo, que visavam o amparo às pessoas pobres e doentes, além de outros, deve-se ao fato de haver uma demanda para tal tipo de auxílio. Essa demanda teria sido percebida não apenas pela observação, por parte de camadas sociais e do Estado e Igreja, da sociedade e a percepção das dificuldades enfrentadas por parcela da população, a qual encontrava-se em situação de pobreza, ou mesmo miséria, mas principalmente da existência de reivindicações partindo desses indivíduos despossuídos, em direção a órgãos e entidades da sociedade e do Estado, pressionando-os para seu atendimento. O estabelecimento destas instituições é uma via de mão-dupla, já que encontramos uma população pobre reivindicando direitos e melhores condições de vida, porém sem possuir uma organização consistente para tal. Por outro, temos a Igreja como instituição de grande apelo junto a este público, buscando, cada vez mais, obter maior influência em todos os setores e camadas da sociedade. Numa terceira via encontramos o Estado, sofrendo pressões de todas as camadas sociais, vendo a insatisfação crescer e percebendo o crescimento da instituição eclesiástica. Portanto, através de instituições como a Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, temos a junção destes três grupos da sociedade. A análise de Roberto Romano auxilia na compreensão destas relações: ...a Igreja assumiu, sob nova fórmula, a tarefa de subsidiar a ação estatal. Não mais através de “obras de caridade” (hospitais, creches, asilos, etc.), mas fazendo com que os próprios dominados tomassem a iniciativa e a gerência daqueles serviços essenciais, com a ajuda de lideranças leigas e religiosas especialmente treinadas neste sentido.1 1 ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979, p. 198 53 A camada pobre da sociedade ganha um órgão representativo organizado, que mesmo não tendo sido constituído através de indivíduos desta própria camada social, lhes é útil, pois tem o reconhecimento da sociedade civil, da Igreja e do Estado, além de possuir força política junto aos órgãos governamentais. A Igreja passa a possuir um campo organizado através do qual difunde sua ideologia e aproxima-se das camadas médias e alta da população, as quais eram formadoras dos corpo social destas entidades. Por último temos o Estado, que através do reconhecimento destas entidades obtém o apoio destas às suas políticas, assim como o apoio eclesiástico e das parcelas mais abastadas da sociedade, já estas constituíam os quadros sociais dessas instituições, e um meio pelo qual poderia difundir sua política social. Cabe acrescentar que essas instituições de assistência social tinham o objetivo de auxiliar essas pessoas despossuídas material, espiritual e intelectualmente, não tendo intenção, ao menos estatutária, de organizar estes indivíduos politicamente. Nesta direção, o interesse não era o desenvolvimento de uma consciência de classe para posterior organização de um movimento classista organizado e politizado, o que ocorria era a ausência de interesse desses indivíduos em se organizarem como grupo social politizado, como classe, já que encontrava auxílio nessas instituições criadas e mantidas por camadas sociais mais abastadas. Não que as reivindicações não existissem ou que essa camada social não pressionasse as demais através destas organizações assistencias para a conquistas de suas demandas, que não havia o estímulo ao surgimento de um movimento organizativo autônomo deste grupo social. Passemos à análise da entidade de assistência social alvo da discussão deste trabalho científico. A estrutura de funcionamento da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo se dá da seguinte maneira: senhoras da sociedade civil, inspiradas pelos valores cristãos de caridade, amor e auxílio ao próximo, interessando-se em empregar seu tempo na assistência aos pobres e doentes, entram em contato com a Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo e inserem-se na mesma na qualidade de Dama Contribuinte, passando a destinar um valor mensal estipulado à 54 entidade, a qual utilizará este recurso na realização de ações assistenciais aos seus protegidos. Num segundo momento, após certo período não estipulado, a Dama Contribuinte pode exteriorizar seu interesse em se tornar Dama Ativa, atribuição que lhe responsabilizará pela realização de visitas semanais aos domicílios dos protegidos da Associação de São Vicente. Considera-se grande honra desfrutar desta posição, pois apenas as Damas Contribuintes católicas praticantes fiéis às insígneas da instituição são aceitas como Damas Ativas. Também é corriqueiro angariar recursos junto à população, através de pedidos feitos porta a porta além de doações anônimas ou nominais feitas à Associação, a qual possui parceiros fixos que lhe destinam uma renda mensal. São realizadas reuniões mensais da Associação, às quais qualquer membro da instituição pode comparecer. Leva-se em consideração a presença nestas reuniões no momento de elevar uma Dama Contribuinte ao status de Dama Ativa. Estas sessões mensais são sempre presididas por um pároco, o qual é proprietário do título de Diretor da Associação de São Vicente. Nestas reuniões, sempre iniciadas com orações, leituras de manuais de conduta das damas pertencentes ao quadro social da instituição e sermões do Diretor, têm-se o despacho de correspondências, assuntos relevantes para a instituição, além da apresentação do balancete mensal. Semanalmente têm lugar na sede da Associação de São Vicente, atualmente às quartas-feiras, distribuição de gêneros alimentícios, roupas e outros itens aos pobres matriculados na instituição, ou seja, aqueles que estão formalmente vinculados à Associação. Além disso, têm-se eventualmente a distribuição de senhas ou “cartões avulsos” a pobres não matriculados, os quais, nestas ocasiões especiais, também recebem gêneros. É também nestes dias de distribuição de gêneros que os pobres não matriculados podem requisitar uma visita aos seus domicílios objetivando uma matrícula junto à instituição. O intuito dessas visitas semanais efetuadas pelas Damas Ativas é o de verificar a necessidade dos pobres protegidos pela instituição em continuarem recebendo o auxílio desta. Uma vez que a Dama Ativa visite a residência de um dos matriculados e defina que 55 este não se encontra em situação tão profunda de pobreza, esta requisita à diretoria da Associação de São Vicente, a retirada do cartão daquele domicílio, este passando a não mais possuir vínculo com a Associação. Mas de que maneira estes pobres matriculados são selecionados? Através do pedido de visita ao seu domicílio ou à informação, junto à entidade, de que determinado domicílio encontra-se em situação de pobreza, é efetuada a visita por uma dupla de Damas Ativas, as quais, comparativamente, define se aquele domicílio encontra-se necessitando de auxílio externo. Sabemos como está estruturada a Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, assim como a maneira pela qual atua, mas quais são seus objetivos? Através de virtudes como a simplicidade, humildade, mansidão, mortificação e zelo2, as Damas pertencentes ao quadro social da Associação têm por principal objetivo a visita e o auxílio aos pobres além de “assisti-los material e espiritualmente, ensinando-lhes as doutrinas e práticas do Cristianismo. Materialmente, visitando-os em suas doenças e proporcionando-lhes o tratamento necessário ao restabelecimento de sua saúde”3. Cabe, agora, analisarmos como se dava a passagem destes valores e destas virtudes para os pobres, pela Associação de São Vicente. A presença de um padre como Diretor da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, além do fato desta ser uma instituição inspirada nos valores católicos, representava a presença da Igreja na Associação. Os discursos proferidos pelo padre, que à época (1934-1945) era o Padre Ladislau Kulla, no início de cada reunião mensal da instituição, eram ideologicamente inspirados nos interesses da cúpula da Igreja Católica do Brasil. Através destes discursos podemos também verificar, a partir da leitura das Atas das reuniões mensais da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, que o discurso do Estado também penetrava na instituição através destes sermões de abertura das sessões ordinárias 2 Estas virtudes foram apontadas por São Vicente de Paulo como as características básicas formadoras do espirito das Damas da Caridade através das quais devem efetuar a sua obra assistencial. Edição comemorativa do centenário das Associações de Caridade de São Vicente de Paulo. 100 anos: 1900 2000 , p. 41 3 ANDREATTA, Roldite; BORBA, E. R. de L e BORSA, L. R. Terceiro setor, responsabilidade social e voluntariado. Curitiba: Champagnat, 2001, p. 14 56 da Associação. Percebemos esta infiltração ideológica através da análise de trechos de quatro atas, todas constantes dos Livros de Atas existentes na sede da Associação de São Vicente4. A primeira ata corresponde à sessão ordinária do dia 06 – 11 - 1935 e apresenta o seguinte discurso do Diretor Padre Ladislau Kulla: (O Reverendo Ladislau Kulla) aconselhou que trabalhassemos com firmeza cooperando assim a Acção Catholica a combater as heresias e seitas contra a nossa religião Ao que acrescenta em outro momento, no dia 06 – 05 – 1936, após apresentar a Parábola do Rico Opulento presente na Bíblia, uma crítica direcionada exclusivamente ao Espiritismo: Mostra-nos, também, Jesus nesta Parabola que depois da nossa morte ficaremos para sempre no lugar que o merecermos, não sendo pois verdade o que dis o Espiritismo que os espiritos baixam e se reincarnam. Esis o assumpto para nossa meditação. Estes trechos mostram a intenção da Igreja Católica em se estabelecer como única religião nacional. No primeiro trecho temos numa clara investida contra as demais religiões, denominando-as heresias e seitas, em especial o “comunismo”, presente nas tensões sociais, segundo a Igreja. Essas denominações eram uma maneira de desqualificálas aos olhos das Senhoras de Caridade, as quais repassam esses ensinamentos e reflexões aos pobres nas visitas domiciliares realizadas semanalmente. Temos também a citação da Ação Católica. Este movimento é uma “associação de leigos destinada ao combate religioso (de religiões que não a católica), social e mesmo político, sem ser um partido e sob estrito controle da hierarquia eclesiástica”5. A menção à Ação Católica e a cooperação que será destinada pela Associação a este movimento, demonstra que as intenções e/ou objetivos da Associação não se resumiam à visitação dos domicílios de seus protegidos, permeando outros campos da vida social, como a política. 4 Toda a citação feita a partir das fontes será efetuada respeitando-se a grafia da época, não interferindo no compreendimento do mesmo. 57 A segunda citação rende um outro debate, permeado pela presença e expansão do Espiritismo na sociedade brasileira. O Espiritismo encontra terreno fértil no Brasil, principalmente junto às camadas mais pobres da sociedade, as quais, não vendo perspectivas de melhora de suas condições de vida, encontram no Espiritismo um apaziguador para suas aflições terrenas, jogando suas angústias para uma vida que virá. Assumindo que após sua morte seu espírito retornará à Terra reencarnado em outro corpo, o pobre passa a imaginar que, embora enfrente uma situação de pobreza no presente, posteriormente, numa outra vida, terá a oportunidade de usufruir de uma melhor condição social e humana. A Igreja Católica, não dispondo de uma ideologia capaz de confrontar essa visão do Espiritismo, tem, como única possibilidade, desqualificar o discurso espírita. As duas maneiras, apontadas nas atas da Associação, através das quais a Igreja Católica busca afastar a população do “perigo do espiritismo”, estão representadas em outros dois discursos proferidos pelo Padre Kulla no início das reuniões mensais da Associação. (o Padre Ladislau Kulla) aconselhou aos Pobres que deviam resignadamente supportar a sua pobreza pensando sempre que Jesus foi o mais pobre dos pobres. Este foi o discurso, realizado no dia 25 – 06 – 1935, através do qual a Igreja, na Associação de São Vicente, por intermédio de seu diretor, tentou contornar a ausência de um discurso, na ideologia católica, capaz de confrontar uma visão esperançosa do pobre através do discurso Espírita. Ou seja, não possuindo um discurso que tivesse o apelo tranquilizador que o Espiritismo apresentava, a alternativa católica era a resignação do pobre frente as dificuldades enfrentadas, buscando apaziguá-lo, não com uma visão de uma vida melhor numa outra oportunidade que seria recebida através da reencarnação, mas relativizando, até mesmo menosprezando, a situação de pobreza enfrentada pelo 5 FAUSTO, Bóris, Op. cit. vol. 4, p. 303. 58 indivíduo, apresentando Jesus como sendo o maior dos pobres e maior sofredor que já existiu. Outra das medidas tomadas pela Igreja Católica para enfrentar o inimigo do Espiritismo foi o apelo à crença e à fé dos indivíduos, pedindo que as Damas da Caridade fizessem “orações para conseguirmos a graça de afastar dos nossos pobres a prática do espiritismo que infelizmente está cada vez mais se propagando e se inraizando no meio da pobreza”. Este trecho é parte constituinte da ata do dia 04 – 11 – 1936. Este segundo discurso demonstra a ausência, na ideologia católica, de um discurso capaz de enfrentar a sedução que o discurso espírita aflorava na população pobre. É também uma ação menos efetiva que a tentativa de criação de discurso apresentado pela citação anterior. As reflexões anteriores diziam respeito, principalmente, à intervenção da Igreja Católica na ação da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo. Apontaremos, agora, a infiltração da ideologia estatal nos discursos do Reverendo Ladislau Kulla presentes nas atas da Associação. Nesta direção apontamos a ata do dia 01 – 10 – 1937, onde encontramos o seguinte discurso: ...passando-se ao expediente o nosso dignissimo Director apontou-nos o perigo que o communismo ameaça, e pediu que todos os cathólicos neste mez do Santo Rosario, confórme Pastoral recomendem suas orações e préces á Nossa Senhóra para que nos livre do Communismo atheu. A infiltração da ideologia estatal na Associação é salientada, no trecho seguinte, presente na obra de Werneck Vianna; No dia em que, com a adoção do salário mínimo, a miséria do operariado houver desaparecido e a exploração dos humildes pelos poderosos se tornar impossível, o comunismo terá perdido o seu melhor argumento e o recurso mais seguro de sua propaganda... Algo teríamos que fazer mesmo que o comunismo não existisse; já que ele está aí, façamos imediatamente.6 59 O comunismo assustava o Estado não devido à sua forte presença na sociedade brasileira, ou à uma ameaça real que este representava no período recortado. Nesse ínterim, o comunismo representava para o Estado uma ameaça de revolta social. A grande ameaça era a tensão social que poderia surgir da confrontação de valores e modos de produção entre os sistemas capitalista e socialista, a ameaça de a sociedade se inspirar em influências e ideais comunistas assim como na experiência da União Soviética, ocasionando o surgimento de tamanha tensão social que desencadeasse uma revolução ou uma guerra civil. Em relação ao discurso proferido pelo Reverendo Ladislau Kulla temos que, a Associação de São Vicente, apresentando-se como de caráter assistencial voltado ao atendimento e auxílio dos pobres, não remetia sua influência ao campo político de forma explícita. No entanto, já analisamos que, na realidade, havia uma inclinação política por trás dessa ação social que, neste momento, já encontrava-se vinculada aos interesses e políticas estatais. Sendo assim, a Associação não podia defender claramente uma posição política, revestindo, neste caso, o discurso político estatal sobre o comunismo, caracterizando-o como ateu. Desta maneira, criando um diálogo entre as ideologias católica e do Estado, temos a criação, por parte de Ladislau Kulla, de um discurso político capaz de tocar, através de um caráter religioso, as Damas da Caridade. Outra forma através da qual o discurso construído pela Igreja e propagado, na Associação, através dos discursos do diretor, atingiu os pobres foi a criação de aulas de catequese, as quais tiveram início em junho de 19367. Estas aulas eram destinadas aos filhos dos pobres protegidos pela instituição, servindo de meio disseminador da ideologia Eclesiástco-Estatal junto às famílias pobres, já que, esperava-se, os conteúdos ministrados nas aulas de catequese fossem comentados em casa pelos alunos. Outra maneira era nas festividades realizadas pela Associação para comemorar uma data específica, onde, na abertura da festa, era realizado um discurso pelo diretor. Esta questão está explicitada na 6 Editorial de 16 de janeiro de 1936, citado por WERNECK VIANNA e que por sua vez, foi retirado da tese de mestrado em História do Brasil A ideologia liberal de O Estado de São Paulo (1932 – 1937), de autoria de Maria Lígia Coelho Franco 60 ata do dia 03 – 06 – 1936, na qual “ficou acertado que seria dada instrução religiosa aos pobres antes da distribuição de bens. O Arcebispo também pediu ao Vigário auxílio à instrução religiosa nas escolas”. Outros tipos de auxílio prestados aos pobres pelo Associação, que no entanto não representavam uma maneira de propagação de ideologias, eram a distribuição gratuita de medicamentos na Farmácia da instituição, a qual era abastecida por doações de médicos e farmacêuticos sensibilizados pela causa defendida pela Associação, além da oferta de consultas médicas no Ambulatório, realizadas por médicos munidos de valores cristãos de doação. Percebe-se que a ação caritativa dessas senhoras tinha forte apelo junto à população, já que, por ser uma instituição sem fins lucrativos, mantinha-se em funcionamento através da arrecadação de doações voluntárias da população em geral e de empresas. Além disso, vimos que auxílios diferenciados, como as consultas médicas, eram realizadas gratuita e voluntariamente pelos profissionais das respectivas áreas de atuação e conhecimento. A capacidade da Associação de São Vicente de conquistar adeptos à sua causa se devia a que? Para tentar responder esta questão saliento principalmente a posição social ocupada por estas senhoras membros do quadro social da dita instituição de caridade. Pertencentes a famílias de prestígio na sociedade curitibana, estas senhoras, através do usufruto desta posição social, resgatavam suas relações dentro do alto círculo social da capital paranaense. Esta rede de contatos, constituída por casamentos e outros tipos de relações – profissionais, amizade - entre essa elite da sociedade criava um ambiente propício para o desenvolvimento desta associação. Não raro, estas senhoras tinham acesso inclusive à pessoas inseridas na administração municipal, estadual e até mesmo federal. Além deste fator das relações pessoais, percebemos que, ao passo que a Associação de São Vicente se 7 Ata da Reunião Ordinária Mensal da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, do dia 03 – 06 – 1936. 61 desenvolvia, tornou-se uma instituição respeitada pela sociedade, desfrutando do apoio e reconhecimento de órgãos administrativos nas instâncias municipal, estadual e federal. A primeira referência encontrada nas fontes sobre o estabelecimento de vínculo entre o Estado e a Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo diz respeito à promulgação do Decreto-Lei 3.200 de 19418. Esta legislação dispõe sobre a organização e proteção da família, no que toca a Associação no Capítulo XIII, Artigo 30: As instituições assistenciais, já organizadas ou que se organizarem para dar proteção às famílias em situação de miséria, seja qual for a extensão da prole, mediante a prestação de alimentos, internamento dos filhos menores para fins de educação e outras providências de natureza semelhante, serão, de modo especial, subvencionadas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. (grifos nossos) Este Decreto denota a influência da ideologia social da Igreja, que através da Rerum Novarum lutava contra os males da civilização moderna, contra as principais características do Liberalismo, que inseria a sociedade numa relação intensa entre capital (K) e trabalho (T), retirando sua individualidade em prol dos interesses mercadológicos da sociedade. Este Decreto demonstra a forte pressão que a Igreja exercia nas políticas estatais. A Associação de São Vicente atuava junto a este público pobre e miserável através da realização de variadas ações de mesma natureza das destacadas no texto legislativo. Esta subvenção mencionada na legislação seria concedida mediante apresentação de relatório anual de atividades das entidades interessadas em recebê-la. Outros documentos, os quais não são referenciados no Decreto ou nos documentos produzidos pela Associação, também eram requisitados. À decretação desta legislação seguiu-se referência em ata da Associação do recebimento de carta do Presidente do Departamento Nacional do Café, Sr. Dr. Jaime Guédes (órgão parceiro da instituição, à qual destinada doação mensal do produto agrícola e até mesmo doando a quantia de vinte contos de réis (20:000$000) que foram 8 Este é do dia 19 de abril de 1941. 62 enviados por intermédio do Banco do Brasil9), onde se lê uma breve exaltação da Associação pelos serviços prestados em favor dos pobres, “amparo este que agora vem merecer um decreto-lei especial do benemérito Governo da República”10. Além desta referência temos, em vários momentos, a partir de abril de 1941, a menção a respeito da subvenção federal, que no caso da Associação de São Vicente, somava o montante de Cr$ 10.000,00 (dez mil cruzeiros)11. Contudo, na documentação da Associação, dos anos de 1942 a 45, percebemos que, embora em condições de receber essa subvenção federal devido às características exigidas na legislação e às quais a instituição correspondia, surgem dificuldades com documentação acarretando no atraso do recebimento, por parte da Associação de São Vicente, da subvenção anual da União no período acima delimitado. A leitura das atas das reuniões da Associação de São Vicente nos permite acompanhar as dificuldades enfrentadas pela Associação, no atendimento às exigências documentais para requerimento da subvenção federal. Temos primeiramente o telegrama enviado pelo Ministro do Trabalho, Ataulfo de Paiva solicitando apresentação de documentação – resposta a um questionário constante de formulário do Conselho Nacional do Serviço Social – para liberação da quantia referente à subvenção12. Não tendo recebido a subvenção anual, (mas recebeu a extraordinária) a presidente da Associação recorre aos serviços do Dr. João de Oliveira Franco, pedindo, via telegrama, 9 Ata do dia 06 – 06 – 1941 da reunião ordinária da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo. 10 Ata da reuinão mensal da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo do dia 02 – 05 – 1941. 11 A moeda corrente mudou em 1942 de Contos de Réis para Cruzeiros, e em nenhum momento foi especificado o valor referente à subvenção federal, anteriormente a 1942, portanto, não podemos determinar qual era o montante. 12 Ata de 06 – 02 – 1942 de reunião mensal da Associação. Temos uma ressalva a fazer sobre este telegrama. Na mesma ata, encontramos que “a presidente [da associação] informou já ter sido enviado o dito questionário e pediu a Sra. D. Stella Faro, pedindo informações a respeito, si é sobre a subvenção que recebemos anualmente, ou si é sobre a subvenção extraordinária pedida pró Construção do Dispensário”. Nossa ressalva é quanto ao caráter da subvenção: anual ou extraordinário. Salientamos ainda, que os ganhos em estrutura física da Associação serão abordados posteriormente. 63 sua interferência “junto a poder competente sobre credito subvenção 1942”13 acrescentando que esclarecesse junto a esse poder competente, de que maneira deveriam agir para obter o crédito de 1943. A resposta deste encontra-se nesta mesma ata, onde diz “que o referido crédito já tinha sido assinado pelo Presidente Exmo. Dr. Getúlio Vargas”. Ainda a este respeito temos as atas de agosto, novembro e dezembro de 1944 e maio, junho, novembro e dezembro de 1945, nas quais encontramos referências a um ofício enviado por José de Nazaré Teixeira Dias, Diretor do Departamento de Administração (Divisão do Orçamento) do Ministério da Educação e Saúde, comunicando a aprovação da prestação de contas apresentada, possibilitando o envio das subvenções federais referentes aos exercícios de 1942 e 1943, além da necessidade de nova documentação para liberação de subvenção referente ao ano de 1944. A subvenção de 1945 enfrentou novos problemas para ser liberada, o que resultou na intervenção junto ao Ministro Ataulfo Paiva, além de menções feitas pelo Padre Ladislau Kulla e a presidente a respeito das dificuldades enfrentadas junto à burocracia do Estado. Apesar de não ter recebido a subvenção federal do exercício de 1945, temos que a Legião Brasileira de Assistência - LBA14, neste mesmo ano, fez duas doações à Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo ambas no valor de Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros) que, somadas, perfazem o montante de Cr$ 10.000,00 (dez mil cruzeiros) anualmente destinada à Associação pela subvenção federal. De certa maneira, portanto, a Associação recebeu a subvenção federal correspondente ao ano de 1945, apenas tendo havido modificação no órgão governamental que o enviou: do da Divisão do Orçamento do Departamento de Administração do Ministério da Educação e Saúde para a Legião Brasileira de Assistência. Esta longa referência à subvenção federal fez-se necessário por esta representar o mais forte elo entre a Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo e a máquina estatal, inclusive tendo havido a intervenção de representantes da entidade junto 13 Ata da Associação de São Vicente referente ao mês de junho de 1943. 64 a autoridades competentes, e a intervenção destas junto ao Estado. A documentação a este respeito demonstra-se farta, com grande quantidade de correspondências trocadas entre estes representantes da Associação e do Estado. A relação entre Associação de São Vicente e Estado representada por esta troca de correspondências demonstra que a demanda do público alvo da instituição - os indivíduos pobres e carentes – havia crescido de tal maneira que o Estado, em 1941, foi forçado a intervir através do Decreto-Lei 3.200, passando a destinar um auxílio anual, representado na subvenção federal, às entidades de caráter caritativo que se ocupavam do atendimento das demandas desta parcela da população. Estas reivindicações e as pressões resultantes últimas aumentavam ano a ano no Governo Vargas, tanto que em 1945 a insatisfação de todas as camadas da sociedade, incluindo estes pobres carentes, havia crescido a ponto de ocasionando a deposição de Getúlio. Além de apresentar um significativo exemplo da influência das camadas médias e alta da população junto ao aparelho estatal, de maneira a salientar a relação comentada na abertura deste capítulo. Que frutos, além da subvenção federal a Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo obteve com a preocupação do Estado e Igreja para com o social e o apoio destes à instituição? Os ganhos em estrutura física foram evidentes, assim como a diversificação dos serviços assistenciais oferecidos pela Associação. Dentre estes últimos já salientamos a criação da farmácia15, e a oferta de consultas médicas realizadas no ambulatório. Outra das obras assistenciais surgidas no período foi a creche para atender aos pais que não podem passar todo o período com seus filhos devido ao tempo que dedicam ao trabalho e para que, nos dias de distribuição de gêneros, as crianças ficassem em outra área das instituição enquanto seus pais recebiam os donativos. Esta foi construída juntamente com o Dispensário16, construção esta iniciada em 19 – 07 – 1941. Neste 14 Órgão Federal criado em 1942 por Getúlio Vargas, presidido desde então pelas primeiras-damas e que destinava-se à aplicação das políticas sociais do Estado. 15 Criada em 1935 16 Espaço destinado à distribuição dos gêneros alimentícios e outros bens materiais. 65 momento retomamos a citação de número 11, onde comentamos sobre um pedido, direcionado ao Governo Federal, de subvenção extraordinária para que se tornasse possível a construção do novo Dispensário e da Creche. À esta obra somou-se a construção de nova sede completa, a qual foi inaugurada em abril de 1942, em cerimônia presidida pelo Interventor Federal, Senhor Manoel Ribas. Para esclarecer essa farta documentação a respeito da subvenção federal, construímos a seguinte tabela, cujos dados foram colhidos na leitura dos Livros Caixa da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, referentes ao período de 1941 a 1950. Tabela de Subvenção Federal Ano Crédito (valor) Referente a 08/1941 10$000 * Referente à subvenção do ano de 1940 1942 ________ _________________ 08/1943 $ 10.000,00 ** Subvenção Federal referente ao ano de 1943 12/1944 $ 30.000,00 ** Subvenção Federal referente aos anos de 1941/ 42 e 45 1945 ________ _________________ 1946 ________ _________________ 08/1947 $ 20.000,00 ** Subvenção Federal referente aos anos de 1946/ 47 Total *** $ 70.000,00 Fonte: própria, construída a partir da leitura dos Livros-Caixa da Associação de São Vicente • Contos de Réis ** Cruzeiros *** Total recebido referente aos anos civis de 1940 a 1946. Observa-se a irregularidade da transferência da subvenção federal à instituição, tendo sido regular apenas nos anos de 43 e de 44, o que revela a frustração de crédito regular o que fica demonstrado também na troca de correspondências, conforme a leitura 66 das Atas. Inferimos que, em parte isto ocorreu por insuficiência da documentação exigida, em parte pela lentidão da burocracia do aparelho de Estado. Retomando a leitura das atas, temos outro fato a destacar: o pedido da Associação, dirigido ao Governo Federal, do reconhecimento por parte deste da “Utilidade Pública, [da instituição] afim de ser isenta de impostos”17. Medida tomada devido à comunicação do Prefeito à Associação informando “que a mesma deverá pagar os impostos taxados e que ele poderá então dar um auxílio anual no valôr identico aos impostos”18. As informações contidas nestas atas são controversas se observarmos o texto da Lei nº 91 de 1935, no qual são determinadas regras através das quais as instituições da sociedade poderiam requerer o título de Utilidade Pública. Esta lei define que apenas as “sociedades civis, as associações e as fundações constituídas no paiz com o fim exclusivo de servir desinteressadamente á collectividade podem ser declaradas de utilidade publica”19. O caráter assistencial da Associação e o fato desta realizar suas ações utilizando-se de doações e arrecadações sem visar o lucro possibilitava à instituição o requerimento do referido título. A contradição apontada fica por conta do Artigo 3º da mesma lei, onde encontramos a afirmação de que “nenhum favor do Estado decorrerá do título de utilidade publica, salvo a garantia do uso exclusivo, pela sociedade, associação ou fundação, de emblemas, flammulas, bandeiras ou distinctivos proprios, devidamente registrados no Ministerio da Justiça e da menção do titulo concedido”. Contudo, encontramos uma referência em ata da Associação de São Vicente, de pedido de reconhecimento do Presidente da República da instituição como de Utilidade Pública, afim de se isentar de impostos municipais20. Não era apenas da União que a Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo recebia apoio financeiro. Outras instituições ligadas às esferas administrativas do Governo contribuíram para a causa da instituição. Dentre estas 17 Ata de 05 – 05 - 1944 Ata de 04 – 02- 1944 19 Texto do Artigo 1º da Lei nº 91 do ano de 1935 18 67 podemos citar o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal do Paraná e o Banco do Estado do Paraná. Inicialmente, nas atas, encontramos referência a depósito pontual do Banco do Brasil em nome da instituição, realizado em julho de 194321, quando recebeu donativo no valor de Cr$ 10.000,00. O Livro-Caixa da Associação exclusivamente empregado para o registro das doações feitas em prol do Natal22 da instituição, demonstra as doações realizadas pelos estabelecimentos bancários acima citados. Para facilitar a leitura dos dados utilizaremos novamente a construção de uma tabela. Notar que a tabela foi construída a partir do ano de 1935, e não 1937, devido ao fato da primeira contribuição de órgãos governamentais ter ocorrido neste ano. Acreditando que este fato é importante, optamos por construir a tabela incluindo os anos de 1935 e 36. 20 Ata do dia 05 – 05 – 1944. Saliento não constar informações dentre a documentação pesquisada, sobre a data em que a Associação recebeu tal título. 21 Ata da Reunião Mensal da Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, do dia 02 – 07 – 1943. 22 A Associação organizava, anualmente, uma festa de Natal da qual todos os pobres protegidos pela instituição, além de todos os pobres avulsos e as damas que constituíam o quadro social da entidade, podiam participar. Nesta festa eram distribuídos presentes às crianças e gêneros alimentícios e roupas às famílias. Geralmente era na comemoração natalina que a Associação realizava a maior distribuição anula e 68 Tabela das contribuições em prol do Natal dos pobres Ano Caixa Econômica Banco do Banco do Estado Prefeitura Federal do Paraná Brasil do Paraná Municipal de Curitiba 1935 50$000 * 100$000 * _______ _______ 1936 50$000 * 100$000 * 100$000 * _______ 1937 100$000 * 200$000 * 200$000 * 100$000 * 1938 ________ 200$000 * 200$000 * _______ 1939 ________ 200$000 * 200$000 * _______ 1940 ________ 500$000 * 500$000 * _______ 1941 1:000$000 * 1:000$000 * 500$000 * _______ 1942*** ________ 500,00 ** 1:500$000 * _______ 1943 3.000,00 ** 10.000,00 ** 2.000,00 ** _______ 1944 2.500,00 ** 10.000,00 ** 2.500,00 ** _______ 1945 3.000,00 ** 5.000,00 ** 3.000,00 ** _______ Fonte: própria, construída a partir da leitura do Livro-Caixa referente aos donativos para o Natal do pobres • Valores em Contos de Réis ** Valores em Cruzeiros. *** Notar que os valores constantes deste ano estão apresentados em Cruzeiros e em Contos de Réis já que foi neste ano que houve a mudança na moeda corrente, tendo sido realizada uma contribuição antes da mudança e outra posterior. Temos ainda, a partir de 1945, uma doação mensal do Governo do Estado do Paraná no valor de Cr$ 3.000,00. Percebemos, através das análises das fontes apresentadas, um crescente interesse do aparelho governamental, nas esferas Federal, Estadual e Municipal, para com a assistência social. Gradualmente o Estado foi donativos, também atingindo os presidiários e doentes físicos e mentais internados em instituições de saúde da capital paranaense. 69 intervindo, política e economicamente, na intenção de proporcionar meios legais pelos quais a Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo - representante de inúmeras instituições de interesse social já existentes ou surgidas no período – pudessem realizar melhor suas ações. As relações estabelecidas entre a população pobre e carente e o Estado foi representada pela experiência histórica das relações entre Estado e Associação de São Vicente. Este relacionamento se deu através de trocas de correspondências, Legislação, Decreto-Lei, Subvenção Federal e donativos recebidos das instâncias Municipal, Estadual e Federal. Em troca, a Associação apresentava seu apoio às políticas governamentais, além de representar um locus organizado através do qual o Estado podia disseminar sua ideologia junto à população despossuída. CONCLUSÃO A intenção primeira deste trabalho era, através da análise das interpretações e discussões historiográficas a respeito da experiência populista brasileira delimitada entre os anos de 1937 e 1945, estabelecer uma outra interpretação, principalmente voltada às relações estabelecidas entre o Estado e os despossuídos. No entanto as fontes disponíveis não possibilitaram dar voz a estes indivíduos pobres, não pudemos, portanto, estudar a fala destes atores históricos, porém não desviamos nosso foco de estudo. Ao verificar a impossibilidade de se analisar as relações existentes entre o aparelho estatal e os indivíduos pobres da população, reorientamos nosso trabalho para a análise que as fontes nos possibilitavam: estudar as relações entre o Estado e instituições que representavam socialmente esta camada populacional. Ao optarmos pela análise de uma instituição em particular, nosso trabalho passou a ter caráter de estudo de caso. Para efetuá-lo foi importante caracterizar quem foram esses indivíduos e como eles se encontravam representados nos trabalhos anteriormente realizados a respeito deste período histórico, portanto definimo-los como indivíduos despossuídos que representam uma releitura, uma reconceituação, da camada social constituída pelos trabalhadores das indústrias, analisada na historiografia Estadonovista sob a denominação de classe operária. Assumimos ainda que os indivíduos considerados despossuídos não sempre, menos ainda na sua totalidade, pertencem ao mundo do trabalho, alguns mesmo sem atividade econômica definida, doentes demais para assumirem uma posição em indústrias e/ou outras atividades econômicas. Centrando nosso estudo no universo de indivíduos atendidos pela Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, procuramos demonstrar como se dava, na prática, as relações entre o Estado e essa camada social carente de ações sociais. Contudo, nosso discurso se desenvolve a partir do marxismo-thompsoniano, que define que as mudanças históricas se dão através de experiências humanas, às quais decorreriam o surgimento de uma consciência de classe. Estas experiências estariam representadas nas 71 fontes produzidas pela associação, mais precisamente os Livros de Atas da Associação de São Vicente, onde encontramos relatos de pedidos feitos à Associação de São Vicente pelos pobres por ela protegidos, relatos que demonstram a percepção da situação de pobreza em que estes indivíduos encontravam-se inseridos. Para a realização deste trabalho assumimos as mais recentes discussões a respeito do Estado Novo. Estas afirmam que embora o Estado fosse hegemônico, pressões advindas dos interesses das diferentes camadas sociais forçavam o Estado ao atendimento de suas reivindicações, se não de todas, de parcela delas. Ou seja, o recente debate historiográfico defende que o que ocorreu durante o Estado Novo foi uma relação dual entre o Estado e a sociedade, com esta pressionando o Estado para o atendimento de reivindicações, as quais foram parcialmente atendidas. Não uma relação construída em moldes totalitários, em que a sociedade estaria subjugada ao aparelho estatal, sendo manipulada e recebendo como uma dádiva, direitos .cedidos pelo Estado. Nesta direção, temos que esses indivíduos pobres, tendo consciência de suas dificuldades, reivindicam direitos ao Estado. Contudo, por não possuírem uma organização eficiente, vêem em instituições de assistência social uma alternativa ao atendimento de suas demandas. Uma dessas instituições existentes no período foi a Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, que tinha seu quadro social formado por senhoras da sociedade civil pertencentes às camadas superiores da sociedade curitibana, representando, aos olhos destes despossuídos, uma possibilidade de se aproximarem, através das redes de contatos construídas por estas senhoras, de indivíduos pertencentes à administração estatal. A Associação representava uma organização através da qual esses indivíduos carentes poderiam se aproximar dos poderes competentes, pressionando efetivamente o aparelho estatal para o atendimento de suas reivindicações. Ao mesmo tempo, enquanto estas reivindicações não eram atendidas pela União, os pobres encontravam, na Associação, uma possibilidade de atendimento imediato de suas necessidades primeiras, como alimentação e vestuário, além de orientação espiritual. Além disso, a Associação de 72 São Vicente representa o “ponto de convergência” mencionado no título do capítulo anterior, onde se encontram o Estado, a Igreja, a sociedade civil e os pobres carentes, grupos sociais que representam a “tetrafurcação” também mencionada. O caminho percorrido para abordar esta relação Estado-despossuídos, perpassou, neste trabalho, o estudo das análises historiográficas sobre as relações sociais estabelecidas entre as diferentes camadas sociais do período do Estado Novo. As camadas sociais utilizadas nesta análise foram a burguesia agrária, os industriais, as camadas médias da sociedade, a Igreja, o Estado e os indivíduos em situação de pobreza. Além deste estudo temos a análise de documentação governamental, representada pelas Cartas Constitucionais de 1934 e 1937, além do Decreto-Lei 3.200 e da Lei nº 91/35. Livros-Ata e Livros-Caixa da Associação de São Vicente também foram utilizados. Através das análises das fontes procuramos demonstrar, em caráter de estudo de caso, como se dava a relação entre o Estado e os indivíduos pobres, representados neste estudo, pela Associação das Senhoras de Caridade de São Vicente de Paulo, a qual representava socialmente os interesses dessa camada populacional durante o período do Estado Novo, problemática central deste trabalho científico. 73 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. 4 ed., rev. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999 FONSECA, Pedro César Dutra. 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