SÃO PAULO: TRÊS CIDADES... NESTE INÍCIO DE SÉCULO SÂOPAULO: TRÊS CIDADES EM UM SÉCULO, de Benedito Lima de Toledo. São Paulo: Cosac & Naify/Duas Cidades, 2004. FRAYA FREHSE Vinte e quatro anos depois de ter vindo a público, o mais conhecido livro do arquiteto Benedito Lima de Toledo reaparece em sua terceira edição. O autor aproveitou a oportunidade para, subsidiado por um bem cuidado projeto gráfico, apresentar ao leitor uma variedade comparativamente maior de reproduções em preto e branco de desenhos, aquarelas, fotografias e de cartões postais referidos ao centro da cidade de São Paulo entre as décadas de 1860 e de 1970. As editoras acolheram o intento com grande sensibilidade, anexando ao verso da segunda capa do livro um mapa atual do centro paulistano no qual aparecem identificados os pontos de vista a partir dos quais foram feitas 24 das 120 imagens — desenhos e aquarelas por artistas-viajantes do século XIX, fotografias e cartões postais fotográficos por autores diversos, oitocentistas e novecentistas. Isso para não falar de um útil "índice de logradouros e edifícios" mencionados ao longo da obra, e que aparece nas páginas finais da publicação (pp. 188-92). No que se refere ao texto, Toledo o ampliou em alguns momentos e reagrupou seus itens e subitens — o autor não fala em capítulos, e, com efeito, não há como fazê-lo, uma vez que o que está em jogo são breves contextualizações históricas das transformações por que passaram, no período contemplado, as áreas e bairros centrais, as ruas, os logradouros públicos (largos, praças, jardins e parques), o mobiliário urbano (pontes, viadutos), os edifícios públicos e particulares retratados nas imagens. Acompanhada dos respectivos textos, a farta iconografia é o subsídio documental mais importante para a formulação da tese principal do livro, sintetizada pelo arquiteto numa metáfora que se tornou célebre: São Paulo seria um "palimpsesto" que de tempos em tempos receberia uma escrita nova, de qualidade literária inferior (p. 77);uma cidade que entre as décadas de 1870 e o momento em que veio a público o livro teria sido reconstruída sobre si mesma três vezes. Percorrer as reproduções de desenhos, aquarelas, fotografias, e também os mapas originais apresentados ou retrabalhados por Toledo, de fato subsidia, à primeira vista, a impressão de três momentos históricos distintos na aparência arquitetônica e urbanística da cidade: a era das igrejas, das casas térreas e dos sobrados coloniais; a dos palacetes e edifícios públicos neoclássicos e ecléticos; a dos arranha-céus modernistas. São momentos, aliás, que o projeto gráfico empregado nesta edição ajuda a discernir melhor como tais através da tonalidade acinzentada que distingue entre si três blocos de texto que insinuam ser as três partes principais da obra — "A cidade de taipa", "Palimpsesto", "Projetos para uma metrópole" —, antes que a conclusão sinalize, no título, a tese do autor: "Em um século, três cidades". Antes de vir a público no formato de livro em 1981 e de ser reeditado em 19831, o texto tinha aparecido no Suplemento do Centenário de O Estado de S. Paulo, no próprio jornal O Estado de S. Paulo e no Jornal da Tarde, conforme explicita uma nota no verso da folha de rosto das primeiras duas edições da obra. Infelizmente, essas informações, cruciais para uma compreensão contextualizada da obra, não integram a atual edição. Aliás, menções ao fato de esta ser a terceira, revista e ampliada, só aparecem respectivamente na ficha catalográfica apresentada na página final do livro e no texto da quarta capa, do fotógrafo Cristiano Mascaro. Ao ser lançado, São Paulo: Três cidades em um século foi saudado por um arquiteto como "alerta tardio" em relação à "viabilidade dos nossos assentamentos urbanos de hoje"2 . Outro profissional da área apontou como "sugestivo" o título da obra, que mostraria a "evolução dessa 'incontrolável' cidade"3. Essas duas manifestações expressam uma recepção positiva da proposta de Toledo, ao menos por parte de alguns arquitetos. E foi elogiada principalmente a riqueza da iconografia utilizada4 , até então "pouco explorada"5. De fato, até aquele momento o emprego desse tipo de documentação na historiografia paulistana produzida dentro ou fora dos muros da Universidade tivera um caráter eminentemente ilustrativo, constituindo as imagens anexos pouco comprometidos com o texto escrito, meras exemplificações de como São Paulo teria sido num passado mais ou menos distante 6 . Foi em 1981 que veio a público, contando, aliás, com a colaboração de Toledo, uma primeira obra com e sobre reproduções até então inéditas de vistas de São Paulo produzidas pelo fotógrafo carioca Militão Augusto de Azevedo (18371905) respectivamente em 1862 e 18877 , na seqüência à defesa de uma dissertação de mestrado em que era apresentada de forma pioneira a coleção de vistas urbanas e de retratos do mesmo Militão8. Quando se tem em conta esse contexto mais amplo de publicações sobre a São Paulo do século XIX e do início do XX, consegue-se compreender a inovação que São Paulo: Três cidades em um século representou para o debate sobre as mudanças arquitetônicas e urbanísticas que a cidade atravessara nesse período. Era a primeira vez que um autor utilizava imagens até então pouco conhecidas do grande público como [1] Cf. respectivamente Toledo, Benedito Lima de. São Paulo: Três cidades em um século, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1981, e Toledo, Benedito Lima de. São Paulo: Três cidades em um século. 2a ed. ampl. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983. [2] Cf. Segawa, Hugo. "São Paulo: três cidades em um século". Projeto. Arquitetura, planejamento, desenho industrial, construção (São Paulo), 31, julho 1981, p. 16. [3] Cf. Bruna, Paulo. "Refazendo a paisagem". Folha de S. Paulo, 25 de janeiro de 1982. [4] Ibidem. [5] Cf. Segawa. Hugo, op. cit. [6] Cf., por exemplo, Freitas, Affonso A. de. Tradições e reminiscências paulistanas. 2a ed. rev. e ampl. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1955 [1a ed. 1921]: Bruno. Ernani da Silva. História e tradições da cidade de São Paulo. 3 vols. São Paulo: Hucitec, 1983 [1ª ed. 1953-1954]. [7] Cf. Toledo, Benedito Lima et alii. Álbum comparativo da cidade de São Paulo 1862-1887. Militão Augusto de Azevedo. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 1981. [8] Cf. Kossoy, Boris. Militão Augusto de Azevedo e a documentação fotográfica de São Paulo (1862-1887): Recuperação da cena paulistana através da fotografia. Dissertação de Mestrado em Ciência. São Paulo, Fundação Escola de Sociologia e Política, 1978. [9] Cf., entre outros, Lemos, Carlos A. Alvenaria burguesa. Breve história da arquitetura residencial de tijolos em São Paulo a partir do ciclo econômico liderado pelo café. São Paulo: Nobel, 1985; Toledo, Benedito Lima de. Prestes Maia e o urbanismo moderno em São Paulo. São Paulo: Empresa das Artes, 1996; Barbuy, Heloisa Maria Silveira. A cidade-exposição: Comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914 (Estudo de história urbana e cultura material). Tese de Doutorado em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo — USP, 2001. [10] Cf. Lima, Solange Ferraz de e Carvalho, Vânia Carneiro de. Fotografia e cidade: Da razão urbana à lógica de consumo. Álbuns de São Paulo, 1887-1954. Campinas: Mercado de Letras/Fapesp, 1997; Cavenaghi, Airton José. Imagens que falam: Olhares fotográficos sobre São Paulo (Militão Augusto de Azevedo e 'São Paulo Light and Power Co.', fins do século XIX e início do século XX). Dissertação de Mestrado em História. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP, 2000; Melo, Leandro Lopes Pereira de. História & energia 9: A Light revela São Paulo: Espaços livres de uso público do centro nas fotografias da Light (1899-1920). São Paulo: Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo, 2001. [11] Cf. Marins, Paulo César Garcez. Através da rótula. Sociedade e arquitetura urbana no Brasil. Séculos XVIIXX. Tese de Doutorado em História. 2 vols. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 1999; Lima, Solange Ferraz de. Ornamento e cidade: Ferro, estuque e pintura mural em São Paulo (1870-1930). Tese de Doutorado em História Social. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas — USP, 2001. [12] Cf. Frehse, Fraya. Vir a ser transeunte. Civilidade e modernidade nas ruas da cidade de São Paulo (entre o início do século XIX e o início do século XX). Tese de Doutorado em documentação primária para escrever sobre as transformações urbanísticas paulistanas. Quase um quarto de século depois da primeira edição da obra, já não é novidade o uso de pinturas e fotografias de vistas urbanas paulistanas do passado novecentista como fonte para pesquisas, sejam elas sobre as mudanças físicas que alcançaram São Paulo no período9 , sobre a relação entre essas transformações ou sobre o modo de representar visualmente, por exemplo, a cidade10 ; a sociabilidade11; a civilidade nas ruas12 . Em face de um universo investigativo com tais contornos, a reedição do livro de Toledo representa, em especial no aniversário de 450 anos da cidade, uma celebração da importância documental da iconografia, em particular da fotografia, na abordagem do passado paulistano por parte das mais diversas disciplinas, do urbanismo à história e às ciências sociais. É verdade que o argumento da destruição e reconstrução seqüencial da cidade ao longo de um século se sustenta mais por meio do texto do que da iconografia. Neste, Toledo enfatiza justamente a dinâmica de demolições e construções que marcou determinadas edificações públicas e particulares, ruas e largos de São Paulo a partir de finais do século XIX. Já quando se contempla a seleção de imagens, outra lógica vem à tona. A maioria se refere à "cidade de taipa" e àquela erguida até os anos de 1930 no centro paulistano. E o leitor fica com dificuldade de reconhecer visualmente a terceira cidade, anunciada textualmente como realidade histórica na seqüência à metrópole dos anos de 1930 (p. 125), em particular depois da "Segunda Grande Guerra", quando "os grandes empreendimentos vieram destruir, um a um, os documentos arquitetônicos da cidade" (p.181). Há como ressaltar um aspecto adicional, tendo-se em mente possibilidades analíticas que as imagens, em especial as fotografias, oferecem ao observador. Muitas reproduções fotográficas daquilo que seria a segunda cidade — e mesmo a única vista que parece, pela altura e aparência dos arranha-céus retratados, se referir à terceira urbe (p. 179) — revelam que se São Paulo é como um "palimpsesto", que periodicamente recebe uma nova escrita, isso não impede que permaneçam no pergaminho indícios da escrita anterior, traços do passado. E aqui não penso tanto na presença, nas cenas retratadas, de detalhes que insinuam indivíduos em movimentos corporais reveladores de regras de conduta do passado escravista, como pude constatar recentemente, ao estudar fotografias de rua de São Paulo entre finais do século XIX e o início do XX13. Restringindo-me estritamente ao enfoque arquitetônico e urbanístico privilegiado por Toledo na abordagem da iconografia, penso na paisagem construída que várias das imagens representam. Embora as composições ressaltem a então moderna arquitetura neoclássica e eclética, a presença viva do passado se deixa intuir, por exemplo, na extensão dos lotes ou na aparência dos velhos telhados coloniais escondidos atrás de fachadas ornadas muitas vezes por artesãos formados no Liceu de Artes e Ofícios14. A presença persistente desses e outros detalhes nas fotografias, perceptíveis ainda hoje quando se passeia pelo centro da urbe, contribuíram e contribuem tanto quanto as respectivas "novas escritas" para a aparência arquitetônica que São Paulo foi assumindo ao longo do século XX. Sob esse prisma, as três cidades não se sucederam num século, mas coexistem e perfazem não apenas a metrópole do momento em que Toledo lançou o seu livro, mas também aquela deste início de século XXI. Deixemos, entretanto, tais ponderações entre parênteses, para os fins deste texto. Afinal, São Paulo: Três cidades em um século já é obra adulta ao reaparecer, revista, em 2004. O que merece ser abordado é o impacto que a forma e o conteúdo dessa reaparição pode ter sobre o leitor que tiver o livro em mãos pela primeira vez. A reestruturação dos itens e, conseqüentemente, das imagens que acompanham o texto, contribuiu de maneira significativa para sistematizar mais, em comparação com as edições anteriores, os dados referidos às diversas áreas da cidade. Em especial o agrupamento dos itens em torno daquilo que venho chamando de três partes da obra favoreceu uma transmissão mais didática da proposta do autor. Se essas modificações enaltecem a reedição de uma obra que marcou época na reflexão urbanística sobre a história de São Paulo, não se podem, entretanto, obliterar algumas dificuldades implícitas às mudanças operadas para a atual edição. O local das imagens foi, em alguns casos, alterado, mas não aquele em que, no texto, aparecem referências a essas mesmas imagens. Isso não seria problema se a nova localização tivesse sido sinalizada no texto, mas, como isso nem sempre ocorreu, às vezes o leitor se depara com descrições de aquarelas e fotografias que verá apenas nas páginas subseqüentes, sem ter sido para esse fato previamente orientado (pp. 23, 68, 69, 103). Também a reestruturação do texto acarretou, às vezes, ônus para a compreensão do livro. A alteração da seqüência de alguns itens fez com que a necessária contextualização de determinados assuntos aparecesse em um momento posterior àquele em que o assunto é referenciado pela primeira vez. Foi o que aconteceu, por exemplo, com dados profissionais a respeito do arquiteto sueco Carlos Ekman. Eles são elencados vinte páginas depois de o nome ter sido mencionado de passagem pela primeira vez (cf. respectivamente pp. 116-17 e 91). Há como entender o porquê de tal seqüência confrontando esta edição com as duas anteriores de São Paulo: Três cidades em um século. Na segunda edição, por exemplo, versão ampliada da primeira, o item que contextualiza a atuação de Ekman aparece antes daquele em que o nome do arquiteto é apenas brevemente citado15. Há como perceber o empenho em adequar as referências temporais utilizadas por Toledo ao momento atual, o que faz todo o sentido se não se forneceram informações sobre a data da primeira edição do livro. No entanto, o intento do ajuste nem sempre foi bem-sucedido. Antropologia Social. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP, 2004. [13] Ibidem, pp. 527-30. [14] Sobre os ornamentos na arquitetura paulistana até os anos de 1930, cf. Lima, Solange Ferraz de, op. cit., esp. pp. 56-62. [15] Cf. Toledo, Benedito Lima de. op. cit., 1983, respectivamente pp. 90 e 96. Não foram alteradas todas as indicações temporais utilizadas por referência ao início dos anos de 1980, quando saíram as primeiras duas edições do livro. A afirmação, por exemplo, de que os desenhos do britânico Charles Landseer sobre São Paulo em 1827 teriam sido divulgados "recentemente" (p. 23) se explicita tendo-se por referência 1981, mas não 2004. Se não se queria alterar o conteúdo do texto original, teria sido apropriada a inclusão de uma nota explicativa contextualizando a que momento o termo "recentemente" se refere (cf. nesse sentido também p. 49). Caso contrário, o leitor pouco familiarizado com a documentação de época sobre a São Paulo oitocentista pode se confundir. Face a outros trechos do texto, é necessário conhecer a história de São Paulo e as edições anteriores da obra de Toledo para compreender plenamente o significado do que está sendo dito. Assim, por exemplo, a afirmação de que "qualquer mapa de São Paulo de fins do século passado ou início do presente nos dá a impressão de inacabado" (p. 78). A alusão é ao final do século XIX e ao início do XX, e não, como se poderia pensar com base na data da edição atual do livro, ao final do XX e ao início do XXI. Uma dúvida semelhante poderia vir à tona diante da pergunta de Toledo "como seria São Paulo no início deste século?" (p. 82). Em meio ao muito que mudou entre as primeiras duas e a atual edição, alguns aspectos permaneceram inalterados. O arquiteto continua, como no passado, não se restringindo à iconografia como fonte primária. Além de apresentar imagens e comparar entre si algumas de tipos documentais distintos — aquarelas e fotografias —, em determinado momento (pp. 23 ss) o autor lança mão, para descrever "a cidade de taipa" do período colonial, de correspondência jesuítica, documentação em relação à qual aponta para a necessidade de "discernimento" (p. 17). Assim, esboça uma crítica de fontes que inexiste em relação ao material iconográfico utilizado. Outra fonte que perpassa a obra são relatos de viagem (em especial referidos ao século XIX), além de, em alguns momentos, documentação oficial, como a transcrição de um relatório decisivo para a aparência do Vale do Anhangabaú a partir do século XX: o documento produzido pelo arquiteto francês Joseph Antoine Bouvard para a prefeitura paulistana em 1911 acerca das potencialidades urbanísticas que enxergava para a cidade (pp. 126-27). Infelizmente, nem sempre o que permaneceu inalterado na atual versão pode ser considerado positivo. Sobretudo quando se leva em conta que a atual é uma "reedição revista" de um livro que veio a público há mais de duas décadas. O arquiteto atribui a Militão Augusto de Azevedo a autoria de algumas fotografias que identifica como tendo sido feitas no início dos anos de 1860, apesar de essas imagens não serem referenciadas num livro recente que traz o até agora mais completo inventário já publicado da obra produzida pelo fotógrafo na décadaem questão16 , e que apresenta até mesmo reproduções da coleção de Toledo17. Não somente a identificação da autoria de algumas imagens contém problemas. A datação também. Numa fotografia do Largo de São Francisco que Toledo define, na legenda, como sendo de Militão em 1862, aparece um bonde a burros (p. 52). Ora, os primeiros veículos do tipo começaram a circular em São Paulo a partir de outubro de 1872, como evidenciam os jornais da época18 . Em outro momento, Toledo identifica, também na legenda, uma imagem do Rio Tamanduateí como tendo sido feita por Militão em 1860 (p. 63). Todavia, perto do canto esquerdo da metade superior da imagem aparece a fachada do primeiro mercado da cidade, "construído", segundo o historiador Ernani da Silva Bruno, em 186719 , ou seja, depois de 1860, ano indicado pelo arquiteto para a produção da imagem (p. 62). Se Bruno não fornece evidências históricas para a data que propõe, tampouco Toledo o faz, em relação à fotografia em questão. Outro signo que, presente na mesma imagem, dificulta apontar "1860" como ano de produção desta é a presença de chaminés de fábrica no fundo da cena retratada: as primeiras indústrias teriam começado a operar na cidade na década de 187020 . Outras imprecisões na datação se fazem notar no corpo principal do texto. A demolição da Igreja do Palácio do Governo, por exemplo, data de 189621, e não de 1899 (p. 86). E se nos anos de 1950 foram construídas uma "réplica da igreja e do colégio primitivos", a questão, que o autor não explicita no livro, é qual a aparência "primitiva" utilizada como parâmetro para a construção, tendo-se em conta que a edificação demolida em finais do XIX não se assemelhava em nada à choupana de pau-a-pique que existia no local nos primeiros anos da povoação, nem às edificações em taipa ali erguidas e reerguidas nos séculos XVII e XVIII. Há ambigüidade em alguns dados apresentados mais de uma vez na obra: eles não coincidem. É o caso da abertura do novo Viaduto do Chá, referida uma vez como tendo ocorrido em 18 de abril de 1938 (p. 135) e outras duas vezes, em 1936 (pp. 153-54). Já o local de origem da estrutura arquitetônica da Estação da Luz, por sua vez, é, conforme uma primeira menção nesse sentido, a Inglaterra (p. 97) e, em outro momento, a Escócia — Glasgow é a cidade referida (p. 176). Tampouco alguns dados históricos conferem. Toledo atribui, por exemplo, a autoria de uma citação sobre a construção da estrada de ferro entre São Paulo e Santo Amaro ao empresário carioca "Henrique" Raffard em 1883 (p. 125). No entanto, naquela que é a fonte da citação22 , referenciada na atual edição, o trecho aparece como parte de uma transcrição que o mencionado autor, que assina o texto como Henri Raffard, teria feito de "alguns tópicos do prospecto publicado em 1883 pela Companhia de Carris de Ferro S. Paulo a Santo Amaro"23. Outra incorreção: uma das denominações da Praça da República "até o advento da República, em 1889" parece ter sido Largo 7 de Abril24 , e [16] Cf. Lago, Pedro Corrêa do. Militão Augusto de Azevedo. São Paulo nos anos 1860. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/Editora Capivara, 2001, esp. pp. 231-50. [17] Ibidem, pp. 50-52, 53, 56-7, 108-9. [18] Cf. Frehse, Fraya. O tempo das ruas na São Paulo de fins do Império. São Paulo: Edusp, 2005, pp. 122. [19] Cf. Bruno, Ernani da Silva, op. cit., vol. 3., p. 1133. [20] Ibidem, pp. 1168-173. [21] Cf., por exemplo, N/a [Não assinado], "Igreja do Collegio", O Estado de 5. Paulo, 15 de março de 1896. [22] Cf. Raffard, Henri. Alguns dias na Paulicéia. São Paulo: Academia Paulista de Letras, 1977 [ia ed. 1892]. [23] Ibidem, p. 59. [24] Cf. "Mappa da capital da Pcia. de S. Paulo. Seos Edifícios públicos, Hotéis, Linhas férreas, Igrejas Bonds Passeios etc. publicado por Frdo. Albuquerque e Jules Martin em Julho 1877", reproduzido in Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo. São Paulo antigo. Plantas da cidade. São Paulo: Melhoramentos, 1954, planta 8. [25] Cf. respectivamente "Mappa da capital da Pcia...", loc. cit.; Freitas, Affonso A. de, op. cit., p. 134 A/B. [26] Cf. Santos, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano. São Paulo e pobreza (1890-1915). São Paulo: Annablume/Fapesp, 1997, pp. 83-119. [27] Cf., entre outros, Corrêa, Anna Maria Martinez. A Rebelião de 1924 em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1976, esp.pp. 95-181; Martins, José de Souza. Subúrbio. Vida cotidiana e história no subúrbio da cidade de São Paulo: São Caetano do Sul, do fim do Império ao fim da República Velha. São Paulo/São Caetano do Sul: Hucitec/Prefeitura de São Caetano do Sul, 1992, pp. 259-98. não "Largo 7 de Setembro" (p. 170). Este último era, na época aludida no texto, o nome dado ao antigo largo do Pelourinho, localizado onde hoje se encontra o Fórum João Mendes25. Justamente porque o objetivo foi produzir uma "reedição revista" de São Paulo: Três cidades em um século, a atual versão poderia ter incorporado revisões desse tipo, assim como de interpretações que, contidas nas edições anteriores, estudos históricos produzidos no ínterim acabam, mesmo involuntariamente, colocando em xeque. Assim, por exemplo, a idéia de que a "várzea do Carmo manteve-se pouco ocupada até 1918". Pesquisa recente mostra a intensa presença de comunidades africanas ali no século XIX e no início do XX26 . Chamo a atenção para essas questões tendo em vista eventuais dificuldades de leitores não familiarizados com a história ou a historiografia paulistanas. Nesse sentido também, não fica claro em que contexto histórico se deram algumas das transformações urbanas que, evocadas por Toledo, subsidiam a imagem do palimpsesto. Uma referência, mesmo que passageira, às crescentes exportações açucareiras do interior paulista teria auxiliado na compreensão do tipo de obra de cunho urbanístico incentivada pelo capitão-geral Bernardo José Maria de Lorena na cidade de finais do século XVIII (pp. 14-7). Em outro momento do texto, é apenas mencionado o bombardeamento do Convento da Luz por "disparos da revolução", em 1924 (p. 58). E o leitor mais desavisado fica sem conhecer o alcance histórico da afirmação, tributária do fato de que edificações do centro e do subúrbio paulistano foram bombardeadas pelas forças do governo federal durante as três semanas em que a cidade permaneceu dominada pelos militares rebelados sob o comando de Isidoro Dias Lopez27 . Aludir a esses aspectos variados não impede que se aplauda a iniciativa de reeditar, com um projeto gráfico tão sensível, um livro relevante para a história da reflexão urbanística de cunho acadêmico produzida por arquitetos brasileiros acerca de cidades brasileiras, acerca de São Paulo. A obra de Toledo evidencia não somente a busca de alguns desses profissionais por um maior aprofundamento teórico em relação à lógica urbanística que envolve a cidade como cenário e objeto de sua prática projetual. São Paulo: Três cidades em um século é ainda testemunho pioneiro do reconhecimento, por parte desses arquitetos, de que uma compreensão arquitetônica e urbanística mais aprofundada da cidade não prescinde de uma interlocução intensa com a história. E desse diálogo que brota a possibilidade da formulação de metáforas tão criativas quanto a do palimpsesto, que, provocativa, fornece um parâmetro a partir do qual refletir sobre as apropriações urbanísticas de que São Paulo é objeto ainda hoje em dia. FRAYA FREHSE, doutoranda em antropologia social pela USP, é professora de antropologia na Escola de Sociologia e Política e de história da cidade na Escola da Cidade, além de pesquisadora do Núcleo de Antropologia Urbana da USP.