são paulo: três cidades... neste início de século

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SÃO PAULO: TRÊS CIDADES...
NESTE INÍCIO DE SÉCULO
SÂOPAULO: TRÊS CIDADES EM UM SÉCULO,
de Benedito Lima de Toledo. São Paulo: Cosac & Naify/Duas Cidades, 2004.
FRAYA FREHSE
Vinte e quatro anos depois de ter vindo a público, o mais conhecido
livro do arquiteto Benedito Lima de Toledo reaparece em sua terceira
edição. O autor aproveitou a oportunidade para, subsidiado por um
bem cuidado projeto gráfico, apresentar ao leitor uma variedade
comparativamente maior de reproduções em preto e branco de
desenhos, aquarelas, fotografias e de cartões postais referidos ao centro
da cidade de São Paulo entre as décadas de 1860 e de 1970. As editoras
acolheram o intento com grande sensibilidade, anexando ao verso da
segunda capa do livro um mapa atual do centro paulistano no qual
aparecem identificados os pontos de vista a partir dos quais foram
feitas 24 das 120 imagens — desenhos e aquarelas por artistas-viajantes
do século XIX, fotografias e cartões postais fotográficos por autores
diversos, oitocentistas e novecentistas. Isso para não falar de um útil
"índice de logradouros e edifícios" mencionados ao longo da obra, e
que aparece nas páginas finais da publicação (pp. 188-92).
No que se refere ao texto, Toledo o ampliou em alguns momentos e
reagrupou seus itens e subitens — o autor não fala em capítulos, e, com
efeito, não há como fazê-lo, uma vez que o que está em jogo são breves
contextualizações históricas das transformações por que passaram, no
período contemplado, as áreas e bairros centrais, as ruas, os
logradouros públicos (largos, praças, jardins e parques), o mobiliário
urbano (pontes, viadutos), os edifícios públicos e particulares
retratados nas imagens.
Acompanhada dos respectivos textos, a farta iconografia é o subsídio documental mais importante para a formulação da tese principal
do livro, sintetizada pelo arquiteto numa metáfora que se tornou
célebre: São Paulo seria um "palimpsesto" que de tempos em tempos
receberia uma escrita nova, de qualidade literária inferior (p. 77);uma
cidade que entre as décadas de 1870 e o momento em que veio a público
o livro teria sido reconstruída sobre si mesma três vezes. Percorrer as
reproduções de desenhos, aquarelas, fotografias, e também os mapas
originais apresentados ou retrabalhados por Toledo, de fato subsidia,
à primeira vista, a impressão de três momentos históricos distintos na
aparência arquitetônica e urbanística da cidade: a era das igrejas, das
casas térreas e dos sobrados coloniais; a dos palacetes e edifícios
públicos neoclássicos e ecléticos; a dos arranha-céus modernistas. São
momentos, aliás, que o projeto gráfico empregado nesta edição ajuda a
discernir melhor como tais através da tonalidade acinzentada que
distingue entre si três blocos de texto que insinuam ser as três partes
principais da obra — "A cidade de taipa", "Palimpsesto", "Projetos
para uma metrópole" —, antes que a conclusão sinalize, no título, a tese
do autor: "Em um século, três cidades".
Antes de vir a público no formato de livro em 1981 e de ser reeditado
em 19831, o texto tinha aparecido no Suplemento do Centenário de
O Estado de S. Paulo, no próprio jornal O Estado de S. Paulo e no Jornal da
Tarde, conforme explicita uma nota no verso da folha de rosto das
primeiras duas edições da obra. Infelizmente, essas informações,
cruciais para uma compreensão contextualizada da obra, não integram
a atual edição. Aliás, menções ao fato de esta ser a terceira, revista e
ampliada, só aparecem respectivamente na ficha catalográfica
apresentada na página final do livro e no texto da quarta capa, do
fotógrafo Cristiano Mascaro.
Ao ser lançado, São Paulo: Três cidades em um século foi saudado por
um arquiteto como "alerta tardio" em relação à "viabilidade dos nossos
assentamentos urbanos de hoje"2 . Outro profissional da área apontou
como "sugestivo" o título da obra, que mostraria a "evolução dessa
'incontrolável' cidade"3. Essas duas manifestações expressam uma
recepção positiva da proposta de Toledo, ao menos por parte de alguns
arquitetos. E foi elogiada principalmente a riqueza da iconografia
utilizada4 , até então "pouco explorada"5.
De fato, até aquele momento o emprego desse tipo de
documentação na historiografia paulistana produzida dentro ou fora
dos muros da Universidade tivera um caráter eminentemente
ilustrativo, constituindo as imagens anexos pouco comprometidos
com o texto escrito, meras exemplificações de como São Paulo teria
sido num passado mais ou menos distante 6 . Foi em 1981 que veio a
público, contando, aliás, com a colaboração de Toledo, uma primeira
obra com e sobre reproduções até então inéditas de vistas de São Paulo
produzidas pelo fotógrafo carioca Militão Augusto de Azevedo (18371905) respectivamente em 1862 e 18877 , na seqüência à defesa de uma
dissertação de mestrado em que era apresentada de forma pioneira a
coleção de vistas urbanas e de retratos do mesmo Militão8. Quando se
tem em conta esse contexto mais amplo de publicações sobre a São
Paulo do século XIX e do início do XX, consegue-se compreender a
inovação que São Paulo: Três cidades em um século representou para o
debate sobre as mudanças arquitetônicas e urbanísticas que a cidade
atravessara nesse período. Era a primeira vez que um autor utilizava
imagens até então pouco conhecidas do grande público como
[1] Cf. respectivamente Toledo, Benedito Lima de. São Paulo: Três cidades
em um século, São Paulo: Livraria
Duas Cidades, 1981, e Toledo, Benedito Lima de. São Paulo: Três cidades em um século. 2a ed. ampl. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983.
[2] Cf. Segawa, Hugo. "São Paulo:
três cidades em um século". Projeto.
Arquitetura, planejamento, desenho
industrial, construção (São Paulo),
31, julho 1981, p. 16.
[3] Cf. Bruna, Paulo. "Refazendo a
paisagem". Folha de S. Paulo, 25 de
janeiro de 1982.
[4] Ibidem.
[5] Cf. Segawa. Hugo, op. cit.
[6] Cf., por exemplo, Freitas, Affonso
A. de. Tradições e reminiscências
paulistanas. 2a ed. rev. e ampl. São
Paulo, Livraria Martins Editora, 1955
[1a ed. 1921]: Bruno. Ernani da Silva.
História e tradições da cidade de São
Paulo. 3 vols. São Paulo: Hucitec, 1983
[1ª ed. 1953-1954].
[7] Cf. Toledo, Benedito Lima et alii.
Álbum comparativo da cidade de São
Paulo 1862-1887. Militão Augusto de
Azevedo. São Paulo: Prefeitura do
Município de São Paulo, 1981.
[8] Cf. Kossoy, Boris. Militão Augusto de Azevedo e a documentação
fotográfica de São Paulo (1862-1887):
Recuperação da cena paulistana através da fotografia. Dissertação de
Mestrado em Ciência. São Paulo,
Fundação Escola de Sociologia e
Política, 1978.
[9] Cf., entre outros, Lemos, Carlos
A. Alvenaria burguesa. Breve história da arquitetura residencial de tijolos em São Paulo a partir do ciclo
econômico liderado pelo café. São
Paulo: Nobel, 1985; Toledo, Benedito
Lima de. Prestes Maia e o urbanismo
moderno em São Paulo. São Paulo:
Empresa das Artes, 1996; Barbuy,
Heloisa Maria Silveira. A cidade-exposição: Comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914 (Estudo
de história urbana e cultura material). Tese de Doutorado em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo —
USP, 2001.
[10] Cf. Lima, Solange Ferraz de e
Carvalho, Vânia Carneiro de. Fotografia e cidade: Da razão urbana à
lógica de consumo. Álbuns de São
Paulo, 1887-1954. Campinas: Mercado de Letras/Fapesp, 1997; Cavenaghi, Airton José. Imagens que falam:
Olhares fotográficos sobre São Paulo (Militão Augusto de Azevedo e
'São Paulo Light and Power Co.', fins
do século XIX e início do século XX).
Dissertação de Mestrado em História. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP,
2000; Melo, Leandro Lopes Pereira
de. História & energia 9: A Light revela São Paulo: Espaços livres de uso
público do centro nas fotografias da
Light (1899-1920). São Paulo: Fundação Patrimônio Histórico da
Energia de São Paulo, 2001.
[11] Cf. Marins, Paulo César Garcez.
Através da rótula. Sociedade e arquitetura urbana no Brasil. Séculos XVIIXX. Tese de Doutorado em História.
2 vols. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
1999; Lima, Solange Ferraz de. Ornamento e cidade: Ferro, estuque e pintura mural em São Paulo (1870-1930).
Tese de Doutorado em História Social. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas —
USP, 2001.
[12] Cf. Frehse, Fraya. Vir a ser transeunte. Civilidade e modernidade nas
ruas da cidade de São Paulo (entre o
início do século XIX e o início do
século XX). Tese de Doutorado em
documentação primária para escrever sobre as transformações
urbanísticas paulistanas.
Quase um quarto de século depois da primeira edição da obra, já
não é novidade o uso de pinturas e fotografias de vistas urbanas
paulistanas do passado novecentista como fonte para pesquisas, sejam
elas sobre as mudanças físicas que alcançaram São Paulo no período9 ,
sobre a relação entre essas transformações ou sobre o modo de
representar visualmente, por exemplo, a cidade10 ; a sociabilidade11; a
civilidade nas ruas12 . Em face de um universo investigativo com tais
contornos, a reedição do livro de Toledo representa, em especial no
aniversário de 450 anos da cidade, uma celebração da importância
documental da iconografia, em particular da fotografia, na abordagem
do passado paulistano por parte das mais diversas disciplinas, do
urbanismo à história e às ciências sociais.
É verdade que o argumento da destruição e reconstrução seqüencial
da cidade ao longo de um século se sustenta mais por meio do texto do
que da iconografia. Neste, Toledo enfatiza justamente a dinâmica de
demolições e construções que marcou determinadas edificações
públicas e particulares, ruas e largos de São Paulo a partir de finais do
século XIX. Já quando se contempla a seleção de imagens, outra lógica
vem à tona. A maioria se refere à "cidade de taipa" e àquela erguida até
os anos de 1930 no centro paulistano. E o leitor fica com dificuldade de
reconhecer visualmente a terceira cidade, anunciada textualmente como
realidade histórica na seqüência à metrópole dos anos de 1930 (p. 125),
em particular depois da "Segunda Grande Guerra", quando "os grandes
empreendimentos vieram destruir, um a um, os documentos
arquitetônicos da cidade" (p.181).
Há como ressaltar um aspecto adicional, tendo-se em mente
possibilidades analíticas que as imagens, em especial as fotografias,
oferecem ao observador. Muitas reproduções fotográficas daquilo que
seria a segunda cidade — e mesmo a única vista que parece, pela altura
e aparência dos arranha-céus retratados, se referir à terceira urbe (p. 179)
— revelam que se São Paulo é como um "palimpsesto", que
periodicamente recebe uma nova escrita, isso não impede que
permaneçam no pergaminho indícios da escrita anterior, traços do
passado. E aqui não penso tanto na presença, nas cenas retratadas, de
detalhes que insinuam indivíduos em movimentos corporais
reveladores de regras de conduta do passado escravista, como pude
constatar recentemente, ao estudar fotografias de rua de São Paulo entre
finais do século XIX e o início do XX13. Restringindo-me estritamente
ao enfoque arquitetônico e urbanístico privilegiado por Toledo na
abordagem da iconografia, penso na paisagem construída que várias
das imagens representam. Embora as composições ressaltem a então
moderna arquitetura neoclássica e eclética, a presença viva do passado
se deixa intuir, por exemplo, na extensão dos lotes ou na aparência dos
velhos telhados coloniais escondidos atrás de fachadas ornadas muitas
vezes por artesãos formados no Liceu de Artes e Ofícios14. A presença
persistente desses e outros detalhes nas fotografias, perceptíveis ainda
hoje quando se passeia pelo centro da urbe, contribuíram e contribuem
tanto quanto as respectivas "novas escritas" para a aparência arquitetônica que São Paulo foi assumindo ao longo do século XX. Sob esse
prisma, as três cidades não se sucederam num século, mas coexistem e
perfazem não apenas a metrópole do momento em que Toledo lançou o
seu livro, mas também aquela deste início de século XXI.
Deixemos, entretanto, tais ponderações entre parênteses, para os
fins deste texto. Afinal, São Paulo: Três cidades em um século já é obra adulta
ao reaparecer, revista, em 2004. O que merece ser abordado é o impacto
que a forma e o conteúdo dessa reaparição pode ter sobre o leitor que
tiver o livro em mãos pela primeira vez.
A reestruturação dos itens e, conseqüentemente, das imagens que
acompanham o texto, contribuiu de maneira significativa para
sistematizar mais, em comparação com as edições anteriores, os dados
referidos às diversas áreas da cidade. Em especial o agrupamento dos
itens em torno daquilo que venho chamando de três partes da obra
favoreceu uma transmissão mais didática da proposta do autor.
Se essas modificações enaltecem a reedição de uma obra que marcou
época na reflexão urbanística sobre a história de São Paulo, não se
podem, entretanto, obliterar algumas dificuldades implícitas às
mudanças operadas para a atual edição. O local das imagens foi, em
alguns casos, alterado, mas não aquele em que, no texto, aparecem
referências a essas mesmas imagens. Isso não seria problema se a nova
localização tivesse sido sinalizada no texto, mas, como isso nem sempre
ocorreu, às vezes o leitor se depara com descrições de aquarelas e
fotografias que verá apenas nas páginas subseqüentes, sem ter sido
para esse fato previamente orientado (pp. 23, 68, 69, 103).
Também a reestruturação do texto acarretou, às vezes, ônus para a
compreensão do livro. A alteração da seqüência de alguns itens fez com
que a necessária contextualização de determinados assuntos aparecesse
em um momento posterior àquele em que o assunto é referenciado pela
primeira vez. Foi o que aconteceu, por exemplo, com dados
profissionais a respeito do arquiteto sueco Carlos Ekman. Eles são
elencados vinte páginas depois de o nome ter sido mencionado de
passagem pela primeira vez (cf. respectivamente pp. 116-17 e 91). Há
como entender o porquê de tal seqüência confrontando esta edição com
as duas anteriores de São Paulo: Três cidades em um século. Na segunda
edição, por exemplo, versão ampliada da primeira, o item que
contextualiza a atuação de Ekman aparece antes daquele em que o
nome do arquiteto é apenas brevemente citado15.
Há como perceber o empenho em adequar as referências temporais
utilizadas por Toledo ao momento atual, o que faz todo o sentido se
não se forneceram informações sobre a data da primeira edição do
livro. No entanto, o intento do ajuste nem sempre foi bem-sucedido.
Antropologia Social. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP, 2004.
[13] Ibidem, pp. 527-30.
[14] Sobre os ornamentos na arquitetura paulistana até os anos de 1930,
cf. Lima, Solange Ferraz de, op. cit.,
esp. pp. 56-62.
[15] Cf. Toledo, Benedito Lima de.
op. cit., 1983, respectivamente pp. 90
e 96.
Não foram alteradas todas as indicações temporais utilizadas por
referência ao início dos anos de 1980, quando saíram as primeiras
duas edições do livro. A afirmação, por exemplo, de que os desenhos do
britânico Charles Landseer sobre São Paulo em 1827 teriam sido
divulgados "recentemente" (p. 23) se explicita tendo-se por referência
1981, mas não 2004. Se não se queria alterar o conteúdo do texto
original, teria sido apropriada a inclusão de uma nota explicativa
contextualizando a que momento o termo "recentemente" se refere (cf.
nesse sentido também p. 49). Caso contrário, o leitor pouco familiarizado com a documentação de época sobre a São Paulo oitocentista
pode se confundir.
Face a outros trechos do texto, é necessário conhecer a história de
São Paulo e as edições anteriores da obra de Toledo para compreender
plenamente o significado do que está sendo dito. Assim, por exemplo,
a afirmação de que "qualquer mapa de São Paulo de fins do século
passado ou início do presente nos dá a impressão de inacabado" (p.
78). A alusão é ao final do século XIX e ao início do XX, e não, como se
poderia pensar com base na data da edição atual do livro, ao final do
XX e ao início do XXI. Uma dúvida semelhante poderia vir à tona
diante da pergunta de Toledo "como seria São Paulo no início deste
século?" (p. 82).
Em meio ao muito que mudou entre as primeiras duas e a atual
edição, alguns aspectos permaneceram inalterados. O arquiteto continua, como no passado, não se restringindo à iconografia como
fonte primária. Além de apresentar imagens e comparar entre si algumas de tipos documentais distintos — aquarelas e fotografias —,
em determinado momento (pp. 23 ss) o autor lança mão, para
descrever "a cidade de taipa" do período colonial, de correspondência
jesuítica, documentação em relação à qual aponta para a necessidade
de "discernimento" (p. 17). Assim, esboça uma crítica de fontes que
inexiste em relação ao material iconográfico utilizado. Outra fonte
que perpassa a obra são relatos de viagem (em especial referidos ao
século XIX), além de, em alguns momentos, documentação oficial,
como a transcrição de um relatório decisivo para a aparência do Vale
do Anhangabaú a partir do século XX: o documento produzido pelo
arquiteto francês Joseph Antoine Bouvard para a prefeitura paulistana em 1911 acerca das potencialidades urbanísticas que enxergava para a cidade (pp. 126-27).
Infelizmente, nem sempre o que permaneceu inalterado na atual
versão pode ser considerado positivo. Sobretudo quando se leva em
conta que a atual é uma "reedição revista" de um livro que veio a público
há mais de duas décadas. O arquiteto atribui a Militão Augusto de
Azevedo a autoria de algumas fotografias que identifica como tendo
sido feitas no início dos anos de 1860, apesar de essas imagens não
serem referenciadas num livro recente que traz o até agora mais completo inventário já publicado da obra produzida pelo fotógrafo na
décadaem questão16 , e que apresenta até mesmo reproduções da coleção
de Toledo17.
Não somente a identificação da autoria de algumas imagens contém
problemas. A datação também. Numa fotografia do Largo de São
Francisco que Toledo define, na legenda, como sendo de Militão em
1862, aparece um bonde a burros (p. 52). Ora, os primeiros veículos do
tipo começaram a circular em São Paulo a partir de outubro de 1872,
como evidenciam os jornais da época18 . Em outro momento, Toledo
identifica, também na legenda, uma imagem do Rio Tamanduateí como
tendo sido feita por Militão em 1860 (p. 63). Todavia, perto do canto
esquerdo da metade superior da imagem aparece a fachada do primeiro
mercado da cidade, "construído", segundo o historiador Ernani da Silva
Bruno, em 186719 , ou seja, depois de 1860, ano indicado pelo arquiteto
para a produção da imagem (p. 62). Se Bruno não fornece evidências
históricas para a data que propõe, tampouco Toledo o faz, em relação à
fotografia em questão. Outro signo que, presente na mesma imagem,
dificulta apontar "1860" como ano de produção desta é a presença de
chaminés de fábrica no fundo da cena retratada: as primeiras indústrias
teriam começado a operar na cidade na década de 187020 .
Outras imprecisões na datação se fazem notar no corpo principal
do texto. A demolição da Igreja do Palácio do Governo, por exemplo,
data de 189621, e não de 1899 (p. 86). E se nos anos de 1950 foram
construídas uma "réplica da igreja e do colégio primitivos", a questão,
que o autor não explicita no livro, é qual a aparência "primitiva"
utilizada como parâmetro para a construção, tendo-se em conta que a
edificação demolida em finais do XIX não se assemelhava em nada à
choupana de pau-a-pique que existia no local nos primeiros anos da
povoação, nem às edificações em taipa ali erguidas e reerguidas nos
séculos XVII e XVIII.
Há ambigüidade em alguns dados apresentados mais de uma vez
na obra: eles não coincidem. É o caso da abertura do novo Viaduto do
Chá, referida uma vez como tendo ocorrido em 18 de abril de 1938 (p.
135) e outras duas vezes, em 1936 (pp. 153-54). Já o local de origem da
estrutura arquitetônica da Estação da Luz, por sua vez, é, conforme
uma primeira menção nesse sentido, a Inglaterra (p. 97) e, em outro
momento, a Escócia — Glasgow é a cidade referida (p. 176).
Tampouco alguns dados históricos conferem. Toledo atribui, por
exemplo, a autoria de uma citação sobre a construção da estrada de
ferro entre São Paulo e Santo Amaro ao empresário carioca "Henrique"
Raffard em 1883 (p. 125). No entanto, naquela que é a fonte da
citação22 , referenciada na atual edição, o trecho aparece como parte de
uma transcrição que o mencionado autor, que assina o texto como
Henri Raffard, teria feito de "alguns tópicos do prospecto publicado
em 1883 pela Companhia de Carris de Ferro S. Paulo a Santo Amaro"23.
Outra incorreção: uma das denominações da Praça da República "até o
advento da República, em 1889" parece ter sido Largo 7 de Abril24 , e
[16] Cf. Lago, Pedro Corrêa do. Militão Augusto de Azevedo. São Paulo
nos anos 1860. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/Editora Capivara,
2001, esp. pp. 231-50.
[17] Ibidem, pp. 50-52, 53, 56-7,
108-9.
[18] Cf. Frehse, Fraya. O tempo das
ruas na São Paulo de fins do Império.
São Paulo: Edusp, 2005, pp. 122.
[19] Cf. Bruno, Ernani da Silva, op.
cit., vol. 3., p. 1133.
[20] Ibidem, pp. 1168-173.
[21] Cf., por exemplo, N/a [Não assinado], "Igreja do Collegio", O Estado
de 5. Paulo, 15 de março de 1896.
[22] Cf. Raffard, Henri. Alguns dias
na Paulicéia. São Paulo: Academia
Paulista de Letras, 1977 [ia ed. 1892].
[23] Ibidem, p. 59.
[24] Cf. "Mappa da capital da Pcia. de
S. Paulo. Seos Edifícios públicos,
Hotéis, Linhas férreas, Igrejas Bonds
Passeios etc. publicado por Frdo.
Albuquerque e Jules Martin em Julho
1877", reproduzido in Comissão do
IV Centenário da Cidade de São Paulo. São Paulo antigo. Plantas da cidade. São Paulo: Melhoramentos, 1954,
planta 8.
[25] Cf. respectivamente "Mappa da
capital da Pcia...", loc. cit.; Freitas,
Affonso A. de, op. cit., p. 134 A/B.
[26] Cf. Santos, Carlos José Ferreira
dos. Nem tudo era italiano. São Paulo e pobreza (1890-1915). São Paulo:
Annablume/Fapesp, 1997, pp. 83-119.
[27] Cf., entre outros, Corrêa, Anna
Maria Martinez. A Rebelião de 1924
em São Paulo. São Paulo: Hucitec,
1976, esp.pp. 95-181; Martins, José de
Souza. Subúrbio. Vida cotidiana e
história no subúrbio da cidade de
São Paulo: São Caetano do Sul, do
fim do Império ao fim da República
Velha. São Paulo/São Caetano do Sul:
Hucitec/Prefeitura de São Caetano
do Sul, 1992, pp. 259-98.
não "Largo 7 de Setembro" (p. 170). Este último era, na época aludida
no texto, o nome dado ao antigo largo do Pelourinho, localizado onde
hoje se encontra o Fórum João Mendes25.
Justamente porque o objetivo foi produzir uma "reedição revista"
de São Paulo: Três cidades em um século, a atual versão poderia ter
incorporado revisões desse tipo, assim como de interpretações que,
contidas nas edições anteriores, estudos históricos produzidos no ínterim acabam, mesmo involuntariamente, colocando em xeque. Assim,
por exemplo, a idéia de que a "várzea do Carmo manteve-se pouco
ocupada até 1918". Pesquisa recente mostra a intensa presença de
comunidades africanas ali no século XIX e no início do XX26 .
Chamo a atenção para essas questões tendo em vista eventuais
dificuldades de leitores não familiarizados com a história ou a
historiografia paulistanas. Nesse sentido também, não fica claro em
que contexto histórico se deram algumas das transformações urbanas
que, evocadas por Toledo, subsidiam a imagem do palimpsesto. Uma
referência, mesmo que passageira, às crescentes exportações açucareiras
do interior paulista teria auxiliado na compreensão do tipo de obra de
cunho urbanístico incentivada pelo capitão-geral Bernardo José Maria
de Lorena na cidade de finais do século XVIII (pp. 14-7). Em outro
momento do texto, é apenas mencionado o bombardeamento do Convento da Luz por "disparos da revolução", em 1924 (p. 58). E o leitor
mais desavisado fica sem conhecer o alcance histórico da afirmação,
tributária do fato de que edificações do centro e do subúrbio paulistano foram bombardeadas pelas forças do governo federal durante as
três semanas em que a cidade permaneceu dominada pelos militares
rebelados sob o comando de Isidoro Dias Lopez27 .
Aludir a esses aspectos variados não impede que se aplauda a
iniciativa de reeditar, com um projeto gráfico tão sensível, um livro
relevante para a história da reflexão urbanística de cunho acadêmico
produzida por arquitetos brasileiros acerca de cidades brasileiras,
acerca de São Paulo. A obra de Toledo evidencia não somente a busca
de alguns desses profissionais por um maior aprofundamento teórico
em relação à lógica urbanística que envolve a cidade como cenário e
objeto de sua prática projetual. São Paulo: Três cidades em um século é ainda
testemunho pioneiro do reconhecimento, por parte desses arquitetos,
de que uma compreensão arquitetônica e urbanística mais
aprofundada da cidade não prescinde de uma interlocução intensa com
a história. E desse diálogo que brota a possibilidade da formulação de
metáforas tão criativas quanto a do palimpsesto, que, provocativa,
fornece um parâmetro a partir do qual refletir sobre as apropriações
urbanísticas de que São Paulo é objeto ainda hoje em dia.
FRAYA FREHSE, doutoranda em antropologia social pela USP, é professora de
antropologia na Escola de Sociologia e Política e de história da cidade na Escola da
Cidade, além de pesquisadora do Núcleo de Antropologia Urbana da USP.
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