NÃO-ARBITRARIEDADE NA SINTAXE E NO DISCURSO: UM ESTUDO DA FUNÇÃO PRAGMÁTICA TÓPICO E DE SUAS REALIZAÇÕES SINTÁTICA E SEMÂNTICA Aline Almeida INHOTI (G-UEM) Juliano Desiderato ANTONIO (UEM) ISBN: 978-85-99680-05-6 REFERÊNCIA: INHOTI, Aline Almeida; ANTONIO, Juliano Desiderato. Não-arbitrariedade na sintaxe e no discurso: um estudo da função pragmática tópico e de suas realizações sintática e semântica. In: CELLI – COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 1125-1141. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS A discussão a respeito da relação entre expressão e conteúdo remonta da Antigüidade Clássica, quando convencionalistas e naturalistas debatiam a respeito das motivações das palavras. Para os primeiros, tudo na língua é fruto de convenção social, ao passo que, para os últimos, há uma relação natural entre a expressão e aquilo que ela designa (NEVES, 1987; FURTADO DA CUNHA; COSTA; CEZARIO, 2003). Ao estabelecer os parâmetros epistemológicos que permitiriam o estabelecimento da Lingüística enquanto ciência, Ferdinand de Saussure adotou a posição dos convencionalistas, afirmando que o signo lingüístico é arbitrário (SAUSSURE, 1989). Essa posição, no entanto, é questionada por alguns filósofos e pelas teorias do paradigma lingüístico funcionalista. O filósofo Charles Peirce, por exemplo, discorda da idéia de total arbitrariedade do signo. Para ele, as regras convencionais são fruto da interação de princípios icônicos com princípios simbólicos (1940). Os funcionalistas, por sua vez, defendem que “a língua não é um mapeamento arbitrário de idéias para enunciados: razões estritamente humanas de importância e complexidade refletem-se nos traços estruturais das línguas” (FURTADO DA CUNHA; COSTA; CEZARIO, 2003, p. 34). Assim, pode-se dizer que o funcionalismo defende o princípio da iconicidade, ou seja, defende que há alguma relação entre expressão e conteúdo e que a língua pode refletir, de alguma forma, a estrutura da experiência. Neste trabalho, pretende-se, a partir do quadro teórico-metodológico do funcionalismo, realizar um levantamento de manifestações lingüísticas da não- 1125 arbitrariedade lingüísica na sintaxe e no discurso. O corpus de análise será constituído de textos orais de diversos gêneros, tais como narrativas e elocuções formais. A partir desse levantamento, será possível efetuar pesquisas mais específicas sobre os mecanismos encontrados, o que permitirá uma descrição mais acurada de fenômenos lingüísticos nos níveis da sintaxe e do discurso. 2 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS 2.1 O funcionalismo A perspectiva teórica deste trabalho se baseia no Funcionalismo, corrente lingüística que concebe a língua como instrumento de comunicação e que considera a importância do contexto lingüístico, da situação extralingüística, dos fatores pragmático-discursivos para a análise da língua (MARTELOTTA; AREAS, 2003:23). Historicamente, foi Saussure, com o estruturalismo, quem fundamentou as divergências entre estrutura e função. Saussure tomou como objeto de estudo a langue, retirando de suas investigações qualquer tipo de influência pragmático-discursiva sofrida pela língua. Assim, os estudos lingüísticos podem ser divididos em duas grandes correntes (MARTELOTTA; AREAS, 2003): i) pólo formalista: a análise tem como objeto a forma lingüística e o uso de dispositivos formais; ii) pólo funcionalista: a análise tem como objeto a função que a forma lingüística desempenha no ato comunicativo, ou seja, o papel que a linguagem exerce na vida dos indivíduos. O funcionalismo contrapõe ao formalismo em diversos aspectos. Os formalistas consideram a língua um objeto, formal, abstrato, com a função de expressar o pensamento. O funcionalismo, por sua vez, vê a língua como objeto de interação social, com a função de comunicação entre os usuários. A corrente formalista interpreta a língua como um conjunto de estruturas (sintaxe como base, organização em torno da frase e as prioridades vão da sintaxe para a pragmática, via semântica), entre as quais podem ser estabelecidas relações regulares. Por outro lado, o funcionalismo interpreta a língua como uma relação de estruturas (semântica como base, organização em torno do texto ou do discurso e as prioridades vão da pragmática para a sintaxe, via semântica), com ênfase nas variações entre línguas diferentes. Para um funcionalista, a lâmina do machado tem a forma que tem porque está destinada à tarefa de cortar madeira: a lâmina em forma de cunha secciona e separa as fibras da madeira. (...) Um formalista, por outro lado, vai dizer que a função da lâmina do machado é que é determinada por sua forma: é justamente por ter a forma de cunha que o machado serve para cortar madeira. (BORGES, 1995). O quadro a seguir resume as principais diferenças entre o funcionalismo e o formalismo: CORRENTE LÍNGUA ESTRUTURA GRAMATICAL Funcionalismo Maleável, objeto de É determinada por pressões comunicação extralingüísticas Formalismo Estática, autônoma Independe do uso 1126 Foi a partir de 1970 que tal bipartição ganhou destaque e o funcionalismo se tornou rótulo para trabalhos de lingüistas como Sandra Thompson, Paul Hopper e Talmy Givón. Observa-se, então, que essa vertente não trata a língua como objeto autônomo, com um caráter abstrato e estático, mas sim como uma “estrutura maleável, sujeita a pressões oriundas das diferentes situações comunicativas que ajudam a determinar sua estrutura gramatical” (MARTELOTTA, 2003, p. 20). Segundo NEVES (1997, p. 12), “a pluralidade funcional se constrói claramente na estrutura lingüística e forma a base de sua organização semântica e simbólica, ou seja, lexical e gramatical”. Ademais, tal corrente lingüística analisa a estrutura gramatical, levando em conta a situação comunicativa, ou seja, o propósito do ato de fala, seus participantes e seu contexto discursivo. Cada item observável desempenha uma função específica no discurso, o que proporciona estabilidade e ordem interdependentes. Uma característica marcante do funcionalismo é a consideração de como a intenção comunicativa do falante motiva suas escolhas gramaticais para a realização de determinadas funções (MARTELOTTA, 2003, p. 22). Para Dik (1989), “o principal interesse da lingüística funcionalista está nos processos relacionados ao êxito dos falantes se comunicarem por meio de expressões lingüísticas”. A lingüística funcional americana tem questionado alguns dos pressupostos básicos do formalismo. O primeiro seria a arbitrariedade do signo lingüístico, princípio saussuriano que aponta a não-correlação entre o significante e o significado. O funcionalismo questiona a forma categórica como esse princípio é colocado, uma vez que o falante, não “inventa arbitrariamente novas seqüências de sons”. Motivações semânticas, morfológicas e fonéticas refletem algum tipo de relação não-arbitrária, ou melhor, icônica. Furtado da Cunha, Costa e Cezario (2003) apresentam também alguns subprincípios para o princípio da iconicidade: Subprincípio da quantidade: quanto maior a quantidade de informação, maior a quantidade de forma. Esse subprincípio também prevê que a complexidade do pensamento tende a se refletir na complexidade da expressão. Assim aquilo que é mais simples e mais previsível é expresso com menor complexidade gramatical. A previsibilidade de um tópico em uma oração, por exemplo, permite que um referente seja recuperado por elipse. Por outro lado, relações lógico-semânticas complexas tendem a ser codificadas em períodos com predominância de hipotaxe. Subprincípio da integração: conteúdos que estão mais próximos cognitivamente também estarão mais integrados na codificação lingüística, ou seja, aquilo que está mentalmente junto é colocado lingüisticamente junto. A categoria de aspecto verbal, por exemplo, é a que mais integrada ao morfema lexical. Subprincípio da ordenação linear: a informação mais importante tende a ocupar o primeiro lugar da cadeia sintática, ou seja, a ordem dos elementos no enunciado tende a revelar a sua ordem de importância para o falante. Em geral, o falante parte da informação que ele supõe ser conhecida de seu interlocutor e, a partir daí, acrescenta informações novas. Assim, o tópico tende a trazer informação dada (ou velha), e a predicação tende a trazer informação nova. O segundo questionamento diz respeito à distinção entre língua e fala. Saussure estabelece um parâmetro do que é geral e do que é acidental, cabendo a fala esse último papel, assim como os gerativistas estabelecem a distinção entre competência e performance. As duas vertentes, por serem formalistas, priorizam a língua (homogênea) ou a competência (idealizada) em detrimento da fala (heterogênea, real). A lingüística funcional corrobora-se no discurso individual, compreendendo-o como “gerador do 1127 sistema lingüístico” (MARTELOTTA, 2003). Dessa maneira, fica impossibilitada a separação entre língua e fala, já que a fala inicia o sistema lingüístico, o qual fundamenta o discurso. O terceiro e último questionamento da lingüística funcional americana é em relação à dicotomia sincronia/diacronia. A não vinculação dos pontos de vista sincrônico e diacrônico, característica estruturalista (saussuriana), é rejeitada pelo funcionalismo, que leva em conta, por exemplo, a mudança lingüística de um item lexical que passa a ter características gramaticais, em um processo chamado gramaticalização. Assim, a manutenção de certas categorias ao longo do tempo só pode ser estudada a partir de um ponto de vista pancrônico, que não separe os itens de agora dos itens que faziam parte do sistema lingüístico tempos atrás, uma vez que a língua hoje é composta por categorias e por elementos cujo uso foi cristalizado ao longo do tempo. disseminada do Funcionalismo, ao visarem certa relação e permanência de alguns. Ao contrário do formalismo, que se preocupa apenas com a competência lingüística do falante, a gramática funcional considera a competência comunicativa, que é a capacidade de “usar e interpretar expressões de uma maneira interacionalmente satisfatória” (NEVES, 1997). Em suma, a competência comunicativa é a capacidade que o falante tem de usar as regras do discurso específico da comunidade na qual se insere. Por meio da competência comunicativa, o indivíduo é capaz de adequar a língua à situação extralingüística. O conceito de competência é, portanto, distinto nas visões formalista e funcionalista: na primeira, é a capacidade de produzir, interpretar e julgar orações; em contrapartida, na segunda, competência é a capacidade de interação social. Uma gramática funcional deve refletir, de algum modo, a dicotomia entre produção e compreensão. Aquela é construída e estabelecida por falantes nas suas expressões lingüísticas e a última tem a ver com como esses falantes interpretam e processam tais expressões. A sintaxe está intimamente relacionada e deve ser analisada de acordo com a pragmática e a semântica. Dik (1989) aborda o homem sendo mais que um animal lingüístico e, segundo ele, no processo comunicativo, existem funções humanas mais elevadas do que simplesmente a função lingüística. Ainda segundo Dik, as regras gramaticais são instrumento e propósito das regras pragmáticas. Logo, “o que se propõe, afinal, é que a teoria da gramática constitui um subcomponente integrado da teoria do usuário da língua natural”. Relacionada com a capacidade lingüística do falante, Dik (1989) escala outras capacidades que atuam com a competência comunicativa: capacidade epistêmica: o usuário de uma língua natural é capaz de utilizar um conhecimento organizado e reutilizá-lo em outras situações comunicativas; capacidade lógica: o usuário tem a capacidade de introduzir diversos conhecimentos a partir de regras já estabelecidas, por métodos dedutivos e probabilísticos; capacidade perceptual:o usuário é capaz de perceber e derivar, em seu meio, conhecimento para produzir e interpretar expressões lingüísticas; capacidade social: o usuário sabe o que dizer e como dizer em uma situação comunicativa, com sua intencionalidade particular. 2.2 A iconicidade A visão funcionalista a respeito das motivações não é inocente a ponto de defender que a forma lingüística reflete de forma direta, transparente e biunívoca 1128 (isomorfismo) princípios extragramaticais. Além disso, os funcionalistas têm consciência de que ainda não conhecem toda a lista de fatores motivadores. Para Dik, em vez disso, uma visão não simplista da “explicação funcional” deverá levar em conta que a organização de uma língua natural é uma solução para um problema complexo, o “espaço de solução” que é circunscrito por uma série de princípios motivados funcionalmente que interagem e contra-interagem. Uma língua natural, portanto, pode ser vista como um conjunto de possíveis soluções para um problema complexo: atingir a comunicação entre os seres humanos (1986, p. 18) (tradução nossa). Croft (1995) apresenta duas razões para considerar que elementos arbitrários, estáveis e convencionalizados em um sistema lingüístico são motivados funcionalmente: (i) a rotinização psicológica de construções gramaticais pode ser atribuída a fatores relacionados com a eficiência da comunicação; (ii) a convenção tem um papel importante na criação e na manutenção de laços sociais sinalizados por meio da língua. Segundo Butler (2003), há fatores de pressão sobre a língua que ajudam a dar forma às expressões lingüísticas. Alguns desses fatores são apresentados a seguir: Necessidade de transferência eficiente de informação: quando nos comunicamos, fazemos mais do que simplesmente transmitir informação. Halliday (1985) fala das funções ideacional e interpessoal da linguagem. A primeira diz respeito à organização e incorporação, na língua, pelo falante, das experiências dos fenômenos do mundo real. A segunda compreende o estabelecimento e a manutenção dos papéis sociais na participação em um evento de fala. Os primeiros padrões sistemáticos encontrados na linguagem das crianças, por exemplo, envolve esse lado interpessoal. A criança utiliza a língua para conseguir que as pessoas façam o que elas querem e lhes dêem aquilo de que elas precisam. Meio de transmissão / recepção das mensagens: para Dik (1986), existem restrições em vários níveis para a transmissão e recepção de mensagens. Há restrições do canal vocal-auditivo que levam o falante / ouvinte a selecionar formas que dêem maior facilidade e economia de articulação. Também há restrições cognitivas que favorecem a escolha de estruturas que facilitem o processamento cognitivo. Como exemplo de restrição cognitiva, Dik (1986) cita a hipótese por ele chamada LIPOC (Language-Independent Preferred Order of Constituents – Ordem preferida de constituintes independente da língua), no nível sintático. De acordo com essa hipótese, os constituintes são ordenados na frase de acordo com sua complexidade, do menos complexo para o mais complexo. Assim, não havendo outros fatores, constituintes mais complexos tendem a ficar no final da oração. Não-arbitrariedade: de acordo com esse princípio, há algum grau de similaridade entre a forma e o conteúdo das expressões lingüísticas. Alguns exemplos da nãoarbitrariedade são citados por Butler (2003): reduplicação de material lingüístico para indicar pluralidade, repetição ou intensidade, como, por exemplo, em línguas nas quais o plural não é marcado por uma desinência específica, mas pela reduplicação de uma porção do radical; a complexidade formal reflete a complexidade semântica, como os períodos nos quais predomina a hipotaxe, em que se estabelece maior número de relações lógico-semânticas; 1129 a ordem dos constituintes espelha a ordem temporal ou psicológica, como no enunciado “Fui de Maringá para São Paulo”, que segue a ordem icônica origem destino; a coesão formal entre itens paraleliza sua coesão semântica; o grau de explicitude da expressão lingüística está relacionado com o grau de previsibilidade de seu referente. Contexto sócio-cultural: as relações entre falante / ouvinte ou entre escritor / leitor são baseadas fortemente em relações culturais. Em línguas como o inglês e o português, por exemplo, um ato de fala indireto, por ser mais longo do que um ato de fala direto, espelha a distância entre falante e ouvinte, assinalizando maior polidez. A iconicidade é um aspecto importante na assinalização modal da polidez. Mudança lingüística: esse é um dos principais fatores da motivação das relações entre forma e função, pois enfatiza o efeito das pressões funcionais em competição sobre o desenvolvimento das línguas. Um exemplo disso é a influência do processamento em tempo real da língua, que deixou sua marca nas gramáticas, na questão da ordenação linear. Em línguas VO, segundo Dik (1986), constituintes mais complexos tendem a ocorrer à direita do verbo. Newmayer (1998, apud BUTLER, 2003), um formalista, ao fazer uma revisão crítica da visão funcionalista sobre iconicidade, apresenta uma subcategorização interessante dos tipos de iconicidade: Iconicidade de distância: a idéia de distância lingüística entre dois itens reflete a distância conceitual correspondente. Dessa forma, a distância entre duas expressões será maior para assinalizar possessão inalienável do que para assinalizar possessão alienável. Iconicidade de independência: há correlação entre a separação lingüística de uma expressão e a independência do conceito representado por aquela expressão. Assim, nomes incorporados morfologicamente em outras palavras têm menor possibilidade de terem referência independente e de serem focalizadas ou receberem estresse entonacional. Iconicidade de ordem: tendência da ordem dos morfemas ou palavras refletirem as relações lógicas em que seus referentes estão envolvidos. É o caso, por exemplo, de uma oração como “Vim, vi e venci”, ou da narração de filmes, em que geralmente se segue a seqüência de ações apresentadas no vídeo. Iconicidade de complexidade: relação entre complexidade lingüística e complexidade conceitual. Trata-se do caso, por exemplo, em que elementos são reduplicados para indicar pluralidade. Iconicidade de categorização: conceitos que são realizados pela mesma categoria gramatical tendem a ter similaridades cognitivas. No nível sintático, por exemplo, sujeitos tendem a ser agentes no nível semântico, e objetos, no nível sintático, tendem a ser pacientes, no nível semântico. Pressupõe-se que, havendo algum grau de relação entre os elementos lingüísticos e os conceitos que eles representam, o processamento da língua se torna mais fácil, o que permite maior economia de material lingüístico. Acredita-se que a economia, por sua vez, esteja relacionada à freqüência de ocorrência, ou seja, a maior freqüência de ocorrência de uma forma tende a promover mudanças nessa forma, de maneira que ela se torne mais econômica, ou ainda pode “tirar de circulação” outras formas de dizer a mesma coisa. Segundo Martelotta e Areas (2003), o princípio da iconicidade auxilia o 1130 princípio da economia, uma vez que não criamos palavras completamente novas para novos conceitos. Para Ullmann, existe uma tendência para se utilizar material já existente na língua, de três formas: (a) por meio da motivação semântica: estende-se o sentido de palavras já existentes, como em “pé da mesa” e “coração da cidade”, em que há relação com o sentido original das palavras; (b) por meio da motivação morfológica: criam-se novas palavras por derivação, composição, etc. É o caso de palavras como “carteiro” e “guarda-roupas”; (c) por meio de motivação fonética: o som da palavra imita a coisa designada, como em tilintar, cocorocó, etc. 3 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS O corpus da pesquisa foi formado por quatro gêneros de textos: elocuções formais, textos científicos, narrativas orais e narrativas escritas. As elocuções formais foram gravadas durante a apresentação de trabalhos de alunos do curso de graduação em Letras da Universidade Estadual do Paraná (UEM), com autorização prévia solicitada. Os textos escritos foram os trabalhos sobre os quais os graduandos de Letras falaram em suas elocuções formais gravadas. Já as narrativas orais e as narrativas escritas foram coletadas a partir da exibição de um vídeo mudo, cuja seqüência de cenas fosse suficiente para a compreensão do enredo. Optou-se por um filme mudo para se evitar que houvesse influência das falas do narrador ou de personagens sobre a maneira como os informantes formulariam lingüisticamente a história. O vídeo escolhido foi “O pavão misterioso”, que se baseia em uma história do folclore nordestino de mesmo nome e que tem como personagens bonecos que representam seres humanos. Logo após assistirem ao filme, os informantes contaram a história oralmente, que foi gravada em fitas K-7. Em seguida, solicitou-se que a história fosse contada por escrito. Durante a redação, não foi permitido aos informantes ouvir a fita que haviam gravado, para que não houvesse influência do oral sobre o escrito. Tanto as elocuções formais quanto as narrativas orais foram transcritas com base nas normas de transcrição alfabética do projeto NURC com algumas adaptações. Os textos escritos e as narrativas escritas, por sua vez, foram reproduzidos da mesma maneira que entregues pelos informantes, sem qualquer forma de correção. A quantificação dos dados referentes à combinação de orações foi feita com o apoio da ferramenta computacional Systemic Coder, versão 4.5, desenvolvida pelo lingüista canadense Mick O’ Donnel e disponível para download no site www.wagsoft.com. O programa permite ao usuário criar uma rede sistêmica hierárquica de traços lingüísticos de modo a facilitar a codificação de dados. O usuário primeiro realiza a segmentação e, em seguida, cada seguimento é apresentado individualmente na tela do computador para que os traços pertinentes a ele possam ser codificados. Por último, os dados obtidos são apresentados estatisticamente. O esquema sistêmico criado para a análise dos dados deste trabalho apresenta um número muito grande de subdivisões, motivo pelo qual é impossível a sua representação em apenas uma página. Por isso, os sistemas e os subsistemas serão apresentados individualmente. No primeiro nível da hierarquia encontra-se o sistema tipo de oração, no qual foram considerados os tipos de oração independente, paratática, hipotática e encaixada. Embora se reconheça que não existem orações independentes do contexto em que estão 1131 inseridas, este rótulo está sendo utilizado para as orações que não fazem parte de um complexo oracional (HALLIDAY, 1985). Uma vez selecionado o tipo de oração a que pertence o segmento em questão, passa-se aos traços específicos de cada tipo de oração. Seis subsistemas são comuns às orações paratáticas e às orações hipotáticas. São eles subtipo de oração, identidade do sujeito, identidade do tópico, tipo de sujeito quanto à manifestação, manifestação da oração e tipo de juntivo. No subsistema subtipo de oração, as orações paratáticas são subdivididas em aditivas, adversativas e alternativas. As orações hipotáticas são subdivididas em temporais, causais, condicionais, concessivas, finais, comparativas, consecutivas, conformativas, proporcionais, modais. O subsistema identidade do sujeito, no caso das orações paratáticas, tem por finalidade verificar se o sujeito da oração analisada é o mesmo da cadeia na qual a oração está inserida. No caso das orações hipotáticas, verifica-se se o sujeito da oração hipotática é o mesmo da oração-núcleo. De forma semelhante, o subsistema identidade do tópico, no caso das orações paratáticas, tem por finalidade verificar se o tópico da oração analisada é o mesmo da cadeia na qual a oração esta inserida. No caso das orações hipotáticas, verifica-se se o tópico da oração hipotática é o mesmo da oração-núcleo. No subsistema tipo de sujeito quanto à manifestação, verifica-se a realização morfológica do sujeito, que pode ser lexical, pronominal, elíptico ou oracional. O subsistema manifestação da oração tem por função investigar a realização morfológica do verbo da oração analisada, ou seja, se é uma forma verbal finita ou nãofinita. Sendo a oração não-finita (reduzida), por meio do subsistema forma verbal verifica-se se a oração é reduzida de gerúndio, de infinitivo ou de particípio. O subsistema tipo de juntivo tem por finalidade verificar, em cada tipo de oração, quais os juntivos empregados pelos informantes. Foram incluídas, nesse subsistema, opções de codificação para as orações que não apresentam juntivos. No caso das orações paratáticas, além da possibilidade da forma não-finita do verbo, as orações podem estar justapostas ou a oração analisada pode ser a primeira de uma cadeia de orações e, por isso, não apresentar juntivo. No caso das orações hipotáticas, a forma não-finita do verbo pode explicar o não-emprego do juntivo. Outros três subsistemas são aplicados apenas às orações hipotáticas: tipo de oração-núcleo, ordem da oração hipotática em relação à oração-núcleo e estatuto informacional da oração hipotática. No subsistema tipo de oração-núcleo, procura-se verificar que tipo de oração funciona como núcleo da oração hipotática: oração independente, oração paratática, oração hipotática, oração encaixada. Quando uma oração hipotática tem como oraçãonúcleo uma outra oração hipotática ou uma oração encaixada, há uma maior complexidade no interior do complexo oracional, uma vez que a oração-núcleo também já está ligada a outra oração. O subsistema ordem da oração hipotática em relação à oração-núcleo tem por função verificar a posição em que a oração hipotática ocorre: anteposta, posposta ou intercalada. Como aponta Givón (1990; 1993), as orações hipotáticas podem apresentar funções pragmáticas diferentes, de acordo com a posição que assumem em relação à oração-núcleo. O subsistema estatuto informacional da oração hipotática trata de um importante parâmetro pragmático no estudo funcional da língua: o estado de ativação da informação. 1132 Os três estados de ativação apontados por Chafe (1980; 1985; 1987; 1988; 1992; 1994) – ativo, semi-ativo e inativo – não se aplicam a todos os elementos de uma unidade de entoação, mas aos sintagmas nominais, sintagmas verbais e sintagmas adjetivos que codificam as idéias - chamadas por ele de conceitos - que as pessoas têm sobre objetos, eventos, propriedades, etc. Um conceito ativo é o que está no foco de consciência do falante e que este julga estar também ativo para o ouvinte. Geralmente é verbalizado com pouca proeminência tônica e vem representado por pronominalização ou zero. A expressão conceito ativo corresponderia, na terminologia tradicionalmente utilizada, à expressão informação dada. Um conceito semi-ativo, por sua vez, é o que está na consciência periférica do falante, que tem um conhecimento prévio dele, mas não o está focalizando diretamente. Um conceito pode tornar-se semi-ativo de duas formas. Primeiramente, quando um conceito está ativo e depois sai do foco de consciência da pessoa, ele não vai direto para o estado inativo; durante algum tempo, ainda permanece no estado semi-ativo. Esse é o caso de conceitos já mencionados em um determinado ponto do discurso, que só irão para o estado inativo se não forem mencionados novamente. A outra forma são os esquemas e frames. Quando se evoca um esquema ou um frame, tudo que está relacionado a ele entra no estado semi-ativo. Os conceitos semi-ativos representam uma nova categoria na antiga oposição informação nova x informação dada. A expressão informação acessível pode ser utilizada para designar os conceitos semi-ativos. Um conceito inativo é um conceito que está na memória de longo termo da pessoa, mas que não está sendo focalizado diretamente, nem está semi-ativo por ter sido mencionado anteriormente no discurso ou poder ser evocado por um esquema. Para ser ativado, um conceito inativo exige mais esforço cognitivo do que um conceito semiativo, o que acaba ocasionando as pausas entre as unidades de entoação. Na terminologia tradicional, a expressão conceito inativo corresponde à expressão informação nova. Uma dificuldade encontrada na aplicação da proposta de Chafe, que tem embasamento cognitivista, diz respeito ao fato de que quem analisa um texto não pode “entrar na cabeça” dos interlocutores para julgar o que está ativo, semi-ativo ou inativo. Mas uma outra proposta tem encontrado bastante respaldo no meio funcionalista. Tratase do tratamento dado por Prince (1981) à questão do fluxo de informação. Embora utilize uma taxonomia diferente para denominar o estatuto informacional, como pode ser observado na figura 3.1, no modelo de Prince, a definição do estatuto informacional das entidades do discurso é feita textualmente, ou seja, um elemento será considerado novo quando for mencionado pela primeira vez no texto, será considerado evocado quando for retomado, e será considerado inferível quando fizer parte de um modelo cognitivo como um frame ou um esquema. 1133 Figura 3.1 – Diagrama da taxonomia de Prince Neste trabalho, quando se tratar de estatuto informacional, a definição será feita textualmente, como no modelo de Prince, mas será mantida a terminologia mais difundida – informação nova, informação dada, informação acessível -, uma vez que, para os propósitos deste trabalho, não haverá necessidade de um refinamento tão grande como o proposto por Prince. Por último, o subsistema matriz da oração encaixada procura investigar a que tipo de oração serve como matriz da oração encaixada: oração independente, oração paratática, oração hipotática, oração encaixada. Se a oração-matriz for uma oração hipotática ou outra oração encaixada, há uma maior complexidade no interior do complexo oracional, uma vez que a oração-matriz também está ligada a outra oração. 4 ANÁLISE DOS DADOS 4.1 Identidade do sujeito e manifestação morfológica Nesta seção do trabalho, serão apresentados os resultados relativos à relação entre a identidade do sujeito e a manifestação morfológica do sujeito. Primeiramente, serão analisadas a manutenção de um mesmo sujeito em uma cadeia de orações paratáticas e a mudança de sujeito em uma cadeia de orações paratáticas. Em seguida, analisar-se-á a identidade de sujeito entre oração-núcleo e oração hipotática. A análise levará em conta o gênero do texto (narrativa, elocução formal e texto acadêmico) e modalidade língua (modalidade oral e modalidade escrita). 4.1.1 Orações paratáticas A observação dos dados apresentados nos quadros 1 e 2 permite a comparação do tipo de manifestação morfológica do sujeito de orações paratáticas em narrativas, em elocuções formais e em textos acadêmicos, nas modalidades de língua oral e escrita. Quadro 1 - Identidade de sujeito vs. tipo de sujeito quanto à manifestação morfológica nas orações paratáticas - NARRATIVAS mesmo sujeito primeira sujeito diferente menção N/total % N/total % N/total % Ensino oral lexical 11/359 3% 50/121 41% 22/25 88% Superior pronominal 83/359 23% 64/121 53% 2/25 8% 1134 elíptico 265/359 74% 6/121 5% 1/25 4% oracional 1/121 1% escrita lexical 17/238 7% 47/93 51% 22/24 92% pronominal 30/238 13% 40/93 43% 1/24 4% elíptico 191/238 80% 5/93 5% 1/24 4% oracional 1/93 1% Quadro 2 - Identidade de sujeito vs. tipo de sujeito quanto à manifestação morfológica nas orações paratáticas – ELOCUÇÕES FORMAIS E TEXTOS ACADÊMICOS mesmo sujeito primeira sujeito diferente menção N/total % N/total % N/total % Ensino Eloc. Formais lexical 12/301 4% 86/95 91% 35/35 100% Superior pronominal 220/301 73% 8/95 8% elíptico 69/301 23% 1/95 1% oracional Textos lexical 13/257 5% 316/343 92% 7/8 88% acadêmicos pronominal 50/257 19% 3/343 1% elíptico 194/257 75% 5/343 1% 1/8 13% oracional 19/343 6% Em primeiro lugar, observa-se que, em se tratando da manutenção do mesmo sujeito em uma cadeia, tanto nas narrativas quanto nas elocuções formais e nos textos acadêmicos, há uma freqüência muito baixa de ocorrência de SNs lexicais (de 3% a 7%). Isso se explica pelo subprincípio da quantidade (cf. item 2), segundo o qual aquilo que é mais simples e mais previsível é expresso com menor complexidade gramatical. Pode-se depreender disso que o contrário também é verdadeiro, ou seja, aquilo que não é previsível (informação nova) é expresso com maior quantidade de material lingüístico, isto é, por meio lexical (FURTADO DA CUNHA, COSTA E CEZARIO, 2003) e não por meio pronominal ou por meio de elipse. O princípio da não-arbitrariedade (BUTLER, 2003) também reforça esse argumento, uma vez que, de acordo com esse princípio, o grau de explicitude da expressão lingüística está relacionado com o grau de previsibilidade de seu referente. Dessa forma, justifica-se a preferência dos informantes pelos SNs pronominais e pelos SNs elípticos para a manutenção de um mesmo sujeito em uma cadeia de orações subseqüentes, como pode ser observado nos exemplos 1 e 2 a seguir, retirados de elocuções formais do corpus. Exemplo 1 1 .... bom ... a fala .. como nós vemos, 2 .. ela apresenta algumas variações, 3 .. que:: pode ser HISTÓRICA, 4 .. ou seja .. éh:: nós .. éh analisarmos um falante de hoje com um de dez anos atrás, 5 .. ela pode ser .. SOCIAL, 6 .. em detrimento:: .. ah:: .. o sexo a escolaridade etc, 7 .. ela poder GEOGRÁFICA, 8 .. em relação ao lugar onde a pessoa mora, 9 .. determinadas regiões as falas são diferentes, 10 .. e ela pode ser ESTILÍSTICA, 11 .. que:: .. seria .. o estilo formal e informal de uma pessoa .. falar da maneira que ela fala Observa-se, no exemplo 1, que o tópico “variações” é introduzido na unidade 2 1135 como objeto do verbo “apresentar”. Na unidade 3, esse tópico é sujeito da oração e retomado pelo pronome relativo “que”. Nas unidades 5, 7 e 10, é retomado por meio do pronome pessoal “ela”. Exemplo 2 1 ... e como metodologia .. nós coletamos .. éh .. dados sobre a teoria do dialeto caipira .. sob a ótica da lingüística, 2 .. nós entrevistamos .. um falante do dialeto caipira, 3 .. analisamos a música moda da pinga, 4 .. e .. por fim construímos o artigo. No exemplo 2, o sujeito que aparece nas duas primeiras unidades na forma pronominal “nós” é retomado nas unidades 3 e 4 por meio de elipse. Ainda um dado interessante observado nos quadros 1 e 2 é o fato de que os informantes utilizam com maior freqüência, na manutenção do sujeito de uma cadeia de orações paratáticas, SNs elípticos nas narrativas orais (74%), nas narrativas escritas (80%) e nos textos acadêmicos (75%). Nas elocuções formais, a maior freqüência de ocorrência é de SNs pronominais (73%). A explicação para isso está relacionada às condições de produção dos textos. Como se tratava da apresentação oral de um trabalho científico perante a uma platéia, os informantes constantemente relatavam suas descobertas, suas opções teórico-metodológicas por meio de processos verbais cujo sujeito era o pronome “nós” ou a expressão “a gente”. Das 220 ocorrências de SNs pronominais na manutenção de um mesmo sujeito em uma cadeia de orações paratáticas, 116 tinham como sujeito “nós” ou “a gente”. A mudança de sujeito em uma cadeia de orações paratáticas, por sua vez, apresenta diferenças entre as narrativas e as elocuções formais e os textos acadêmicos. Nas narrativas, os informantes utilizam preferencialmente SNs lexicais e SNs pronominais para essa finalidade. Na modalidade oral, 41% das ocorrências são de SNs lexicais e 53% das ocorrências são de SNs pronominais, ao passo que, na escrita, 51% das ocorrências são de SNs lexicais e 43% das ocorrências são de SNs pronominais. A freqüência de SNs elípticos utilizados na mudança de sujeito em uma cadeia de orações paratáticas é de apenas 5% tanto na modalidade oral quanto na modalidade escrita. Embora a freqüência seja baixa, deve-se ressaltar que o interlocutor do texto pode perceber a mudança de sujeito em uma seqüência de orações paratáticas desde que as desinências número-pessoais das orações em que há mudança de sujeito sejam diferentes, como no exemplo 3 a seguir, encontrado em uma narrativa oral do corpus. Exemplo 3 1 ........ ele a rapta pela janela do quarto, 2 e saem voando felizes pela cidade, Na unidade 1, os pronomes “ele” e “a” indicam a existência de um personagem do sexo masculino e de um personagem do sexo feminino. Na oração seguinte da cadeia, o sujeito é elíptico e a mudança de sujeito é marcada pela desinência númeropessoal do verbo “sair”, que indica terceira pessoal do plural, remetendo ao dois personagens mencionados na unidade 1. Como essa informação já é conhecida pelo interlocutor, o falante pode “empacotá-la” dessa forma, ou seja, pode remeter a esses dois personagens por meio de elipse e marcar essa referência por meio da desinência número-pessoal do verbo. Nas elocuções formais e nos textos acadêmicos, a grande maioria das mudanças de sujeito em uma cadeia de orações paratáticas é realizada por meio de SNs lexicais (91% na modalidade oral – elocuções formais e 92% na modalidade escrita – textos 1136 acadêmicos). A explicação para isso talvez esteja relacionada à classe semântica dos referentes. No filme utilizado para obtenção das narrativas do corpus, há predominância de personagens humanos de ambos os sexos e há poucos elementos inanimados. Isso favorece a mudança para um sujeito cujo referente é masculino por meio do pronome “ele”, assim como a mudança para um sujeito do sexo feminino por meio do pronome “ela”. É o que pode ser observado no exemplo 4 a seguir, retirado de uma narrativa oral do corpus. Exemplo 4 1 ... foi quando ele encontrou ... com uma moça que estava caminhando também. 2 ... parou na frente dela, 3 ... flertou-a, 4 ... e ela também fez o mesmo. Na primeira unidade do exemplo, o sujeito é codificado morfologicamente por meio do pronome “ele”. Nas unidades 2 e 3, esse sujeito é retomado por elipse. Na unidade 4, a mudança de sujeito é marcada pelo pronome “ela”. Ao contrário do que geralmente ocorre nas narrativas do corpus, nas elocuções formais e nos textos acadêmicos, os informantes abordam temas abstratos como, por exemplo, preconceito lingüístico, problemas de letramento, incorporação de novas palavras ao léxico do português etc, favorecendo a ocorrência mais alta de SNs lexicais, como pode ser observado no exemplo 5, encontrado em um trabalho acadêmico do corpus. Exemplo 5 ... e, cada grupo se caracteriza por experiências sociais diversas e essas diferenças vão refletir-se na forma de cada um deles se expressar. A primeira oração do exemplo 5 tem como sujeito o SN lexical “cada grupo”. A oração seguinte da cadeia, por sua vez, tem como sujeito o SN lexical “essas diferenças”. Por fim, a primeira menção de um sujeito é feita primordialmente por meio de SN lexical. Se a informação é desconhecida do interlocutor, o melhor meio para introduzi-la no texto é por meio de uma entidade lexical, o que justifica a freqüência de ocorrência, que vai de 88% a 100%. Novamente, recorre-se ao princípio da nãoarbitrariedade (BUTLER, 2003) para se explicar esses dados. Se o grau de explicitude da expressão lingüística está relacionado com o grau de previsibilidade de seu referente, pode-se afirmar que a introdução de informação nova, que é pouco previsível, deve ser feita da maneira mais explícita possível para que o interlocutor possa interpretá-la, e a maneira mais explícita de se fazer isso é por meio de um SN lexical. 4.1.2 Orações hipotáticas Por meio dos quadros 3 e 4, pode-se comparar o tipo de manifestação morfológica do sujeito de orações hipotáticas em narrativas, em elocuções formais e em textos acadêmicos, nas modalidades de língua oral e escrita. Quadro 3 - Identidade de sujeito vs. tipo de sujeito quanto à manifestação morfológica nas orações hipotáticas - NARRATIVAS mesmo sujeito primeira sujeito diferente menção N/total % N/total % N/total % Ensino oral lexical 11/359 3% 50/121 41% 22/25 88% 1137 Superior pronominal 83/359 23% 64/121 53% 2/25 8% elíptico 265/359 74% 6/121 5% 1/25 4% oracional 1/121 1% escrita lexical 17/238 7% 47/93 51% 22/24 92% pronominal 30/238 13% 40/93 43% 1/24 4% elíptico 191/238 80% 5/93 5% 1/24 4% oracional 1/1118 1% Quadro 4 - Identidade de sujeito vs. tipo de sujeito quanto à manifestação morfológica nas orações hipotáticas – ELOCUÇÕES FORMAIS E TEXTOS ACADÊMICOS mesmo sujeito primeira sujeito diferente menção N/total % N/total % N/total % Ensino Eloc. Formais lexical 2/80 3% 31/53 58% Superior pronominal 41/80 51% 16/53 30% elíptico 37/80 46% 5/53 9% oracional 1/53 2% Textos lexical 5/146 3% 76/88 86% acadêmicos pronominal 17/146 12% elíptico 124/146 85% 4/88 5% oracional 6/88 7% Primeiramente, observa-se uma baixa freqüência de ocorrência de SNs lexicais na função de sujeito quando a oração hipotática adverbial tem o mesmo sujeito da oração-núcleo. Essa freqüência vai de 3% a 7%. Novamente, retoma-se o subprincípio da quantidade (cf. item 2), segundo o qual aquilo que é mais simples e mais previsível é expresso com menor complexidade gramatical, o que explica a maior freqüência de SNs pronominais e SNs elípticos quando a oração hipotática adverbial e a oração-núcleo têm o mesmo sujeito, como nos exemplos 7 e 8 a seguir, encontrados em elocuções formais. Exemplo 7 1 .. esse projeto desconsidera a questão de que existem indígenas, 2 .. já que ele diz que a língua brasileira é homogênea, Exemplo 8 .. verificar se a pronúncia padrão éh:: da língua inglesa continua quando é transferida para um falante de língua portuguesa. No exemplo 7, o tópico “esse projeto”, que funciona como sujeito da unidade 1, é retomado na unidade 2 por meio do pronome “ele”, uma vez que é tratado como informação velha pelo falante. O mesmo ocorre no exemplo 8, em que o tópico “pronúncia padrão da língua inglesa” da oração-núcleo é retomado na oração hipotática adverbial temporal por meio de elipse. Assim como acontece na manutenção de um mesmo sujeito em uma cadeia de orações paratáticas, os informantes utilizam com maior freqüência, quando se mantém o mesmo sujeito na oração-núcleo e na oração hipotática, SNs elípticos nas narrativas orais (74%), nas narrativas escritas (80%) e nos textos acadêmicos (85%). Nas elocuções formais, a maior freqüência de ocorrência é de SNs pronominais (51%). Novamente, recorre-se às condições de produção dos textos para a explicação desse fato. As referências feitas pelos informantes às suas descobertas, opções teóricometodológicas etc eram feitas por meio de processos verbais cujo sujeito era o pronome “nós” ou a expressão “a gente”. Das 41 ocorrências de SNs pronominais quando há 1138 identidade entre sujeito da oração-núcleo e sujeito da oração hipotática, 13 têm como sujeito “nós” ou “a gente”. Quando o sujeito da oração hipotática adverbial é diferente do sujeito da oraçãonúcleo, observa-se que, nas narrativas, os SNs pronominais são muito utilizados como sujeito da oração hipotática. Nas narrativas orais, a freqüência é de 53% e, nas narrativas escritas, a freqüência é de 43%. Por outro lado, nas elocuções formais e nos textos acadêmicos, predominam os SNs lexicais como sujeito da oração hipotática quando o sujeito da oração-núcleo é diferente. A freqüência é de 58% nas elocuções formais e de 86% nos textos acadêmicos. Novamente, recorre-se à classe semântica dos referentes para a explicação desses dados. Nas narrativas, predominam os personagens humanos. Assim, a referência a esses personagens pode ser feita facilmente por meio de pronomes pessoais e esse parecer ser um recurso bastante utilizado pelos informantes que participaram da pesquisa quando o sujeito da oração adverbial é diferente do sujeito da oração-núcleo, como é o caso do exemplo 9, em que o sujeito da oração-núcleo é “ele” (unidades 1-3), e o sujeito da oração hipotática é “eles” (unidade 4). Nas elocuções formais, por sua vez, o tratamento de temas abstratos parece não favorecer o uso desse tipo de recurso. Exemplo 9 1 ... aí .. ele pegou, 2 ... e::, 3 ... pegou e foi buscar ela, 4 .. pra eles fugir. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalhou procurou retomar a antiga discussão a respeito da relação entre expressão e conteúdo. Por meio do arcabouço teórico do funcionalismo, investigou-se uma manifestação lingüística da não-arbitrariedade na sintaxe e no discurso, realizandose um levantamento da relação entre grau de explicitude e realização morfológica de sintagmas nominais na função pragmática tópico e da correlação entre sujeito (entidade sintática) – agente (entidade semântica) – tópico (entidade pragmática). A análise dos dados obtidos a partir de um corpus formado por narrativas orais, narrativas escritas, elocuções formais e textos científicos permitiu a confirmação do princípio da não-arbitrariedade e do subprincípio da quantidade. No que diz respeito ao princípio da não-arbitrariedade, observou-se que a introdução de informação nova, que é pouco previsível, deve ser feita da maneira mais explícita possível para que o interlocutor possa interpretá-la, e a maneira mais explícita de se fazer isso é por meio de um SN lexical, o que justifica a alta freqüência de SNs lexicais para a introdução de informação nova. Em relação ao subprincípio da quantidade, segundo o qual aquilo que é mais simples e mais previsível é expresso com menor complexidade gramatical, observou-se a preferência dos informantes pelos SNs pronominais e pelos SNs elípticos para a manutenção de um mesmo sujeito em uma cadeia de orações subseqüentes. Também pôde ser observada no corpus uma diferença lingüística motivada pelas diferenças nas condições de produção de cada tipo de texto. A mudança de sujeito em uma cadeia de orações paratáticas e a não identidade entre sujeito da oração-núcleo e sujeito da oração hipotática apresentam diferenças entre as narrativas e as elocuções formais e os textos acadêmicos. Nas narrativas, os informantes utilizam 1139 preferencialmente SNs lexicais e SNs pronominais para essa finalidade. Nas elocuções formais e nos textos acadêmicos, a grande maioria das mudanças de sujeito é realizada por meio de SNs lexicais. A explicação para isso está relacionada à categoria semântica dos referentes. Nas narrativas, há predominância de personagens humanos de ambos os sexos e há poucos elementos inanimados, o que permite a retomada por meio de pronomes que indiquem gêneros diferentes, por exemplo, ou por meio de desinências verbais que indiquem pessoas diferentes do discurso. Por outro lado, nas elocuções formais e nos textos acadêmicos, os informantes abordam temas abstratos, favorecendo a ocorrência de SNs lexicais. Pode-se pressupor, portanto, que há alguma relação entre expressão e conteúdo e que a língua pode refletir, de alguma forma, a estrutura da experiência. REFERÊNCIAS BUTLER, C. S. Structure and function: a guide to three major structural-functional theories. Part 1: approaches to the simple clause. Amsterdam/Philadelphia: J. Benjamins, 2003. CHAFE, W. The Pear Stories. Norwood: Ablex, 1980. ______. Linguistic differences produced by differences between speaking and writing. In: OLSON, D. R. et al (eds). Literacy, Language and Learning: the nature and consequences of reading and writing. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. p. 105-123. ______. Cognitive Constraints on Information Flow. In: TOMLIN, R. Coherence and Grounding in Discourse. Amsterdam/Philadelphia: J. Benjamins, 1987. p. 21-51. ______. Linking Intonation Units in Spoken English. In: HAIMAN, J.; THOMPSON, S. Clause Combining in Grammar and Discourse. Amsterdam/Philadelphia: J. Benjamins, 1988. p. 1-27. ______. 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