AULA 2 Tema da aula: - Os primórdios da psicanálise – da hipnose à associação livre, do trauma à fantasia e da catarse à elaboração psíquica. Leitura Obrigatória: FREUD, 1912, Cinco Lições de Psicanálise: Primeira Lição Bibliografia Complementar: FREUD, S., 1914, História do Movimento Psicanalítico FREUD, S.; BREUER, J.,1895 O caso Anna O. FREUD, Carta 69 para Fliess (21/09/1987), Vol I Os alunos devem pesquisar no Vocabulário da Psicanálise os seguintes verbetes: trauma, fantasia, associação livre, catarse, ab-reação, elaboração psíquica, perlaboração). _______________________________________________________________ → Resumo das principais mudanças em relação à técnica psicanalítica, do início da psicanálise até o momento atual: ● 1ª fase: fase do método catártico de Breuer. A ênfase estava em fazer o paciente recordar e ab-reagir. Ele deveria, sob hipnose, focalizar o momento em que o sintoma se formou e, pela descarga emocional, libertar o afeto do acontecimento que o suscitou. Por meio disso os sintomas eram superados. ● 2ª fase: a hipnose é abandonada e o paciente é convidado a recordar, pela associação livre, o momento em que a doença irrompeu. A ab-reação é substituída pelo dispêndio de trabalho que o paciente tem que fazer para superar resistências e prosseguir associando livremente. ● 3ª fase: fase atual. O analista deixa de se preocupar com a recordação do momento em que a doença surgiu ou que os sintomas se iniciaram. A partir da noção de transferência e de repetição, fica evidente que os elementos importantes do passado se fazem presentes no momento atual. Então, o analista passa a lidar com o que se acha presente na superfície da mente do paciente. Ele interpreta as resistências e a transferência. Superadas as resistências, o paciente torna-se capaz de continuar a associar livremente. A catarse cede definitivamente lugar à elaboração psíquica e a eliminação dos sintomas sai de foco. Como essas mudanças foram acontecendo no decorrer da história da psicanálise? 1ª fase – O método catártico de Breuer: Tudo começa com Anna O., paciente de Breuer entre 1880 e1882. Ela era uma mulher interessante, muito inteligente, que desde o término de seus estudos estava condenada a uma vida enfadonha junto a uma austera família judaica. Ela adoeceu de uma grave histeria, aos 21 anos, enquanto se achava cuidando do pai doente. O quadro clínico era constituído de inúmeros sintomas, entre eles paralisias motoras, inibições na fala e distúrbios de consciência. Quando seu pai morre, os sintomas de Anna se agravam e Breuer começa a encontrá-la, em suas visitas diárias, em uma espécie de hipnose auto-induzida. Nesse estado de transe, ela passa a relatar a ele seus estados de ânimo e os pensamentos que eram dominantes em sua mente. Breuer observa que depois de esgotado o que Anna precisava dizer nesses encontros, seus sintomas eram temporariamente aliviados. É dessa forma que se inicia um processo de cura dos sintomas de Anna O., que ela passa a denominar de “cura pela fala” ou “limpeza de chaminé”. Um momento decisivo para o tratamento se dá quando Anna sofre um acesso de hidrofobia. Embora aflita de tanta sede, ela não conseguia tomar nada, até que certa vez, em transe hipnótico, diz a Breuer que havia visto sua dama de companhia inglesa – de quem não gostava – deixar que o cachorro bebesse em um copo. Quando o nojo reprimido veio à tona nessa lembrança, a hidrofobia desapareceu, Anna pediu água e despertou da hipnose com o copo nos lábios. Breuer fica impressionado e passa a aplicar esse método no tratamento de forma sistemática. Assim, ele passa a hipnotizá-la e, nesse estado, solicita que ela trace toda a série de eventos que levaram ao início da manifestação de cada sintoma que ela apresentava. Depois que ela conseguia traçar toda essa cadeia associativa e descarregar o afeto presente na situação recordada, retornava da hipnose curada do sintoma trabalhado. Dessa forma, Anna obtém uma melhora significativa de seu quadro clínico. Apesar das descobertas importantes que Breuer faz nesse tratamento, ele só publica o caso cerca de 10 anos depois, por insistência de Freud. As correspondências de Freud mostram o que levou Breuer a relutar em divulgar o caso e o que determinou o fim do tratamento. Em uma carta ao escritor Stefan Zweig, por exemplo, Freud relata o que Breuer omitiu na publicação do caso. O que de fato aconteceu é que no fim do dia em que todos os sintomas de Anna haviam sido postos sob controle, Breuer foi novamente chamado até ela, encontrou-a perturbada, contorcendo-se com dores abdominais. Ao ser indagada sobre o que se passava, ela respondeu: “está chegando o filho do Dr. Breuer. Com um horror convencional, adequado às normas sociais da época, ele recorreu à fuga e encaminhou a paciente a um colega. Sabe-se que Anna sofreu recaídas freqüentes no ano seguinte e, por fim, conseguiu se destacar socialmente, tornando-se uma ativista social, líder de causas feministas e de organizações de mulheres judias. Freud comenta com Zweig que Breuer “teve a chave na mão, mas, não podendo usá-la, a deixou cair”. Tal chave dizia respeito a uma coisa que Freud passa a observar em praticamente todas as suas pacientes histéricas: os sintomas apresentavam uma relação fundamental com a sexualidade. Breuer, que dizia que “o mergulho na sexualidade, na teoria e na prática, não é para meu gosto”, põe as convenções morais na frente de uma curiosidade científica e sintomaticamente escreve em “estudos sobre a Histeria” que a noção de sexualidade era surpreendentemente não desenvolvida em Anna O. O que o caso Anna O. revela de principal para esse início de teorização é que há sentido nos sintomas histéricos e que a descoberta desse sentido é acompanhada pela remoção dos sintomas. Para Freud e Breuer, nessa época, os sintomas surgiam quando um processo mental com pesada carga emocional era impedido de tomar um caminho normal e se tornar consciente. Isso se relaciona à idéia de trauma, definido como um acontecimento da vida do sujeito que ele não consegue dominar e elaborar psiquicamente. A idéia traumática, pela impossibilidade de se tornar consciente, é recalcada, se mantém afastada, e o afeto que estava ligado a essa idéia é desviado e convertido, no caso da histeria, no corpo. A catarse ocorre quando a lembrança do evento traumático abre um caminho à consciência e o afeto sofre uma descarga normal. 2ª fase - da hipnose à associação livre: A hipnose parecia fundamental para que o método de tratamento que se estava estruturando funcionasse. No entanto, Freud começa a se questionar acerca da necessidade de hipnotizar seus pacientes. O caso Emmy von N. foi determinante para essa mudança na técnica. Ela era uma baronesa rica e viúva de maia-idade. Padecia de tiques convulsivos, inibições da fala e repetidas alucinações aterrorizantes, com ratos mortos e cobras contorcendo-se. O que torna o caso interessante é que quando Freud a interrogava com insistência, ela se aborrecia e, muito rispidamente, pedia que ele parasse de lhe perguntar de onde veio isso ou aquilo, mas que a deixasse contar o que ela tinha a dizer. Ele reconhecia que por mais tediosas ou repetitivas que fossem suas histórias, ele não ganhava nada interrompendo-a. Assim, ouvia suas narrativas até o fim. Emmy Von N. foi, então, a paciente que lhe ensinou a ouvir e, como ele escreve em uma carta, lhe ensinou também que “a hipnose é um procedimento inútil e sem sentido”. Esse novo olhar para a hipnose é importante para Freud, pois ele já havia observado que muitos pacientes não são hipnotizáveis, o que colocava uma grave restrição ao uso da psicanálise. Além disso, ele começa a descobrir que a fala sem censuras e a manutenção do paciente em um estado de consciência durante as sessões de análise eram muito mais interessantes ao processo. Com isso, ele adota um novo método, que ele vai chamar de “a regra fundamental da psicanálise”: a associação livre. Nesse método, o paciente é convidado a se colocar como um observador atento, que simplesmente deve comunicar o que comparece na superfície de sua consciência, ou seja, ele deve dizer, sem censuras, tudo o que lhe vem à cabeça. Ele deve ser honesto e não deve reter para si nenhuma idéia, tudo deve ser comunicado, mesmo que sinta o pensamento como algo muito desagradável, julgue-o absurdo ou sem importância. Dessa forma, se o paciente consegue pôr sua autocrítica fora de ação, é capaz de apresentar uma massa de material – pensamentos, idéias, lembranças sujeitas à influência do inconsciente. A idéia é que ele fique o mais livre possível do controle consciente, não permitindo que a coerência lógica se imponha ao seu relato (dentro dos limites cabíveis). É assim que outra determinação se torna acessível: a do inconsciente. Depois da adoção da associação livre é que Freud entende que a psicanálise de fato tem início. No entanto, nessa segunda fase e mudança da técnica de tratamento, apesar do abandono da hipnose, o paciente continua a ser convidado a recordar, pela associação livre, o momento em que a doença irrompeu. Então, não ouve aqui uma mudança muito grande nos objetivos da análise, que continuou focada na eliminação dos sintomas. O caso Katharina (publicado em “Estudos sobre a Histeria”) é um exemplo interessante desse momento da história da psicanálise. Ele também serve de ilustração para a idéia de que a sexualidade seria um fator fundamental no surgimento do adoecimento neurótico. Katharina era uma camponesa de 18 anos que servira Freud em uma estalagem austríaca nas montanhas. Tendo percebido que Freud era médico, Katharina o procurou e falou de seus sintomas – fôlego curto, vertigens, uma terrível sensação de sufocamento. Freud, de férias e ansioso para escapar de seus neuróticos e se revigorar numa excursão de escalada à montanha, viu-se novamente impelido a exercer sua profissão. Resignado e intrigado pelo fato de notar que as neuroses brotavam em toda parte, ele conduz a paciente a uma conversa sem rodeios. Ela revelou que aos 14 anos um tio havia feito várias tentativas desastrosas e mal-sucedidas de seduzi-la, e que, cerca de dois anos depois, ela o vira deitado por cima de uma jovem prima sua. Foi ao vê-lo sobre sua prima que ela conseguiu dar sentido para o que ele tinha tentado fazer com ela, pois aos 14 não tinha compreendido suas intenções sexuais. As investidas do tio ficaram meio que esquecidas e seus sintomas surgiram nesse período. Segundo Freud, ao relembrar os fatos e contá-los, seu ar melancólico deu lugar a uma animação viva e saudável, e Freud esperava que ela retirasse algum proveito duradouro da conversa, pois não tornou a vê-la. Três décadas depois, Freud acrescentou aos “Estudos sobre a Histeria” uma nota de rodapé, em que revelou que o homem que tentara molestar Katharina não era seu tio, e sim seu pai. Ele havia mudado algumas coisas no caso para proteger a identidade da paciente. Esse caso e outros tantos levam Freud a elaborar o que ele chama de teoria do trauma. Segundo essa teoria, a histeria seria decorrência de uma experiência traumática resultante de uma cena de sedução sexual. As histéricas narravam com freqüência episódios de sedução, que muitas vezes envolviam os próprios pais. A repetição disso leva Freud a ficar desconfiado, pois não era possível que tantos pais fossem perversos na sociedade. Diante disso, ele escreve em uma carta para Fliess: “não creio mais em minha neurótica”. O que ele deixa de acreditar é que os eventos que elas relatavam diziam respeito exclusivamente a algo vivido na realidade concreta. Ele começa a conceber, então, a idéia de fantasia inconsciente, que teria efeitos de realidade efetiva para o ser humano. A realidade psíquica passa a ser vista para ele como algo que chega a se sobrepor à realidade material. Dessa forma, a teoria do trauma cede lugar à importância da fantasia na estruturação do sujeito. 3ª fase: a elaboração psíquica (ou perlaboração) como finalidade da análise: (Essa fase será melhor compreendida no decorrer do semestre, a partir do entendimento dos conceitos de transferência, pulsão de morte, compulsão à repetição, etc.) Como vimos, no início da psicanálise o que se fazia era promover a catarse por meio da hipnose. O objetivo era o de curar o paciente de seus sintomas restabelecendo o caminho normal de descarga de seus afetos. O que ocorre é que há toda uma mudança de perspectiva na teoria do tratamento: Freud passa a levar em consideração às resistências, a transferência e a enfatizar cada vez mais a eficácia da elaboração psíquica como finalidade do tratamento. O que é elaboração psíquica? Seria uma espécie de trabalho psíquico que permitiria ao paciente aceitar certos elementos recalcados e libertar-se da influência dos mecanismos repetitivos. A elaboração é constante no tratamento, mas atua mais particularmente em certas fases em que o tratamento parece estagnar e em que persiste uma resistência, ainda que interpretada. A elaboração sucede geralmente à interpretação de uma resistência, que parece não produzir efeito; nesse sentido, um período de relativa estagnação pode encobrir esse trabalho eminentemente positivo em que Freud vê o principal fator de eficácia terapêutica. Ela permite que o analisando passe da recusa ou da aceitação puramente intelectual de uma interpretação para uma convicção fundada na experiência vivida das pulsões recalcadas que alimentam a resistência. Nesse sentido, é mergulhado na resistência que o sujeito realiza a elaboração. Em “Inibições, Sintomas e Angústia” Freud afirma que o recalque não se dissipa depois de superada a resistência do ego; há ainda que “vencer a força da compulsão à repetição” e é nisso que se baseia a necessidade de elaboração. Poderíamos defini-la, nesta perspectiva, como o processo suscetível de fazer cessar a insistência repetitiva própria das formações inconscientes relacionando-as com o conjunto da personalidade do sujeito. Em resumo, elaboração pode ser definida como o trabalho psíquico de superação das resistências, em que o analisando passa a ser capaz de assimilar uma interpretação. Por meio da elaboração nos aproximamos do objetivo de uma análise: possibilitar mudança psíquica que tenha reflexos na qualidade das relações estabelecidas com o outro e na expansão do próprio ser, pela possibilidade de nomeação do que até então era irrepresentável. A elaboração deve ser pensada como a finalidade da psicanálise, visto que é por meio dela que as mais sólidas mudanças com o paciente ocorrem. Assim, a mera descarga de afetos que a catarse propiciava passa a ser vista como algo secundário ao tratamento, diante da importância da elaboração.