Retiro para professores da PUC, 2001

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RETIRO PARA PROFESSORES DA PUC (26 a 28/10/2001)
Casa de Retiros Pe. Anchieta
I.
INTRODUÇÃO (6ª f. 26/10 à noite)
Que viemos fazer? Um “retiro”. Retirar-me do bulício do mundo. Vou deixar de lado a
enxurrada de pensamentos que tiram a minha paz.
Trata-se de “Exercícios Espirituais” segundo o método de Santo Inácio. Um livrinho de
cerca de 100 páginas, pouco mais ou menos, dependendo do tamanho da página, escrito
quando Inácio de Loyola tinha cerca de 30 anos, pouco tempo depois de convertido de uma
vida mundana.
É o próprio Santo Inácio que define na chamada “1ª anotação” logo ao início do texto: “Por
este nome, Exercícios Espirituais, se entende todo modo de examinar a própria consciência,
de meditar, de contemplar, de orar vocalmente e mentalmente (...). Assim como passear,
caminhar e correr são exercícios corporais, da mesma maneira todo modo de preparar e
dispor a alma para tirar todas as afeições desordenadas e, depois de tiradas, buscar e achar a
vontade divina. (...) se chamam exercícios espirituais” [1]. Portanto, este é um tempo de
oração, meditação e, se Deus for servido, de contemplação.
Deus se comunica a nós neste tempo. Na realidade Deus sempre quer se comunicar
conosco, nós é que lhe fechamos a porta. Jo 14,23: “Se alguém me ama, meu Pai o amará,
nós viremos a ele e faremos nele nossa morada”.
São Bernando tem frase famosa indicando as disposições para um Retiro: “Ingrediar totus,
manebo solus, egrediar alius” (Tradução...)
Mas não se pode perder nunca de vista que o bom resultado de um Retiro não é uma
questão de esforço, de “muque”.
Mas valem as recomendações do Doutor de Claraval: Entrarei todo, deixando de lado,
durante este tempo, as preocupações, aliás perfeitamente legítimas, da minha vida, talvez
extremamente atribulada. Permanecerei só: só com Deus, o silêncio é um “must” no Retiro.
Peço, portanto, encarecidamente, que guardem silêncio total. Falar, só com o Orientador e
auxiliares, (estamos à disposição Paul e eu).
Poderá parecer meio ou bastante artificial cruzar com uma pessoa no corredor, por
exemplo, e não lhe dirigir palavra, principalmente se é pessoa amiga, ou, “pior” ainda,
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cônjuge. Mas é assim mesmo. Logo perceberão que é natural, o Retiro assume a
característica que deve ter de “tempo de Deus”.
Sairei outro: sairei mudado, melhor, convertido. Será? Em tão pouco tempo? De novo, não
é uma questão de “muque”, de voluntarismo.
É a graça de Deus que converte. E, de fato, este é o “Tempo de Deus”, este é tempo de
conversão, a graça de Deus estará presente e se fará ouvir no interior de cada um de nós.
Ao início dos Estudos Espirituais, na 5ª anotação Santo Inácio ensina: “Ao que recebe os
Exercícios Espirituais, muito aproveita entrar neles com grande ânimo (vontade) e
liberalidade para com seu Criador e Senhor, oferecendo-lhe todo seu querer e liberdade,
para que sua Divina Majestade se sirva, conforme queira, tanto de sua pessoa como de todo
o que tem” [5].
II-
PRINCÍPIO E FUNDAMENTO [23] (distribuir)
1. “O homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor e mediante
isto salvar sua alma”.
O Princípio e Fundamento começa com afirmação básica da nossa fé. É também uma
afirmação “natural” no sentido que se a pessoa acredita que Deus existe então esta primeira
afirmação é “natural”.
Somos criaturas, contingentes. Deus é o Absoluto, necessário. A nós compete servi-lo. A
propósito a palavra de Cristo (Lc 17,10): “Assim também vós: quando tiverdes feito tudo
que vos mandaram, dizei: somos servos inúteis, cumprimos nosso dever”.
Louvar, reverenciar e servir: é uma outra maneira de dizer: (Mc 12,30 ): “Amarás o Senhor
teu Deus de todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu pensamento e com
toda a tua força”. São Paulo em Rom 12, 1 menciona o fato que devemos oferecer a Deus
um culto que seja um “obséquio racional”, ou melhor, razoável. Tudo somado, parece que é
mais razoável crer do que não crer. (Efetivamente, Karl Popper reconhece que as
afirmações da fé e da metafísica não podem ser “falsificadas”).
Creio que quando lemos este Princípio e Fundamento, temos esta sensação da
racionalidade, ou razoabilidade da nossa fé. “Louvar, reverenciar e servir”: é a única atitude
razoável de uma criatura diante do seu Criador. Seria, humanamente falando a atitude
também de uma pessoa para com seu benfeitor a quem ela deve tudo.
“O homem é criado”: insiste-se muitas vezes que a criação não é uma coisa “passada”, mas
algo presente: nosso ser, nossa existência vêm de Deus “a cada instante”, pois só Deus é
por essência e necessidade, nós somos contingentes, temos nossa existência de Deus. (Ex.
3,13 e 14, ): “Moisés disse a Deus: “Quando eu for aos filhos de Israel e disser: ‘O Deus de
vossos pais me enviou até vós’ e me perguntarem: ‘ Qual é o seu nome? que direi? Deus
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disse a Moisés: ‘Eu sou aquele que é ‘ Disse mais: ‘ Assim dirás aos filhos de Israel: ‘Eu
sou me enviou até vós’”.
“E mediante isto, salvar a sua alma”. Na realidade, a expressão “salvar-se, salvar a própria
alma” é força de expressão”, pois quem nos salva é a graça de Deus, com a nossa
colaboração, claro: não somos robôs, somos livres, temos o livre arbítrio. Na realidade, o
que temos que fazer é aceitar livremente a graça de Deus, a salvação, porque “Deus quer
que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1 Tim 2,4 ).
Salvar a alma para a vida eterna.
Para a vida eterna fomos criados “se cremos (esperamos) em Cristo apenas para esta vida,
então somos os mais miseráveis de todos os homens” (1 Cor. 15, 19).
A vida eterna será a contemplação de Deus face a face e, com isto, todos os bens. O Deus
infinito na sua grandeza, na sua bondade, na sua beleza e verdade que se unirá a nós tanto
quanto é possível, na visão “face a face”. “Seremos semelhantes a Ele, porque o veremos
tal como é “ (1 Jo 3,2). Agora, nesta vida, “vemos” Deus na fé. (1 Cor 13,12): “Agora,
vemo-lo como num espelho em enigma, então [na vida eterna] veremo-lo face a face”. Vida
eterna, sem fim. “E assim estaremos sempre com o Senhor” (1 Tess.4, 17). “A morte não
mais existirá” (Apoc. 21,4) . “Eu penso, com efeito, que os sofrimentos do tempo presente
não têm proporção com a glória que nos deve ser revelada" (Rom 8,18).
Os muçulmanos acreditam que o céu (paraíso) serão gozos materiais. Temos que convir que
gozos materiais “enchem” depois de certo tempo. Depois de, digamos, milhões de anos ou
mesmo mil anos de gozos materiais, estaríamos enfastiados. Só Deus na sua infinitude, e
porque é Espírito, pode nos comunicar felicidade eterna.
2. “E as outras coisas sobre a face da terra são criadas para o homem para que o ajudem na
prossecução do fim para que é criado. Donde se segue que o homem tanto há de usar
delas quanto o ajudam para seu fim e tanto há de deixá-las quanto o impedem”.
É o uso de “tanto quanto”. As criaturas para o homem e o homem para Deus. Usar das
coisas, não abusar. O pecado é sempre, em última análise, um abuso. O pecado ocorre
quando “nos apropriamos” indevidamente das coisas, quando nos fazemos “donos” das
coisas, tornando-nos absolutos, relativizando as coisas em função de nós. Ou seja, em
última análise, quando nos fazemos “Deus”.
3. “Pelo que é preciso fazermo-nos indiferentes com relação a todas as coisas criadas em
tudo o que não for proibido e é livre; de tal maneira que, de nossa parte não queiramos
mais saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que curta e
assim em tudo o mais, somente desejando e escolhendo aquilo que mais nos conduza
para o fim para o qual somos criados”.
A indiferença de que fala Santo Inácio não tem nada a ver com apatia ou algo do gênero.
Ela é, na verdade, o resultado de uma grande preferência.
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Esta chamada indiferença é o resultado do nosso olhar posto em Deus. Se pensamos qual
nosso fim, se pensamos na eternidade que nos espera, nossa atitude em face das coisas
dessa vida mudam completamente. Se nosso coração está em Deus, não há por que se
apegar à vida longa, por exemplo.
Pelo contrário, deveríamos dizer como São Paulo (2 Cor 5,1 – 10.) : “Pois nós sabemos que
se a nossa morada terrestre...”
Não deveríamos querer mais saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra. É
difícil, não? Nossa sensibilidade se insurge. Mas façamos esta oferta generosa a Deus.
Deus sabe muito melhor do que nós do que precisamos. Os pais aqui presentes que têm
filhos, os avós que têm netos, muita gente, na certa, precisa de nós e por isso é certo
também que Deus quer conservar nossa vida e nos dar aquilo de que precisamos. Estamos
nas mãos de Deus: “Nele vivemos, nos movemos e existimos” (At. 17,28). Deus é nosso
Pai, não há o que temer. Sua Misericórdia e Bondade é sem limites. Este Princípio e
Fundamento é uma “consideração”, mas pode (e deve também) ser feito em forma de
oração de dom de si. Tanto na Meditação como na oração, o importante não é o muito ler,
mas o “sentir e saborear as coisas interiormente”. E este sentir não deve ser entendido de
modo puramente sensível, mas trata-se de compreensão profunda das coisas, acompanhada,
eventualmente de sentimentos: o homem não é só razão.
III-
MEDITAÇÃO DOS PECADOS
Após a consideração do Princípio e Fundamento, Santo Inácio nos convida à consideração
do pecado. Considerar a fealdade do pecado e considerar meus pecados. Oração
preparatória: Que todas minhas intenções, ações... O pecado é uma ofensa a Deus e/ou a um
outro ser humano. (Pode-se falar também de pecados contra a natureza (“pecado
ecológico”), quando abusamos dela, criatura de Deus).
Devemos amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo por amor a Deus. É a mesma a
virtude teologal da caridade pela qual amamos a Deus e ao próximo, não são duas virtudes.
Então, teologicamente, quando ofendemos o próximo, estamos também ofendendo a Deus.
Efetivamente, o próximo é “imagem” de Deus, criatura de Deus, remido por Cristo.
Aqui todos somos éticos, pessoas com padrão de comportamento correto. Quando fazemos
mal a alguém, nos sentimos mal. Mas o que se quer nesta “Consideração” é ir bem além
disto. Vamos olhar para o nosso interior “é do coração (do homem) que provêm más
intenções, homicídios, adultérios, devassidão, roubos, falsos testemunhos, injúrias. Aí está
o que torna o homem impuro” (Mt. 15, 10-20). Portanto, quando se fala em pecado, evitar
pecado, não se está falando só de ética, estamos falando do nosso comportamento interior,
de nossos pensamentos. “Quem não vive conforme pensa, acaba pensando conforme vive”
(Paul Bourget). Há ofensas a Deus que não são ofensas ao próximo (mas toda ofensa ao
próximo é também uma ofensa a Deus). Nesta “consideração” somos convidados a olhar
para nós mesmos, examinarmos nossa consciência à luz de Deus, à luz da fé. Cada um,
examinando a própria consciência, encontrará um sem número de pecados. E às vezes são
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pecados “feios”. Às vezes, temos dificuldade especial num ponto e não conseguimos
corrigi-lo depois de muitos anos. A verdade é que, nestes casos, aquele defeito nos humilha,
nos incomoda e não nos corrigimos dele muitas vezes porque falta a consciência de que é
uma ofensa a Deus. Este é um tempo de realmente olharmos nossos pecados sob o ponto de
vista da ofensa a Deus. “Deus ama mais a pureza de consciência do que qualquer boas
obras que possamos fazer” (São João da Cruz). Parábola do filho “pródigo”: Lc 15, 11-32).
Atitude do filho mais velho: compreensível, razoável: nunca recebeu um cabrito para
festejar com os amigos e agora este outro que esbanjou tudo... Resposta do pai: tudo que é
meu, é teu.
Creio que nossas vidas se identificam com os dois irmãos, alguns mais com um, outros
mais com o outro.
São Bernando: “Meu mérito é a misericórdia do Senhor e eu nunca serei pobre de méritos,
porque o Senhor é rico em misericórdia”.
Vale aqui referir o que diz São Tomás distinguindo entre pecado mortal e venial: “Quando
anima deordinatur per peccatum usque ad aversionem ab ultimo fine, scilicet Deo, eui
unimur per caritatem, tunc est peccatum mortale; quando vero fit deordinatio citra
aversionem a Deo, tunc est peccatum veniale” (Quando a desordem provocada pelo pecado
leva à aversão a Deus, então o pecado é mortal; se não chegar a aversão a Deus, o pecado é
venial). Duas interpretações extremas: “aversão” significaria ódio (ou assemelhado) ou
significaria simplesmente colocar Deus “entre parênteses”. Quando nos iramos contra
alguma pessoa, frequentemente não há aversão a Deus (estou falando de gente que procura
viver na graça de Deus). Nesta meditação sobre os pecados não convém ficar numa análise
introspectiva para saber se as faltas que cometemos foram mortais ou veniais.
Consideremos a maldade do pecado, sua feitura e, mais do que saber se aquela falta foi ou
não grave, trata-se aqui de arrependermo-nos e nos larçarmos na Misericórdia Divina. A
meditação termina com o colóquio com o Crucificado: Que fiz, que tenho feito, que farei
por Cristo?
IV – ENCARNAÇÃO E NASCIMENTO DE CRISTO
Após o Princípio e Fundamento e Pecados, entramos nas Meditações/Contemplações da
vida de Cristo. E começamos no começo. Oração preparatória: Que todas minhas intenções,
ações e operações...
1. Encarnação. “O verbo de Deus se fez carne e habitou entre nós”: (Jo 1,14). Vale a pena
ler, com calma, todo o chamado Prólogo do Evangelho de São João: Jo 1, 1: - 14. “No
princípio era o Verbo...”. Trata-se da 2a Pessoa da Santíssima Trindade. Aquele que é,
conforme o Símbolo Niceno-Constantinopolitano. “Deus de Deus, Luz da Luz, Deus
verdadeiro de Deus Verdadeiro, Gerado, não criado, da mesma Substância que o Pai”.
Deus se fez homem e habitou entre nós. Deus, isto é, o Filho de Deus. Mas Filho por
natureza (da mesma substância). Se é Filho por natureza, i.e. com a mesma Natureza
(Essência, Substância), é Deus, porque só há um Deus. Nesta contemplação da
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Encarnação, nós nos encontramos com os dois grande Mistérios da nossa Fé: A
Trindade e a Encarnação. Quem se encarna? O Verbo. E quem é o Verbo?
O Mistério da Encarnação nos deixa estupefatos! Como é que Aquele que é Deus de Deus,
Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro se faz homem! A natureza divina se une à
natureza humana na Pessoa do Verbo. Duas Naturezas e uma Pessoa. E porque a Pessoa é
uma só, nós podemos chamar Nossa Senhora Mãe de Deus.
2. Nascimento de Jesus. Ler Mt 1, 18-25, e/ou Lc 2,1. Jesus nasce pobre, num lugar
humilde, fora do “centro”, na periferia. O contraste é dramático: a grandeza de Deus se
encarnando na humildade que nasce numa gruta em Belém. É uma revolução. Até aqui
nós consideramos a grandeza de Deus, o dever de lhe servir (Princípio e Fundamento) a
feiura dos pecados contra esta grandeza. Mais ainda, ao considerarmos a Encarnação,
vimos a grandeza da Trindade. Agora ficamos estupefactos com este contraste: O Verbo
de Deus se encarna (“non horrusti Virginis uterum”, como diz São Ambrósio no “Te
Deum) e de um modo que não poderíamos imaginar. 1Cor 1, 27: “Mas o que é loucura
no mundo, Deus o escolheu... (ler). Santo Inácio recomenda que aquele que faz o Retiro
contemple as cenas que medita. Ou seja, nesta Meditação/Contemplação devemos usar
nossa imaginação para vermos, ouvirmos as pessoas circunstantes: O Menino Jesus,
Nossa Senhora, São José, os Pastores. Procurar “estar presente” à cena. A cena é
extremamente comovedora. Quem não se encanta com um bebezinho? Deus se fez
bebezinho! O culto ao Menino Jesus encontrou em vários grandes místicos da Igreja um
notável impulso espiritual. Santa Teresinha do Menino Jesus, que agora é Doutora da
Igreja, é possivelmente a mais ilustre neste aspecto. Sua espiritualidade foi a da
confiança e abandono a Deus, tal como uma criança confia e se abandona aos seus pais.
Lembramo-nos a propósito das palavras de Cristo no contexto do encontro com crianças
que os discípulos queriam evitar. “Nisi conversi fueritis...’ (Mr 18,1-4).
Falei em meditação e contemplação. Qual a diferença? A diferenciação mais simplesmente
definida é a que dá São Francisco de Sales: “A oração é dita meditação até o momento em
que se produz a doçura da devoção; a partir daí, passa a ser contemplação”.
A contemplação, por sua vez, tem muitos graus, chegando à contemplação infusa, unitiva).
Na oração devemos buscar a posição, o modo que mais ajudem. De joelhos na Capela,
sentado na Capela ou no quarto, de joelhos no quarto, deitado no chão ou na cama. Mas aí
há o “perigo” de dormir; mas se este for o caso, pode ser sinal de que estamos precisando.
Eu, pessoalmente, nunca tive escrúpulos de dormir na oração quando estou cansado. É
inútil “forçar a barra”. Mas depois, quando se está descansado, deve-se fazer aquele tempo
de oração que estava previsto. Eu imagino que muitos de vocês estão cansados, com
cansaço acumulado. Se este for o caso, não tenham escrúpulos de dormir na hora de oração,
contanto, claro, que façam a oração depois. Dito isto, é preciso não abusar deste conselho,
claro, pois há um cronograma e, se a pessoa atrasa, vai “atropelar” a ordem das meditações.
V – O SERMÃO DA MONTANHA (Mt.5, 1ss:)
Façamos a oração preparatória: “Que todas as minhas intenções, ações e operações sejam
puramente ordenadas para Deus”. É um querer fazer a vontade de Deus com a conotação de
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ordenar a vida. O primeiro preâmbulo é imaginar a cena: “Ao ver as multidões, Jesus subiu
ao monte. Sentou-se e seus discípulos aproximaram dele. E tomando a palavra, ele os
ensinava...". Este monte seria uma das colinas próximas de Cafarnaum que fica à margem
do lago: cena magnífica! Podemos também acompanhar, paralelamente a narração de São
Lucas: Lc 6, 20 ss. Há diferenças entre os dois textos, os Evangelistas, ou melhor, os
autores dos Evangelhos não foram repórteres; os Evangelhos são o resultado do
recolhimento de uma memória oral, recolhidas por escrito algumas dezenas (3 a 6) de anos
após os fatos. Os antigos tinham muita memória para fatos, que eram passados, com
bastante precisão; mas, claro, introduziam-se sempre interpretações. Apesar disto, é notável
a concordância entre os quatro Evangelhos, principalmente os três Sinópticos. É bom
lembrar que a Palestina (Judéia, Samaria e Galiléia, onde se desenvolve a vida e ministério
de Jesus) era uma Província à margem dos acontecimentos centrais do Império Romano.
Nós sabemos que os povos marginais quase não têm história, esta é feita pelos vencedores.
E, apesar disso, aí estão os Evangelhos. O Evangelho de Mateus tem nove bemaventuranças. (É curioso que se ouve falar muitas vezes em 8 bem-aventuranças. São nove,
sem dúvida, no Evangelho de São Mateus. Já o Evangelho de São Lucas tem apenas quatro,
seguidas de outras tantas “maldições”. Vamos então acompanhar as bem-aventuranças na
versão de São Mateus:
1. “Felizes os pobres em espírito (“pobres de coração” na TEB), porque deles é o reino
dos céus”. A nota da TEB diz: “Esses pobres pertencem à grande família dos que as
provações materiais e espirituais acostumaram a só contar com o socorro de Deus”. E
cita o Sl 33(34), 19: “O Senhor salva o que têm o coração abatido e socorre os de
coração quebrantado”. Olhemos com nosso coração para estas multidões de
“deserdados da história e da geografia”. (Dostoievsky) “deles é o reino dos céus”. As
bem-aventuranças dizem em última análise: felizes os infelizes. O Evangelho de Lucas
diz “bem-aventurados os pobres” sem a adição “em espírito”. Esta adição permite
entender que se trata de uma pobreza que é essencialmente um desapego das coisas
materiais com a confiança em Deus; a pessoa pode ser destituída, materialmente
falando, e ser rancorosa, invejosa, ambiciosa: estes não são pobres em espírito. E, pelo
contrário, uma pessoa que vive com bens suficientes e até com abundância deles, pode
ser pobre em espírito, na medida em que usa das coisas que passam com o coração nas
que não passam. E é pelo fato de ter o olhar e o coração nas coisas que não passam é
que “deles é o reino dos céus”. A primeira bem-aventurança dá o “tom” a todo o
sermão.
2. Bem aventurados os mansos porque possuirão a terra. Interpreta-se “terra “aqui como
“terra prometida” para os judeus. Para nós, é o reino dos céus.
3. Bem aventurados os que choram porque serão consolados
4. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
5. Felizes os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.
6. Felizes os puros de coração, porque verão a Deus .
7. Felizes os que agem em prol da paz, porque serão chamados filhos de Deus.
8. Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.
9. Felizes sois vós quando vos injuriarem, perseguirem, ... alegrai-vos porque grande é a
vossa recompensa nos céus.
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Estas bem-aventuranças devem ser meditadas à luz da vida de Cristo, seu exemplo. É assim
que elas devem ser interpretadas.
Mas o Sermão da Montanha, que começa com as bem-aventuranças, não termina com elas.
Seguem-se várias pérolas, com esta logo depois. “Vois sois o sal da terra... Vós sois a luz
do mundo”. Nossa responsabilidade como professores de Universidade. Se não temos a
felicidade da pobreza real, da perseguição, temos por outro lado, a possibilidade de ser sal
da terra, luz do mundo. “Assim brilhe vossa luz aos olhos dos homens, a fim de que vendo
as vossas obras, glorifiquem vosso Pai que está no céu”.
VI – ÚLTIMA CEIA – LAVA-PÉS – EUCARISTIA
1º Prelúdio: Ver a cena: Jesus lavando os pés dos seus discípulos: Jo 13, 1-15. Imaginemonos ali, espectadores ao longo da história. A cena tem uma beleza, simplicidade e grandeza
admiráveis. Depois do lava-pés, a ceia. É o mesmo Jesus que depois de ter lavado os pés,
serve o alimento, mais do que isto, dá-se como alimento: “Isto é meu corpo que será
entregue por vós; este é o cálice do meu sangue que será derramado por vós” (Mt. 26, 2629).
Este corpo e sangue, palavras que significam toda a pessoa, mas conotam a morte cruenta,
na sua separação simbólica de corpo e sangue, nos é dado em comunhão na Eucaristia,
mistério inefável.
A Eucaristia, dom inefável. Seria a hora de examinarmos com que disposições
comungamos e verificar que efeitos está produzindo em nós a presença de Jesus
Sacramentado. Como diz São Boaventura: “Estamos com a fonte do calor e permanecemos
frios?”.
Podemos nos demorar na meditação/contemplação destes mistérios. Às vezes a melhor
oração é permanecer em silêncio na presença de Deus. Como diz São João da Cruz: “A
linguagem que Deus ouve é o silêncio do amor”. Ou então: “Suma de la perfección: olvido
del criado, memoria del Criador, atención al interior y estarse amando al Amado”. (São
João da Cruz). “Atenção ao interior”: “Deus est intimior intimo meo” (Santo Agostinho).
2. Sugiro que se passe ao Cap. 14 (Evangelho São João) de rara beleza. “Nada te inquiete,
nada de amedronte, tudo passa , Deus não muda; a paciência tudo alcança; a quem tem
Deus, nada falta; só Deus basta” (Santa Teresa de Ávila). “Não se perturbe o vosso
coração”. Encontramos o eco destas palavras mas também imortais de Santo Agostinho:
“Fecisti nos od te et inquietum est cor nostrum donec requiescat in te”. “Nosso coração não
se satisfaz com menos do que Deus” (São João da Cruz). “Tranquillus Deus, Tranquillans
omnia” (São Bernardo).
E passamos ao V.4: “Quanto ao lugar para onde vou, vós sabeis o caminho”. E Tomé: “Não
sabemos para onde vais... E Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. São Tomás de
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Aquino comenta: Jesus Cristo é Deus e homem. Enquanto Deus é a verdade e a vida,
enquanto homem é o caminho.
Mais adiante é Felipe quem faz a pergunta da simplicidade: “Mostra-nos o Pai”. E a
resposta : “Aquele que me vê, vê o Pai... eu estou no Pai e o Pai está em mim”. Temos aí o
mistério da Santíssima Trindade, temos também aí uma das afirmações mais importantes de
Jesus, manifestando sua divindade. O Símbolo Niceno-Constant. dirá: “Deus de Deus,...
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro... da mesma Substância que o Pai”. Este é mais uma
vez o momento de adorarmos e confessarmos a divindade de Cristo.
VII – PAIXÃO, MORTE E RESSUREIÇÃO
Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio são extremamente cristocêntricos. Após o
Princípio e Fundamento, já a meditação dos pecados termina cristocêntricamente com a
tríplice pergunta: Que fiz, que faço e que devo fazer por Cristo? Entra-se na chamada “2a
semana” com a contemplação da Encarnação e Nascimento de Cristo e toda a 2a semana é
uma contemplação da vida oculta e depois, pública de Cristo, com algumas meditações por
Inácio idealizadas que dão o “espírito da coisa”: o Reino, Duas Bandeiras, três graus de
humildade e três binários (sendo que essa tem mais a ver com o Princípio e Fundamento).
Na 3a semana temos os mistérios da Paixão e Morte de Cristo a partir da última ceia.
(Portanto, a meditação anterior já pertence à 3a semana), sendo que a 4a semana contempla
Cristo ressuscitado até a Ascensão, inclusive.
A Paixão de Cristo é o momento mais dramático e heróico na história da humanidade. Nada
se lhe compara. Cantada em prosa e verso, em música, pintura e escultura (Pietá na
Escultura, a Paixão segundo São Mateus de Bach, a obra-prima da música ocidental (?), o
que os místicos escreveram...).
Não é possível, em pouco tempo, meditar ou contemplar sobre toda a paixão. O melhor é
tomarmos o Evangelho e nos fixarmos em algum ou poucos pontos da narração. “Sentir e
saborear interiormente”, preceito de Santo Inácio. Este é um objetivo legítimo na oração.
Não pelo gosto em si, mas porque, através disto, há um aumento de fé, esperança e
caridade, nisto consistindo a essência de “consolação”, segundo o mesmo Santo Inácio.
Podemos nesta “Meditação”:
1. Considerar Jesus no Horto, onde ele sentiu, com todo o seu peso, o que deveria
acontecer. “Pai, se for possível, afasta de mim este cálice. Mas não se faça a minha
vontade, mas a tua”.
2. Jesus preso, levado ao Sinédrio, Negação de Pedro, Suicídio de Judas, Jesus diante de
Pilatos (preterido pelo povo em favor de Barrabás).
3. Jesus flagelado, coroado de espinhos
4. Crucifixão e Morte
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A paixão e morte é narrada em Mt 26,36 – 27,51; Mc 14,32 – 15,41; Lc 22, 39-23,49; Jo
18,1 – 19,30.
Minha preferência seria pela de São Mateus (influenciado por Bach) e a de São João.
A paixão de Cristo nos coloca diante do paroxismo do amor de Deus por nós. “Deus, com
efeito amou tanto o mundo que entregou [-nos] o seu Filho, o seu Único, para que todo o
que nele crê, não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus não enviou o seu Filho ao
mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,16s). Colocase aqui de novo a pergunta de Santo Inácio: “Que tenho feito por Cristo, que devo fazer?
“E a resposta de Santa Teresa e Ávila: “Deus não se conforma com menos do que todo o
nosso coração”. Amor com amor se paga, diz a sabedoria popular. E o amor a Deus, ensina
a Doutora de Ávila, “não consiste em gostos, mas numa determinação de agradar a Deus
em tudo”. E São João da Cruz: “O amor a Deus consiste em desapegar-se e despojar-se de
tudo o que não é Deus”. A Paixão de Cristo é a concretização suprema deste despojamento.
Talvez ao término deste Retiro sintamo-nos miseráveis, pecadores. Isto seria bom sinal
(supondo que não se trate de uma depressão, o que seria doentio, claro). Ouçamos o que
diz Madre Maria José de Jesus OCD, carioca, filha de Capistrano de Abreu, convertida no
meio de um baile, morreu “em odor de santidade”, em 1959, com processo de beatificação
adiantado: “As nossas fraquezas e misérias, em vez de afastarem Jesus de nós, antes o
atraem, como o atraíam os pobres, os enfermos, os miseráveis de toda sorte [poderíamos, e
aliás deveríamos, fazer menção explícita aos pecadores: “Eu não vim chamar os justos, mas
os pecadores”] quando ele andava na terra”. Aqui vale também recordar aquela frase
admirável de São Bernardo: “O meu mérito é a misericórdia do Senhor, e eu nunca serei
pobre de méritos, porque o Senhor é rico em misericórdia”.
RESSURREIÇÃO
A ressurreição não é compreensível sem a morte, claro, mas a morte de Cristo fica
absolutamente sem sentido sem a ressurreição.
Santo Inácio observa [299] que a primeira aparição de Cristo foi à sua Mãe, “lo cual,
aunque no se diga en la Escriptura, se tiene por dicho, en decir que apareció a tantos otros;
porque la Escriptura supone que tevemos entendimiento”. A seguir, podemos meditar nas
diversas aparições de Cristo: às mulheres (Mc 16, 1-11 ou Mt 28, 1-10). Aos discípulos de
Emaús (Lc 24, 13-35). Aos Apóstolos sem Tomé (Jo 20, 19-23) e com Tomé (Jo 20, 2429).
Aparição a 7 dos apóstolos à beira do lago (Jo 21, 1-14). Na continuação, o múmus pastoral
de São Pedro (Jo 21, 15-19). Última missão (Mt 28, 16-20). Ascensão narrada em Jc 24,
50-53 e Act 1, 6-11.
A Ressurreição de Cristo e a nossa ressurreição: “Eu penso, com efeito, que os sofrimentos
do tempo presente não têm proporção com a glória que deve ser revelada em nós” (Rom.
8,18).
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“Esse mesmo espírito atesta que somos filhos de Deus Filhos, e portanto herdeiros de Deus,
co-herdeiros de Cristo, visto que participando dos seus sofrimentos, também teremos parte
na sua glória” (Rom 8, 16s).
“Se com ele morrermos, com ele viveremos. Se com ele sofremos, com ele reinaremos[...]
Se lhe formos infiéis, ele permanece fiel, pois não pode renegar-se a si mesmo” (2 Tim, 2,
11-13).
Santo Inácio quer que nesta “4a Semana” nos alegremos intensamente pela glória de
Cristo: “Pedir gracia para me alegrar y gozar intensamente de tanta gloria y gozo de Cristo
nuestro Señor” (EE [221]).
Neste final de Retiro podemos também elevar os “corações ao alto”. No Princípio e
Fundamento estávamos indiferentes quanto a vida longa ou curta. Agora, em vista da
ressurreição de Cristo e da nossa ressurreição futura, sem perder aquela indiferença,
podemos dizer, se tivermos fé, com Santa Teresa de Ávila: “Já não caibo no meu viver e
tão alta vida espero, que morro por não morrer”. Ou São Cipriano: “Quem não tem pressa
de regressar à pátria quando anda longe dela? Para nós, a pátria é o paraíso”. São Paulo na
carta aos Filipenses 1,23s diz: “Estou preso neste dilema: tenho o desejo de partir e estar
com Cristo, o que é muito preferível, mas permanecer neste mundo é mais necessário por
causa de vós”. E na 2 Cor 5,6-10: “Assim, pois, nós estamos sempre cheios de confiança,
sabendo que, enquanto habitamos neste corpo, estamos fora da nossa morada, longe do
Senhor, pois caminhamos pela fé, não pela visão. Sim, nós estamos cheios de confiança e
preferimos deixar a morada deste corpo para ir morar junto do Senhor. Por isso, nosso
desejo – quer conservemos nossa morada, quer a deixemos – é de agradá-lo. Pois
deveremos todos comparecer a descoberto diante do Tribunal de Cristo a fim de que cada
um recolha o prêmio do que tiver feito durante a sua vida corporal, seja o bem, seja o mal”.
Vale também citar as palavras de São Cipriano: “Que contrasenso pedirmos que se faça a
vontade de Deus e depois, quando Ele nos chama e nos convida a sair deste mundo, não
obedecemos perfeitamente à sua vontade! Resistimos e lutamos e somos levados à presença
do Senhor como servos rebeldes, com mágoa e tristeza, partindo deste mundo não de bom
grado, mas forçados por uma lei inevitável. E ainda pretendemos que nos honre com
prêmios celestes. Aquele para quem vamos com tão má vontade. Então por que rogamos e
pedimos que venha a nós o reino dos céus, se continuamos agarrados à prisão da terra?”.
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