A Reforma do Estado Brasileiro e as Perspectivas de sua Implementação: das mudanças efetivadas ao controle necessário∗. Ben-Hur Rava∗ SUMÁRIO: Introdução; 1. Os Pressupostos da Intervenção do Estado na Ordem Econômica; 1.1 O Estado Liberal; 1.2 O Estado Social; 1.2.1 A Constituição Econômica; 1.2.2 O Intervencionismo; 2. Da Crise do Estado de Bem-Estar Social às Reformas Estruturais; 2.1 A Crise do Estado de Bem-Estar Social; 2.2 O Neoliberalismo e a Globalização; 2.3. O Protagonismo do Poder Judiciário Perante as Reformas do Estado; Considerações Finais; Referências Bibliográficas. Introdução No final do século XX, muitas certezas acerca do Estado soçobraram, perturbando a capacidade de reflexão no âmbito das ciências sociais, com especial destaque à Política, à Economia e ao Direito. Se desde a Era Moderna, o Estado tem sido um protagonista da vida cotidiana, principalmente através da construção do espaço público e, até mesmo nas representações do espaço privado, o que pensar agora, quando se difunde a necessidade da diminuição de seu tamanho e a possibilidade de oferecer-lhe uma nova feição, uma outra institucionalidade? De uma atitude meramente neutra no período liberal, o Estado passou a ter destaque, a partir da segunda metade do século XX, na formulação de políticas intervencionistas no período conhecido como de “bem-estar social”, que trouxe avanços sociais e econômicos, gerando riqueza e distribuição de renda entre as diferentes populações. Ocorre, todavia, que este modelo de Estado, por uma série de fatores, acabou entrando em crise, e não conseguiu responder às diversas demandas às quais a sua ação estava voltada. Essa crise acabou ganhando dimensões de uma crise de legitimidade (no campo da Política), fiscal (no campo da Economia) e legal (no campo do Direito) que oportunizaram uma série de propostas e políticas reformistas. Esse diagnóstico espelha a realidade de muitos Estados, mas se aplica, em toda a sua complexidade e extensão ao caso brasileiro. Este artigo é uma síntese dos Capítulos I, II e V, da dissertação de mestrado, defendida na UNISINOS, em 2002, entitulada “A Reforma do Estado: desestatização, mercado e regulação jurídica – uma perspectiva de controle social”, sob a orientação do Professor Doutor Anderson Cavalcante Lobato. ∗ Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS e Professor da Universidade de Caxias do Sul. 11 Este artigo, portanto, parte do pressuposto da crise do Estado intervencionista que deságua, inelutavelmente, numa série de propostas e concretizações reformistas. Tais propostas ganharam eco com a retomada das idéias liberais e a dinâmica do mundo globalizado, onde o objetivo é reduzir o tamanho do Estado e desenvolver mercado, enquanto instituição, como única opção viável, como forma de se alcançar os padrões de uma economia ágil, eficiente e rentável em favor da sociedade, gerando desenvolvimento e distribuição de riquezas. Como decorrência de todos esses efeitos, que podem ser extraídos da atual cena internacional na atividade econômica, é que se verificam tantas receitas de reforma do Estado, objetivando moldar-lhe às novas realidades e demandas mundiais. Deve-se frisar, porém, que as tais reformas trazem consigo mecanismos que emprestam um tom de gravidade diante da crise do Estado e, ao mesmo tempo, servem como instrumento de legitimação do discurso em favor das mudanças comprometidas com as políticas neoliberais. As reformas do Estado contemporâneo surgiram, pois, como propostas para delimitar o seu campo de ação política e econômica, e também para propor formas de reordenamento das suas funções clássicas. No cenário brasileiro as reformas lançaram mão de processos de desestatização, onde a privatização tem representado a principal característica de abertura do Estado, seja através da venda de ativos patrimoniais para a iniciativa privada ou, ainda, pela delegação da execução a particulares, de muitas funções, tradicionalmente exercidas pelo Estado; principalmente na área dos serviços públicos. 1. Os Pressupostos da Intervenção do Estado na Ordem Econômica O Estado, como um ente dinâmico, apresentou desde sua estruturação original, até recentemente, diversas formas sociais, políticas, culturais e econômicas capazes de atestar a sua vigorosa fonte de estudos e indagações. Não bastasse isso, tem propiciado um multifacetado campo de análises que permite a composição de inúmeras variáveis. 12 Uma dessas variáveis é sobre o modo pelo qual o Estado atua no campo social e econômico; isto é, como se dá o relacionamento entre a chamada ordem econômica1 e a ordem jurídica para produzirem normas capazes de intervir no sistema econômico? Esse relacionamento afigura-se maior ou menor na medida em que o Estado opte por determinado modelo ideológico-político e disponha de instrumentos para implementar dada política econômica. Nos últimos dois séculos, o Estado passou por diversas concepções econômicas que, contrapostas ou complementares entre si, chegaram aos dias de hoje como uma síntese que conduz a um caminho intermediário entre o regime da economia liberal e a economia planificada ou mista. Importante analisar o Estado sob a perspectiva histórica, verificando como os fenômenos econômico e jurídico interferiram na dinâmica das relações de produção e o papel que representaram na vida social. Isso é indispensável para que o Estado esteja voltado a cumprir novos desafios e funções de acordo com as doutrinas político-econômicas escolhidas e o modo jurídico de produzi-las e implementá-las2. 1.1 O Estado Liberal Após a derrocada do Absolutismo monárquico, houve o surgimento do Estado de Direito, que é a submissão do poder a um regime legal e a afirmação dos direitos individuais dos cidadãos. 1 Para Washington Peluso Albino de Souza pode-se “conceituar a Ordem Econômica a partir da idéia de um conjunto de princípios que, funcionando harmoniosamente, oferecem-nos tanto a concepção de ‘sistema econômico’, como a de ‘regime econômico’. O primeiro seria a concepção teórica, o ‘modelo econômico’ idealizado, o ‘tipo ideal’, enquanto o segundo já se afirma como traduzindo a realidade da vida econômica”. (Washington Peluso Albino de Souza. Primeiras linhas de Direito Econômico. 3. ed. São Paulo: Ed. LTr, 1994, p. 140). Por todos, consulte-se também a Vital Moreira. A ordem jurídica do capitalismo, Coimbra: Centelha, 1973, pp. 67 e ss. 2 “As diversas doutrinas (clássica, marxista, keynesiana, estruturalista e monetarista liberal) atribuem determinados papéis ao Estado dentro de suas perspectivas analíticas. Desde o mundo clássico (onde o Estado era obrigado a protagonizar o agente-polícia, que vigia o exercício das livres forças de mercado) até a revolução keynesiana (derrubando os dogmas teóricos do equilíbrio e pleno emprego automáticos), tem-se uma visão na qual o Estado é determinante na atividade econômica. Esta tese foi, na prática, origem de um intervencionismo estatal que recuperou as economias da crise e permitiu que o capitalismo industrial contemporâneo tivesse sua época de ouro (a década de 50 e 60)”. (René Villarreal. “Economia mista e jurisdição do Estado: para uma teoria da intervenção do Estado na economia”, Revista de Economia Política, vol. 4, n. 4, out/dez, 1984, p. 63). 13 Estando vinculado ao ideário que o forjou, o Estado de Direito nasce comprometido com o liberalismo. Assim, no século XVIII, estes ideais, construídos a partir de uma visão individualista, fizeram com que o Estado tivesse limitada sua atuação na esfera econômica3. Inspirado pela obra de Adam Smith4, o Estado foi relegado a uma função meramente gendarme ou de Estado-polícia. Foi substituído pelo mercado que passou a ser a mola-mestra do desenvolvimento econômico. Nesse instante o capitalismo começou a apresentar sua face mais agressiva, inclusive buscando novos mercados externos (como exemplo a política de livre comércio baseada no padrão-ouro)5. No campo político, o pensamento de John Stuart Mill6 sedimentou, ao longo do século XIX, as bases do liberalismo. Neste período a ausência do Estado das relações econômicas, pode ser considerada, do ponto de vista jurídico, como uma ação negativa ou absenteísta. Há um mínimo nas regras jurídicas. Estas servem, simplesmente, para coordenar o sistema de proteção à propriedade privada, como decorrência do direito político e não econômico. Trata-se de uma ordem geral e abstrata para garantir o funcionamento regular do mercado, fundado nos princípios formais de liberdade e igualdade. O Estado, por ser aparentemente neutro, não pensava em promover o bem-estar geral da coletividade. Apenas operava o sistema jurídico, através de instrumentos formais para promover e preservar tudo aquilo que dissesse respeito à liberdade individual. Na sua lógica, o benefício da coletividade era fruto da iniciativa de cada indivíduo. Regras capazes de 3 René Villarreal, ob. cit., p. 65. Segundo este autor: “O Estado está limitado a desempenhar um papel passivo como agente econômico: o de agente guardião e polícia, pois o sistema econômico de livre mercado encarrega-se de realizar a alocação ótima dos recursos, maximizar a produção e prover de emprego a população trabalhadora. O mercado é o mecanismo auto-regulador do processo econômico e autocorretor de qualquer desajuste eventual do sistema capitalista”. 4 Com a obra clássica A Riqueza das Nações, Adam Smith prevê uma ação utilitária do indivíduo que deve buscar o seu próprio benefício em um sistema econômico livre das amarras do Estado. Isso equivalia um regime de liberdade individual para a acumulação privada do capital que refletiria no lucro da própria coletividade. O mercado passa a ser o mecanismo de auto-regulação dos desequilíbrios do processo econômico. (René Villarreal, ob. cit., p. 64). 5 A este respeito veja-se Karl Polanyi, A grande transformação. As origens da nossa época. 2.ed., Trad. Fanny Wroblel, 2000, com atenção especial aos capítulos da Primeira Parte. 6 Com a obra Da Liberdade, de 1859, John Stuart Mill propôs ações concretas para determinar que o indivíduo faz melhores juízos acerca de seus próprios interesses. No dizer de Dalmo de Abreu Dallari: “Sintetizando sua doutrina, Stuart Mill apresenta três objeções fundamentais à interferência do governo: a) ninguém é mais capaz de realizar qualquer negócio ou determinar como ou por que deve ser realizado do que aquele que está diretamente interessado. Assim, é mais provável que os indivíduos façam melhor do que o governo; b) mesmo que os indivíduos não realizem tão bem o que se tem em vista, como o fariam os agentes do governo, é melhor ainda que o indivíduo o faça, como elemento da própria educação mental; c) a terceira razão, que ele considera ‘a mais convincente de todas’, refere-se ao grande mal de acrescer-lhe o poder sem necessidade. Cada função que se acrescenta às que o governo já exerce, provoca maior difusão da influência que lhe cabe sobre esperanças e temores, convertendo, cada vez mais, a parte ativa e ambiciosa do público em parasitas do poder público, ou de qualquer partido que aspire ao poder”. (Elementos de Teoria Geral do Estado, 19.ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 1995, p. 234). 14 preordenar a defesa da ordem geral para que os conflitos interindividuais ou até mesmo coletivos não tolhessem as potencialidades de cada indivíduo no exercício pleno das suas liberdades. Esta ordem geral estava embasada num arranjo contratual da sociedade civil tendo por guardião o Estado liberal. O Estado liberal era vazio de conteúdo social que pudesse atender às demandas dos trabalhadores e do povo em geral. Atrás do formalismo de suas regras jurídicas, não conseguiu promover o bem-estar social e, como conseqüência inevitável, entrou em crise pelas próprias contradições do sistema econômico que produziu. Abriu um corte profundo na sociedade, deixando à mostra as divergências entre os interesses de classes. Assim, as expectativas de mudança iniciadas com a Revolução Francesa, de que um conteúdo social fosse atribuído ao Estado de Direito, foram deixadas como tarefa a ser cumprida durante o “breve século XX”7, que acarretou substanciais e profundas transformações na História contemporânea. 1.2 O Estado Social O caráter individualista exacerbado e a ausência consentida do Estado nas relações econômicas levaram ao esgotamento das propostas liberais.8 A crise do liberalismo foi reforçada com novas idéias9, voltadas para uma visão mais social do Estado, que procuravam garantir o direito das coletividades, preparando o campo político, econômico e jurídico para o surgimento do chamado Estado social.10 7 Expressão colhida na obra de Eric Hobsbawn. A era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita, 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 8 Paulo Bonavides. Do Estado liberal ao Estado social. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1972, p. 28, anota: “Aquela liberdade conduzia, com efeito, a graves e irreprimíveis situações de arbítrio. Expunha, no domínio econômico, os fracos à sanha dos poderosos. O triste capítulo da primeira fase da revolução industrial, de que foi palco o Ocidente, evidencia, com a liberdade do contrato, a desumana espoliação do trabalho, o doloroso emprego de métodos brutais de exploração econômica, a que nem servidão medieval se poderia com justiça equiparar”. 9 Idem, ob. cit., Cap. VI, justifica as “bases ideológicas” do Estado Social em Rousseau e Marx. No mesmo sentido René Villarreal. ob. cit., p. 66, diz: “O marxismo aparece, na história das doutrinas econômicas, como uma crítica à economia política clássica enquanto racionalização ideológica da ordem capitalista...”. Além disso, a chamada Doutrina Social da Igreja, surgida a partir da Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, trouxe novas luzes na chamada questão social. 10 Sobre este tema consulte-se: Dario José Kist. “O Estado social e o surgimento dos direitos fundamentais da segunda geração”. Revista da Ajuris. Porto Alegre: Ajuris, Ano XXVI, n. 80, dez., 2000, passim. Ingo Wolfgang Sarlet diz que a terminologia Estado social tem como sinônimas as expressões “Estado social de Direito”, “Estado-Providência”, “Estado de bem-estar social”, “Estado social e democrático de Direito” e 15 O final do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX foram marcadas pela abundante produção legislativa que atribuiu ao Estado as competências de intervenção na economia. Com o desenvolvimento das Constituições nacionais reconhecendo estas competências, ficou claro que o Estado Social estava a caminho de sua consolidação.11 Nota-se que o Estado intervencionista passou a agregar um conteúdo substancial àquilo que o Estado liberal tratara tão-somente do ponto de vista formal, a partir de sua compreensão do livre mercado. O Estado passou a direcionar, através das normas jurídicas, um conjunto de princípios sócio-econômicos que nortearam as políticas públicas de cunho social e protetivo, alcançando a todos indivíduos. Foi um passo decisivo na afirmação da cidadania que o mercado não poderia atender sem ferir a lógica interna que preside o sistema capitalista. As atribuições econômicas do Estado foram alargadas, passando a desempenhar um papel mais efetivo conforme os interesses do Poder Público. Da mera abstenção, o Estado passou a ser promotor e fomentador de políticas econômicas e sociais. Nesse sentido, o Estado de bem-estar social apresentava as seguintes características: É a partir do Estado social que se visualizou nítida a interrelação entre os fenômenos políticos e econômicos, mediados pelo fenômeno jurídico com renovada atuação. O Estado passou a ter uma finalidade própria, distinta daquela de seus indivíduos, onde coube-lhe as realizações e prestações positivas reclamadas pela sociedade, além de formas regulatórias do mercado. Na verdade, o alargamento das incumbências do Estado veio para corrigir os rumos do liberalismo e efetivar as mudanças sociais, constituindo-se num “Estado Social que se realiza mediante os procedimentos, a forma e os limites inerentes ao Estado de Direito, na medida em que, por outro lado, se trata de um Estado de Direito voltado à consecução da justiça social”.12 Houve uma superação da dicotomia Estado – Economia que vigorara no período liberal. O Estado passou a ser visto como agente regulador e fomentador em potencial, “Estado de bem-estar (welfare State). (“Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988”, in O Direito público em tempos de crise. Estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 132). 11 Nesta fase há o surgimento do Direito Econômico como ciência autônoma, pelo conteúdo de seus princípios e normas. Alguns autores, pertencentes à determinada corrente metodológica identificam a disciplina com o intervencionismo, eis que seria “a tradução jurídica da economia dirigida”. A esse respeito ver Fábio Konder Comparato. “O indispensável Direito econômico”. Revista dos Tribunais, ano 54, vol. 353, mar., 1965, passim. 12 Ingo Wolfgang Sarlet, ob. cit., p. 132. 16 encarregado das principais políticas econômicas interventivas em favor do crescimento e desenvolvimento econômico que terá seu auge nas décadas de 50 e 60.13 As intenções políticas (através de um substrato ideológico14) são a fonte para se atingir determinado fim econômico, passando por uma estruturação e programação do discurso jurídico-formal que refletirá no modo de atuação das normas jurídicas e a forma pela qual atingirão os seus destinatários. Não há um compromisso, ao contrário do que ocorria no Estado liberal, de simples observância dos procedimentos formais. Avançou-se no sentido de emprestar um conteúdo social ao Direito, principalmente quando há a incidência dos fenômenos econômicos. Há como se identificar nas funções do Estado Social um “programa de realizações” a fundamentação que servirá para embasar a idéia e concretização da chamada Constituição econômica que foi o marco legal do processo de intervenção do Estado. 1.2.1 A Constituição Econômica O movimento liberal do século XVIII, que impulsionou o constitucionalismo moderno, apresentou nos primeiros textos constitucionais, normas jurídicas que tinham como função precípua estabelecer limites ao poder político e proclamar os direitos individuais.15 Este modelo jurídico-político, surgido a partir dos textos do constitucionalismo clássico, não se voltou para a formalização de regras destinadas a disciplinar a atividades econômicas propriamente ditas. As repercussões econômicas na vida do Estado, só reflexamente eram consideradas e, assim mesmo, quando se dirigiam à garantia dos direitos solenemente proclamados merecedores de uma tutela estatal, como o caso da propriedade privada. 13 Indiscutível que o novo conflito bélico, a Segunda Guerra Mundial, colaborou para o realinhamento das políticas interventivas e propiciou uma maior intervenção estatal. Ao seu término, o processo de reconstrução da Europa exigiu esforços dos Estados para incentivarem políticas de crédito, ajuste fiscal e investimento em setores que foram debilitados”. 14 Ivo Dantas, “O econômico e o constitucional”. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, vol. 200, abr./jun., 1995, pp. 55-69. 15 Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 1996, pp. 7-70. 17 Com a crise do Estado liberal é que as Constituições passaram a dispor de um conteúdo cada vez mais econômico,16 alargando, materialmente, o espectro constitucional.17 Este processo ocorreu ao longo dos séculos XIX e XX culminando com o aparecimento do Estado social que propôs uma forma interventiva do Estado em diversos campos para garantir condições de acesso dos indivíduos aos benefícios sociais e econômicos . Muito do intervencionismo estatal tem a ver com a conceituação técnico-jurídica apresentada pela Constituição econômica, já que ela foi o instrumento hábil a concretizar o direcionamento da atuação do Estado para a promoção social. Pode-se definir uma Constituição econômica como sendo “o conjunto das normas constitucionais que têm por objecto a dimensão econômica da sociedade política”.18 As regras constitucionais não tendo um caráter meramente formal, ou neutro, isento de qualquer conteúdo valorativo, estarão articuladas para traduzir na prática uma adequação do discurso inserido no texto constitucional à dada realidade política, social e econômica. Significa dizer que o texto constitucional, através de suas normas programáticas19 prevê uma inserção no campo social (social concreto20) amparada pelas regras do Estado de Direito. É, na verdade, uma abertura para cumprir uma tarefa futura: atingir padrões mínimos de um Estado social fundado na democracia econômica e social. Para isso requer-se uma atuação determinada do Estado através de seus poderes e órgãos objetivando medidas concretas em favor dos cidadãos. As primeiras Constituições modernas a conterem normas de natureza econômica foram a Constituição mexicana de 05 de fevereiro de 1917 e a Constituição alemã de Weimar, 16 “a ordem constitucional da economia passa a servir não só para garantir o livre funcionamento do mercado (o princípio da auto-regulação, típico das constituições liberais) mas também para enunciar formas de heteroregulação necessárias ao seu equilíbrio. Consagra, ainda, outros direitos (p. ex.: dos trabalhadores, dos consumidores, ao meio ambiente) e impõe obrigações a Estado relativas à sua efetivação”. (António Carlos Santos, Maria Eduarda Gonçalves e Maria Leitão Marques. Direito Económico, Coimbra: Almedina, 1995, p. 37). 17 A própria natureza jurídica e evolução do Direito Econômico aponta a necessidade de se estabelecer um modo de intervenção do Estado na dinâmica econômica. Assim, regras jurídicas que expressam a vontade do Estado passam a emitir comandos gerais sobre o funcionamento da ordem econômica. Veja-se a respeito Fábio Konder Comparato. O indispensável...,ob. cit., passim. 18 Jorge Miranda, “A interpretação da Constituição Econômica”. Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra: Faculdade de Direito, número especial, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Tomo I, 1984, p. 281. 19 A respeito do assunto consulte-se José Afonso da Silva. A aplicabilidade das normas constitucionais programáticas. 3.ed. São Paulo: Malheiros Ed., 1998, passim. 20 Joaquim José Gomes Canotilho. Direito Constitucional. 6.ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 467. 18 de 11 de agosto de 191921. No Brasil, com a Constituição de 16 de julho de 193422, através do Título IV – Da Ordem Econômica e Social, houve a incorporação de normas constitucionais de caráter econômico.23 As Constituições brasileiras anteriores a este período não poderiam ter inovado neste sentido já que tanto a Constituição Imperial de 1824 quanto a primeira Constituição Republicana de 189124 tinham um molde liberal clássico. A partir daquela Constituição, o sistema constitucional brasileiro passou a adotar, com pequenas variações, dentre suas cláusulas, aspectos relativos à ordem econômica e social, ainda que, algumas delas, tenham buscado repetir e consolidar princípios inaugurados pelas suas predecessoras.25 Importa registrar que pela tradição histórico-cultural do Brasil, as elites sempre esteveram voltadas para um espírito liberal que foi suavizado com regras econômicojurídicas que propugnavam o alcance da justiça social, através da intervenção e presença do Estado, como forme de minimizar os conflitos e manter as tensões num nível regulado. A Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, em uma linha de continuidade na história do nosso constitucionalismo, manteve algumas vozes já constantes de textos anteriores com algumas inovações.26 No Preâmbulo27 desta Constituição é possível divisar 21 A respeito da evolução constitucional alemã, veja-se Jörg Polakiewicz. “El proceso histórico de la implantación de los derechos fundamentales em Alemania”. Revista de Estúdios Políticos. Nueva Época, Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, n. 81, jul./set., 1993, pp. 23-45. 22 No seu art. 115 estabelecia a regra geral na qual se baseava esta intervenção: “A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro desses limites, é garantida a liberdade econômica”. 23 Muito embora o Governo Provisório de Vargas já houvesse apresentado “normas econômicas”, a Constituição de 1934 veio ratificar-lhes eficácia no art. 18 das Disposições Transitórias. Washington Peluso Albino de Souza sentencia: “Saindo da Carta de 1891, a Revolução de 1930 ofereceu, em quatro anos, farta legislação produzida sob o regime de arbítrio e dirigida no sentido de substituir os princípios liberais anteriores por outros inspirados nas experiências decorrentes, especialmente das crises posteriores à primeira Guerra Mundial. A Carta de 1934 absorveria em grande parte as inovações daquela legislação e apresentaria uma estrutura inteiramente nova, com a adoção pela primeira vez, como dissemos anteriormente, da Constituição Econômica na história do constitucionalismo brasileiro”. (“A experiência brasileira de Constituição Econômica”. Revista Forense, vol. 305, p.121). 24 Pode-se considerar que a Emenda Constitucional de 03 de setembro de 1926 introduziu normas de natureza econômica, como aquelas que autorizavam a celebração do Convênio de Taubaté. 25 Interessante observar as lúcidas ponderações de Washington Peluso Albino de Souza, quando refere que “é clássica a distinção entre Poder Constituinte e Poder Constituído, pela qual se procura medir a autenticidade das Constituições elaboradas a partir dos próprios grupos políticos no poder, as emendas e adaptações, quando não o engodo de se elaborar nova Carta que tão-somente repete os mesmos princípios das anteriores”. (“Poder constituinte e ordem jurídico-econômica”. Revista de Informação Legislativa, Brasília: Senado Federal, a. 23, n. 89, jan./mar., 1986, p. 37). 26 Para Anderson Cavalcante Lobato, “a atual Constituição brasileira de 1988 constitui um Estado democrático de direito, onde, já dissemos, se percebe uma opção de compromisso entre o Estado liberal e o Estado social de direito. Compromisso este somente possível se baseado no princípio democrático”. (“O reconhecimento e as garantias constitucionais dos direitos fundamentais”. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, a. 33, n. 129, jan./mar., 1996, p. 89). 27 Sérgio Luiz Souza Araújo. “O preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 e sua ideologia”. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, a. 36, n. 143, jul./set., pp. 5-14. 19 uma ideologia voltada para a busca de um Estado social com a preocupação de resguardar as garantias advindas do Estado liberal. Tal perspectiva, por um lado, terá reflexos na ordem econômica, quando se dirige a concretizar aspirações idealistas para assegurar o exercício “dos direitos sociais”, “a liberdade”, “o bem-estar”, “o desenvolvimento”, “a igualdade”, “a justiça” e a “harmonia social”, por outro lado, no entanto, quase sempre tem gerado conflitos e choques entre os grupos que antagonizam interesses na vida política, social e econômica. A Constituição de 1988, tratou, pois, de harmonizar diversos princípios e normas que estão sendo consolidadas através da mediação interpretativa que se acha no próprio texto constitucional. A Constituição econômica passa, dessa maneira, a ser uma obra inacabada que depende do processo de construção hermenêutica que se concretizará na atividade permanente dos legisladores infraconstitucionais28, dos administradores públicos e, principalmente dos tribunais. Há, no entanto, que se advertir de que não pode ser postergada sua atuação por demasiado tempo, eis que o cotidiano colhe os fatos da vida, do dia-a-dia que requerem a presença firme e constante do Estado. Com as mudanças operadas no processo político-econômico-social-jurídico, por conta do fenômeno da globalização e do neoliberalismo a estrutura da Constituição econômica vem recebendo uma carga muito forte de alterações, eufemisticamente denominadas de flexibilizações da ordem constitucional.29 Isso corresponde a uma mudança no núcleo fundamental da ordem econômica para permitir que a intervenção do Estado seja minimizada. 28 “cláusulas gerais e conceitos indeterminados, que necessitam de preenchimento, já são fundamentalmente admissíveis porque a multiplicidade das tarefas econômicas nem sempre se deixa apreender em conceitos de contornos claros. Isso vale particularmente para as autorizações de intervenção no domínio da administração econômica. Nele o legislador não poderá passar sem cláusulas gerais, mas servir-se-á de formulações abstratas e indeterminadas para colocar as autoridades administrativas em condições de satisfazer as suas tarefas, as circunstâncias especiais do caso particular e as situações rapidamente cambiantes da vida econômica. O legislador está obrigado, todavia, a redigir a sua regulação de modo tão determinado quanto possível, segundo a peculiaridade do contexto vital a ser ordenado, e com consideração à finalidade da norma”. (Luís Afonso Heck. O Tribunal Constitucional Federal e o desenvolvimento dos princípios constitucionais. Contributo para uma compreensão da jurisdição constitucional federal alemã. Porto Alegre: SAFe, 1995, pp. 207-208). 29 Eduardo Carrion ao analisar as reformas constitucionais promovidas pelo governo Fernando Henrique Cardoso é categórico ao afirmar: “Até que ponto as atuais propostas do governo, algumas já aprovadas pelo Congresso Nacional, não atingem este ‘núcleo jurídico-político fundamental’ da Constituição de 1988, que se inspira nos princípios da democracia social e da democracia participativa, favorecendo ao mesmo tempo um projeto de desenvolvimento nacional, inclusive como forma de viabilizar as conquistas sociais da Constituição. Este projeto, historicamente, isto é, no contexto de uma industrialização tardia, encontrou e hoje ainda encontra no Estado um importante, se não decisivo articulador. Não se trata de desconhecer ou de condenar o processo de internacionalização e de globalização da economia, mas de saber-se em que condições nos inseriremos neste processo – como pólo periférico ou preservando a autonomia dos centros de poder nacionais face à emergência das estruturas de poder transnacionais –, de forma que o desenvolvimento, que implica também o nosso caso em resgate da dívida social, não seja confundido – abastardado poderíamos acrescentar – com simples crescimento econômico”. (Eduardo Carrion. “Neoliberalismo e reforma constitucional”, in Globalização, neoliberalismo e o mundo do trabalho. Edmundo Lima de Arruda Júnior e Alexandre Ramos (org.), Curitiba: Ed. IBEJ, 1998, pp. 289-290). 20 1.2.2 O Intervencionismo A intervenção30 do Estado no domínio econômico é um fenômeno ocorrente em diversos sistemas jurídicos, que denota um curso cíclico na sua trajetória.31 No dizer de Luis Cabral de Moncada32 a intervenção é “um fenômeno historicamente permanente” variando “qualitativa ou quantitativamente” conforme o modelo jurídico-político, adotado em cada Estado. Caberá, pois, ao Estado manejar os instrumentos necessários à conformação de determinada ordem econômica que possa corresponder às expectativas da sociedade, principalmente quanto aos seus anseios de progresso. Assim, pode-se definir o intervencionismo como a forma positiva de atuação do Estado na atividade econômica, direta ou indiretamente, através de um conjunto de decisões jurídico-políticas capazes de programar planos e ações, objetivando garantir o desenvolvimento e o bem-estar social. A intervenção, portanto, pode ser utilizada como um importante mecanismo para a distribuição de riquezas da vida nacional e o conseqüente desenvolvimento econômico do Estado. Graças à ação interventiva do Estado nas diversas economias é que foi possível a correção de rumos e o desenvolvimento do capitalismo no decorrer do século XX.33 Interessante salientar que o fenômeno da intervenção estatal na economia está associado com um determinado modelo jurídico-político que corresponde ao Estado de Direito, resultado de um processo de gradual evolução do próprio Estado e dos próprios 30 Washington Peluso Albino de Souza propõe a substituição do termo para “ação” (no sentido de “ação econômica”), seja na acepção da economia privada quanto na economia pública. (“O discurso intervencionista nas Constituições brasileiras”, Revista de Informação Legislativa, Brasília: Senado Federal, a. 21, n. 81, jan./mar., 1984, p. 323). Para um aprofundamento sobre o intervencionismo do Estado no Brasil, sugiro a leitura da clássica obra dos anos 60 de Alberto Venâncio Filho. A intervenção do Estado no domínio econômico: o Direito público econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1998. Esta obra foi reimpressa não sofrendo atualização no seu conteúdo. Alguns textos sobre este tema merecem destaque: Tércio Sampaio Ferraz Júnior. “Fundamentos e limites constitucionais da intervenção do Estado no domínio econômico”. Revista de Direito Público, vol. 47-48, jul./dez., 1978, pp. 261-271; Celso Antônio Bandeira de Mello. “O Estado e a ordem econômica”. Revista de Direito Público, vol. 62; Miguel Seabra Fagundes. “Da ordem econômica na nova Constituição”. Revista Forense, 1968, a. 64, vol. 222, abr./jun, 1968, pp. 19-25; Fábio Konder Comparato. “Ordem econômica na Constituição brasileira de 1988”. Revista de Direito Público, vol. 93; Neomésio José de Souza. “A evolução da ordem econômica nas Constituições brasileiras e a adoção do ideal do desenvolvimento como programa constitucional”. Revista de Direito Público, vol. 53-54; 31 Luiz Carlos Bresser Pereira, “The cyclical pattern of State intervention”. Revista de Economia Política, vol. 9, n. 3, jul., 1989, p. 26. 32 Luis Cabral de Moncada, ob. cit., p. 15. Já Luiz Carlos Bresser Pereira. “Uma abordagem pragmática para a intervenção do Estado: o caso brasileiro”. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 34, n. 1, 1991, p. 6, usa a expressão “caráter cíclico e sempre mutável da intervenção do Estado”. 33 René Villarreal, ob. cit. p. 63. 21 instrumentos legais que o delinearam. Passou-se de uma concepção “formal” e “garantística”, identificada com o momento liberal, para uma concepção “material” e “conformadora”, típica do Estado social.34 Esta evolução do Estado, no sentido de incorporar normas jurídicas de caráter social ao pensamento liberal foi e, ainda parece ser, motivo de grandes reflexões entre teóricos e políticos, principalmente em razão dos seus compromissos ideológicos35 e dos efeitos práticos implementados pelos governos.36 Esta discussão está viva, hoje mais do que nunca, diante da crise de financiamento do Estado e das saídas que lhe apresentam ante os novos desafios como a internacionalização crescente das relações econômicas e comerciais, da relativização do conceito de soberania, dos efeitos da globalização, enfim, todas as diversas proposições do ideário neoliberal. A intervenção do Estado na economia vai diferenciar-se, em cada caso, pela natureza e alcance das normas jurídicas propostas para cumprir determinadas funções como aquelas de produção, circulação, repartição e consumo. Muito embora exista uma ordem econômica privada e uma ordem econômica pública, a intervenção deve ser encarada como tipicamente pública, em virtude dos interesses do Estado no condicionamento dos fatores econômicos e, como decorrência lógica, do seu poder de império.37 Levado por razões de ordem política ou econômica e, moldado por determinadas estruturas institucionais, o Estado enquanto responsável pelo bem geral da coletividade, sempre assumiu a função de interventor na ordem econômica; com maior ou menor 34 Luis Cabral de Moncada, ob. cit., p. 26. Marilena Chauí, “Crítica e ideologia”, in Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 3. ed. São Paulo: Ed. Moderna, p. 28. Luiz Carlos Bresser Pereira aponta que a intervenção tem uma razão ideológica, sendo “um critério básico para distinguir a direita da esquerda, o conservador do liberal, os economistas neoclássicos ou neoliberais dos progressistas ou keynesianos” (“Uma abordagem...”, ob. cit., p.5). 36 Robert Kuttner, co-editor do The American Prospect, em artigo “Capitalistas de centro-esquerda, uni-vos”, publicado no jornal Gazeta Mercantil, edição de 13.07.98, p. A-3, analisando os governos de centro esquerda da Europa e Estados Unidos ponderava: “O crescente número de partidos governistas de esquerda está limitado em suas opções de políticas de governo devido ao capitalismo global, que não gosta de grandes déficits, altos salários, regulamentações onerosas e dos impostos necessários para custeá-las. Para tranqüilizar as forças de mercado, o Ocidente como um todo está agora praticando políticas fiscais e monetárias bastante apertadas”. 37 Pelo esmaecimento das fronteiras entre o público e o privado, uma afirmação dessas deve ser graduada pelas finalidades que o Estado visa alcançar. Com referência a isso, afirma Luis Cabral de Moncada: “O direito público da intervenção económica não é com freqüência aplicado no seu estado ‘puro’, antes em combinação com elementos de direito privado, pressupostos amiúde da execução das normas de direito público. Trata-se do conhecido fenómeno da interpenetração do direito público e do direito privado, que tem no terreno da actividade económica um dos seus campos de eleição”. (ob. cit., p. 14). A respeito do tema consulte-se também o artigo de Nelson Saldanha, “Conceituações do Direito: tendência privatizante e tendência publicizante”. Revista de Direito Público, ano XX, n. 81, jan./mar., 1987, pp. 74-81. 35 22 intensidade e diversidade de propósitos.38 A intervenção teve um papel preponderante para que houvesse o desenvolvimento econômico e, por conseguinte, o bem-estar da sociedade como um todo.39 Ora, na verdade o nível de intervenção vai depender do grau de eficiência que o Estado tenha para produzir bens públicos capazes de prover e promover as condições de acesso ao mercado. Quando não é possível manter um nível de eficiência racional e de eficácia social, as críticas ao modelo interventivo são inevitáveis.40 Um exemplo claro tem sido o esgotamento ou escassez de recursos orçamentários do Estado para aplicação em políticas públicas. Isso torna a tese a favor da intervenção muito difícil de ser defendida diante dos argumentos e pressões dos diversos grupos. Aliás, o conceito de Estado mínimo passa a ser voz corrente entre os defensores da retomada do modelo liberal41, alinhando-se com as crescentes políticas de privatização e repasse de setores públicos para a iniciativa privada que atingiram o país nestes últimos quinze anos.42 38 Luis Cabral de Moncada, ob. cit., p 15. Jorge Rubem Folena de Oliveira. “O Estado empresário. O fim de uma era”. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, a. 34, n. 134, abr./jun., 1997, p. 297. 40 A este respeito veja-se a obra de Michel Crozier, Estado modesto, Estado moderno. Estratégia para uma outra mudança. Trad. J.M. Vilar de Queiroz, Brasília: Fundação Centro de Formação do Servidor Público – FUNCEP, 1989. 41 Contra esse perigo insurge-se Vital Moreira quando verbera: “A idéia de ‘Constituição aberta’ vai ao encontro dessa idéia de descarregamento constitucional material e da ampliação do espaço de liberdade de conformação política e legislativa em matéria econômica, social e cultural. Mais radicais são as teorias que visam a ‘desmaterialização’ ou ‘dessubstantivação’ das Constituições, em favor de um Constitucionalismo puramente organizatório e procedimental. Mas este radicalismo do regresso às origens do Constitucionalismo liberal não se afigura poder erradicar o firme lugar constitucional entretanto ocupado pelos direitos sociais e pela garantia de um mínimo existencial universal, como condição da própria democracia constitucional”. (“O futuro da Constituição”, in Direito Constitucional. Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho (org.), São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 326). 42 Pierre Rosanvallon adverte que é necessário sair da alternativa estatização/privatização, buscando outras perspectivas. Para o autor francês: “o debate contemporâneo sobre o Estado-providência reduz-se à alternativa estatização/privatização. Os argumentos econômicos e os a priori ideológicos se conjugam para caminhar neste sentido: aumentara socialização ou encontrar um novo equilíbrio baseado na extensão da privatização. O futuro são é encarado sob estes dois modos. De um lado, o roteiro ‘social-estatista’, do outro, o roteiro ‘liberal’. O que é certo, em todo o caso, é que não há terceira via, de solução mediana, que consistiria em propor a status quo, por exemplo, uma vez que o problema se coloca nesses termos.(...)Assim, por motivos diversos, os dois roteiros são inaceitáveis. Não há portanto, solução positiva para a crise do Estado-providência, enquanto continuarmos fechados no dilema estatização/privatização. Nenhum deles permite, além disso, pensar os progressos sociais do futuro. (...) É, portanto, urgente sair dessa alternativa estatização/privatização. Como? Essencialmente, redefinindo as fronteiras e as relações entre o Estado e a sociedade. A questão central que a crise do Estado-providência suscita é, de fato, de ordem sociológica e política. E raciocinar unicamente em termos de estatização/privatização resulta em ocultá-la, reduzindo-a em definitivo à sua mera dimensão financeira. O ‘quem deve pagar os serviços coletivos?’ faz esquecer o ‘que é um serviço coletivo?’. Nesta perspectiva, não pode haver uma única forma de futuro para o Estadoprovidência, ela será necessariamente plural. O que é preciso tirar de nossas cabeças é a idéia de que serviço coletivo = Estado = não-mercantil=igualdade, e de que serviço privado= mercado=lucro=desigualdade. O futuro do Estado-providência passa pela definição de uma nova combinatória desses diferentes elementos. Trata-se de substituir a lógica unívoca da estatização por uma tríplice dinâmica articulada da socialização, da descentralização e da autonomização,”. (A crise do Estado-providência, trad. Joel Pimentel de Ulhôa. 39 23 2. Da Crise do Estado de Bem-Estar Social às Reformas Estruturais O século XX tornou-se sintomático da crise43 de paradigmas que envolveu o Estado e a sociedade, como de resto a todas as instituições contemporâneas44. Da análise da estrutura tradicional das instituições jurídico-políticas e da comparação entre seus elementos, percebese que há um descompasso e muitas contradições que precisam ser superadas. Tais contradições devem ser atribuídas a vários motivos, mas aqueles que entendo mais representativas da crise são, basicamente: a) o crescente aumento da complexidade das dinâmicas sociais, políticas, econômicas e culturais que, devido às rápidas e profundas transformações da sociedade industrial, tecnológica e capitalista deste final de milênio têm aumentado o nível de tensão e conflito de interesses tanto individuais quanto coletivos; e, b) a incapacidade de ser dada uma resposta pronta e imediata a estes conflitos, tanto pelo Estado através do Direito como mecanismo redutor de conflitos -, quanto pela própria sociedade. Esta crise atinge o modelo racional-formal que é aplicado ao funcionamento das instituições econômicas e políticas, construídas à luz do pensamento liberal clássico, abalando os seus referenciais teóricos e práticos. Essa perda de referenciais também atinge o fenômeno jurídico que, no dizer de José Eduardo Faria, apresenta as funções específicas de “resolução dos antagonismos entre indivíduos, grupos e classes, quer na tentativa de ordenação racional das vidas pública e Goiânia: Ed. da UFG; Brasília: Ed. da UnB, 1997, pp. 83-85). 43 “Nos termos em que é colocada por autores como Ripert, Savatier e Carbonnier, a idéia de crise encerra uma visão da sociedade como um sistema formado por diferentes instituições, cada um delas com sua racionalidade própria. No limite, o equilíbrio social é possível graças a uma articulação harmoniosa dessas instituições – familiares, educacionais, religiosas, econômicas, políticas, etc. Nesse sentido, o modo pelo qual a sociedade é pensada resulta na maneira pela qual se admite a racionalidade de suas formas de organização institucional. A idéia de crise aparece quando as racionalidades parciais não mais se articulam umas com as outras, gerando graves disfunções estruturais para a consecução do equilíbrio social. cada instituição aparece como independente com relação às demais, de modo que a crise representa a sociedade como invadida por contradições. Assim considerada, a crise é uma noção que serve para opor uma ordem ideal a uma desordem real, na qual a ordem jurídica é contrariada por acontecimentos para os quais ela não sabe dar as respostas eficazes. As explicações funcionalistas, como se sabe, são exemplares dessa idéia de crise como algo equivalente o risco de anomia social ou impasse dos sistemas”. (José Eduardo Faria. Eficácia jurídica e violência simbólica. O Direito como instrumento de transformação social, São Paulo: EDUSP, 1988, p. 20). 44 A propósito da crise do Estado contemporâneo, consulte-se as seguintes obras de José Luis Bolzan de Morais: Do direito social aos interesses transindividuais. O Estado e o direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996; A idéia de direito social. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. “As crises do Estado contemporâneo”, in América Latina: cidadania, desenvolvimento e Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. 24 privada, o que se dá mediante um intricado processo de prevenção e ‘desarme’ dos conflitos desagregadores da ordem estabelecida”. É notório que os fatores políticos (crise de poder e de legitimidade)45 e econômicofinanceiros (crise fiscal) parecem ser decisivas para o agravamento da crise do chamado Estado de bem-estar social (welfare State)46. Disso decorre um descompasso entre o Estado e a sociedade, gerando o funcionamento anômalo das instituições jurídicas que ingressam na era pós-moderna. De todo o modo, essa crise de paradigmas tem solapado a função do Estado como formulador e irradiador de políticas públicas capazes de continuar a promover o Estado de bem-estar conquistado ao longo de lento processo histórico onde se afirmaram os direitos sociais47. O esgotamento de possibilidades políticas e econômicas levou a uma revisão do seu papel no processo de condução do desenvolvimento e na garantia do conjunto mínimo de direitos da população em geral. Diante das novas exigências do neoliberalismo e da globalização, esse fenômeno se reforça quando o Estado parece deixar de ser o protagonista principal na cena políticojurídico-institucional, passando a compartilhar com outros atores os papeis de encaminhamento e alternativas a um novo tipo de sociabilidade48. De outro modo, como sair 45 Tarso Genro analisa: “A crise do Estado atual tem níveis diversos: é uma crise da ética predominante na sociedade, que é presidida por este tipo de Estado, mas, especialmente, uma crise das técnicas jurídicas e sociais que podem dar determinadas margens de garantia para a respeitabilidade dos direitos. É uma crise de legitimação de um processo eleitoral cada vez mais manipulatório, que deforma a representação política e enfraquece a capacidade dirigente do Estado; é uma crise de legitimidade do Estado, que não se realiza na vontade dos cidadãos para se fazer respeitar”. (“Crise do Estado e da representação”, in Utopia possível, Porto Alegre: Artes e Ofícios Ed., 1994, pp. 75-76). 46 Na França comumente se usa a expressão l’État-providence para designar este tipo histórico de Estado. (Pierre Rosanvalon, ob. cit., p. 22). 47 O reconhecimento desta afirmação encontro na frase lúcida de Celso Furtado quando afirma: “Se intentarmos captar a essência do processo histórico que engendrou a civilização moderna, vemos que o importante não foram as ideologias e nem mesmo as tecnologias. Esses foram ingredientes utilizados por forças sociais em confrontação, pelas lutas de classes, se ficamos com a linguagem dos heréticos do século passado. Os grupos sociais que comandaram o fantástico processo de acumulação de riqueza conformaram o modelo de organização societária, mas dentro de limites ditados pelas classes assalariadas. Estas adquiriram importância crescente como mercados absorvedores do fluxo da produção. Qual teria sido a evolução das sociedades modernas sem a emergência do poder sindical que assumiu sua forma mais sofisticada na socialdemocracia? Cabe pensar que a sociedade democrática e aberta à iniciativa pessoal não teria o papel exemplar que hoje lhe atribuímos sem os sacrifícios realizados por mais de um século de lutas sociais”. (O capitalismo global, São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1998, p. 21). 48 “Nos horizontes abertos pela sociedade global, recolocam-se problemas fundamentais, primordiais. Um deles diz respeito ao contrato social, visto em duas implicações políticas, sociais, econômicas e culturais. As partes são simultaneamente os Estados nacionais, as organizações multilaterais, as empresas transnacionais. Mas podem ser também as coletividades internas de cada nação, compreendendo grupos, etnias, minorias, classes, movimentos sociais, partidos políticos, correntes de opinião pública. Mais ainda, pode ser o indivíduo, visto como ser social, momento fundamental da vida em sociedade, membro do povo, tomado 25 da crise de paradigmas e oferecer as condições mínimas para a vida social, política e econômica mediada através da ciência jurídica? 2.1 A Crise do Estado de Bem-Estar Social Afetando a América Latina de um modo geral e o Brasil de maneira particular, a crise de paradigmas que envolveu o Estado, encontrou motivos tanto no contexto internacional quanto nas próprias condições internas, sem que se possa dizer quais motivos foram preponderantes. Talvez a única unanimidade seja a constatação de que a proposta intervencionista nos moldes tradicionais tenha sido ferida, mas que ainda apresenta condições de restabelecimento, talvez em outros moldes. Fatores como inflação, recessão, desemprego, déficit público, instabilidade monetária, forte endividamento, entre outros, formaram um ambiente propício para a discussão acerca da crise do Estado e do seu papel49. Por outro lado, o fato de o Estado brasileiro apresentar forte componente autoritário – o que faz com que a democracia seja sempre relativa – dificulta a capacidade de absorção das crises que o atingem. Toda vez que é chamado a responder a grandes demandas ou grandes reformas, sempre há o risco de atingir-se o curso da própria governabilidade. Isso, por vezes, gera uma inércia na atividade estatal que tende a postergar decisões fundamentais e as reformas que se façam necessárias, principalmente quando se leva em conta os graves desajustes macroeconômicos e os precários níveis das condições sociais. Diante dessa realidade – não só conjuntural, mas principalmente estrutural – passou-se a pregar a necessidade de tornar o Estado mais moderno50, mais ágil, mais eficiente, como coletividade de cidadãos; ou da população tomada como coleção de trabalhadores, subalternos, súditos, estrangeiros, desclassificados”. (Octávio Ianni. A sociedade global, 6.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 108). 49 Concomitante a isso, muitos países da América Latina (o Brasil entre eles) iniciavam a transição de regimes autoritários para regimes democráticos, o que aumentou o grau de complexidade institucional no campo político, econômico e social. 50 A expressão “modernização do Estado” pode ser tomada em dois sentidos que são, entretanto, opostos. O primeiro sentido, que vai do pós-guerra até a década de 1970, identifica a modernização com o período de crescimento do Estado onde os países subdesenvolvidos alcançaram os países desenvolvidos através de uma forte atividade estatal. A segunda, por sua vez, está identificada com as teses neoliberais que associa a modernização com um Estado mínimo. (Joaquín García-Huidobro. “Mas allá de las modernizaciones. La reconstitución del Estado”. Revista Chilena de Derecho, 1997, vol. 24, n. 2, p. 225). 26 desenvolvendo suas atividades no mesmo padrão dos Estados centrais, capazes de atender grande parte das demandas sociais com eficácia e qualidade. Forjou-se um discurso minimalista51 do Estado que radica nas formulações neoliberais – reforçado pela imagem e efeitos avassaladores da globalização – onde a existência de um Estado de bem-estar social pode significar um entrave52. A trajetória do capitalismo rumo à internacionalização das trocas comerciais e ao fortalecimento do sistema financeiro colaborou para frear as modalidades de desenvolvimento industrial que se desenvolveu a partir do pós-guerra e teve, até o início da década de 1970, o seu apogeu. A afirmativa se comprova pelos altos níveis de pleno emprego e da produção renovada de bens de consumo que incrementaram a economia naquele período, o que acarretou o desenvolvimento dos setores trabalhistas fazendo com que houvesse uma base social articulada e disposta a participar ativamente na distribuição das riquezas53. Ao descortinar dos anos 70 começaram a ruir as bases das políticas keynesianas que vigoraram desde os anos 30. Iniciava-se mais uma das crises cíclicas do capitalismo no século XX. Esse período, também foi representativo do aumento das empresas multinacionais em busca de mercados mais abertos e competitivos, operações mais rentáveis e, conseqüentemente, o aumento dos níveis de consumo capazes de gerar maiores lucros. Nesse passo, as estruturas do Estado contemporâneo tiveram de ser minimizadas frente à incapacidade de se continuar financiando as políticas públicas oferecidas aos cidadãos. 51 Recolhi esta expressão em Otfried Höffe que assim o define: “um estado minimal que se restringe a algumas funções estreitamente delimitadas, como a proteção contra o poder, o roubo, a trapaça ou a efetivação de contratos, sendo por isso cega em face dos problemas específicos dos séculos XIX e XX, a saber, em face das questões sociais e da proteção do meio ambiente”. (Justiça política. Fundamentação de uma filosofia crítica do Direito e do Estado. Petrópolis: Ed. Vozes, 1991, p. 377). 52 “Deve-se recordar que, quando se começou a falar da reforma do Estado na Europa, esse projeto político estava muito ligado à crise do Estado de bem-estar (Estado-providência) e à necessidade de a superar por meio de uma redução dos direitos sociais e econômicos. Os enfrentamentos sociais e políticos a que conduziu esse projeto fizeram com que ele fosse adiado. Apenas na Inglaterra o projeto avançou e mesmo assim numa intensidade muito mais restrita do que tinha sido proposto pela ex-primeira-ministra Margareth Thatcher. Os resultados dessa reforma, não são animadores em termos sociais, O Estado inglês diminuiu, de fato, as despesas sociais, mas o resultado foi um aumento drástico nas desigualdades sociais”. José Matias Pereira. “Repensando a administração pública: o futuro do Estado de bem-estar”. Revista de Informação Legislativa, Brasília: Senado Federal, a. 36, n. 142, abr./jun., 1999, p. 246. A respeito da crise do Estado consulte-se Pierre Rosanvallon, ob. cit., passim , e ainda, A nova questão social. Repensando o Estado Providência. Trad. Sérgio Bath, Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1998, passim. 53 “O Estado Social, que resultou desta nova realidade, correspondeu em grande parte a um pacto-social democrata entre capitalistas e trabalhadores, numa fase de expansão da economia capitalista, desde o início dos anos 40 até o final dos anos 60. Face à crise do sistema capitalista, a partir do final dos anos 60, inicialmente sob a modalidade de uma crise financeira, o Estado Social encontra-se igualmente em crise. Neste quadro, a política econômica neoliberal expressa também a tentativa de retroceder com relação às conquistas da fase anterior de expansão da economia capitalista”. (Eduardo Carrion, ob. cit., p. 285). 27 Nos anos 80, a crise fiscal recrudesceu abrindo espaço para o receituário neoliberal dos países centrais e, principalmente das agências financeiras internacionais, que passaram a pregar a diminuição do tamanho do Estado e a implementação de reformas econômicas 54. Cumpria-se a regra quase infalível de que diante das grandes e rápidas transformações do capitalismo, as funções tradicionais do Estado se modificam para servir às necessidades da economia e, portanto, estabilizar o próprio sistema que é essencialmente contraditório55. As políticas neoliberais levaram ao extremo o seu substrato ideológico consolidando, além do discurso uma práxis da renovação do acúmulo do capital. Houve uma expansão global de tudo aquilo que pudesse interessar à manutenção de um quadro que reproduzisse as formas mais insidiosas do capitalismo monopolista e concorrencial. Esse argumento pode ser demonstrado através das modernas realidades sócio-econômicas: a extensão da mecanização da produção, a eliminação de barreiras espaciais na troca de mercadorias e informações, a urbanização do mundo, a quase exaustão do ecossistema, o alto grau de monetarização do processo de trabalho e, a mercantilização, enormemente expandida, do consumo56. Daí afirmar-se que o sistema global, conduzido pelos países altamente industrializados engendra uma prática neoliberal que propicia a “deslegitimação das estruturas estatais”, causando uma desordem crescente e um sentimento de insegurança que tende a durar, ainda, por algum tempo. 54 Na edição de 13. 07.1998, no Jornal Gazeta Mercantil, p. A-2, o então Vice-Presidente Sênior do Banco Mundial Joseph Stiglitz, vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 2001, num artigo intitulado “A segunda geração de reformas”, fazia um balanço sobre as reformas de “primeira geração” que haviam sido muito importantes, pois compreendiam o fim das altas taxas de inflação, a abertura para o comércio internacional e o “ambicioso” programa de privatizações. No entanto, era indispensável que uma “segunda” geração de reformas fosse concretizada. Disso adviria conseqüências positivas como o crescimento mais rápido, a repartição dos frutos alcançados e o reforço do processo de democratização do país. As reformas de segunda geração consistiriam em “reconduzir o governo ao seu verdadeiro papel”. Isso porque as “economias de maior sucesso, entre as quais os Estados Unidos, têm há muito governos ativos, mas concentrados em seu foco, atuando como um complemento aos mercados”. Dizia o economista que: “A questão mais importante não é como fazer com que o governo atue uniformemente menos, mas como assegurar que o governo atue uniformemente melhor”. Como se sabe, há muitos anos o Brasil tem recebido constantes visitas de técnicos do FMI, Banco Mundial, BIRD, entre outros organismos para acompanhar as medidas adotadas no sentido de conter os gastos, minimizar o déficit público e, portanto, equilibrar a economia. 55 José Eduardo Faria, ob. cit., pp. 41-42, analisando o desenvolvimento capitalista e a evolução do Estado liberal sintetiza: “Determinada pela expansão oligopolista, a decrescente capacidade de auto-regulação da economia de mercado exige crescentes controles estatais sobre as atividades produtivas e novos critérios sobre a distribuição dos excedentes. As crises cíclicas, por sua vez, implicam intervenções reguladoras e disciplinadoras por parte da administração pública. Com a expansão dos papéis do Estado e com a ampliação dos graus de autonomia relativa de seus diferentes órgãos executivos, os paradigmas do liberalismo tradicional, vão, gradativamente, sendo superados. Revelam-se, assim, inaptos, insuficientes e incompletos para explicar – e justificar – porque as garantias do processo de acumulação privada e da própria propriedade particular passam a requerer restrições ao primado da autonomia individual como fator determinante da vida sócio-econômica”. 56 Immanuel Wallerstein. “As agonias do liberalismo”. Revista Lua Nova, n. 34, 1994, p. 130. 28 O Estado de bem-estar social que havia assegurado a implementação e alargamento dos direitos sociais ou de segunda geração, passou a ser substituído por outras estruturas de poder que agora parecem residir no mercado e nas empresas transnacionais. 2.2 O Neoliberalismo e a Globalização O liberalismo foi consagrado como marco teórico e prático fundamental da razão de ser da política e economia nas sociedades ocidentais. Suas bases ideológicas influenciaram, de modo decisivo, todo o século XIX e início do século XX. O postulado da liberdade de iniciativa individual, como propulsora do desenvolvimento e do bem-estar coletivo, estava alicerçado no livre jogo do mercado para a produção de riquezas de forma mais eficiente57. Passados dois séculos e, pulverizadas muitas certezas, as idéias liberais tentam voltar à tona aproveitando-se do momento de crise de paradigmas pelo qual passa o Estado contemporâneo. Em que pese ter agregado o prefixo neo, na sua formação lingüística, nada ou quase nada de novo agrega à sua velha cantilena58. 57 “O processo histórico de formação econômica do mundo moderno pode ser observado de três ângulos: 1) a intensificação do esforço acumulativo mediante a elevação da poupança de certas coletividades; 2) a ampliação do horizonte de possibilidades técnicas; e 3) o aumento da parcela da população com acesso a novos padrões de consumo. Não se trata de três processos distintos, e sim de três faces em interação de um só processo histórico”. (Celso Furtado, ob. cit. p. 26). No mesmo sentido Juán Ramón Capella afirma “Por otra parte, la produción masiva significó a la larga políticas salariales susceptibles de maximizar el consumo y la integración social de las clases populares en la medida compatible con el crecimiento del capital en la Europa tales políticas sólo fueron practicadas después de la segunda guerra mundial; en Norteamérica las inició la administración Roosevelt. La capacidad de consumo popular se acrecentó paulatinamente y el tiempo de trabajo necesario para producir los bienes siguió una firme tendencia decreciente expresiva de una característica del sistema capitalista merecedora, mutatis mutandis, de conservar-se: la capacidad para disminuir el tiempo de producción de los bienes (eso sí: en ese sistema, aunque perezca el mundo o se destruya a las personas). La produccíón de masas significó también gasto público(o sea, salario indirecto y bienes asignados a todos en general) para mantenerla demanda: educación y sanidad para obtener personas capacitadas y con salud para trabajar; urbanización, energía y comunicación a precios políticos para que pueda haber viviendas, automóviles, neveras y televisores; pavimentación y pistas para que los automóviles corran por ellas”. (ob. cit., p. 168). 58 José Eduardo Faria afirma: “Embora tão citado em prosa e verso, o liberalismo é hoje uma expressão vaga, ambígua – um lugar comum a indicar um movimento partidário, uma idéia, uma ética, uma estrutura institucional ou mesmo uma reflexão política. E como são muitas as práticas, os interesses e os argumentos que atualmente se escondem sob o rótulo ‘liberal’, o conceito de liberalismo encontra-se semanticamente desgastado: diante de tanta imprecisão conceitual, como distinguir os vários adjetivos do substantivo, isto é, as diferentes experiências históricas consideradas ‘liberais’, por um lado, e o conceito de liberalismo, por outro? Mais do que isso: haverá algumas possibilidades de falar num liberalismo no singular, ou seja, unívoco e universal?” (“O modelo liberal de direito e Estado”, in Direito e justiça. A função social do judiciário. José Eduardo Faria (org.). São Paulo: Ed. Ática, 1989, p. 19. 29 Senão vejamos. A doutrina neoliberal está fundamentada em alguns aspectos: a) o desenvolvimento da iniciativa privada com o direito de propriedade como correlato, e b) a livre concorrência que se orienta, exclusivamente, pelas leis do mercado e do livre curso da demanda e da oferta. Isso significa, por decorrência lógica, que o Estado deve afastar-se o máximo possível das atribuições econômicas, intervindo somente naqueles casos que não for possível aos particulares exercerem a plenitude de suas faculdades e liberdades individuais59. O arcabouço do discurso neoliberal está construído em cima de símbolos bastante significativos da modernidade: a fluidez, a instantaneidade, a idéia de movimento constante e a flexibilidade das condições da vida. Tudo aquilo que tende a ser perene não encontra ecos no discurso neoliberal. Rompem-se as estruturas tradicionais da vida social para abrigar uma nova sociabilidade. As conseqüências sociais da política econômica neoliberal têm sido devastadoras. As contradições do capitalismo se apresentam em toda sua inteireza60. Isso significa uma grande capacidade de gerar bens e serviços, para incrementar o comércio internacional e os movimentos do capital financeiro e especulativo, mas em absoluto descompasso com a repartição da renda nacional e até mesmo com os níveis desejáveis de desenvolvimento econômico e social. Os mercados livres e as empresas transnacionais apresentam um viés monopolista onde determinam o rebaixamento dos salários e do nível de emprego na busca de uma produtividade cada vez maior no curto prazo61. Com isso acabam perdendo a visão de 59 Tarso Genro faz uma crítica severa ao discurso neoliberal quando afirma: “A visão que o neoliberalismo tem do mercado é uma visão instigadora da barbárie. É uma visão que quer impor a idéia de que os homens são iguais para terem as suas oportunidades e que o regramento natural do mercado vai, por si só, levar à melhor possibilidade social”. (“O mercado”, in Na contramão da Pré-História, Porto Alegre; Artes e Ofícios Ed., 1992, p. 59). 60 “A economia de mercado desenvolve uma contradição. A concorrência não é jamais pura e perfeita, ela é fundada sobre desigualdades de poder sobre os mercados. Ora, o mais forte pode ter a tentação de eliminar os mais fracos e de, assim, de tornar-se um monopólio, ou seja, de estabelecer a antítese da competição”. (Jacques Fontanel, “O Estado e o processo de globalização”. Ensaios FEE, Porto Alegre, 1998, n. 2, p. 10). 61 Alberto do Amaral Júnior analisando a competição comercial e suas vantagens comparativas arrola as principais dificuldades aos países periféricos: “1 - A vulnerabilidade e a viabilidade internacional das economias refletem as novas vantagens comparativas, de natureza volátil e caleidoscópica. As empresas passam a observar o comportamento das competidoras estrangeiras para verificar se as diferenças em termos de políticas e instituições domésticas lhes conferem benefícios ‘indevidos’, que configurariam unfair trade. A proliferação das reivindicações em favor do fair trade nos países desenvolvidos, visando harmonizar as políticas e instituições domésticas como pré-requisitos para o comércio livre, expressa o caráter caleidoscópico das novas vantagens comparativas. 2 – O sentimento de insegurança econômica com o aumento das taxas de desemprego, deflagrado pelas mudanças tecnológicas na esfera da produção, foi consideravelmente reforçado pelas novas vantagens comparativas. 3 – A globalização favorece, em alguma medida, o declínio dos salários reais dos trabalhadores não-qualificados. Tais trabalhadores permanecem, em média, menos tempo no emprego, recebem treinamento durante período mais reduzido e são atingidos por fortes perdas salariais”.(“Cláusula social: um tema em debate”. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, a. 36, n. 141, jan./mar., 1999, p. 137. 30 solidariedade social que deveria animar as relações políticas e colaborar, direta ou indiretamente na construção de alicerces para o desenvolvimento do Estado e do próprio mercado a médio e longo prazo, principalmente através daqueles bens de utilidade pública como educação, ciência e tecnologia, segurança pública, etc., que retornam como investimento social que beneficia a toda coletividade. A Josaphat Marinho assiste razão quando afirma que “entre a estrutura neoliberal, que não se consolidou, e declina, e a do Estado social que renasce, ou parece renascer, há fraturas visíveis e claridades indecisas”62. Nunca foi tão fácil como nos últimos tempos, querer se afirmar o fim do Estado ou, ao menos, o esgotamento de suas condições ideais e tradicionais de existência. A pulverização ou fragmentação do poder político – tradicionalmente hegemônico e bi-polarizado63 durante os anos da Guerra Fria de repente lançaram o mundo numa espécie de caos e perda das referências políticas, econômicas, sociais e culturais. Parece que o mundo está a sucumbir, incontinenti, à vitória das idéias neoliberais que se apresentam como única medida viável e capaz de articular/desarticular todo o processo de produção e organização econômica e institucional. A globalização, neste sentido, aparece como a face mais insidiosa do neoliberalismo apresentando-se, até o momento, como uma forma hegemônica – em substituição ao Estadonação e ao indivíduo – gerando uma “ruptura drástica nos modos de ser, sentir, atuar, pensar e fabular”, no dizer de Octávio Ianni64. Para tanto, não pode a globalização ser considerada somente um fenômeno econômico. É antes de tudo uma manifestação que representa uma mudança substancial no mundo em geral e nas relações sociais em particular. Conseqüência direta disso está no que Tarso Genro chama de “fragmentação que leva à selvageria”. Após a crise nas condições reais do exercício do poder político e da insuficiência econômica dos Estados (re)aparecem propostas que tentam viabilizar um caminho incondicional de desenvolvimento e aptas a inserir o Estado e a sociedade nos moldes da 62 Josaphat Marinho. “A nova ordem mundial e os direitos sociais”. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado federal, a. 35, n. 140, out/dez., 1998, p. 5. 63 Fenômenos ocorridos na ex-URSS, a partir de 1985, com Mikhail Gorbatchev, introduziram mudanças na estrutura econômica planificada abrindo-a à economia de mercado (Perestroika) e a democratização na vida política, acabando com a hegemonia e centralismo do Partido Comunista (Glasnost) são sintomas claros da crise do socialismo e, por conseqüência, o fim dessa bi-polaridade. Sobre este argumento veja-se Octávio Ianni. “A sociedade...”, ob.cit., pp. 11 a 33. 64 Octávio Ianni. “Metáforas de la globalización”, Revista de Ciências Sociales, Universidad Nacional de Quilmes, mayo, 1995, vol. 2, p. 9. 31 terceira revolução industrial65. Este caminho, ao que tudo indica, parece estar condicionado ao livre mercado, como uma espécie de consenso (“consenso liberal”)66 onde só cabe espaço para a consolidação dos processos de acumulação do lucro privado em detrimento das condições sociais da cidadania afirmativa. Trata-se, em última análise da “nova barbárie” que engendra a “harmonização” e a “homogeneização” progressiva da sociedade67. Diminuir o papel e, conseqüentemente, o tamanho do Estado parece ser a fórmula encontrada para assegurar a eficiência, a rapidez e a maior efetividade do capitalismo global. Expressões como “privatização”, “liberalização”, “flexibilização” ou, até mesmo, “desregulamentação” parecem ser a tônica central desta lógica que busca, mais do que o consenso, a hegemonia absoluta nas formas políticas que visam a desconectar o Estado da condição de mediador dos conflitos sociais e retirando-lhe a legitimidade, pulverizar estes mesmos conflitos através do mercado, como centro de efervescência da igualdade formal e da liberdade absoluta. Não há como negar o fato de que a globalização com sua lógica econômica, antes de qualquer outra, gera uma crescente instabilidade política abrindo uma crise (ou várias crises) no âmbito do Estado-nação. É notório que os Estados nacionais não conseguem mais regular a sua vida econômica através de mecanismos jurídicos. Têm perdido a capacidade de regular os mercados internos quando o próprio conceito de soberania passou a ser relativizado, diante da globalização econômica. Hoje o mundo globalizado continua a apresentar uma realidade bi-polarizada, só que agora a disputa é entre países do centro e países da periferia. Ou, de um modo mais simples e direto: entre ricos e pobres. A globalização tem sido capaz de criar espaços formidáveis para o desenvolvimento tecnológico, o avanço da ciência e a dinâmica das relações comerciais internacionais dos 65 Segundo Wilson Ramos Filho.:“(...) talvez seja necessário partir da noção mais ou menos consensual em economia de que estaríamos na chamada ‘ terceira revolução industrial’. A primeira seria aquela iniciada com a máquina a vapor. A segunda, com o petróleo como grande motor da história. E a terceira, na qual a tecnologia, principalmente tecnologia no setor de telecomunicações, dirige o mundo, que está em constante modificação, característica desse final de século”. (“Direito-pós moderno: caos criativo e neoliberalismo” in Direito e psicanálise: elementos para uma leitura interdisciplinar. Curitiba, EDIBEJ, 1996, p. 88). 66 Sobre a noção de “consenso liberal”, veja-se Boaventura de Sousa Santos. Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo. Coimbra: Oficina do Centro de Estudos Sociais, 1998, pp. 1719. 67 Octávio Ianni, “Metáforas...”, ob. cit., p. 11. 32 países centrais não tendo, todavia, sido capaz de oferecer alternativas à exclusão social, à fome e à miséria gerada nos países da periferia. Não tem sido possível, até o momento, uma socialização dos lucros oriundos do processo de globalização68. Por outro lado, a economia que se apóia na produção e no desenvolvimento tem ficado muito aquém da economia baseada em ativos financeiros que são negociados nas bolsas de valores mundiais. Isto atesta o caráter financeiro – através do risco e da especulação – que determina os rumos da globalização. Não se trata simplesmente de ser contra a globalização. É preciso ter a capacidade de interação dos diversos segmentos em construir alternativas viáveis a este modelo. É necessária uma capacidade de mobilizar estruturas políticas e, sobretudo sociais, que possam resgatar o papel do Estado e oferecer respostas viáveis à saída neoliberal que não estejam, calcadas no individualismo, no egoísmo e na falta de solidariedade social. É preciso (re)colocar o Estado sob o controle público e submeter o mercado a um poder regulatório da sociedade, ainda que muitos teóricos afirmem ser isso impossível. Isso passa por mecanismos de mudança cultural que afetará a mudança econômica (mercados) e a mudança política (poder do Estado) com a indeclinável mediação do Direito como instrumento de mudança social. Para Celso Furtado “os novos desafios, são de caráter social e não basicamente econômico como ocorreu na fase anterior do desenvolvimento do capitalismo. A imaginação política terá assim que passar ao primeiro plano”69. Há que se buscar um fundamento ético alternativo ao neoliberalismo. Uma ética que não coloque o lucro acima de qualquer circunstância. Uma ética que seja inclusiva e promova a cidadania e a democracia como formas de alcançar a solidariedade, a paz e a justiça social70. 68 “A globalização é concentradora de renda. Em nível internacional, em 1995, as 358 pessoas mais ricas do mundo detinham recursos equivalentes aos dos 2,3 bilhões de pessoas mais pobres; ao nível nacional, entre 1975 e 1995, a riqueza americana teve um aumento de 75% - um excedente de 2000 (sic) bilhões de dólares dos quais 60% foram apropriados por 1% da população – um por cento!”. (Rabah Benakouche. “Globalização ou pax americana” in Globalização, neoliberalismo e o mundo do trabalho. Edmundo Lima de Arruda Júnior e Alexandre Ramos (org.), Curitiba: Ed. IBEJ, 1998, p. 9). 69 Celso Furtado, ob. cit., 33. 70 Edmundo Lima de Arruda Júnior, cita a Carta de Porto Seguro, que foi resultado do II Encontro Nacional de Direito Alternativo, em 19 de abril de 1997: “Sob o ponto de vista das lutas populares, o que se reivindica é a mundialização da cidadania , a globalização da democracia como valor universal. O sentido da globalização querida pelos trabalhadores diz respeito à emancipação e não à alienação de seres humanos. Enquanto a direita quer mais uma vez universalizar o seu sentido de globalização neoliberal, nós queremos a universalização de maiores graus de liberdade e igualdade. Queremos a democracia formalizada em constituições compromissárias, marcadas ‘pela força normativa irradiante dos princípios constitucionais, mormente pelos princípios estruturantes da República, dentre os quais os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da erradicação da pobreza, da redução das desigualdades sociais e da construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. (ob. cit., p.18). 33 Apresentar um caminho alternativo ao neoliberalismo e, por conseguinte, à própria globalização é tarefa necessária. Isso passa pela discussão de um novo modelo organizacional de Estado, de Direito e da própria Economia. Introduzir mecanismos de regulação do mercado além da descentralização política e administrativa que viabilizem o desenvolvimento do espaço democrático e da institucionalização da cidadania – como caráter formal de reconhecimento e respeito aos direitos humanos -, articulados com os movimentos sociais através de uma atuação local é uma alternativa para a reconstrução da esfera pública, resgatando-a do domínio privado, em que foi lançada pelos arautos do pensamento neoliberal. 2.3. O Protagonismo do Poder Judiciário Perante as Reformas do Estado No momento em que as doutrinas neoliberais afirmam a necessidade de menos Estado e mais mercado, postulando o desbaratamento das funções tradicionais do Estado71, deve-se criar um marco de resistência ao desmonte que engendra tal idéia. Uma nova atitude jurídica deve ser desempenhada pelos atores sociais e políticos, pautando novos modelos de institucionalidade, diversa daquela já conhecida. A flexibilização pura e simples das instituições e regras, com o objetivo de atender as relações econômicas de mercado, além de esvaziar o conteúdo do Estado democrático e social, gera a corrosão do espaço público onde a coesão política e social define-se como fator fundamental. Nesse sentido, corre-se o risco de verem-se perdidos os parâmetros de um modelo institucional onde o Estado devia ser o mediador dos conflitos, sendo capaz de regular a produção jurídica para dar efetividade à promoção social dos indivíduos e dos grupos sociais72. 71 Sempre é bom ter presente a distinção entre as funções que persegue o Estado liberal e o Estado social. Isso dará o tom de maior ou menor “prestação” em favor dos indivíduos ou grupos sociais. Sobre este argumento Fábio Konder Comparato compara as funções do Estado liberal e do Estado social, dizendo sobre este último que “a legitimidade do Estado contemporâneo passou a ser a capacidade de realizar, com ou sem a participação ativa da sociedade – o que representa o mais novo critério de sua qualidade democrática -, certos objetivos predeterminados. A verdade é que a orientação finalística da ação governamental, em que pese às proclamações ideológicas dos defensores do mercado livre, existe até mesmo nos Estados mais fundamente marcados pelo neoliberalismo triunfante. Basta lembrar que é hoje unânime o reconhecimento, entre os economistas liberais, de que toda política econômica estatal deve orientar-se para a realização das quatro metas constitutivas do chamado ‘quadrilátero mágico’: a estabilidade monetária, o equilíbrio cambial, o crescimento constante da produção nacional e o pleno emprego”. (“Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas”. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, a. 35, n.º 138, abr./jun, 1998, p. 43). 72 “Os direitos, de qualquer natureza, se fundam no tripé integrado por sua consagração legislativa, pela previsão dos meios para reclamá-los e pela estruturação do setor estatal que torne efetivas as reclamações. Temos elaborado complexas teorias, freqüentemente e alto nível, sobre os conflitos que comprometem direitos e sobre suas soluções e meios de preserva-los, mas existe uma notória disparidade entre este nível teórico e aquele que trata das instituições destinadas a efetivas essas soluções”. (Eugênio Raúl Zaffaroni. Poder Judiciário. Crise, 34 A partir das reformas do Estado – através da desestatização e das privatizaçõers – é que devem ser realçadas as funções sociais do Poder Judiciário e sua ação no sentido de promover o controle jurídico (e jurisdicional), aliado aos controles efetivado pela sociedade, do respeito aos direitos fundamentais inscritos na Constituição, que garantem a existência de políticas públicas e o funcionamento dos serviços públicos em geral.73 Com a desregulamentação da economia, aumentaram as chances de se fragilizar (ainda mais) determinados segmentos que necessitam de uma tutela estatal. Não se pode conceber o funcionamento do Estado e da própria sociedade sem um mínimo efetivo de regras e procedimentos que garantam as condições básicas de vida e emancipação, principalmente no Brasil, que se assenta nas bases do patrimonialismo, do autoritarismo e do corporativismo74. Isso implica reconhecer uma nova postura do indivíduo diante do Estado ou do administrado diante da administração pública.75 Cada vez mais o exercício de prerrogativas individuais ou coletivas frente ao aparato estatal se faz sentir, procurando tutelar as diversas aspirações de cidadania voltadas a operar condições positivas de bem-estar e bem viver para parcelas da população nacional. acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1995, p. 29). 73 Numa análise da ideologia do estado social que emana do Preâmbulo da Constituição Federal, Sérgio Luiz Souza Araújo pondera: “O homem de hoje requer educação, saúde, trabalho. Está aqui o objetivo supremo, a inspiração normativa do decidido intervencionismo estatal, a fim de que o poder cumpra seus deveres para com a sociedade e, assim, seja possível a plena realização dos direitos e liberdades. A plenitude humana somente se concretizará se a sociedade proporcionar as bases e reais condições de sua efetivação. A ideologia constitucional impõe que a prosperidade coletiva tenha clara primazia em relação aos direitos de índole individualista”. (“O preâmbulo da constituição brasileira de 1988 e sua ideologia”. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, a. 36, n.143, jul./set., 1999, pp. 6-7). 34 74 “A história da administração pública brasileira é a história do estamento, do patrimonialismo, do rei, senhor das terras e das gentes e dos cargos. É a história dos amigos do rei, os quais modernamente se inserem no tecido da administração pública pela via do contrato sem concurso, sem aferição prévia da capacitação. A função pública revestiu-se, é verdade, de nobreza, mas na exata proporção da nobreza do príncipe concedente (Vera Sueli Storck. “A reforma administrativa do governo Collor”. Revista de admministração. São Paulo, vol. 27, n. 3, jul./set., 1992, p. 70). 75 “Se nel XIX e nella prima metà del XX secolo, il tema dominante delle scienze sociali era quello dei rapporti tra governanti e governati, oggi il tema dominante è diventato quello dei rapporti tra amministrazioni pubbliche e cittadini. (...) Com il XX secolo inizia uma fase nuova: le amministrazioni pubbliche aumentano di numero e d ´importanza e si stabiliscono rapporti diretti com i privati. Questi sono utenti di servizi pubblici o si valgono di prestazioni sociali e sanitarie di amministrazioni pubbliche. Ma hanno um ruolo passivo e uno statuto inferiore a quello di cittadino, individuato dal termine ‘aministrato’.(...) Nell´ultimo quarto di secolo si registra um cambiamento radicale: le amministrazioni pubbliche riconoscono i privati come cittadini, posti sullo stesso livello delle aministrazioni e dotati di diritti” (Sabino Cassese. “Il cittadino e l’amministrazione pubblica”, Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, v. 4, 1998, pp. 1016-1019. No mesmo sentido Eduardo García de Enterría. “Sobre los derechos públicos subjetivos”. Anuário de Derecho Administrativo, Ediciones Revista de Derecho Público. Universidad de Chile, vol. I, 1975/76, p. 67. 35 Nesse sentido é que o Poder Judiciário tornou-se, na expressão de Luigi Ferrajoli, citado por Celso Fernandes Campilongo, um “tutor e garante dos direitos dos cidadãos contra os poderes, quer públicos quer privados” sujeito ao controle e escrutínio público da própria sociedade a qual passa a tutelar.76 Essa parece ser a característica necessária dos Estados que se querem democráticos: Para assegurar o protagonismo cada vez mais acentuado dos cidadãos individualmente e dos diversos grupos e segmentos sociais, no plano coletivo, foi atribuído um papel de preponderância jurídica às garantias constitucionais77 na tutela dos direitos fundamentais, cabendo aos tribunais a sua observância em defesa da cidadania, principalmente através da jurisdição e do direito de ação. Isso, nada mais é, do que a natural relação que decorre das implicações metodológicas e práticas entre constituição e processo, como forma de garantir num plano mais elaborado a garantia do acesso e da efetividade da justiça.78 Sabe-se que as Constituições modernas trazem no seu bojo uma gama de normas e princípios que reconhecem os direitos fundamentais, mas que às vezes apresentam dificuldades na sua efetividade e concretização.79 Deve ser dito também que, devido às rápidas transformações ocorridas na sociedade industrial, que modificaram a lógica das estruturas e instituições tanto estatais quanto 76 Da grande expectativa advinda da Constituição, foi lançada sobre o Poder Judiciário uma carga de responsabilidade muito grande sobre a “aplicação e concretização das demandas sociais expressas e incorporadas ao texto constitucional”. (Anderson Cavalcante Lobato, “A contribuição...”, ob. cit, p. 19). 77 “A cidadania, para sua efetivação plena, demanda múltiplas incursões sobre o conceito de garantia e dos princípios constitucionais do processo. A exigência de garantia constitucional é necessária para assegurar a integridade da Constituição como regra suprema do poder. O problema da garantia constitucional, princípio da liberdade e da democracia, tem grande importância.(...) A conceituação constitucional de garantia deve ser examinada ao lado dos grandes princípios constitucionais do processo. A linguagem constitucional emprega diversas expressões ou palavras que têm importante significado na interpretação de seu conteúdo formal e material, bem como nas diversas oportunidades de sua aplicabilidade e da transformação concreta de sua eficácia. Na Constituição da República Federativa do Brasil, o Título II, que elenca a pluralidade de direitos que se desdobram (direitos fundamentais, direitos individuais e coletivos, direitos sociais, direitos à nacionalidade, direitos políticos), abriga a expressão ‘garantias fundamentais’, na enumeração dos ‘direitos e garantias fundamentais’, e, no art. 5º, § 2º, fala em direitos e garantias expressos na Constituição”. (José Alfredo de Oliveira Baracho. Teoria geral da cidadania. A plenitude da cidadania e as garantias constitucionais e processuais. São Paulo: Ed. Saraiva, 1995, pp. 9-10). 78 “O vínculo ligando Constituição e processo, que na época atual – como dissemos, já apelidada de ‘pósmoderna’ – mostra-se tão pronunciado, é uma decorrência natural do novum histórico instaurado pela modernidade, no terreno jurídico-social: a consagração da vitória na luta para revolucionar a organização política pela redação de um texto constitucional, isto é ‘constitutivo’ de uma nova ordem jurídica, um fenômeno que no ano em curso se tornou bicentenário.(...) Tanto a legislação como a administração da res publica e de justiça necessitam de formas procedimentais dentro das quais possam atuar atendendo aos novos padrões legitimadores do direito, baseados na racionalidade e no respeito ao sujeito, portador dessa faculdade”. (Willis Santiago Guerra Filho. “A dimensão processual dos direitos fundamentais e da Constituição”. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, a. 35, n.º 137, jan./mar., 1998, p. 19). 79 Anderson Cavalcante Lobato. “O reconhecimento...”, ob.cit., p. 86. 36 privadas, o modo de controle sobre o próprio Estado e o mercado tende a mudar. Como se viu, a noção de cidadania forjada na ação individual está migrando para formas de ação coletiva através dos diversos grupos. Surge daí, a noção de controle social que se difunde pela sociedade e que se impõe ao Estado e ao mercado, principalmente com relação à prestação dos serviços públicos à quase totalidade dos cidadãos. O controle público e social da atividade econômica e da prestação dos serviços públicos além da sua repercussão na vida prática dos cidadãos oportuniza o desenvolvimento da participação popular, fortalecendo a organização e a solidariedade na resolução dos conflitos. Isso torna aberta a possibilidade para a intermedição do Poder Judiciário que filtra os anseios da coletividade e afirma a produção de sentido às normas jurídicas para vazer valer a “força normativa da Constituição”. Para isso devem ser apontados caminhos que façam com que a nova institucionalidade e os novos direitos sejam absorvidos pelos magistrados e passem a integrar um conjunto de decisões que inovem em favor de um controle judicial e social do mercado. Equivale dizer que novas interpretações acerca da realidade social e, principalmente econômica, devem pontuar esta atuação, dando maior espaço para uma hermenêutica que torne efetiva a Constituição e seus princípios. Sabe-se que ainda há muita resistência do Poder Judiciário na hora de efetivamente fazer justiça com base em princípios, muito embora se tenha indiscutivelmente avançado com a positivação dos princípios na Constituição, ajudando a popularizá-los e torná-los disponíveis para a sua aplicação concreta80. Por outro lado, deve-se afastar o ranço da tradição judiciária e do nosso próprio ordenamento jurídico, assentado numa índole liberal, que consagra e perpetua a idéia de que os direitos individuais (principalmente os relacionados com a propriedade) se sobrepõem sobre os interesses da coletividade. Quando se fala em controle social deve-se ter presente que os princípios do Direito público são fundamentais, ainda mais quando preordenados à finalidades de caráter social e coletivo. Há que se reconhecer, de uma vez por todas, o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado. 80 “As reformas que visam a criação de alternativas constituem hoje uma das áreas de maior inovação na política judiciária. Elas visam criar, em paralelo à administração da justiça convencional, novos mecanismos de resolução de litígios cujo traços constitutivos têm grande semelhança com os originalmente estudados pela antropologia e pela sociologia do direito, ou seja, instituições leves, relativa ou totalmente desprofissionalizadas, por vezes impedindo mesmo a presença de advogados, de utilização barata, senão mesmo gratuita, localizados de modo a maximizar o acesso aos seus serviços, operando por via expedita e pouco regulada, com vistas à obtenção de soluções mediadas entre as partes”. (Boaventura de Sousa Santos. “Introdução à sociologia da administração da justiça”, in Direito e justiça. A função social do Judiciário. São Paulo: Ática, 1989, p. 55). 37 Outra questão que precisa ser melhor definida e aprofundada relaciona-se com os aspectos do controle social que tangenciam os temas da atividade econômica da Administração Pública. Quando o próprio Poder Judiciário se auto-limita, por questões tradicionais (como por exemplo, a alegação da absoluta e rígida separação de poderes, entre outros) no momento de avaliar critérios de oportunidade e conveniência dos atos administrativos, e deixando essa decisão ao sabor do Executivo, que via de regra comete todo o tipo de abuso e desmando, não tornando eficaz os comandos a respeito de políticas públicas importantes aos cidadãos e aos grupos, isso tende a gerar efeito desmobilizador da ação da cidadania. Ao se analisar questões de Direito público,voltadas para a decidibilidade acerca das polítícas públicas, não há como deixar de se analisar o juízo efetivo de mérito para “descobrir” o verdadeiro interesse público em jogo. O controle social sendo indissociável do tema da regulação que se apresenta no nosso sistema jurídico e econômico abre espaço para o Judiciário afirmar conceitos na medida em que a matéria, ainda nova, se consolida. Haverá a necessidade de uma ação afirmativa dos Poderes Públicos e da própria sociedade no esforço sistemático de disseminar e trocar informações sobre os diversos aspectos que integram o marco regulatório, para que bem se avalie sua efetividade e as melhoras para o conjunto da coletividade. Aspectos técnicos e operacionais sobre as agências reguladoras e sua atividade serão muito debatidos em todos os meios, o que por certo também ocorrerá no âmbito do Poder Judiciário. Fatalmente muitas questões que têm correlação direta com a implementação de políticas públicas regulatórias e que atinjam a esfera dos administrados, não sendo satisfatoriamente resolvidas pelas agências acabarão desaguando nos Tribunais para uma solução definitiva. O mesmo deve ser dito com relação às empresas privadas concessionárias da prestação de serviços públicos que poderão questionar as decisões que venham a ferir seus direitos líquidos e certos. A conclusão deste fenômeno está em consonância com o que diz Anderson Cavalcante Lobato: Mesmo que se flexibilizem as estruturas administrativas e os controles por parte do Poder Executivo, o Poder Judiciário continua sendo o guardião do Estado Democrático de Direito, através do devido processo legal e da soberania de suas decisões.81 81 Muito embora para os liberais, quando se trata de questões que envolvam o mercado, muito freqüentemente queiram subtrair-se da jurisdição estatal, reservando-se o direito de resolver os conflitos através da arbitragem. 38 Esta realidade chega às portas das instituições jurídicas mas, sobretudo, tem reflexo direto no Poder Judiciário e toda a sua produção de sentido, que não consegue romper com a crise de paradigmas e (re) modelar-se diante das transformações globais82 pelas quais passa o capitalismo, neste final de século. Uma nova compreensão e leitura do Direito e de suas disciplinas (principalmente aquelas recentes) comporta uma série de elementos que precisam ser levados em conta pelo Poder Judiciário. Cumpre adequar-se, dignamente, à sua condição de foro privilegiado das mudanças sociais, incorporando uma nova mentalidade enquanto instituição e, no plano pessoal, cada um de seus membros refletirem sobre o verdadeiro papel que desempenham enquanto agentes políticos e de cultura. Ocupar lugar de destaque na condução da problemática jurídica, tendo em mira a constante distribuição da justiça e, se possível da riqueza (efetivando o brocardo latino suum cuique tribuere), tomando nas mãos a tarefa que os outros Poderes não demonstram o interesse em cumprir. O Judiciário como uma “arena de conflitos distributivos”, onde é possível através de demandas populares alcançar a efetividade das políticas públicas tem o papel de garantir a eficácia das políticas públicas. A conclusão não poderia ser outra: a de que a efetividade dos direitos fundamentais está condicionada ao aperfeiçoamento do regime democrático e da construção de espaços que projetem a cidadania como condição de participação política (individual e coletiva). Assim, o controle do Estado, do mercado e de suas instituições poderá ser realizado por todos e cada um, com a garantia do acesso ao Poder Judiciário. Considerações Finais 82 O prenúncio desta verdade vem pela pena precisa de José Eduardo Faria: "A globalização econômica - este é apenas um juízo de fato, não de valor - está substituindo a política de mercado, como instância privilegiada de regulação social. Por tornar os capitais financeiros muitas vezes imunes a fiscalizações governamentais, fragmentar as atividades produtivas em distintas nações, regiões e continentes e reduzir as sociedades a meros conjuntos de grupos e mercados unidos em rede, esse fenômeno vem esvaziando parte dos instrumentos de controle dos atores nacionais. À medida que o processo decisório foi sendo transnacionalizado, as decisões políticas tornaram-se crescentemente condicionadas por equilíbrios macroeconômicos que passaram a representar, mais do que um simples indicador, um efetivo princípio normativo responsável pelo estabelecimento de determinados limites às intervenções reguladoras e disciplinadoras dos governos. Sua autonomia decisória, como conseqüência, tornou-se progressivamente vulnerável a opções feitas em outros lugares, sobre as quais dirigentes, legisladores e magistrados têm reduzida capacidade de pressão e influência". (“Globalização e o futuro do Direito”. Anais da XVI Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil. Fortaleza, Setembro, 1996., p. 605). 39 Quando se fala em mudanças substanciais no Estado brasileiro é preciso que se tenha claramente definido o alcance que isso representa e a significação de se adaptar toda a máquina administrativa às necessidades de caráter estrutural e político das instituições nacionais. Muito embora a natureza do Estado brasileiro não tenha sofrido alterações substanciais desde 1930, a sua matriz continuou radicada no intervencionismo estatal. A crise do padrão de financiamento que fez que o Estado minimizasse seu papel tradicional de produtor de bens e serviços, e passasse a desempenhar uma função central de coordenação e regulação das atividades de infra-estrutura, abrindo espaço para o setor privado atuar como parceiro. Dentre as medidas de ajuste estrutural e de reorganização do Estado brasileiro destacaram-se, como se viu, as políticas de privatizações das empresas industriais ou de infraestrutura, além de serviços públicos (energia elétrica, telecomunicações, saneamento, saúde, transportes, etc.). Junto a este processo privatizante foi implantado um regime jurídico de instituições governamentais – as agências reguladoras – com o fito de controlar e fiscalizar a ação das instituições públicas e privadas, prestadores dos serviços públicos delegados. Essa diretriz estratégica trouxe consigo a necessidade da formulação de um conjunto de políticas públicas capazes de afirmar o marco regulatório no Brasil, representando uma expectativa no arcabouço institucional da Administração Pública. Ao se implementar os sistema de agências para controlar a prestação dos serviços públicos e também o alcance das metas propostas pelas instituições públicas e privadas se quis buscar critérios de transparência e responsabilidade do processo regulatório pela garanti do controle social. Esta nova visão da atuação do Estado no domínio econômico, com a diminuição de sua participação direta na prestação de serviços, impôs, por outro lado, a necessidade de se reestruturar a Administração, de maneira que esta pudesse controlar eficientemente as empresas públicas e privadas, além de outras organizações que venham a assumir a prestação dos serviços públicos, principalmente se houver uma participação efetiva do cidadão. A questão que se põe é que nem sempre a teoria é de fácil aplicação prática. Como toda transformação social, a adoção de uma Administração Pública moderna – absolutamente comprometida com o cidadão, amplamente eficiente e submetida ao controle social – 40 demanda tempo. A sociedade e o próprio Estado precisam de um tempo de adaptação para se acostumarem com novas idéias, novos conceitos e novas formas de se viver. É o que ocorre com a concepção de controle social. A realidade tem mostrado que, tanto a liberdade absoluta no mercado quanto a intervenção desordenada do Estado nas atividades econômicas, tem favorecido a alguns setores ou classes, permanecendo sem nenhuma transparência e controle por parte da sociedade, confrontando-se, em última análise, com o princípio democrático que anima o Estado de Direito. É preciso, pois, controlar tanto o Estado quanto o mercado. A idéia de controle social já foi lançada. No entanto, não se espera que seja assimilada imediatamente. Só o tempo e o grau de esforço conjunto de administradores e administrados, irá dizer se esse tipo de controle tem chances de vingar no Brasil. O certo é que é estamos diante de nova forma organizativa da esfera pública que precisa ser aperfeiçoada para que os bons resultados se façam sentir a curto e médio prazos. Por último, cabe registrar a importância desempenhada pelos três Poderes na implementação das políticas e sociais que dão efetividade aos mandamentos constitucionais. Tanto o Executivo quanto o Legislativo têm sido ao longo dos anos os protagonistas na condução das ações afirmativas (e muitas vezes negativas). Caberá, no entanto, ao Poder Judiciário, uma nova tarefa: a de tornar efetivos os direitos anunciados e integrá-los na vida prática dos cidadãos. Para isso deverão os magistrados estar preparados para uma nova postura hermenêutica e abertos aos novos direitos e modalidades políticas, econômicas, sociais, jurídicas e culturais que surgem no novo milênio. Espera-se que, diante das recentes alterações no cenário jurídico nacional, o Poder Judiciário possa compreender e dimensionar o verdadeiro papel dos direitos fundamentais sociais e interpretá-los e aplicá-los corretamente. Que possa entender a importância da natureza das políticas públicas para que sejam concretizadas e implementem os direitos sociais e econômicos tão almejados por toda a sociedade. Referências Bibliográficas ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de e RAMOS, Alexandre(org.). Globalização, neoliberalismo e o mundo do trabalho, Curitiba: Ed. IBEJ, 1998. 41 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social, 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1972. CANOTILHO, 1993. Joaquim José Gomes, Direito Constitucional. 6.ed. Coimbra: Almedina, COMPARATO, Fábio Konder, “O indispensável Direito econômico”. Revista dos Tribunais, ano 54, vol. 353, mar., 1965, pp. 14-26. CROZIER, Michel. Estado modesto, Estado moderno. Estratégia para uma outra mudança. Trad. J.M. 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